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BRINCADEIRA, DRAMA, IMAGINAÇÃO E AÇÃO PEDAGÓGICA

PLAY, DRAMA, IMAGINATION AND PEDAGOGICAL ACTION

RESUMO

O brincar dramático é discutido em suas relações entre imaginação, brincadeira, drama e vivência, na perspectiva da psicologia histórico-cultural de Vigotski. Trata-se de um recorte de uma pesquisa realizada entre os anos de 2018 e 2020, cujo objetivo foi investigar a relação entre o brincar e a ação dramática, com base nas vivências de uma professora na Educação Infantil e na formação continuada de professores nessa etapa da Educação Básica. Constituíram-se em materiais de análise os registros da pesquisadora e da professora. As análises indicam o quanto a brincadeira envolve o viver dramático e, neste sentido, a importância de a professora organizar sua ação docente na perspectiva do drama como ação pedagógica, no qual o brincar dramático constitui-se basilar. O texto destaca a importância das relações entre a imaginação e o brincar dramático, enfatizando sua relevância tanto para crianças quanto para adultos, especialmente aqueles que trabalham com a infância.

Palavras-chave
Imaginação; Vivência estética; Brincar dramático; Drama como ação pedagógica

ABSTRACT

In this paper, dramatic play is discussed in terms of its relationship between imagination, play, drama and experience, from the perspective of Vygotsky’s historical-cultural psychology. This is an excerpt from a study carried out between 2018 and 2020, the aim of which was to investigate the relationship between play and dramatic action, based on the experiences of a teacher in Early Childhood Education and the continuing training of teachers at this stage of Basic Education. The records of the researcher and the teacher were used as analysis materials. The analyses indicate how much play involves dramatic living and, in this sense, the importance of the teacher organizing her teaching action from the perspective of drama as a pedagogical action, in which dramatic play is the foundation. The text highlights the importance of the relationship between imagination and dramatic play, emphasizing its relevance for both children and adults, especially those who work with children.

Keywords
Imagination; Aesthetic experience; Dramatic play; Drama as a pedagogical action

Salgue para criança a fatia, que está insossa e seca, com o sal do riso e da lágrima, com o sal do teatro.

(L. S. Vigotski)

Imaginação e vivência e o professor na escola

O livro “Imaginação e criação na infância” lançado originalmente em 1930 e traduzido para a língua portuguesa em 2009 (com comentários de Smolka), apresenta um brevíssimo capítulo no qual Vigotski (2009a)VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009a. alerta para o potencial da imaginação criadora como atividade produtiva, transformadora. Em 2018, o livro Imagination Textes Choisis (Avec des commentaires et des essais sur l’imagination dans l’œuvre de Vygotskij) – “Imaginação Textos Selecionados (Com comentários e ensaios sobre a imaginação na obra de Vigotski)”, em tradução livre –, apresenta, além de uma tradução direta do livro “Imaginação e criação na infância” do russo para o francês, um rol de textos e notas de autoria de Vigotski sobre a imaginação e produzidos entre os anos de 1922 e 1934. Nesses textos, é possível acompanhar a importância que Vigotski atribui à imaginação e sua relação com a vida do ser humano. Para o autor, a imaginação se constitui em um atributo humano fundamental e que se incorpora na vida da pessoa, completando um ciclo de criação. Vigotski destaca a importância das vivências; da relação entre a realidade, a fantasia e a imaginação nesse processo.

De acordo com a tradução de Paulo Bezerra, a palavra perejivanie, utilizada por Vigotski (1999a)VIGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1999a. no texto original russo de “Psicologia da Arte” – lançado originalmente em 1925-1926 –, pode ser compreendida como uma experiência permeada por sentimentos e emoções intensamente vivenciadas. Para Toassa (2009, p. 61)TOASSA, G. Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural. 348f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/publico/GTOASSA_Tese_2009.pdf. Acesso em: 23 jan. 2024.
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O conceito de vivência (perejivanie) aparece em Vigotski designando tanto a apreensão do mundo externo pelo sujeito e sua participação nele, quanto a de seu próprio mundo interno (sua realidade psíquica, indicando que este mundo interno é passível de simbolização e tomada de consciência, tal como podemos compreender de outras obras do autor).

Nos estudos de Vigotski, a vivência se constitui em uma possibilidade tipicamente humana, na qual o biológico humano se transforma, em relações que são sociais, culturais e históricas, estabelecendo uma unidade, uma atividade sistemática humana. Neste processo, em um meio que é sempre situado – em um espaço tempo cultural e histórico –, novas possibilidades tipicamente humanas de ser se constituem e transformam, marcadas pela mediação simbólica.

A vivência, como experiência qualificada, possibilita ao ser humano ampliar suas referências, sua compreensão do mundo, seu repertório, sua humanidade. Neste estudo, propomos compreender e analisar as relações entre professores e crianças na escola, sob o olhar dos conceitos cunhados por Vigotski, especialmente nas obras indicadas acima.

Destacamos a importância da tomada de consciência do professor sobre suas vivências. Partimos da premissa de que se tornar docente implica em vivenciar a ação de ensinar e realizar o trabalho de docência comprometidamente. Trabalhar na escola, com as crianças, é realizar o exercício da docência na perspectiva da vivência, tal como Vigotski preconiza. É estabelecer uma relação afetiva na e com a docência.

A vivência e a emoção constituem uma unidade de análise, na perspectiva histórico-cultural de Vigotski. Segundo Toassa (2009, p. 230-231)TOASSA, G. Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural. 348f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/publico/GTOASSA_Tese_2009.pdf. Acesso em: 23 jan. 2024.
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1 1 Gisele Toassa (2009), no percurso de sua tese de doutorado, explicita e aprofunda as diferentes abordagens sobre os conceitos de emoções e vivências nas obras de Vigotski. De acordo com a autora, este conceito elucida processos psicológicos a partir de três núcleos teóricos fundamentais: a crítica e psicologia da arte, a neuropsicologia clínica e os textos pedológicos de 1930. Apesar de as referências ficarem mais esparsas, a noção de vivência se enriquece e complexifica, dissolvendo-se conceitualmente na obra. , “[...] as vivências englobam tanto a tomada de consciência quanto a relação afetiva com o meio e da pessoa consigo mesma, pela qual se dispõem, na atividade consciente, a compreensão dos acontecimentos e a relação afetiva com eles”.

É possível compreender a ação pedagógica na escola como uma prática social, criadora e viva, pois o professor pode se tornar aquele que provoca situações em que as crianças possam se inspirar, nas diferentes situações vivenciadas na escola. Observar, planejar e avaliar as ações pedagógicas são atividades fundamentais para o exercício da docência.

Apoiados em Vigotski (1999a)VIGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1999a., compreendemos que o ser humano se constitui em contextos culturais e históricos definidos. Na perspectiva materialista dialética histórica, assumida por Vigotski, a criança, desde o nascimento, incorpora e transforma modos de ser e de viver. Em outras palavras: o corpo humano (biológico) possui uma materialidade que permite captar, por meio dos sentidos, a materialidade (ou as materialidades) em espaços sociais, culturais e históricos com os quais se relaciona, capturando, pelos sentidos, os atributos dessas materialidades, atribuindo-lhes sentidos e transformando-os. O mundo é significado, ressignificado, transformado nas relações sociais. O sentido estético é construído na interface entre o objeto estético, a realidade e a possibilidade do homem de atribuir significação.

Nesta perspectiva, é possível considerar a hipótese de diferentes entendimentos para o belo, para o bonito, para o estético. A significação é compreendida como um fenômeno cultural de agrupamentos humanos inseridos em espaços e tempos definidos. E como atividade coletiva, implica, necessariamente, em acordos (Vázquez, 1968VÁZQUEZ, A.Incluída S. As ideias estéticas de Marx. Trad. Eunice Duarte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.).

O sentido estético ocupa, portanto, um lugar social estabelecido em um espaço simbólico, significado culturalmente. As concepções e os valores subjacentes a essas concepções (Bakhtin, 2003BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2003.) são construídos em contextos de significação ao longo das histórias de vida. Ou seja, as interferências de ordem cultural podem desencadear novas formas de significações. De acordo com Pino (2006, pp. 67-68)PINO, A. A produção imaginária e a formação do sentido estético: reflexões úteis para uma educação humana. In: Pro-posições, Campinas, v. 17, n. 2, p. 47-69, mai.-ago. 2006. Disponível em: https://www.fe.unicamp.br/pf-fe/publicacao/2366/50_dossie_pino_a.pdf. Acesso em: 15 jan. 2024.
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Um componente da tese de Vigotski do “desenvolvimento cultural” (do homem) é a sua capacidade de simbolizar, ou seja, de criar símbolos e significar as coisas. [...] No campo da sensorialidade e da sensibilidade isso se traduz na capacidade de atribuir um sentido – o que equivale a dar significações sociais atribuídas às coisas – às produções do imaginário, às imagens formadas como resultado da sensorialidade e ao conjunto das produções imaginárias resultantes do remanejamento dessas imagens e da criação de outras novas sem vínculo direto com a percepção sensorial.

A ação humana propicia à pessoa um trabalho completo, envolvendo o intelecto, os sentidos, a emoção e os conhecimentos adquiridos – mesmo que já construídos, passíveis de mudanças. Uma educação propicia o desenvolvimento da percepção estética e do pensamento artístico, que caracterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à experiência humana. A pessoa desenvolve sensibilidade, percepção e imaginação à medida que aprende a apreciar diferentes manifestações artísticas, atribuindo-lhes significados diversos e podendo, inclusive, transformá-las (Schlindwein, 2006SCHLINDWEIN, L. M. Sobre estética e formação docente: algumas considerações. In: SCHLINDWEIN, L. M.; PINO, A. (orgs.). Estética e pesquisa na formação de professores. 1. ed. v. 2. Itajaí: Editora Univali e Editora Maria do Cais, 2006.).

Pensar a docência como vivência estética implica problematizar o modo como as emoções afetam as tomadas de decisões do professor, questionar que revoluções gerarão em suas futuras práticas. De acordo com Vigotski (2001, p. 234)VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001., “[...] como toda vivência intensa, a vivência estética cria um estado muito sensível para as ações posteriores e, naturalmente, nunca passa sem deixar marcas em nosso comportamento posterior”.

Vigotski (2001)VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001. nos deixa como legado a necessidade de pensarmos o professor e a criança a partir de suas relações com o conhecimento, com a vida e com a atividade de ensinar e de aprender. O autor, ao questionar as “leis” que orientam a atividade de ensino em seu tempo, afirma que “ a ciência é o caminho mais seguro para a vida [...] só a vida educa, e, quanto mais amplamente a vida penetrar na escola, tanto mais forte e dinâmico será o processo educativo” (Vigotski, 2001VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001., p. 300).

O processo pedagógico é a vida social ativa, é a troca de vivências combativas, é uma tensa luta em que o professor, no melhor dos casos, personifica uma pequena parte da classe – com frequência, ele está totalmente só. Todos os seus elementos pessoais, toda experiência de sentimentos e pensamentos, além da vontade, são utilizados sem cessar nessa atmosfera de tensa luta social denominada trabalho pedagógico interno. Sua rede de insatisfações pessoais, de incômodos, de esforços para se aclimatar e sua sinceridade pedagógica, as lições educativas derivadas disso

(Vigotski, 2001VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001., p. 303).

Refletindo sobre as vivências estéticas, a imaginação, a arte e a ação pedagógica do professor com as crianças e/ou adultos, as relações entre drama em expressão e ação e o brincar revelam aspectos profundos da experiência humana. O drama, associado à arte teatral, é caminho para que uma educação estética possa ser desenvolvida.

Vigotski, por meio de suas reflexões sobre o drama, nos conduz a uma compreensão mais ampla da psicologia e da condição humana. Nessa perspectiva, é possível assumir a importância do drama no contexto educacional como uma abordagem pedagógica, tendo o brincar como força para os processos de imaginação e criação.

O drama na constituição humana

Para Vigotski, a natureza biológica do homem é forjada, transformada, desenvolvida em um meio que implica em relações sociais e culturais mediadas por outros seres humanos. O drama é aqui entendido como ação expressa e constituidora do desenvolvimento humano; permeia todas as esferas da vida, desde os momentos mais simples do cotidiano até as relações sociais mais complexas.

Na obra de Vigotski, podemos destacar, desde 1916, duas perspectivas conceituais sobre o drama: uma referente ao gênero teatral, e outra que associa o desenvolvimento humano à experiência do drama (Junior, 2011JUNIOR, A. D. Sentidos do drama na obra de Vigotski: um diálogo no limiar entre Arte e Psicologia. Psicologia em Estudo, v. 16, n. 2, p. 181-197, 2011. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000200002
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). Em 1916, Vigotski nos apresenta um trabalho que denominou crítica de leitor ao analisar a obra shakespeareana “Hamlet”. É possível perceber formas embrionárias sobre suas concepções sobre o drama, que serão aprofundadas em seus trabalhos futuros.

Nas análises de Vigotski sobre a estrutura do drama em Shakespeare, por exemplo, em 1925, é possível observar que compartilha do entendimento de que todo drama se fundamenta em uma luta.

Todo drama se baseia em uma luta, seja tragédia ou farsa, vemos sempre que sua estrutura formal é idêntica: verificamos sempre certos procedimentos, certas leis, certas forças contra as quais luta o herói, e só em função da escolha desses procedimentos distinguimos as diversas modalidades de drama. O herói trágico luta no limite das suas forças contra leis absolutas e inquebrantáveis, o herói da tragédia costuma lutar contra leis sociais, e o da farsa contra leis fisiológicas

(Vigotski, 1999bVIGOTSKI, L. S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1999b., p. 292,).

Yaroshevsky (1989)YAROSHEVSKY, M. Lev Vygotsky. Moscow: Progress Publishers, 1989., Del Río; Álvarez (2007)DEL RÍO, P.; ALVARÉZ, A. De la psicología del drama al drama de la psicología. Estudios de Psicología, p. 303-332, 2007. https://doi.org/10.1174/021093907782506489
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e Veresov (2004VERESOV, N. Zone of proximal development (ZPD): the hidden dimension? In: OSTERN, A. & HEILA-YLIKALLIO, R. (orgs.). Language as culture tensions in time and space. Vasa: ABO Akademi, 2004., 2016VERESOV, N. Perezhivanie as a phenomenon and a concept: questions on clarification and methodological meditations. Cultural-Historical Psychology, v. 12, n. 3, p. 129-148, 2016. https://doi.org/10.17759/chp.2016120308
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, 2019)VERESOV, N. Subjectivity and perezhivanie: empirical and methodological challenges and opportunities. In: REY, F. G.; MARTÍNEZ, A. M.; GOULART, D. M. (orgs.), Subjectivity within cultural-historical approach. Singapore: Springer, 2019. https://doi.org/10.1007/978-981-13-3155-8_4
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indicam uma psicologia vigotskiana dramática em curso, nos mais diferentes trabalhos e exposições do autor soviético (algo que não se consolida em função da sua morte prematura). E, nesse cenário, o drama tem ganhado destaque em recentes pesquisas.

O mais famoso e referenciado material para as reflexões sobre uma psicologia em termos de drama encontra-se em um manuscrito de Vigotski datado de 1929. Nele, o autor argumenta que a dinâmica da personalidade é caracterizada pelo drama em uma constante luta interna e uma organização dramática que nos acompanha ao longo da vida. Nas palavras do autor: “[...] o drama realmente está repleto de luta interna impossível nos sistemas orgânicos: a dinâmica da personalidade é drama” (Vigotski, 2000VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, v. 21, n. 71, p. 21-44, 2000. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200002
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, p. 35).

Dessa forma, tanto na comédia quanto na tragédia, o drama costuma abordar a luta implícita na vida. Isso significa que os heróis ou heroínas compartilham angústias e enfrentam desafios com que podemos nos identificar, de forma direta ou indireta (Vigotski, 1999bVIGOTSKI, L. S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1999b.). Portanto, o drama não está apenas na arte como um gênero específico criado pelos artistas, mas está no limiar entre a arte e a vida, no cotidiano.

Ao declarar que “[...] a dinâmica da personalidade é o drama” (Vigostki, 2000VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, v. 21, n. 71, p. 21-44, 2000. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200002
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, p. 135), o autor confirma uma abordagem psicológica que reconhece o papel do drama na vida das pessoas. Vigotski reitera o drama nas lutas internas, tensões e contradições, na essência2 2 Entendemos a essência de acordo com o método materialista histórico-dialético. Netto (2011) nos esclarece que esse método entende como objetivo o conhecimento teórico, partindo da aparência, e visando alcançar a essência: “[....] apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto” (Netto, 2011, p. 22). Ou seja, “alcançando a essência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de procedimentos analíticos e operando a sua síntese” (Netto, 2011, p. 22). das relações humanas. Desde a infância, o drama está presente, sendo uma forma de vivência, interpretativa, que integra aspectos como vida, morte e nascimento, demonstrando a complexidade e a dialética do desenvolvimento humano. O drama desempenha um papel motriz na constituição humana, sendo uma condição essencial para a formação da consciência. E ao se tornar ação expressa, é explorado na vida, na arte e, inclusive, no brincar.

O brincar dramático na infância

A brincadeira, para Vigotski (2008)VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Tradução de Zoia Prestes. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, n. 11, p. 23-36, jun. 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/716219496/a-brincadeira-e-seu-papel-no-desenvolvimento-psiquico-da-crianc3a7a. Acesso em: 20 jan. 2024.
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, é fundamental no desenvolvimento ontológico humano. Mais do que uma atividade de prazer, lúdica e de diversão, o autor compreende o brincar como processo estruturante, responsável pelo desenvolvimento da imaginação, de criação e de vivências emocionais.

O brincar é a ação pela qual a criança atribuirá sentidos e significados sobre suas experiências vividas. “Pode-se dizer sem exagero que quase todas as nossas reações mais importantes e radicais são criadas e elaboradas no processo da brincadeira infantil.” (Vigotski, 2008VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Tradução de Zoia Prestes. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, n. 11, p. 23-36, jun. 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/716219496/a-brincadeira-e-seu-papel-no-desenvolvimento-psiquico-da-crianc3a7a. Acesso em: 20 jan. 2024.
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, p. 120) Trata-se de uma atividade humana social e culturalmente desenvolvida, com objetivos e regras que vão se constituindo e se complexificando à medida que se ampliam as relações também sociais e culturais nas quais as crianças estão envolvidas.

Considerada enquanto força motriz do desenvolvimento infantil, Vigotski (2008)VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Tradução de Zoia Prestes. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, n. 11, p. 23-36, jun. 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/716219496/a-brincadeira-e-seu-papel-no-desenvolvimento-psiquico-da-crianc3a7a. Acesso em: 20 jan. 2024.
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compreende o brincar como impulsionador das ações das crianças. O brincar mobiliza o desejo de pertencimento e de vivência nas brincadeiras. A criança quer ser aquilo que deseja ser ou, ao menos, ter a chance de poder realizar. A brincadeira se constitui em possibilidade, em potência, pela qual os anseios das crianças são mobilizados a partir de desejos, interesses e necessidades não realizados. Para Vigotski (2001, p. 111)VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001., “[...] tudo o que fazemos, inclusive as coisas mais interessantes, fazemo-lo movidos por um interesse, ainda que seja por interesse negativo como temer complicações”. Mas não só isso, a brincadeira possibilita a troca de papéis, a imitação, a construção e testagem de regras, entre tantas outras possibilidades de vivências.

Nesse “espaço potencial” do brincar, as crianças elaboram significações e relações com a cultura na qual estão inseridas. Contudo, não apenas como uma imitação real de suas observações cotidianas, o brincar “[...] não é uma simples recordação do que [a criança] vivenciou, mas uma reelaboração criativa de impressões vividas” (Vigotski, 2009aVIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009a., p. 17). Nessa perspectiva, tem-se uma combinação de vivências e, com essa base, a construção de uma nova realidade que responderá aos anseios das crianças (Vigotski, 2009aVIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009a.).

O ato de brincar supera e transforma a imitação de situações vivenciadas pela criança ou a realização de desejos individuais não satisfeitos. Nem tudo o que uma criança observa ou sente é imediatamente incorporado ao seu brincar. Os modos de participações nas brincadeiras são reinterpretados e adaptados às circunstâncias vivenciadas pela criança.

Vigotski atribui especial importância ao brincar de faz de conta, como podemos constatar em textos como “A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança”3 3 Tal texto é referência circular nas rodas de estudos da teoria histórico-cultural. Segundo Prestes (2008), ele foi traduzido direto do russo para o português do Brasil, por ela e um grupo de pesquisadores(as). Essa tradução buscou rever as fragilidades encontradas no texto semelhante que está incorporado no livro “A formação social da mente” (publicado na União Soviética em 1966 e no Brasil em 1987), no capítulo 7. . No brincar de faz de conta, a imaginação e a criação ficam bastante evidenciados por meio do ser e estar como outros. O ser ou não ser colocado em movimento.

O que significa “fazer de conta”? Quantos pormenores esse tipo de atividade pode apresentar em suas entrelinhas? Quantas emoções estão em circulação? Quantos confrontos entre o que sou, o que posso ser – ou o que não –, são substanciados? Quantas funções sociais a criança tem a chance de exercitar, hipotetizar, chorar, gritar, rir, lamentar? Quantos embates, anseios, frustrações? Quanto drama!

O brincar de faz de conta traz para a cena mais do que um fazer parecer ser. Ele se constitui na possibilidade de problematização do ser real imaginado em vias dramáticas. É ápice, é conflito, é ação de drama em execução. “A criança aprende a ter consciência de suas próprias ações, a ter consciência de que cada objeto tem seu significado.” (Vigotski, 2008VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Tradução de Zoia Prestes. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, n. 11, p. 23-36, jun. 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/716219496/a-brincadeira-e-seu-papel-no-desenvolvimento-psiquico-da-crianc3a7a. Acesso em: 20 jan. 2024.
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, p. 36)

Na brincadeira, a criança experimenta o drama de maneira vívida, transformando-o em ação dramática diante dos nossos olhos. O ato de brincar se torna o veículo no qual a criança navega pelo confronto entre papéis, sistemas psicológicos e dinâmicas sociais.

O drama está intrinsecamente presente na brincadeira, enquanto esta, por sua vez, alimenta e sustenta o próprio drama. “O brincar é, nesse sentido, um exercício do drama (de ser e fazer) humano.” (Magiolino, 2015MAGIOLINO, L. L. S. Afetividade, imaginação e dramatização na escola: apontamentos para uma educação (est)ética. In: SILVA, D. N. H; ABREU, F. S. D. (orgs). Vamos brincar de quê? Cuidado e educação no desenvolvimento infantil. São Paulo: Summus, 2015., p. 151) Não há experiência mais dramaticamente enraizada do que viver, e esse processo se desenrola desde a infância, desde os primeiros momentos de vida.

Existe uma sutil linha que conecta o brincar à arte do adulto. Na arte, o ser humano transcende a vida, sublimando4 4 Vigotski apoia-se fortemente em Freud (1856-1939), quando este afirma que as maiores realizações humanas, incluindo as realizações artísticas, são fruto do processo de sublimação. experiências estéticas que influenciam suas ações posteriores e deixando marcas indeléveis em seu comportamento (Vigotski, 2001VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001.). Consideramos que o brincar também segue essa predisposição de arte, assumindo uma função catártica.

Como afirma Vigotski (2001, p. 35)VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001., “[...] a arte é portadora desse comportamento dialético que reconstrói a emoção e, por isso, sempre envolve a mais complexa atividade de uma luta interna que é resolvida pela catarse”. Assim como na arte, o brincar revela a atividade criadora e seu ciclo completo de cristalização da imaginação. Embora se diferencie da arte do adulto em termos de material e técnica, tanto o teatro quanto o brincar têm o drama como raiz, alimentando e sendo alimentado pela ação dramática.

A ação dramática presente tanto na arte quanto no brincar se configura no limiar entre vida e arte. No brincar, ela representa à pessoa, pela primeira vez, a possibilidade de criação. No entanto, o produto gerado no brincar não se assemelha ao da arte teatral; sua intenção não é a técnica ou a apresentação, mas sim o exercício de vida e criação do modo mais genuíno. A ação dramática presente no brincar não apenas proporciona à criança a experiência do drama como elemento vital da vida, mas também a oportunidade de elaboração de algo novo, da imaginação e da criação.

Vigotski (2008)VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Tradução de Zoia Prestes. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, n. 11, p. 23-36, jun. 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/716219496/a-brincadeira-e-seu-papel-no-desenvolvimento-psiquico-da-crianc3a7a. Acesso em: 20 jan. 2024.
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utiliza os termos “brincar de faz de conta” ou “brincadeira” ou “jogo de papéis”, destacando a complexidade dramática envolvida na brincadeira. Nas notas comentadas presentes no livro “Imaginação e criação na infância”, Smolka apud Vigotski (2009a, p. 99)VIGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1999a. afirma: “Na raiz do drama, portanto, a brincadeira. Mas, na raiz da brincadeira, o drama humano”.

Em pesquisa realizada em 2020, Milléo utiliza os termos “brincar de ação dramática”, “brincadeira dramática”, “brincar dramático” ou “brincar dramatizado”; compreendidos na perspectiva da brincadeira infantil no limiar entre vida e arte5 5 Tais termos podem ser conferidos no trabalho de Milléo (2020). . Para Milléo (2020)MILLÉO, O. Do tilintar da caixinha de música ao ressoar do drama como ação pedagógica: a relação entre a ação dramática e o brincar. 162f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, PPGE/UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/219259. Acesso em: 15 jan. 2024.
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, o brincar dramático requer o exercício completo do drama humano: agir, tensionar, conflitar, posicionar-se, imaginar, sentir, criar, viver e sublimar. É a primeira expressão da ação dramática como atividade criadora humana, envolvendo uma intrincada rede de ações e emoções. O brincar dramático infantil pode ser visto, assim, como uma protoforma, uma gênese, da atividade teatral.

Vigotski afirma que a criança se aproxima do drama pela relação que esta forma de expressão estabelece com a brincadeira. Nas palavras do autor:

Podemos analisar a brincadeira como a forma dramática primeira que se diferencia para uma espécie preciosa, qual seja, a de agregar numa só pessoa, o artista, o espectador, o autor da peça, o decorador e o técnico. Na brincadeira a criação da criança tem o caráter de síntese; suas esferas intelectuais, emocionais, volitivas estão excitadas pela força direta da vida, sem questionar, ao mesmo tempo e excessivamente

(Vigotski, 2009aVIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009a., p. 100).

Consideramos, portanto, que o brincar dramático pode ser vivenciado pelas crianças sob a prerrogativa mobilizadora nas esferas da imaginação e da criação. E é neste sentido que a brincadeira vivenciada dramaticamente pode assumir caráter pedagógico, protagonizada por parte dos adultos que atuam com as crianças6 6 Desde que se rompa a ideia de se constituir em recurso ou modelo didático. .

Entendemos a brincadeira enquanto vivência fundamental de arte e educação estética, em que o drama pode ser direcionado de modo intencional e provocativo no contexto educativo. Salgar o que está insosso na educação, com o sal do riso, da lágrima, com o tempero do teatro, ou seja, o drama da vida (Vigotski, 2022VIGOTSKI, L. S. Sobre o teatro infantil. In: MARQUES, P. (org.). Liev S. Vigotski: escritos sobre arte. Bauru: Editora Mireja, 2022.).

O drama como ação pedagógica

Para compreender o processo, o movimento constitutivo do desenvolvimento humano, Vigotski pauta-se, sobretudo, em Marx (1984MARX, K. Teoria e processo histórico da revolução social (prefácio à Contribuição à crítica da economia política). In: FERNANDES, F. (org.). K. Marx, F. Engels: história. 2. ed. São Paulo: Ática, 1984., 2016)MARX, K. O capital. Crítica da economia política. Livro Primeiro: O processo de produção do capital. 31. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., na busca de uma metodologia expressa por unidade de análises. A metodologia elaborada por Vigotski (2009b)VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009b., na perspectiva histórico-cultural, delineia uma unidade analítica que permite compreender as transformações, neoformações e desagregações desenvolvimentais presentes na constituição da subjetividade humana. Inspiradas neste enlace investigativo, buscamos compreender as raízes do drama, da ação dramática do homem e suas relações com o brincar. Conceitos como imaginação, criação e vivência nos mobilizaram a pesquisar o conceito de brincar dramático como uma unidade que possa oferecer uma compreensão quiçá mais abrangente do brincar. O brincar dramático é aqui compreendido como aquele que explora e revela aspectos fundamentais das potencialidades das crianças, em suas relações, na escola, como um meio, por excelência.

Foram analisados, para os fins deste artigo, dois grupos de vivências, ambos extraídos do trabalho de Milléo, 2020MILLÉO, O. Do tilintar da caixinha de música ao ressoar do drama como ação pedagógica: a relação entre a ação dramática e o brincar. 162f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, PPGE/UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/219259. Acesso em: 15 jan. 2024.
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. Um com professoras da rede pública de ensino e outro com as crianças em uma sala de referência de uma escola de educação infantil, do mesmo município – capital de um dos estados do Sul do Brasil. O drama como ação pedagógica foi analisado a partir desses dois grupos de vivências, com crianças e professoras. Em ambas as situações, a pesquisadora valeu-se de personagens, narrativas e objetos que pudessem convocar processos imaginativos. A personagem chamada Francisca é uma palhaça, que mobilizava e instigava as crianças e as professoras envolvidas nas situações vivenciadas. A linguagem corporal era priorizada. Francisca se valia, sobretudo, de gestos, mímicas e atuações dramáticas para construir a narrativa, envolvendo as crianças e as professoras. Essas situações provocaram tanto crianças como professoras a brincar7 7 Exemplos descritos e analisados podem ser encontrados na dissertação de Milléo (2020), referenciado ao final do trabalho. .

Ao longo dos encontros aconteceram diferentes momentos mobilizadores, envolvendo diferentes personagens (criados e vividos pela pesquisadora Milléo). As situações mobilizadoras alternavam, a cada encontro, a caracterização da personagem Francisca na frente das crianças (e das professoras) e a chegada da personagem já constituída em seu figurino. Nas propostas, a professora Milléo convidava as crianças (e as professoras) a brincarem, a explorar objetos, sons, espaços, entre outras situações. Os dados foram analisados de modo a se apreender as percepções, emoções e memórias expressas, e as possíveis transformações ocorridas ao longo das vivências.

Especialmente com as professoras, o foco das análises foi apreender e tensionar as compreensões sobre o brincar dramático presente nas relações de ensino, as concepções e a significação das atividades realizadas pelas professoras com as crianças nas escolas. E, também, provocar uma autorreflexão com as professoras, a se considerar que o mesmo grupo participou das formações continuadas. As situações vividas nas formações investiram em conteúdos voltados à linguagem teatral e em conhecimentos teóricos e artísticos que pudessem se desdobrar em situações potencializadoras com as crianças.

Foi possível perceber o envolvimento efetivo das professoras, superando a apreciação estética do vivenciado e apresentando indícios de expressões voltadas à imaginação e criação, mobilizados na relação estabelecida entre as participantes e as personagens. Consideramos que as professoras se identificaram e se envolveram emocionalmente com as personagens e propostas imaginativas e de criação por meio de um convite ao brincar dramático (Milléo, 2020MILLÉO, O. Do tilintar da caixinha de música ao ressoar do drama como ação pedagógica: a relação entre a ação dramática e o brincar. 162f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, PPGE/UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/219259. Acesso em: 15 jan. 2024.
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).

O estudo sobre o drama como centro do desenvolvimento humano e do brincar como força motriz foi basilar nas análises dos dois grupos. No exercício de análise por unidade (VIGOTSKI, 2009bVIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009b.), o drama, a imaginação, a realidade e as emoções foram discutidas enquanto “unidades”, no sentido de comporem, significativamente, as transformações ocorridas no processo. A análise dessas “unidades” embasou a reflexão sobre a relação entre a ação dramática e o brincar. Essas “unidades”, ou seja, processos inter-relacionados, permitiram compreender o funcionamento do que seria a unidade do brincar dramático e a unidade do drama como ação pedagógica.

Veresov explica que na obra de Vigotski há a utilização de “unidade” e “unidades” com distinções. “Unidade” refere-se ao termo russo единство (edinstvo), que significa um todo complexo, um sistema completo formado por várias partes, componentes ou elementos. Por exemplo, quando falamos da “unidade de afeto e intelecto”, estamos nos referindo à combinação completa e integrada desses elementos, como um todo indivisível. E “unidades” traduz o termo единица (edinitsa), que se refere a partes ou componentes de um todo complexo. Essas “unidades” são partes constituintes que mantêm as características básicas do todo, como uma molécula de água mantém as características essenciais da água, ou como uma célula viva preserva as características básicas da vida inerentes ao organismo vivo. (Veresov, 2016VERESOV, N. Perezhivanie as a phenomenon and a concept: questions on clarification and methodological meditations. Cultural-Historical Psychology, v. 12, n. 3, p. 129-148, 2016. https://doi.org/10.17759/chp.2016120308
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).

Para Veresov (2016)VERESOV, N. Perezhivanie as a phenomenon and a concept: questions on clarification and methodological meditations. Cultural-Historical Psychology, v. 12, n. 3, p. 129-148, 2016. https://doi.org/10.17759/chp.2016120308
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, a análise psicológica deve focar nas “unidades” (единица) nas quais as características do todo (единство) estão presentes. Isso significa que, em vez de decompor um complexo mental em elementos que não mantêm as propriedades do todo, devemos identificar aquelas “unidades” que retêm todas as características fundamentais do sistema completo.

Sem a intenção de esgotar as possíveis análises, consideramos que os dois grupos revelaram vivências sobre o brincar dramático em acontecimento por vias de uma educação estética. Em outras palavras, os dois grupos de vivências indicam o drama presente na ação pedagógica. A ação dramática é meio para criar situações imaginativas, com base na realidade vivenciada, e processos de criação, tanto para a pesquisadora quanto para os envolvidos.

O brincar dramático tem como premissa a compreensão da presença fundamental do drama na condição humana, na vivência e formação estética do ser humano, tanto na Educação Infantil, quanto na formação e atuação docente.

Considerações finais

Este artigo discute o conceito de brincar dramático, problematizando-o a partir dos conceitos de imaginação, brincadeira, drama e vivência na perspectiva da psicologia histórico-cultural de Vigotski.

Foi destacada a importância da imaginação e das vivências estéticas para a constituição do ser humano, e a vivência foi apresentada como uma experiência qualificada que possibilita à pessoa ampliar suas referências e compreensão de mundo.

Em relação ao brincar, foi enfatizado seu caráter cultural e social, sendo uma atividade pela qual a criança atribui sentidos e significados sobre suas experiências. O brincar de faz de conta foi destacado por explorar os processos de imaginação e criação, com a criança exercendo o “ser” e “estar” como outro.

O drama permeia todas as esferas da vida, desde os momentos cotidianos até as relações sociais complexas. É constitutivo do desenvolvimento humano, marcado por uma constante luta interna, e está presente desde a infância por meio do brincar, que envolve o viver dramático. Nesse sentido, foi proposto o conceito de brincar dramático para designar o brincar que explora esse drama humano fundamental, com suas tensões e conflitos. Um brincar que é a primeira expressão da ação dramática criadora.

Com base nessas discussões, o artigo apresenta indícios da importância do brincar e de sua relação com o drama. Foram relatados dois grupos de vivências organizadas na pesquisa: uma com crianças pequenas e outra na formação continuada de professores. A análise dessas vivências pela perspectiva do drama como elemento vital da existência humana e do brincar como força motriz do desenvolvimento possibilitou a proposição do conceito de drama como ação pedagógica.

Além das reflexões desenvolvidas ao longo do artigo, é pertinente incluir uma discussão sobre o brincar enquanto um direito das crianças garantido em documento nacional e a estética enquanto princípio educacional. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI (Brasil, 2009BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação Infantil. Brasília: Secretaria de Educação Básica, 2010.), que no cenário das políticas públicas assinala a proposta pedagógica dessa etapa da Educação Básica, destacam a importância do brincar como um eixo norteador das práticas pedagógicas e enfatiza a importância da estética enquanto princípio educativo. Esse documento, que reconhece a criança como produtora de cultura, enfatiza que processos artísticos, de imaginação, de criação, e a apreciação estética são dimensões fundamentais da experiência educativa.

Defendemos, portanto, o brincar como vivência (ou atividade) fundamental na escola e na formação de professores. O que se alinha com os princípios das DCNEI, que reconhecem a educação estética na educação das crianças (e nós afirmamos: na formação dos professores). Isso requer a compreensão, por parte dos educadores, da necessidade vital do brincar permeado pela ação dramática.

A educação estética, seguindo o preconizado por Vigotski (2001)VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Artmed, 2001., sugere que vivências estéticas intensas criam estados emocionais sensíveis que deixam marcas duradouras na constituição da pessoa. O drama como ação pedagógica é a oportunidade para que o brincar seja vivenciado dramaticamente de forma estética.

Agradecimentos

Não se aplica.

Notas

  • 1
    Gisele Toassa (2009)TOASSA, G. Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural. 348f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/publico/GTOASSA_Tese_2009.pdf. Acesso em: 23 jan. 2024.
    https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
    , no percurso de sua tese de doutorado, explicita e aprofunda as diferentes abordagens sobre os conceitos de emoções e vivências nas obras de Vigotski. De acordo com a autora, este conceito elucida processos psicológicos a partir de três núcleos teóricos fundamentais: a crítica e psicologia da arte, a neuropsicologia clínica e os textos pedológicos de 1930. Apesar de as referências ficarem mais esparsas, a noção de vivência se enriquece e complexifica, dissolvendo-se conceitualmente na obra.
  • 2
    Entendemos a essência de acordo com o método materialista histórico-dialético. Netto (2011)NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. nos esclarece que esse método entende como objetivo o conhecimento teórico, partindo da aparência, e visando alcançar a essência: “[....] apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) do objeto” (Netto, 2011NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 22). Ou seja, “alcançando a essência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de procedimentos analíticos e operando a sua síntese” (Netto, 2011NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 22).
  • 3
    Tal texto é referência circular nas rodas de estudos da teoria histórico-cultural. Segundo Prestes (2008)PRESTES, Z. Nota de rodapé da tradução de “A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança”, de Vigotski (1933/2008). Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, n. 11, p. 23-36, jun. 2008. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/716219496/a-brincadeira-e-seu-papel-no-desenvolvimento-psiquico-da-crianc3a7a. Acesso em: 16 jan. 2024.
    https://pt.scribd.com/document/716219496...
    , ele foi traduzido direto do russo para o português do Brasil, por ela e um grupo de pesquisadores(as). Essa tradução buscou rever as fragilidades encontradas no texto semelhante que está incorporado no livro “A formação social da mente” (publicado na União Soviética em 1966 e no Brasil em 1987), no capítulo 7.
  • 4
    Vigotski apoia-se fortemente em Freud (1856-1939), quando este afirma que as maiores realizações humanas, incluindo as realizações artísticas, são fruto do processo de sublimação.
  • 5
    Tais termos podem ser conferidos no trabalho de Milléo (2020)MILLÉO, O. Do tilintar da caixinha de música ao ressoar do drama como ação pedagógica: a relação entre a ação dramática e o brincar. 162f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, PPGE/UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/219259. Acesso em: 15 jan. 2024.
    https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
    .
  • 6
    Desde que se rompa a ideia de se constituir em recurso ou modelo didático.
  • 7
    Exemplos descritos e analisados podem ser encontrados na dissertação de Milléo (2020)MILLÉO, O. Do tilintar da caixinha de música ao ressoar do drama como ação pedagógica: a relação entre a ação dramática e o brincar. 162f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, PPGE/UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/219259. Acesso em: 15 jan. 2024.
    https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
    , referenciado ao final do trabalho.

Disponibilidade de dados de pesquisa

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

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Editoras associadas

Lucia Reily https://orcid.org/0000-0002-2792-8664 e Maria Silvia P. M. Librandi da Rocha https://orcid.org/0000-0002-6001-1292

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2024
  • Aceito
    03 Set 2024
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