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Elaboração e validação de Instrumento de Identificação de Assédio Sexual de Estudantes de Medicina (IIASEM)

Resumo

Introdução:

O assédio sexual é uma realidade que permeia as relações de poder hierárquicas e de gênero. Embora perceptível nos meios médico e acadêmico, é considerado uma violência silenciada que acarreta agravos orgânicos e psíquicos com grandes consequências para a vítima.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivos elaborar e validar um instrumento de identificação da ocorrência de assédio sexual em estudantes de Medicina.

Método:

Após revisão da literatura sobre o tema, elaborou-se um instrumento, com repostas do tipo Likert em cinco níveis de opção, que possui duas partes: a primeira com informações sobre características sociodemográficas e acadêmicas dos participantes, e a segunda contendo 21 itens agrupados em três dimensões: formas de assédio, fatores facilitadores e identificação do assediador no meio acadêmico e na prática hospitalar. Efetuaram-se as validações semântica e de conteúdo por consenso de especialistas, e a validação FACE realizada por grupo focal de 12 estudantes, sendo dois de cada ano do curso. Para verificação da confiabilidade, o instrumento foi enviado a 1.146 estudantes de Medicina uma vez por semana, por quatro semanas. Obteve-se a resposta de 350 (30,5%) estudantes no teste, seguindo a recomendação para estudos psicométricos. Após 15 dias, iniciou-se o reteste com os 350 respondentes do teste, seguindo a mesma cronologia de envio para a verificação da estabilidade. No reteste, obtiveram-se 69 respostas. Para a elaboração do banco de dados, utilizou-se o programa Excel versão 16, e, para a análise, adotou-se o programa estatístico Stata versão 13. O instrumento foi aplicado on-line pelo software livre LimeSurvey.

Resultado:

A confiabilidade do instrumento ficou evidenciada pelo alfa de Cronbach de 0,8163 e de 0,7826 para o teste e reteste, respectivamente. Para a constatação da estabilidade, utilizou-se o teste de Stuart-Maxwell que apresentou um valor de p = 0,126. Adotou-se ainda o Kappa ponderado, em que o resultado de todas as 21 assertivas está contido no intervalo de confiança, demonstrando a homogeneidade da distribuição dos escores médios entre o teste e o reteste.

Conclusão:

Como o instrumento validado se mostrou confiável e estável, pode ser utilizado em escolas médicas para a identificação do assédio sexual em estudantes de Medicina.

Palavras-chave:
Estudo de Validação; Assédio Sexual; Estudante de Medicina

Abstract

Introduction:

Sexual harassment is a reality that permeates hierarchical and gender power relations, and although noticeable in the medical and academic environment, it is considered a silenced violence that causes organic and psychological harm, with great consequences for the victim.

Objective:

To develop and validate an instrument to identify the occurrence of sexual harassment in medical students.

Method:

This instrument was developed, after reviewing the literature on the subject, with Likert-type responses at five option levels, which has two parts: the first with information on the participants’ sociodemographic and academic characteristics and the second containing 21 items grouped into three dimensions: forms of harassment, facilitating factors and identification of the harasser in the academic environment and in hospital practice. Semantic and content validation was carried out by consensus of experts and FACE validation was carried out by a focal group of 12 students, two from each year of the course. To verify reliability, the instrument was sent to 1,146 medical students once a week for four weeks, with 350 (30.5%) students responding to the Test following the recommendation for psychometric studies. After 15 days, the Retest was started with the 350 Test respondents, following the same submission chronology to verify stability. In the Retest, 69 responses were obtained. The Excel program version 16 was used to create the database and the Stata statistical program version 13 was used for the analysis. The instrument was applied online using the LimeSurvey free software.

Results:

The reliability of the instrument was evidenced by a Cronbach’s Alpha of 0.8163 and 0.7826 for Test and Retest, respectively. For the verification of stability, the Stuart-Maxwell test was used, which showed a value of p = 0.126 and the weighted Kappa, where the result of all 21 assertions are contained in the confidence interval, demonstrating the homogeneity of the distribution of the average scores between the Test and the Retest.

Conclusions:

The validated instrument proved to be reliable and stable and can be used in medical schools to identify sexual harassment in medical students.

Keywords:
Validation Study; Sexual Harassment; Medical Student

INTRODUÇÃO

Assédio sexual se refere a relações de poder hierárquicas ou de gênero que violam a autonomia sobre o próprio corpo da vítima por meio de constrangimento, intimidação ou chantagem, mediante palavras, gestos ou atos, a fim de obter vantagem ou favorecimento sexual11. Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Senado Federal. Assédio moral e sexual no trabalho. Biênio 2017-2019 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/cartilha-assedio-moral-e-sexual-no-trabalho .
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, podendo ser associado, ou não, ao assédio moral22. Moreira FM. Violência de gênero na escola: abuso/assédio sexual e relações de poder [monografia]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2016 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/173809 .
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.

A partir da construção de relações de uma sociedade baseada no patriarcado e em tabus religiosos, o assédio sexual é percebido como um ato institucionalizado e, por estar enraizado culturalmente, configura-se como uma violência silenciosa22. Moreira FM. Violência de gênero na escola: abuso/assédio sexual e relações de poder [monografia]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2016 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/173809 .
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que leva a traumas e consequências importantes para a vítima, como sintomas depressivos, síndrome de burnout, transtornos psíquicos menores e uma série de outros impactos psicológicos, físicos, laborais, institucionais e/ou sociais33. Bordignon M, Monteiro MI. Validade aparente de um questionário para avaliação da violência no trabalho. Acta Paul Enferm. 2015;28(6):601-8. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201500098.
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, ou seja, problemas de saúde mental que, independentemente de serem provocados ou não por assédio, já são comumente encontrados em estudantes de Medicina44. Costa DS, Medeiros NSB, Cordeiro RA, Frutuoso ES, Lopes JM, Moreira SNT. Sintomas de depressão, ansiedade e estresse em estudantes de Medicina e estratégias institucionais de enfrentamento. Rev Bras Educ Med. 2020;44(1):e040. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.1-20190069.
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)-(77. Rodrigues CS, Deus MLA, Andrade FT, Rezende GB, Mariano LA, Sé AB. Avaliação da prevalência da síndrome de burnout em estudantes de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2020;44(4):e176. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.4-20200032.
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.

De acordo com um estudo realizado em um hospital do Recife, em 2011, a prevalência do assédio moral nas residências médicas e não médicas foi de 41,9%. Conforme mostrou esse estudo, os profissionais com atuação em atividades clínicas estão mais propensos ao acometimento da violência88. Marques RC, Martins Filho ED, Paula GS, Santos RR. Assédio moral nas residências médica e não médica de um hospital de ensino. Rev Bras Educ Med . 2012;36(3):401-6. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-55022012000500015.
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. Esse resultado não foi diferente do obtido por um estudo realizado em 2013, em uma escola médica da cidade de São Paulo, que abordou diversos tipos de maus-tratos, como o assédio sexual99. Peres MF, Babler F, Arakaki JN, Quaresma IY, Barreto AD, Silva AT, et al. Mistreatment in an academic setting and medical students’ perceptions about their course in São Paulo, Brazil: a cross-sectional study. São Paulo Med J. 2016;134(2):130-7. doi: https://doi.org/10.1590/1516-3180.2015.01332210.
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. Em 2016, uma revisão sistemática realizada na Cidade do México revelou que casos de assédios não são raros, pois fazem parte de um sistema que afeta diretamente a vítima com intensidades e dimensões variáveis1010. Chávez-Rivera A, Ramos-Lira L, Abreu-Hernández LF. A systematic review of mistreatment in medical students. Gac Med Mex. 2016;152(6):711-25 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27861478/ .
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. Outro aspecto importante refere-se ao fato de a alta prevalência de assédio e discriminação durante o treinamento médico não diminuir ao longo do tempo, apesar das políticas preventivas existentes sobre esse tipo de violência nos locais de trabalho, em escolas médicas e em programas de residências1111. Fnais N, Soobiah C, Chen MH, Lillie E, Perrier L, Tashkhandi M, et al. Harassment and discrimination in medical training: a systematic review and meta-analysis. Acad Med.2014 May;89(5):817-27. doi: https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000200.
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.

Uma pesquisa realizada na Nigéria também demonstrou que o assédio é uma experiência comum entre os estudantes de Medicina. De acordo com essa pesquisa, trata-se uma questão de violência “transgeracional”, uma vez que sua prática abrange diferentes núcleos e pessoas, em que os médicos preceptores e os residentes se destacam como os perpetradores do assédio1212. Owoaje ET, Uchendu OC, Ige OK. Experiences of mistreatment among medical students in a University in South West Nigeria. Niger J Clin. 2012 Apr-June;15(2):214-9. doi: https://doi.org/10.4103/1119-3077.97321.
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. Outra questão evidenciada em um estudo canadense é a “normatização” da violência dentro do curso, isto é, como muitas vítimas não se reconhecem no contexto de violência e agem como se fosse natural esse tipo de comportamento, tal banalização permite a perpetuação do assédio por torná-lo impune1313. Phillips SP, Webber J, Imbeau S, Quaife T, Hagan D, Maar M, et al. Sexual harassment of canadian medical students: a national survey. EClinical Medicine. 2019;7:15-20. doi: https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2019.01.008.
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.

Apesar de os maus-tratos na escola médica serem um problema identificado desde o final dos anos 1980 e o início da década de 19901414. Baldwin Jr. DC, Daugherty SR, Eckenfels EJ. Student perceptions of mistreatment and harassment during medical school: a survey of ten United States schools. West J Med. 1991 Aug;155(2):140-5 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1926843/ .
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, é um tema considerado atual e relevante. Em um trabalho de revisão de 2021 que objetivou analisar a metodologia utilizada para descrever as consequências de maus-tratos na vida de estudantes de Medicina, dos 20 artigos analisados, apenas um possuía como foco principal o assédio sexual1515. Barbanti PC, Oliveira SRL, Pelloso SM, Carvalho MDB. Effects of mistreatment in medical schools: how to evaluate? A brief review. Rev Bras Educ Med . 2021;45(3):e138. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.3-20210054.ING.
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. Ademais, não foi encontrado nenhum instrumento metodologicamente validado para identificação desse evento na área médica. Portanto, existe a real necessidade de se elaborar e validar um instrumento para aprofundar a produção de conhecimento científico sobre esse tipo de agravo.

MÉTODO

Realizou-se um estudo metodológico de elaboração e validação de instrumento para a identificação da ocorrência de assédio sexual de estudantes de Medicina com desenho de corte transversal no período de setembro de 2020 a outubro de 2021.

O estudo foi desenvolvido no curso de Medicina da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), uma instituição privada, sem fins comerciais, de natureza comunitária. Além dos estudantes que ingressam pelo vestibular da instituição, a FPS recebe também aqueles oriundos do Programa Universidade para Todos (Prouni), o que corresponde a 10% das vagas oferecidas. O curso de Medicina ocorre de forma presencial com carga horária de 8.710 horas e seis anos de integralização mínima. As atividades teóricas e de laboratórios de habilidades acontecem no campus da FPS, e as atividades em cenários de prática são desenvolvidas na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e no hospital de ensino Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip).

A elaboração do instrumento foi baseada na pesquisa sobre a construção de instrumentos de medida na área de saúde de 20151616. Coluci MZO, Alexandre N, Milani D. Construção de instrumentos de medida na área da saúde. Ciênc Saúde Colet. 2015;20(3):925-36. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232015203.04332013.
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. Seguiu-se o processo de validação de instrumento sugerido com suas etapas de validação de conteúdo e, posteriormente, validação FACE das propriedades psicométricas.

Participaram da fase da validação:

  • Um painel de especialistas selecionados por conveniência para a etapa de validações semântica e de conteúdo: um médico PhD, coordenador do curso de Medicina; uma psicóloga PhD, especialista em violência contra a mulher e assédio; uma psicóloga PhD, especialista em escalas psicométricas; uma psicóloga PhD, especialista em estudos qualitativos; uma médica PhD, coordenadora do comitê de desenvolvimento docente - todos com experiência em pesquisas qualitativas e validação de instrumentos de aferição -; e um advogado PhD em Teoria da Literatura.

  • Dois estudantes de cada ano do curso de Medicina selecionados por conveniência, compondo um total de 12, para a etapa de validação FACE.

  • Os 1.146 estudantes de Medicina da instituição para a verificação estatística da confiabilidade no teste.

  • Os 350 respondentes do teste para verificação estatística da estabilidade no reteste.

Inicialmente, na realização do teste, o questionário foi enviado via e-mail uma vez por semana, por quatro semanas, para todos os 1.146 estudantes de Medicina da instituição, dos quais obtivemos 350 respostas. Após 15 dias, iniciou-se o reteste com os 350 respondentes do teste, seguindo-se a mesma cronologia de envio, uma vez por semana, por quatro semanas, via e-mail. Nesse segundo envio, obtivemos apenas 69 respostas (Figura 1). A informação dos e-mails dos estudantes foi fornecida pela secretaria acadêmica da FPS, e, para incentivar a adesão, houve a contribuição dos docentes da instituição.

Figura 1
Fluxograma do processo de elaboração e validação do instrumento para identificação da ocorrência de assédio sexual entre estudantes de Medicina.

A versão final do instrumento está estruturada em duas partes: a primeira com informações sobre características sociodemográficas e acadêmicas dos participantes, e a segunda com informações sobre as circunstâncias em que o assédio sexual ocorre. Essa versão possui 21 assertivas divididas em três dimensões que tratam das formas de assédio, dos fatores que facilitam a ocorrência do assédio e do perfil do assediador. As assertivas possuem repostas do tipo Likert em cinco níveis de opção: (1) discordo totalmente, (2) discordo parcialmente, (3) não concordo e nem discordo, (4) concordo parcialmente e (5) concordo totalmente (Quadro 1).

Quadro 1
Instrumento de Identificação de Assédio Sexual de Estudantes de Medicina (IIASEM).

Para a elaboração do banco de dados, utilizou-se o programa Excel versão 16, e, para a análise, adotou-se o programa estatístico Stata versão 13. O instrumento foi autoaplicado pelos participantes de modo on-line pelo software livre LimeSurvey e respondido apenas após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Todas as etapas da pesquisa anteriormente descritas foram realizadas de forma remota com o objetivo de manter o distanciamento social estabelecido por causa da pandemia da Covid-19 de 2020. Assim, observamos que essa forma de obtenção dos dados pode ter interferido na adesão e consequentemente na quantidade de respostas ao teste e reteste, reduzindo a população do nosso estudo.

RESULTADOS

Sobre os resultados do instrumento

Na primeira parte do instrumento, sobre as características sociodemográficas dos participantes, obtivemos 350 respostas que apresentaram uma média de 23,06 anos de idade com o máximo de 40 anos e o mínimo de 18 anos. Dessa população, 239 (68,0%) se declararam mulher cisgênero, e os outros 111 (32,0%) se declararam homem cisgênero. Apesar da possibilidade de outras representações de gênero terem sido apresentadas (mulher transgênero, homem transgênero e pessoa não binária), nenhum dos sujeitos da pesquisa se declarou de outra forma. Além disso, no quesito raça/cor, encontramos que 237 (67,80%) se declararam brancos; nove (2,50%), pretos; 103 (29,42%), pardos; e um (0,28%) mencionou ser amarelo, não havendo nenhum indígena entre os respondentes do teste. Por fim, 59 (17,0%) são acadêmicos de Medicina do primeiro ano do curso; 43 (12,0%), do segundo; 59 (17,0%), do terceiro ano; 88 (25,0%), do quarto; 68 (20,0%), do quinto; e 32 (9,0%), do sexto.

Na segunda parte do instrumento, sobre as circunstâncias em que o assédio ocorre, quando se trata da primeira dimensão sobre as formas de assédio sexual, obteve-se um escore médio da dimensão de 1,88, demonstrando que, em sua maioria, os alunos respondentes discordam total e parcialmente das assertivas apresentadas; portanto, a maioria do grupo estudado não sofreu assédio verbal, gestual ou por escrito. Em relação a contato físico e olhar inapropriado, a população estudada teve uma posição de neutralidade. Na segunda dimensão, sobre os fatores que facilitam a ocorrência do assédio sexual, obtivemos um escore médio da dimensão de 2,35, demonstrando que a maioria dos estudantes respondentes discorda parcialmente acerca das assertivas 12 e 13; no entanto, nas assertivas acerca da vestimenta, do comportamento e das atividades noturnas, o grupo respondente concorda parcialmente que são fatores facilitadores para a ocorrência do assédio sexual. Por fim, em relação à terceira dimensão sobre as características do assediador, obtivemos um escore médio da dimensão de 1,59, demonstrando que a maioria dos alunos respondentes discorda parcialmente das assertivas 16, 17, 18 e 21; no entanto, quando se tratou do assédio por outros estudantes e por pacientes, o grupo estudado concordou parcialmente, identificando esses dois grupos como assediadores. Apresentamos ainda uma análise detalhada dos escores médios por assertiva (Tabela 1).

Tabela 1
Escore médio por assertiva.

Sobre a validação do instrumento

Para estudos psicométricos de validação de instrumentos, a literatura orienta utilizar de cinco a dez participantes por item do instrumento a ser validado1717. Cronbach LJ. Coefficient alpha and the internal structure of test. Psychometrika.1951 Sep;16(3):297-334. doi: https://doi.org/10.1007/BF02310555.
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. No nosso instrumento, o qual contém 21 itens divididos em três dimensões, o número esperado seria de 105 a 210 estudantes. Durante a sua aplicação e análise, utilizamos 350 respondentes, atingindo a cota necessária.

A confiabilidade e a validade para esse tipo de estudo ocorrem pela: 1. validação de conteúdo pelos especialistas e 2. análise estatística dos resultados do teste e reteste pelo alfa de Cronbach e Kappa ponderado1717. Cronbach LJ. Coefficient alpha and the internal structure of test. Psychometrika.1951 Sep;16(3):297-334. doi: https://doi.org/10.1007/BF02310555.
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.

Na validação do instrumento apresentado, evidenciamos a sua confiabilidade pelo teste estatístico alfa de Cronbach, obtendo 0,8163 e 0,7826 para o teste e reteste, respectivamente. Entende-se que a confiabilidade se observa quando os resultados do teste de alfa de Cronbach se situam entre 0,70 e 0,90.

Para a constatação da estabilidade, utilizou-se o teste de Stuart-Maxwell que apresentou um valor de p = 0,126. Adotou-se ainda o teste de Kappa ponderado, em que o resultado de todas as 21 assertivas está contido no intervalo de confiança (Tabela 2).

Tabela 2
Média, desvio padrão e estatística Kappa ponderado (teste - reteste) do item 1 ao 21

Portanto, como demonstrado, o presente instrumento foi devidamente validado por meio da homogeneidade da distribuição dos escores médios entre o teste e o reteste.

DISCUSSÃO

Uma pesquisa publicada em 2021, em Münster, na Alemanha, demonstrou, como no nosso estudo, uma população semelhante de estudantes de Medicina composta apenas por homens e mulheres cisgênero1818. Schoenefeld E, Marschall B, Paul B, Ahrens H, Sensmeier J, Coles J, et al. Medical education too: sexual harassment within the educational context of medicine - insights of undergraduates. BMC Med Educ.2021;21:81. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-021-02497-y.
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. Esse achado nos limita a um grupo específico de pessoas cisgênero; afinal, não houve participantes de outras identidades de gênero. Além disso, também se verificou nesse estudo alemão uma baixa adesão à pesquisa, com 623 (28,8%) participações numa população total de 2.162 discentes1818. Schoenefeld E, Marschall B, Paul B, Ahrens H, Sensmeier J, Coles J, et al. Medical education too: sexual harassment within the educational context of medicine - insights of undergraduates. BMC Med Educ.2021;21:81. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-021-02497-y.
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; no nosso estudo, também obtivemos uma baixa adesão de 350 (30,54%) da população total de 1.146 alunos.

A nossa população estudada foi majoritariamente composta por mulheres cisgênero (68,28%), jovens com média de 23 anos de idade e brancas (67,71%). Esse recorte populacional é restrito, pouco diverso e não nos permitiu aferir a prevalência de assédio sexual de outros agrupamentos sociais mais plurais dos estudantes de Medicina.

O perfil sociodemográfico dos estudantes na investigação estudo atual pode ter influenciado nas respostas dadas, uma vez que a maioria pertencia a uma classe com bom padrão social e econômico, e o contexto de exposição deles à questão do assédio pode apresentar características inerentes a esse grupo em particular. No entanto, conhecer a realidade desse grupo perante uma questão tão importante se torna crucial para a elaboração de estratégias que possam contribuir para a redução do problema.

Nesse mesmo estudo alemão, os autores identificaram uma prevalência de 31,8% de assédio sexual por contato físico indesejado e 8,5% de assédio por olhar inapropriado. No nosso estudo, entretanto, o grupo respondente se mostrou neutro quando questionado sobre essas duas formas de assédio.

Um trabalho realizado em um universidade de São Paulo em 2013, envolvendo estudantes de Medicina do primeiro ao sexto ano do curso, com o objetivo de estimar a prevalência de agressões, abusos e maus-tratos nesse grupo, encontrou que a média de idade foi de 22,24 anos (±2,89), 49,0% eram homens e aproximadamente 45,0% eram do ciclo básico. A quase totalidade deles referiu ter sofrido pelo menos um tipo de agressão durante o curso (92,31%). Os tipos de agressão mais comuns foram depreciação/humilhação (73,1%) e agressão verbal (59,99%), tendo sido alta a prevalência de abuso ou discriminação sexual (43,32%), e a violência física foi referida por 13,0% dos estudantes. REF - Barreto, 2015 (Maria T Peres) - ver citação correta.

No Canadá, uma pesquisa realizada em 2019 observou que os principais assediadores são os pacientes (40,4%), os outros estudantes de Medicina (39,65%) e, em menor proporção, os professores e preceptores (20%)1313. Phillips SP, Webber J, Imbeau S, Quaife T, Hagan D, Maar M, et al. Sexual harassment of canadian medical students: a national survey. EClinical Medicine. 2019;7:15-20. doi: https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2019.01.008.
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. No nosso estudo, os participantes mencionaram que sofreram assédio sexual por parte de outros estudantes e de pacientes. No entanto, quando questionados sobre assédio sexual praticado por profissionais médicos, tanto no contexto acadêmico como na prática hospitalar, por profissionais de saúde não médicos e por funcionários do setor administrativo da instituição, o grupo referiu discordar total ou parcialmente de já ter sofrido assédio sexual por esses grupos de profissionais.

Em contrapartida, vale ressaltar que, em diversos trabalhos, os médicos preceptores e/ou residentes foram identificados como os principais assediadores1010. Chávez-Rivera A, Ramos-Lira L, Abreu-Hernández LF. A systematic review of mistreatment in medical students. Gac Med Mex. 2016;152(6):711-25 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27861478/ .
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27861478...
),(1212. Owoaje ET, Uchendu OC, Ige OK. Experiences of mistreatment among medical students in a University in South West Nigeria. Niger J Clin. 2012 Apr-June;15(2):214-9. doi: https://doi.org/10.4103/1119-3077.97321.
https://doi.org/https://doi.org/10.4103/...
),(1414. Baldwin Jr. DC, Daugherty SR, Eckenfels EJ. Student perceptions of mistreatment and harassment during medical school: a survey of ten United States schools. West J Med. 1991 Aug;155(2):140-5 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1926843/ .
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1926843/...
),(1919. Kisiel MA, Kühner S, Stolare K, Lampa E, Wohlin M, Johnston N, et al. Medical students’ self-reported gender discrimination and sexual harassment over time. BMC Med Educ . 2020 Dec;20(1):503. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-020-02422-9.
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, o que vai de encontro aos resultados do nosso estudo.

Em relação à ocorrência de assédio sexual verbal, gestual e por escrito em redes sociais e aplicativos, os nossos dados relataram que os respondentes discordam total ou parcialmente das assertivas apresentadas; portanto, a maioria do grupo estudado não sofreu essas formas de assédio. Entretanto, na literatura pesquisada, encontramos que há a ocorrência dessas formas de assédio, mais especificamente 10,9% de assédio gestual e 4,7% de assédio por mensagens inadequadas em redes sociais1313. Phillips SP, Webber J, Imbeau S, Quaife T, Hagan D, Maar M, et al. Sexual harassment of canadian medical students: a national survey. EClinical Medicine. 2019;7:15-20. doi: https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2019.01.008.
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, e, sobre o assédio verbal, é relatada a ocorrência de 41,3% em ambos os gêneros1818. Schoenefeld E, Marschall B, Paul B, Ahrens H, Sensmeier J, Coles J, et al. Medical education too: sexual harassment within the educational context of medicine - insights of undergraduates. BMC Med Educ.2021;21:81. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-021-02497-y.
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/...
, e, em outra pesquisa, encontramos 10% na população masculina e 61,5% na feminina1414. Baldwin Jr. DC, Daugherty SR, Eckenfels EJ. Student perceptions of mistreatment and harassment during medical school: a survey of ten United States schools. West J Med. 1991 Aug;155(2):140-5 [acesso em 09 out 2020]. Disponível em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1926843/ .
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/1926843/...
.

Ainda no estudo realizado em Münster, na Alemanha, a maioria dos casos de assédio sexual ocorreu nos ambientes de prática clínica (58,6%), enquanto a menor parte aconteceu nos ambientes acadêmicos (24,5%)1818. Schoenefeld E, Marschall B, Paul B, Ahrens H, Sensmeier J, Coles J, et al. Medical education too: sexual harassment within the educational context of medicine - insights of undergraduates. BMC Med Educ.2021;21:81. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-021-02497-y.
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, levando a entender que os hospitais e outros lugares da prática médica são fatores que facilitam a existência do assédio sexual, seja porque é uma violência normalizada na prática ou porque é estrutural do meio médico. No nosso trabalho, entretanto, os respondentes não concordam que os ambientes acadêmicos (como salas de aula, tutoria, biblioteca etc.) ou os ambientes de prática clínica (como hospital de ensino e locais fora do hospital) sejam fatores facilitadores da ocorrência do assédio.

O nosso grupo estudado concorda que a vestimenta, o comportamento da vítima e os plantões e as atividades noturnas são fatores facilitadores da ocorrência de assédio sexual. Em concordância com os nossos resultados, verificou-se na Alemanha que as roupas e o comportamento estão relacionados com a ocorrência de assédio sexual e o avanço na carreira profissional (11,9%)1818. Schoenefeld E, Marschall B, Paul B, Ahrens H, Sensmeier J, Coles J, et al. Medical education too: sexual harassment within the educational context of medicine - insights of undergraduates. BMC Med Educ.2021;21:81. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-021-02497-y.
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sobre as atividades noturnas, entretanto não encontramos dados para reafirmar o que o nosso estudo demonstrou. Esses dados evidenciam como o machismo está enraizado na nossa cultura patriarcal. Ainda estamos culpabilizando a vítima pelo assédio, numa tentativa equivocada de justificá-lo por meio das roupas e do comportamento da vítima.

Até o término deste estudo, como não conseguimos identificar na literatura pesquisada um instrumento validado com o mesmo objetivo do nosso, não podemos realizar comparações dos resultados da validação na discussão.

LIMITAÇÕES DO ESTUDO

Identificamos uma limitação na força do estudo causada pelo fato de a pesquisa ter ocorrido durante a pandemia da Covid-19, e, para manter o distanciamento social, foi necessário aplicar o instrumento de forma remota, o que pode ter interferido na adesão e consequentemente na quantidade de respostas ao teste e reteste, reduzindo a população do nosso estudo.

Deve-se ponderar ainda que, pelo fato de a amostragem no estudo atual ter sido por conveniência e não probabilística, aqueles que responderam à pesquisa podem ter um perfil específico capaz de configurar o viés de aferição, ou seja, nas respostas dadas ao instrumento utilizado.

CONCLUSÃO

Como o instrumento validado se mostrou confiável e estável, pode ser utilizado em escolas médicas para a identificação do assédio sexual em estudantes de Medicina. Esse instrumento deve auxiliar na identificação desse comportamento violento e inaceitável, contribuindo para a sua erradicação no meio acadêmico e em todos os ambientes da prática clínica na educação médica.

REFERÊNCIAS

  • 2
    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Daniela Chiesa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2023
  • Aceito
    06 Nov 2023
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