Open-access Hegemonias corporificadas: dilemas morais no adoecimento pelo câncer de próstata *

Hegemonías corporificadas: dilemas morales en enfermización por el cáncer de próstata

RESUMO

Objetivo  Interpretar o significado atribuído à experiência do homem sobre o seu corpo durante o adoecimento pelo câncer de próstata.

Método  Pesquisa etnográfica com homens norteada pelo método narrativo e pelos referenciais teóricos da antropologia médica e das masculinidades. As informações foram colhidas por meio de entrevistas gravadas, observação direta e registros em diário de campo, os quais foram analisados pela análise temática indutiva.

Resultados  Participaram da pesquisa 17 homens. Durante o adoecimento pelo câncer de próstata, os corpos masculinos foram regidos por experiências morais que influenciaram a maneira como os homens guiaram sua relação com a saúde e sua masculinidade multifacetada, defendendo preceitos culturais hegemônicos e dilemas morais de afirmação de sua identidade, os quais foram interpretados com o significado de corporeidade.

Conclusão  Durante o adoecimento, os homens vivenciam dilemas corporais, sociais e morais que ameaçam a masculinidade hegemônica. A compreensão destes pode auxiliar os profissionais a lidar com esta população.

Neoplasias da Próstata; Masculinidade; Enfermagem Oncológica; Saúde do Homem; Cultura

RESUMEN

Objetivo  Interpretar el significado atribuido a la experiencia del hombre acerca de su cuerpo durante la enfermización por el cáncer de próstata.

Método  Investigación etnográfica con hombres orientada por el método narrativo y por los marcos de referencia teóricos de la antropología médica y las masculinidades. Las informaciones fueron recogidas mediante entrevistas grabadas, observación directa y registros en diario de campo, los que fueron analizados por el análisis temático inductivo.

Resultados  Participaron en la investigación 17 hombres. Durante la enfermización por el cáncer de próstata, los cuerpos masculinos fueron regidos por experiencias morales que influenciaron la manera cómo los hombres guiaron su relación con la salud y su masculinidad multifacética, defendiendo preceptos culturales hegemónicos y dilemas morales de afirmación de su identidad, los que fueron interpretados con el significado de corporeidad.

Conclusión  Durante la enfermización, los hombres vivencian dilemas corporales, sociales y morales que amenazan la masculinidad hegemónica. La comprensión de esos dilemas puede auxiliar a los profesionales a trabajar con esta población.

Neoplasias de la Próstata; Masculinidad; Enfermería Oncológica; Salud del Hombre; Cultura

ABSTRACT

Objective  To interpret the meaning attributed to men’s experience regarding their body during the development of prostate cancer.

Method  Ethnographic study carried out with men and guided by the narrative method and the theoretical frameworks of medical anthropology and the anthropology of masculinities. Information was obtained through recorded interviews, direct observation, and logs from a field journal, which were examined using inductive thematic analysis.

Results  Seventeen men participated in the study. During the process of falling ill with prostate cancer, the male bodies were ruled by moral experiences that influenced the way men conducted their relationship with their health and multifaceted masculinity, standing for hegemonic cultural principles and identity affirmation moral dilemmas, which were interpreted with the meaning of embodiment.

Conclusion  During the development of the disease, men experience bodily, social, and moral dilemmas that threaten the hegemonic masculinity. Understanding them can help professionals deal with this population.

Prostactic Neoplasms; Masculinity; Oncologic Nursing; Men’s Health; Culture

INTRODUÇÃO

Gênero é um termo utilizado pela antropologia para definir os papéis sociais, identidades e ideologias presentes em um grupo, e, por ser construído e desconstruído pela cultura, não é determinado pela espécie e nem predeterminado durante o nascimento: ele é mutável, moldado e mediado pelas ações sociais que o regem(1). Dessa forma, o gênero masculino se apresenta como categoria analítica de potencialidades em que se corporificam diversas identidades, as quais, dependendo dos atos defendidos por seus articuladores, valorizam-nos em suas relações com a sociedade.

Ao adoecer, o corpo masculino sofre uma gama de transformações, pois se torna vulnerável biologicamente, levando os homens à adoção de atos que limitam suas funções sociais e suas potencialidades, como a dependência de cuidados e a corporificação de identidades não hegemônicas que os tornam incapazes de defender tipos de virilidade culturalmente valorizados entre grupos masculinos, como o controle do corpo, suas funções, sua imagem e suas ações(2-3).

Pesquisadores(4) endossam essa afirmativa e particularizam que o adoecimento provocado pelo câncer de próstata (CP), a experiência com seus tratamentos e as mazelas enfrentadas são fatores que influenciam a construção da masculinidade e das estratégias de enfrentamento dos processos de saúde.

Ao longo dos anos, vem aumentando a incidência dos cânceres masculinos em todo o mundo. Para 2018 foi estimado o risco de 66.120 casos novos do CP para cada 100 mil homens brasileiros, incidência essa que é seis vezes maior em países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra(5). Entretanto, para além desses números, a realidade do adoecimento pelo CP se estende durante a incorporação da identidade de sobrevivente desses homens, pois a forma como cuidam dos seus corpos e os apresentam para a sociedade, como lidam com a sua cultura e sua masculinidade diante de outros homens, relaciona-se com processos locais, regionais e globais que simbolizam ideologias hegemônicas do que é ser homem, adoecido e sobrevivente(1,6).

Em tal cenário, os conceitos de corpo e de masculinidade se apresentam como um amálgama, sendo o corpo um substrato no qual os homens defendem suas relações entre o biológico e o social(2-3), e as masculinidades uma fonte analítica para compreender as identidades múltiplas culturais impostas ao corpo masculino(7). Assim, esses conceitos subsidiaram o presente estudo por meio do referencial teórico da antropologia das masculinidades e da antropologia médica, auxiliando responder o seguinte questionamento: “qual a experiência do homem sobre o seu corpo no adoecimento pelo CP?”

Na procura por respostas a tal indagação, foi realizada uma revisão sistemática na literatura nacional e internacional nos bancos de dados da Literatura Latino-Americana e do Caribe (LILACS), Medical Literature Analysis and Retrieval System on-line (MEDLINE) e Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), em que foram utilizados os descritores científicos do DeCS e MeSH (masculinidade, neoplasias da próstata, masculinity e prostatic neoplasms ), que, em todas as bases, estiveram refinados pelo operador booleano and . Foram selecionadas 27 referências, publicadas entre os anos de 2008 e 2017, nas quais foram encontrados poucos estudos com abordagem qualitativa centrados na temática em questão. Em sua maioria, as pesquisas encontradas restringiam suas discussões em torno da saúde do homem diante de sua masculinidade e sexualidade, excluindo-se nesse contexto o corpo e seus símbolos. Portanto, ante essa problemática, tem-se o objetivo de interpretar o significado atribuído à experiência do homem sobre o seu corpo durante o adoecimento pelo CP.

MÉTODO

DESENHO DO ESTUDO

Pesquisa etnográfica norteada pelo método narrativo e pelos referenciais teóricos da antropologia médica e das masculinidades.

O método etnográfico narrativo foi utilizado por sua característica de articular múltiplas técnicas de coleta de dados (triangulações), como a observação participante, a entrevista, as anotações em diários de campo e a análise de documentos, compondo um campo estruturado, pressupondo a organização e a hierarquização dos elementos do seu conteúdo(8).

Como forma de dar sentido ao que se vive, esse método possibilita a inserção de mundos de vida (narrador e ouvinte) como uma característica construtiva da narrativa (fusão de horizontes) que permite ao pesquisador chegar a um conhecimento tácito (informações sobre a cultura que não estão somente enraizadas nas experiências verbais), com destaque para as transformações da vida(9-10).

Para a antropologia médica, a doença não é apenas um processo biológico/corporal, mas o resultado da influência do contexto cultural e da experiência subjetiva de que o corpo está com problemas(11). Já para a antropologia das masculinidades, teoria que observa as posições de poder estabelecidas nas relações de gênero, a saúde e a doença apresentam-se como mediadoras das práticas pelas quais homens e mulheres se comprometem com o lugar masculino e feminino na sociedade e seus efeitos na experiência corporal e na cultura(7).

POPULAÇÃO

Os critérios de inclusão no estudo foram: homens com diagnóstico de CP, realizando pelo menos 3 meses de tratamento, maiores de 18 anos, independentemente do nível de escolaridade e socioeconômico, e que se autodeclararam em condições físicas e psíquicas de relatar sua experiência. Participaram 17 homens em seguimento terapêutico em hospital universitário localizado no interior do estado de São Paulo.

COLETA DE DADOS

Os dados foram coletados de forma individualizada com cada participante por meio de entrevistas em profundidade e observação do contexto de pesquisa, sendo estas registradas em diário de campo, realizadas nas dependências do complexo hospitalar e nos lugares em que os participantes julgavam propícios para relatar a sua experiência, como residências, feiras livres e locais de trabalho e de lazer. As informações colhidas eram produto da vivência do pesquisador com o pesquisado durante vários momentos significativos da vida dos adoecidos, como acompanhamento durante consultas e exames, interação com familiares e amigos e no convívio social com outros homens. Cada encontro foi guiado por um roteiro inicial para auxiliar na coleta de dados, os dados clínicos foram extraídos dos prontuários dos participantes, e as informações de suas experiências foram conhecidas por meio de entrevistas em profundidade, as quais foram evocadas por questões norteadoras, como: O que você sabe sobre esse tipo de câncer? Por que você teve essa doença? Como é lidar com os tratamentos? O que mudou na sua vida? O que faz para se cuidar? A sua vida como homem mudou? Mas convém salientar que, para cada participante, conforme expressavam os significados de sua experiência, outras questões foram sendo formuladas, de modo a acessar as nuances de cada história e ações apresentadas. Depois de cada encontro, os dados foram compilados e analisados com as possíveis reflexões registradas no diário de campo, obtendo-se assim o levantamento de novos questionamentos, que foram aprofundados nos encontros posteriores. A imersão no campo durou 36 meses e só foi encerrada quando o objetivo traçado foi atingido, os dados começaram a repetir-se, acusando saturação, e novos sentidos não eram mais adicionados.

ANÁLISE E TRATAMENTO DOS DADOS

De posse dos dados, foram construídas sínteses narrativas individuais seguidas de sínteses narrativas coletivas para melhor compreender as experiências narradas. Feito isso, os enredos foram submetidos à análise temática indutiva(12), e os aspectos semelhantes e particulares das narrativas foram integrados e apresentados sob a forma de síntese narrativa temática, denominada: “O corpo masculino no adoecimento pelo câncer de próstata”. As narrativas dos participantes são apresentadas em itálico como interpretação primária, na forma textual como foram ditas, além de também exemplificarem a análise dos autores.

ASPECTOS ÉTICOS

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo sob o protocolo n.º 054/2013, sendo todos os preceitos éticos respeitados em seus processos, como determina a Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todos os participantes, cujo anonimato foi assegurado substituindo seus nomes reais por nomes fictícios.

RESULTADOS

Quanto às características sociais e clínicas dos participantes, em sua maioria eram casados, católicos, residiam na cidade de Ribeirão Preto – SP, tinham moradia própria, eram aposentados, com ensino fundamental incompleto e idade entre 61 e 81 anos. Todos foram submetidos à prostatectomia radical e vivenciaram as mazelas da disfunção erétil e da incontinência urinária. Cinco deles ainda foram submetidos a sessões de radioterapia, e três, concomitantemente ao tratamento médico, utilizaram terapias complementares com ervas e chás medicinais.

O CORPO MASCULINO NO ADOECIMENTO PELO CÂNCER DE PRÓSTATA

A próstata foi reconhecida como um órgão presente no corpo masculino, mas por tratar-se de uma região regulada socialmente por normas e valores culturais, os homens identificaram as suas funções relacionadas a atributos biológicos e sociais, como (...) servir pra dar a pressão no jato da urina, na circulação do pênis , fornece auxílio na hora do sexo, macheza (masculinidade) , força, barba, pelo e músculo, sendo ela, acima de tudo, imbricada na função de ligá-los às coisas do mundo e fazer com que as pessoas reconheçam que as coisas que eles fazem são diferentes das que as mulheres fazem (...), ou seja, tem a função de firmar sua identidade de gênero e sua masculinidade (Cauã, Marcos, Joaquim, Miguel, Fabio e Reinaldo).

No modelo explanatório leigo dos narradores, o sinal de que o corpo não estava normal veio por meio de sua mudança corporal, quando os homens não mais conseguiam reproduzir suas funções fisiológicas com a mesma naturalidade que outrora e assim acabavam sentindo-se impotentes, vulneráveis e sem o controle do próprio corpo. Isso era inicialmente descrito por Jesus, Lázaro, Murilo e Antônio como um desconforto parecido com o que a mulher tem quando está perto para menstruar , foi evoluindo até a urina ficar presa e sair aos pouquinhos (disúria) (...) .

Sentir dor , estar diferente de outros homens , se sentir um lixo porque o corpo não funcionava mais (...) , preocupação com o corpo e aproximação de sua morte foram alguns dos sentidos relacionados aos sintomas do CP, os quais incentivaram a buscar o modelo biomédico para ver o que estava errado com seus corpos (Rodrigo, João e Antônio).

Segundo as narrativas, os exames diagnósticos específicos do CP foram realizados por obrigação moral, atendendo a cobranças de familiares e do meio social, porque segundo eles (...) não tiveram opção: ou era isso, ou a morte (Rodrigo, Miguel e Thiago). Movidos por aquele sentimento moral de agir conforme o meio cultural, os narradores submeteram-se aos exames de rastreio do CP para não subverterem as normas sociais que regem sua masculinidade.

Fazer os exames de toque e biópsia foi compreendido (...) como se o ato tocasse no H masculino do homem, algo constrangedor e dolorido, comparado com um estupro (Cauã e Reinado), uma violação de sua identidade corporal masculina, algo que os levava a se sentirem derrotados, humilhados, torturados e que os envergonhava, pois os colocava em situação contrária à da imagem masculina dominante que incorporavam quando estavam saudáveis (Vladimir, Lázaro, Lúcio, Reinaldo e Fábio). Como optaram pela busca do sistema de saúde médico para detectar a desordem de seus corpos, ao realizar os exames sentiam-se como um boi no matadouro ( ... ), diferentes de muitos outros homens agora, porque deixaram outro cara pôr a mão no seu corpo e literalmente tirar um pedaço (exame de biópsia) (João e Joaquim). Como são regidos pela obrigação moral de afirmar por meio de seus atos que são masculinos, vivenciaram o dilema de (...) viver entre a cruz e a espada , pois ou faziam o que acham que é certo ou faziam o que os outros acham correto (...) , ou seja, ou cuidavam do seu corpo adoecido e se afastavam dos preceitos de sua masculinidade, ou não cuidavam do corpo e mantinham sua moral (Alexandre, Mateus e Tony).

Diante dessa obrigação moral presente na experiência do homem adoecido, o modo que Marcos, Jesus, Rodrigo e Antônio encontraram para enfrentar o sentimento de ser um (...) homem fraco e doente foi acabar desapegando-se do corpo e seguindo com a culpa (...) de ser um desertor da masculinidade hegemônica, pois começaram a promover cuidados de saúde (busca por detecção e tratamento do CP) com o seu corpo biológico.

Mesmo com as inúmeras questões que cercam a escolha do tratamento, Reinaldo, Cauã, Rodrigo e Miguel sentiram-se (...) numa encruzilhada, sem saber que caminho seguir (...) , pois aderir a um tratamento é atitude imprescindível para cumprir a expectativa moral de buscar a cura para a doença, como mencionado no trecho: (...) minha família e as pessoas começaram a encher o meu saco para tirar logo a próstata do meu corpo... eles interferiram muito na minha escolha, me pressionaram noite e dia mesmo, sem a minha vontade (...) .

No que se refere à opção por aderir aos tratamentos médicos, os narradores levaram em conta vários fatores culturais de suas experiências sociais. Para Alexandre, Fábio, Lúcio e Mateus a quimioterapia e a radioterapia eram procedimentos preteridos, pois conforme suas narrativas (...) não queríamos nos perder de nós mesmos, ter essa imagem de outro homem que não somos... ficar trancafiado e usar aqueles lencinhos (...) a gente se sente seco, assado (...), acaba com o corpo de homem dentro e fora de nós . Na perspectiva de Jesus e Marcos, a hormonioterapia seria uma das últimas coisas que fariam para recuperar sua normalidade, pois o hormônio provoca mudanças na sua imagem corporal e social e (...) transforma-os em outro homem, a aparência do corpo muda e ninguém respeita mais porque é travesti que usa esse negócio de hormônio (...) e para eles, (...) precisamos do nosso corpo 100% para as pessoas verem como somos , que ainda somos masculinos, mesmo depois da doença.

Todos os homens investigados neste estudo foram submetidos à prostatectomia, mas somente 13 deles sofreram com o medo de não ser mais homem depois da cirurgia , pois segundo eles (...) o homem fica capado e acaba perdendo a moral que levou a vida toda para construir. As pessoas veem a gente como homem e esperam que se aja feito um, se a gente não faz mais coisas de homem, as pessoas tratam a gente feito mulher, ou seja, cheio de cuidados porque somos frágeis (...) (Cauã, Marcos, Joaquim, Miguel, Fabio, Reinaldo, Alexandre, Mateus, Tony, Jesus, Rodrigo, João e Antônio).

Merece destaque a maneira como foram elaborados os enredos sobre o tratamento, pois enfatizam a aceitação do procedimento cirúrgico de prostatectomia como terapêutica padrão para restabelecer a normalidade do corpo. Para os homens isso ocorreu devido à falta de outras opções médicas que não envolvessem mudanças no corpo, na masculinidade e nos planos de vida. Assim sendo, os adoecidos entendem ser essa a melhor opção para encarar situações tão difíceis, mas mesmo assim acabam sofrendo pela ausência do seu órgão, como destacado no trecho comum a todos os 17 narradores: (...) nos sentimos super mal por isso, nos sentimos um lixo porque o médico jogou nossa próstata fora, aquilo era nosso (...) Era a nossa macheza! E agora, como vamos seguir a vida com a esposa? Como podemos ser homens com o corpo despedaçado? As pessoas não vão nos respeitar mais! (Cauã, Marcos, Joaquim, Miguel, Fábio, Reinaldo, Alexandre, Mateus, Tony, Jesus, Rodrigo, João, Antônio, Vladimir, Lázaro, Lúcio e Thiago).

Para os homens, mais impactante do que perder a próstata, foi perder suas funções, símbolos e representações de corpo masculino, uma transição de vida compartilhada por todos como algo que os leva a não ter mais objetivos de prosseguir porque (...) não tem sentido mais ser homem assim, pois não dá para ser uma pessoa por inteiro! Isso nos deixa muito mal e nos sentimos muito frustrados, pequenos e tristes! Deixamos muita coisa pra trás: trabalho, macheza, moral, saúde, e quase a mulher, tudo por causa dessa doença! (choro) (Cauã, Marcos, Joaquim, Miguel, Fábio, Lázaro, Lúcio e Reinaldo) Mas nesta vida tudo é possível! Por isso, poderíamos perder qualquer coisa, menos a moral, (...) porque é isso que dá respeito, dá valor, mas até isso o câncer levou da gente. Agora somos um tipo de homem diferente, não fazemos mais papel de homem e ninguém respeita (João e Alexandre) . Tivemos de aprender a viver vazando (incontinente) , fraco para tudo (fatigado) , imprestáveis pro sexo (impotente) , afeminados, sem pelo (efeito colateral dos hormônios) e, ainda assim, defendendo que somos homens mesmo sem nos sentirmos dessa forma, porque homem luta até o fim da vida (...) (Cauã, Marcos, Joaquim, Miguel, Fábio e Lúcio) .

DISCUSSÃO

As narrativas retratam aqui as transformações vivenciadas durante o CP: os homens refletiram essencialmente os sentidos comuns do modelo explanatório do adoecimento, e, na busca por soluções terapêuticas constantemente vistas como ameaçadoras para a manutenção da normalidade de seus corpos, transformaram-nos em corpos adoecidos e regulados por poderes morais que transgrediram símbolos da identidade masculina hegemônicas socialmente estabelecidos.

Os homens cultivam uma íntima relação com seu órgão masculino, do qual a próstata é a extensão simbólica que representa o máximo de virilidade, onde se estabelecem relações de gênero e de sustentação de sua masculinidade(13). Preservar a normalidade da próstata é defender preceitos imbricados em suas identidades culturais, valores determinantes de seus estereótipos regidos como naturais pela sociedade.

Nessa perspectiva, e com base nos depoimentos, da reflexão crítica sobre o modelo explanatório compartilhado entre os adoecidos, infere-se que os preceitos morais regidos pela cultura masculina assumem um papel ativo no fluxo de vida dos homens, pois os limitam a um julgamento implícito daquilo que é considerado certo ou errado ao estereótipo de gênero.

Para muitos homens, submeter-se a exames de detecção é como ser invadido num ato sexual não consentido, um procedimento físico que rompe os hábitos masculinos de ser uma pessoa inviolável e de afirmação de sua identidade moral(14). Contudo, no contexto da cultura ocidental, adotar comportamentos em busca de manter o corpo saudável tornou-se uma atitude valorizada como obrigação moral, pois socialmente é uma ação normativa em favor do corpo adoecido(15), defendida não só como um direito, mas também como um dever social.

A experiência moral permeia a vida dos homens em seu convívio social, e em se tratando de um poder regulatório constituído entre a comunidade e as estruturas que a regem, não tem o mesmo valor legal que decretos e leis estabelecidos pelo Estado, mas tem um valor simbólico e moral capaz de regular práticas e comportamentos no meio sociocultural(16).

Quanto às estruturas cognitivas e motivacionais que influenciam o comportamento social, a obrigação moral é evidenciada nas relações masculinas de saúde, traduzindo-se como a capacidade de agir conforme a representação de normas e leis sociais que levam os homens a guiarem as ações de seus corpos conscientemente, como um dever moral a ser cumprido, mesmo contra a sua vontade(17). Nessa perspectiva, a moral reflete costumes essencialmente de caráter coletivo: regras, deveres e valores que são partilhados pelos grupos sociais(18). Guiados por esse paradigma, os narradores defendem o corpo na busca por afirmação de seu papel hegemônico masculino, e não como desertores dos padrões morais. Assim, na transformação de sua identidade de homem saudável para adoecido, ele incorpora atos de misoginia, agindo em conformidade com os costumes compartilhados socioculturalmente como corretos para a sua identidade de gênero.

Nesse contexto, ganham destaque os sentidos revelados pelos narradores em relação a sua imagem corporal alterada, principalmente quando essa imagem está atrelada à terapêutica oncológica, como quimioterapia, radioterapia, hormonioterapia e procedimentos cirúrgicos mutiladores, que transformam os corpos masculinos, desarticulando-os da identidade moral hegemônica(4,14).

A adoção da imagem corporal do homem saudável torna-se uma obrigação moral normatizada pela cultura para que eles defendam valores identitários hegemônicos(19). Contudo, seguir padrões identitários hegemônicos de masculinidade significa abdicar da reflexividade estabelecida entre a imagem de um corpo real modelado pelo adoecimento e a imagem de um corpo ideal ditado pelas normas sociais, pois, para os homens, adoecer foi uma transformação não só corporal, mas também moral, em que os padrões de um corpo funcionante são constantemente valorizados pela cultura que permeia sua existência.

Endossando essas contemplações, pesquisadores(1,6) afirmam que os valores morais, sociais e culturais regem os comportamentos masculinos e guiam suas experiências corporais. A construção da identidade moral de masculinidade que ameaça desertar das relações hegemônicas foi produto de causa e efeito das práticas dos homens adoecidos investigados. O homem com CP sofreu transformações no corpo biológico, as quais repercutiram no corpo social, promovendo em primeira instância um embate moral sobre o que é concebível ao sexo masculino e ao feminino. Assim, sobre a estrutura simbólica que opera tais relações, interpretamos que, na sua essência antropológica, os sentidos narrados têm o significado de corporeidade.

Para a antropologia das masculinidades, o corpo apresenta-se como uma superfície sobre a qual a cultura imprime o seu gênero(1), um substrato onde são incorporados valores, normas e símbolos culturais arranjados em meio às estruturas de poder social que os regula num padrão onde coabitam o biológico e o social em permanente diálogo(20).

O corpo masculino liga o homem com o mundo, e o corpo social é objetivado no modo como é percebido o corpo físico, as experiências físicas proporcionadas por esse corpo, as quais sofrem influência das categorias sociais e das particularidades de cada cultura. Pesquisadores(21) defendem que na adoção de um corpo adoecido coexiste uma contínua troca de experiências físicas e sociais, de modo que as ações de uma complementam as ações da outra.

Na perspectiva antropológica(2,21-22), o corpo social não é o único responsável por prestar explicações às práticas normativas estabelecidas entre os homens e o seu meio, pois os corpos não são superfícies vazias à introdução de elementos culturais. As diferenças biológicas também estimulam a produção de práticas sociais. Assim, o corpo biológico e suas mudanças também devem ser compreendidos, pois suas relações influenciam e são influenciadas pelas normas sociais. Dessa forma, traz-se à tona desta discussão o corpo biológico determinado pela anatomia, fisiologia, hormônios, fenótipos e genótipos que prestam explicações ao corpo individual(20).

Sob a ótica da antropologia das masculinidades(1,7), os corpos masculinos devem ser vistos de uma perspectiva relacional de gênero, ou seja, os corpos são generificados e moldados por um saber local comum de produção moral e simbólica, saber esse que deriva de uma construção social e cultural, e não de um dado natural. Assim, pondera-se que o corpo é dotado de agência própria (capacidade de agir, de ser agente com base na cultura), pois é produtor de sentidos. Neste caso específico, a corporeidade do homem adoecido por CP não se apresenta como um processo, mas como um estado em constante construção, pois as masculinidades e o gênero estão a serviço das normas culturais, as quais são construídas historicamente com base nas práticas de masculinidade e saúde, além dos sentidos e significados plurais sobre o corpo.

Pesquisadores(2,21) veem o corpo adoecido como uma tela sobre a qual são inscritos símbolos que levam o homem a interpretar suas experiências e suas técnicas corporais de modo absolutamente pessoal e atrelado às suas normas culturais. Portanto, não convém restringir a discussão da experiência dos homens com CP ao corpo físico, pois ele não representa esses sujeitos em sua completude. É necessária uma interpretação densa do corpo, que reconheça tanto a sua agência quanto a sua construção social, de maneira que o corpo biológico e o corpo social não sejam compreendidos separadamente, mas que se aproximem numa explicação conjunta(20). Para a antropologia das masculinidades(1,7), os corpos masculinos adoecidos devem ser compreendidos dentro desse amálgama de sentimentos e representações, pois são ao mesmo tempo objetos e agentes da prática social.

Ao longo de suas experiências, os narradores reconheceram que, ao desenvolver o CP, o corpo biológico adoeceu junto com o corpo social, pois o biológico foi privado da normalidade de suas funções fisiológicas e identitárias esperadas de seu estereótipo de gênero, e o social privado de suas expressões tradicionais que enquadram o homem numa posição moral de defesa de sua masculinidade. Dentre essas experiências, destacou-se também que, ao assumir o estado de um corpo adoecido, o homem perdeu o controle sobre si: não é mais um ser dominante de suas técnicas corporais, passando a ser dominado pelas técnicas corporais pertencentes à doença. Essa perda do poder entre as relações estabelecidas pela tríade masculinidade, sociedade e cultura é reconhecida como um fator dissociativo da masculinidade e do poder moral das identidades hegemônicas atribuídas ao homem. Na masculinidade hegemônica prevalece a norma social de que os homens são seres invioláveis, não permitindo que as técnicas corporais violem seu corpo(7), como ocorre nos exames de rastreio do CP e seus tratamentos.

As técnicas corporais se referem à maneira como os homens utilizam seu corpo perante o poder moral que é regulado pela cultura: como falam, rezam, dançam, abraçam, se movimentam, se apresentam, entre outras formas de expressão que os caracterizam como pertencentes a determinada sociedade, ou não(22).

Diante dessas relações, compreende-se que o corpo do homem não é apenas um instrumento técnico resultante da interação cultural: é sobretudo um lugar prático de empoderamento masculino em que os hábitos morais exercem seu poder normativo. Assim, é por meio das técnicas corporais e das convenções cotidianas dos homens que os corpos adoecidos por CP são disciplinados segundo a forma dominante de masculinidade local. Dessa forma, com base nos valores revelados nas narrativas, as técnicas corporais específicas de um corpo hegemônico, como passear com a família , trabalhar , dominar as funções do corpo, submeter-se a atividades de risco , entre outras, foram destacadas pelos narradores como promotoras da inserção do homem num lócus social e familiar, numa identidade moral dotada de ações valorativas hegemônicas, cabendo à disfunção corporal resultante do adoecimento com o CP (descontrole sobre as funções do corpo) motivo de desaprovação social às normas vigentes de masculinidades hegemônicas locais, pois o homem incorpora fatores que desempoderam sua expressão de gênero.

Os sentidos e significados discutidos nas narrativas revelam que as ações sociais e corporais são culturalmente construídas, defendidas e padronizadas. Assim, ao serem corporificadas pelos adoecidos, as várias faces da masculinidade possibilitam interpretar que ter masculinidade não é ter apenas músculos: é ter também uma identidade corporal e moral, embora estas sejam regidas por normas, valores e culturas, sendo empoderadas pelas técnicas corporais e desempoderadas pelas transformações impostas durante o adoecimento e suas consequências. Essas várias faces da masculinidade influenciam a forma como os homens compartilham os sentidos de suas experiências e restituem a saúde do seu corpo social e biológico.

CONCLUSÃO

Nas narrativas desta pesquisa foram destacadas as características culturais e as questões morais que regulam o corpo durante o adoecimento do homem pelo CP, bem como os dilemas enfrentados por eles para manter a hegemonia de sua masculinidade. Assim, a presente pesquisa teve como enredo principal o significado de corporeidade, pois o corpo foi explorado como um local de construção de sentidos durante o adoecimento, regido por normas sociais que valorizam as práticas masculinizantes. Essas normas influenciaram a procura por cuidados médicos, a realização de exames de rastreio e a adesão a tratamentos convencionais da doença. Motivados por um sentimento moral, os homens compartilharam o dilema de não cuidar do corpo, manter sua masculinidade hegemônica ou cuidar do corpo e abrir mão dessa hegemonia. Assim, o corpo biológico e o corpo social apresentaram-se desarmônicos durante o adoecimento pelo CP, pois na cultura dos homens investigados existe a crença de que ele é um ser inviolável, forte e viril, capaz de controlar seu corpo e não se deixar abater pelo adoecimento.

Os sentidos descritos aqui ampliam e aprofundam o conhecimento das características das experiências dos adoecidos pelo CP divulgadas na literatura. Na certeza de que essas masculinidades locais são fundamentais para que o enfermeiro reflita sobre o cuidado aos homens nessa circunstância, é oportuno salientar que coexistem outras masculinidades em níveis regionais e globais que se relacionam com as masculinidades apresentadas no presente estudo, as quais poderão complementar e ampliar a compreensão sobre o adoecimento dos homens pelo CP.

Além do foco na atenção ao homem com CP, esta pesquisa traz aos enfermeiros a lente cultural que permeia a identidade masculina e sua relação com seu corpo durante o adoecimento. Dessa forma, as questões culturais e de masculinidade trazem à tona uma colcha de retalhos culturais e sociais rica de sentidos que podem auxiliar os enfermeiros e outros profissionais a lidar com homens adoecidos.

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    Extraído da tese: “A experiência do homem com câncer de próstata na perspectiva da antropologia das masculinidades”, Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, 2016.
  • Apoio Financeiro. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Processo 161735/2012-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2018
  • Aceito
    31 Out 2018
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