Open-access Interseccionalidade e Educação Física Escolar: a subjetivação da inter-relação dos marcadores sociais das diferenças no componente curricular

Intersectionality and School Physical Education: the subjectivation of the interrelationship of social markers of differences in the curricular component

Interseccionalidad y Educación Física Escolar: la subjetivación de marcadores sociales de diferencias en el componente curricular

RESUMO

Este texto objetivou evidenciar como a interseccionalidade se organiza e se torna uma possibilidade dentro das práticas político-pedagógicas de professoras de Educação Física Escolar. Realizamos um estudo qualitativo, descritivo e exploratório. Selecionamos duas professoras de Educação Física por meio da amostragem típica intencional. Utilizamos o instrumento de entrevistas semiestruturadas. O material empírico foi submetido à análise temática. Os dados nos permitiram identificar a interseccionalidade como uma ferramenta analítico-política potente para os projetos político-pedagógicos de docentes de Educação Física, colocando-a como uma possibilidade de resistência nas aulas, por meio dos conhecimentos atribuídos pelas nuances da vida real.

Palavras-chave:  Interseccionalidade; Educação Física Escolar; Prática pedagógica; Marcadores sociais das diferenças

ABSTRACT

This text aimed to highlight how intersectionality is organized and becomes a possibility within the political-pedagogical practices of School Physical Education. We carried out a qualitative, descriptive and exploratory study. We selected two Physical Education teachers through typical intentional sampling. We used the instrument of semi-structured interviews. The empirical material was subjected to thematic analysis. The data allowed us to identify intersectionality as a powerful analytical-political tool for the political-pedagogical projects of Physical Education teachers, placing it as a possibility of resistance in classes, through the knowledge attributed by the nuances of real life.

Keywords:  Intersectionality; School Physical Education; Pedagogical practice; Social markers of differences

RESUMEN

Este texto tuvo como objetivo resaltar cómo la interseccionalidad se organiza y se convierte en una posibilidad dentro de las prácticas político-pedagógicas de los docentes de Educación Física Escolar. Se realizó un estudio cualitativo, descriptivo y exploratorio. Seleccionamos a dos profesores de Educación Física mediante muestreo intencional típico. Se utilizó el instrumento de entrevistas semiestructuradas. El material empírico fue sometido a análisis temático. Los datos permitieron identificar la interseccionalidad como una poderosa herramienta analítico-política para los proyectos político-pedagógicos de los docentes de Educación Física, ubicándola como una posibilidad de resistencia en las clases, a través del conocimiento atribuido por los matices de la vida real.

Palabras-clave:  Interseccionalidad; Educación Física Escolar; Práctica pedagógica; Marcadores sociales de diferencias

INTRODUÇÃO

Mas quem pode se lembrar da dor,

quando ela acabou?

Tudo o que resta é uma sombra,

nem sequer na mente, na carne.

A dor marca você,

De forma tão profunda que não se vê.

Margaret Atwood

A partir da interface das diferentes possibilidades das práticas corporais configuradas com a subvenção da cultura corporal na Educação Física Escolar (EFE), os marcadores sociais das diferenças produzem manifestações significativas para possíveis problematizações de acordo com os pressupostos epistemológicos do componente curricular. Nesse caminho, as intersecções desses marcadores nos fornecem marcas para a construção de novas discussões na área, corroborando com debates contemporâneos importantes.

Admitimos, portanto, a teorização da interseccionalidade como categoria de análise para esse texto. No sentido de elucidamos as próximas argumentações, a interseccionalidade caracteriza-se como uma ferramenta analítico-política eficiente (Brito e Silva, 2022), além de constituir uma base investigativa de como as relações de poder estão dispostas por meio dos contextos sociais, produzindo um entendimento de interrelação das categorias de gênero, orientação sexual, raça, classe, capacidade, faixa etária, deficiência, etnia, nacionalidade e outras, colocando-as de maneira correlacionada no cotidiano (Collins e Bilge, 2021).

Ainda nesse momento, continuamos olhando para essa ferramenta como um paradigma de pesquisa (Hancock, 2007b, p. 250-251), se organizando como “[…] um corpo de teoria normativa e pesquisa empírica”. Além disso, a interseccionalidade reconhece e incorpora o contexto histórico em que as relações de poder se desenvolvem (Bilge, 2020; Hancock, 2007a).

Ao partirmos da ideia da interseccionalidade como um artifício potente de interpretação das práticas escolares e suas relações (Faria, 2022), além de estar configurada como uma importante ferramenta para as discussões que permeiam a EFE, como apontam recentes investigações relacionadas com o tema (Auad e Corsino, 2018; Cortes e Pereira, 2024; Fonseca et al., 2024; Juca et al., 2024), efetivamos esse artigo com o objetivo de evidenciar como a interseccionalidade se organiza e se torna uma possibilidade dentro das práticas político-pedagógicas de professoras de Educação Física (EF) na Educação Básica (EB).

CAMINHOS INVESTIGATIVOS

Trata-se de recorte de uma pesquisa ampla que objetivava compreender como professores e professoras de EFE com práticas contra hegemônicas articulam projetos político-pedagógicos atrelados às questões de gênero e sexualidade em suas aulas na EB. Nas discussões que percorreram as análises do estudo, duas educadoras manifestaram contribuições significativas que cercaram o debate da interseccionalidade nas suas práxis pedagógicas, trazendo reflexões articuladas por intersecções de outros marcadores.

Efetivamos um estudo de campo com cinco professoras(es). Para esse recorte, organizaremos o texto a partir das ideias trazidas por duas docentes. Desenvolvemos um estudo de campo e qualitativo. A pesquisa qualitativa produz uma relação direta entre os significados e compreensões que as pessoas atravessam as suas experiências no mundo (Brandão, 2001), sendo assim, caracteriza-se por particularidades complexas, conversando com sentidos e subjetividades diversas e flexíveis, fundamentadas por correntes filosóficas (Flick, 2009).

Estruturamos a partir do caráter exploratório, que objetiva conhecer determinado fenômeno por meio do contexto social no qual está cercado, permitindo um entendimento detalhado dessa temática (Lösch et al., 2023); e descritivo, que detém o propósito da compreensão de uma realidade social específica (Gil, 2008).

As professoras foram selecionadas pela amostragem típica intencional proposta por Flick (2009). Segundo o autor, esse artifício é utilizado quando objetivamos compreender determinadas experiências de sujeitos organizados por aspectos subjetivos e, muitas vezes, desviantes. Essas docentes foram encontradas por meio de relatos na literatura acadêmica que apresentavam experiências de suas práticas político-pedagógicas atravessadas pelos marcadores sociais das diferenças.

Os critérios de inclusão para a seleção das professoras foram: a) atuar na EFE na EB; b) constituir relatos na academia abarcados por suas práxis pedagógicas; c) organizar suas práticas por meio de uma perspectiva transgressora. E de exclusão: a) trabalhar em instituições privadas; b) ter menos de um ano de trabalho docente.

Para a produção das informações, utilizamos o instrumento de entrevistas semiestruturadas, que tem como objetivo organizar um roteiro de perguntas sob um foco específico, podendo surgir outras no momento da conversa caso o(a) pesquisador(a) entenda como necessário para complementação, sendo assim, há uma maior flexibilidade na utilização dessa ferramenta, uma vez que as respostas não se direcionam a alternativas (Manzini, 1991). As entrevistas ocorreram na plataforma Google Meet, no formato on-line, após o aceite e envio do TCLE.

Submetemos o material empírico à análise temática, corroborada Braun e Clarke (2006). Para as autoras, esse tipo de análise dispõe de uma forte flexibilidade e maleabilidade para descrição de realidades específicas, organizada por meio de uma significativa liberdade teórica nas suas etapas. São elas: a) familiarização com os dados; b) construção dos primeiros códigos; c) procura dos temas, convertendo-os em possíveis categorias temáticas; d) revisão desses temas; e) definição e denominação das categorias temáticas; e f) produção do relatório de análise final.

Identificamos as professoras a partir dos nomes “Françoise Vergès” e “Lélia González”, pseudônimos escolhidos pelas próprias docentes de acordo com autoras que elas identificavam como importantes dentro das suas ações, pensamentos e práxis pedagógicas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Federal de São Paulo, com parecer 5.630.781 e CAAE 61606222.7.0000.5473.

OS POSSÍVEIS MOLDES DA INTERSECCIONALIDADE NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR A PARTIR DO OLHAR DAS PROFESSORAS

Embora os debates que transpassam as relações sobre a interseccionalidade e a EFE ainda são iniciais na pesquisa acadêmica (Brito e Devide, 2023), as duas professoras entrevistadas deixam alguns rastros em movimentações importantes para esse cenário investigativo. Ao discorrerem sobre como as temáticas de gênero e sexualidade se conectam aos seus projetos político-pedagógicos na EB, as ideias que sobrepujam os instrumentos da interseccionalidade sinalizam alguns fundamentos argumentativos a partir da correlação de outros marcadores sociais.

Antes de aprofundarmos, consideramos importante mostrarmos quem são essas docentes. A professora Françoise Vergès é mestra em educação pela Universidade Federal de São Paulo, atua na EB há mais de dez anos e está inserida na rede municipal de São Paulo, trabalhando com o ensino fundamental. Produz debates sobre EF antirracista e pensamentos feministas decoloniais em suas aulas. A docente Lélia González é doutora em estudos do lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atua com o ensino médio há dez anos no Instituto Federal de Minas Gerais, articulando suas práticas pedagógicas entre discussões de gênero, raça/etnia e sexualidade.

Tomada inicialmente por discussões pautadas fundamentalmente pelas questões étnico-raciais, a professora Françoise Vergès começou a observar a importância da interrelação com os outros marcadores sociais das diferenças, como evidencia na fala a seguir:

[...] Claro que não começou assim. Meu trabalho começou com um enquadramento de raça, até porque muitos autores eles trabalham com esse enquadramento de raça, que hoje, após a dissertação, após palestras, leituras... hoje eu vejo como um equívoco. A questão de gênero ela precisa aparecer, porque senão nós, mulheres e meninas, a gente desaparece de toda a discussão. Até porque a questão masculina é uma linguagem colonial. Então tá muito presente (Françoise Vergès).

Nesse âmbito, a docente produz um entendimento que esbarra nos sentidos propostos pela interseccionalidade, uma vez que ela está direcionada na busca pelas consequências oriundas da correlação entre dois ou mais eixos de subordinação (Collins, 2017; Crenshaw, 2002). Assim, é crucial estabelecermos uma compreensão articulada a partir de uma organização estrutural tensionada pelas produções e relações de poder provindas das junturas dos marcadores sociais. Não há, portanto, como atribuirmos os significados das opressões em pretensões isoladas, como reflete a professora:

[...] A gente repetia a mesma ideia do Aníbal Quijano1, essa ideia de achar que a raça é o primeiro instrumento de colonização, que vai classificar os corpos, e aí o gênero fica subentendido dentro dessa lógica. E não! O gênero é também um instrumento de classificação, então eu preciso entender essa dinâmica e não sobrepor uma coisa à outra (Françoise Vergès).

Entretanto, “[…] ainda estamos diante do desafio de apreender as formas complexas como raça, classe, gênero, sexualidade, nacionalidade e capacidades se entrelaçam” (Davis, 2018, p. 21), mesmo em face da apreciação de que as conjunturas sociais permanecem sendo assinaladas por desigualdades e diversas formas de opressão e dominação que se interlaçam entre si (Wright, 2019).

Em concordância, também possuindo uma forte experiência atrelada às questões de gênero e raça, a professora Lélia González contempla uma concepção correlativa, ao lembrar da possibilidade e dever de tratarmos os sistemas de segregação social em conjunto, tendo em vista que, também segundo a docente, a própria sociedade se estrutura em meio a intersecções em diferentes instâncias.

Além das discussões permeadas pelos marcadores da raça, do gênero e da sexualidade, as duas professoras transmitem ideais reforçados pelas questões da classe social, trazendo um debate conjunto. A professora Françoise Vergès traz um importante olhar de associação a partir da eclosão das consequências trazidas pelo racismo dentro desse cenário, organizando as suas práticas nas escolas com cautela:

[...] eu tenho a sensação que o racismo institucional tem um peso maior, principalmente quando eu associo gênero e raça [...] É por isso que eu gosto de associar os dois. Pra mim é complicado explicar os dois separados. É mais difícil pra mim. Primeiro que eu não vejo sentido em separar, porque a gente é uma coisa só. E também no cuidado pra gente não cair no discurso de classe. Então não é questão de raça e de gênero, é questão de ser pobre! Esse discurso me incomoda muito, porque ele esbarra também na ideia da meritocracia. Então tem que tomar muito cuidado com isso (Françoise Vergès).

A questão da classe social se mostra evidente de maneira efetiva nos dois contextos pedagógicos das professoras entrevistadas. ”[...] a gente tinha sempre essa discussão de gênero na aula, de raça, de classe” (Françoise Vergès). Ao produzir experiências que escapam das aulas de EF, a professora Lélia González reflete o surgimento de alguns “[...] movimentos, [...] não só com as questões de gênero e sexualidade, mas com as questões de classe também” (Lélia González), mostrando que essas produções nos fornecem problemáticas a serem debatidas além do componente curricular.

Ao organizarem discussões que perpassam também por esse marcador, os(as) discentes são contemplados(as) por debates cercados pelo campo das desigualdades sociais. Nesse caminho, ao entenderem as interfaces provenientes dessa estrutura, crianças e jovens estudantes produzem conhecimentos importantes para a formação da cidadania integral e democrática (Bracht e González, 2014).

Corroborando com essa discussão, “[…] a interseccionalidade fornece uma estrutura de interseção entre desigualdades sociais e desigualdade econômica como medida da desigualdade social global” (Collins e Bilge, 2021, p. 35). No entanto, as autoras lembram que não devemos atribuir à desigualdade econômica apenas a categoria da classe social, pontuando que as análises interseccionais que envolvem outros marcadores produzem uma contextualização mais profunda dos reais problemas dessas desigualdades, indo muito além da discussão econômica (Collins e Bilge, 2021).

Alguns estudos recentes no campo da EFE tem produzido importantes debates no que concerne às discussões do marcador classe social presentes nas escolas (Maldonado, 2020; Silva, 2022; Silveira, 2019). Todavia, como reflete Nilma Lino Gomes, é crucial termos cautela para o desenvolvimento dessas questões:

As análises teóricas sobre a imbricação entre raça, gênero e diversidade sexual se tornam mais desafiadoras e mais complexas quando a elas somamos, de maneira interseccional, as questões de classe social. Em uma perspectiva interseccional, é possível perceber que as desigualdades e exploração econômicas agravam ainda mais essa conjuntura e provocam maior impacto na vida de pessoas negras, mulheres e homens cis e pessoas trans. Tudo isso afeta as chances de integração dos sujeitos na sociedade, a garantia de direitos e a capacidade de mobilidade ou ascensão social (Gomes, 2023, p. 4).

Nessa esfera, a professora Françoise Vergès aponta e reflete que: “A escola precisa olhar para essas questões econômicas. Sem essa visão míope de ideia de classe que é só a questão de pobreza. Não! A questão de raça também, a questão de gênero, de sexualidade...”. Assim, a premissa interseccional se apresenta como uma possibilidade significativa de problematizações nos espaços escolares.

EVIDÊNCIAS DA INTERSECCIONALIDADE NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: QUANDO A JUSTIÇA SOCIAL ESTÁ EM JOGO

Nesse momento, traremos algumas movimentações no que tange ao contexto das práxis pedagógicas das professoras. A ideia é tratarmos essa análise de modo a potencializar a discussão da interseccionalidade na EFE, verificando as diferentes possibilidades desse debate, articuladas às escritas teóricas que permeiam a investigação.

Por exemplo, ao alinharem alguns contextos significativos perante as suas projeções nas salas de aulas, as docentes relatam vivências de projetos com cunho problematizador atravessados por ideias conjuntas em discussões alinhadas aos marcadores sociais das diferenças.

[...] E aí na área de linguagens a gente conseguiu ir além das atividades interdisciplinares, com uma proposta de projeto integrador que trazia essa questão de um olhar interseccional, porque a gente fez uma perspectiva de educação para as relações étnico-raciais, mas trazendo os atravessamentos de gênero e sexualidade, com ações bem específicas... E aí com uma construção também junto com os alunos e as alunas, para que eles também trouxessem as demandas a partir desses lugares (Lélia González).

[...] Então a gente tem um trabalho muito bacana de troca... Eu posso afirmar isso até o ano passado que eu tinha uma turma de 7º, 8º e 9º ano... Passaram por mim nesses três anos, né? E eles que criaram junto comigo a Educação Física antirracista. Eles abraçaram a causa. “Professora, vamos fazer juntos... juntos e juntas”... (Françoise Vergès).

Um “olhar interseccional”, trazido pela professora Lélia González, corrobora não só com o debate fundamentado por essa discussão, mas com uma proposta de uma perspectiva crítica e progressista de EF nas escolas, indo além de uma conceituação teórica. Ao fomentar essa visão em sua práxis, a docente acaba trazendo em todo o processo de ensino e aprendizagem experiências de vida dos(as) educandos(as), tornando o desenvolvimento educacional no componente curricular marcado por resistências e transgressões.

Professores(as) de EFE podem organizar suas práticas político-pedagógicas, portanto, a partir dessa perspectiva, levando em consideração as marcas associadas às existências dos(as) estudantes. Dessa maneira, é preciso quebrar a lógica do silenciamento, ao entender que a ação de silenciar, deixando de lado esses marcadores socioculturais, só fortalece ainda mais uma educação e EF constituídas por amarras neoliberais e eurocentradas (Auad e Corsino, 2018; Tavares, 2022).

Cabe ressaltar também, nas duas experiências descritas anteriormente pelas professoras, a importância do trabalho coletivo e em conjunto com as(os) estudantes. A experiência educacional no componente curricular da EF só percorre em uma ótica integral quando a horizontalidade entre professoras(es) e educandas(os) é buscada. Logo, “[...] há a necessidade da escuta dessas outras narrativas presentes no contexto escolar” (Tavares, 2022, p. 233) Assim, ao sermos escutados(as), enquanto docentes, e também escutando os(as) nossos(as) discentes, como sujeitos que detém e produz saberes, resistimos contra toda a lógica hegemônica que exclui as interseccionalidades da esfera educativa (Bruno et al., 2022).

Em uma perspectiva que traz alguns moldes possíveis da interseccionalidade no contexto da EFE, a professora Françoise Vergès traz uma experiência impactante estruturada e realizada pelos(as) estudantes do ensino fundamental:

Eu vou dar um exemplo: ano passado, os alunos fizeram uma pesquisa sobre a questão da atividade física, e nessas discussões com o texto da Françoise Vergès2, são as mulheres que abrem a cidade, então mulheres que a gente olha na ótica de classe como questões racializadas, porque não dá pra não ser racializadas as questões de classe. Eles começaram a perceber que são mulheres que limpam, por isso que elas abrem a cidade. Então eu tenho um grupo que limpa o shopping, pra garantir o lazer da classe média, da classe média alta. E tem um grupo que limpa as casas, pra garantir também a limpeza dessas casas. Então quem são os grupos que vivem na sujeira? Como é que se dá essa divisão racial do espaço urbano? Aí eu começo a comentar com as questões de gênero. Então os alunos a partir da leitura desses textos falam: “Ah, professora, a gente vai pesquisar as funcionárias da limpeza da escola”. Eu falei: “Tudo bem! A gente precisa conversar com elas pra ver se elas estão de acordo...”. E eu achei legal que a ideia surgiu de um menino, não especificamente de uma menina. E eles fizeram uma outra pesquisa pra entender quantos pais e mães trabalhavam na limpeza. E chegaram a conclusão de 40% são filhos de empregadas domésticas. Então foram atrás das meninas da limpeza lá da escola, fizeram a entrevista com elas... Uma entrevista semiestruturada e um questionário... E chegaram na conclusão que elas não têm direito, efetivamente, ao lazer, porque elas passam a maior parte do tempo limpando, dentro dessa economia do esgotamento. Então quando você me pergunta como eu associo gênero e raça, nesse exemplo! (Françoise Vergès).

Ao refletir sobre a experiência anterior, articulamos uma ideia central de que a interseccionalidade permite análises para que compreendamos a complexidade do mundo, das relações sociais e suas incompletudes (Collins e Bilge, 2021). Nessa abordagem, “[...] As práticas educativas assumem uma dimensão importante para o processo de ensino e aprendizagem quando é empregada, no universo de saberes, à interseccionalidade como ferramenta” (Faria, 2022, p. 182).

Conforme construímos as premissas de um debate perfurado pelas ideias da categoria de análise da interseccionalidade, produzimos um desígnio teórico-prático de entendimento nas correlações que estruturam essa discussão. Nesse cenário, consideramos relevante efetivarmos currículos que olhem para essas questões e desenvolvam conhecimentos atrelados aos sentidos e significados dos aspectos socioculturais dos sujeitos e apropriados aos temas e conteúdos das disciplinas escolares. É o que aponta a docente Lélia González:

[...] a gente tensiona o currículo não só em termos da organização de conteúdos ali... E aí a gente vê as questões de gênero, sexualidade e raça parecem como conteúdo da Educação Física, não só transversalmente... Também transversalmente, mas também como conteúdo, então acho que isso também é um tensionamento do currículo. Mas também pensar o currículo quanto a própria organização institucional.

As escolas, nessa premissa, seguem se moldando em lógicas que reproduzem desigualdades sociais e, o principal questionamento atribuído a essa conjuntura está na formulação dos currículos e na não aceitação de normatizações e regras presentes nos espaços escolares (Collins e Bilge, 2021), especificidades diretamente vinculadas à política neoliberal. É preciso, portanto, “[…] que se inclua nos currículos aqueles que durante muito tempo estiveram invisíveis, esquecidos ou propositalmente deixados de fora” (Cruz e Carvalho, 2020, p. 365).

A interseccionalidade, enquanto possível ferramenta analítica nas escolas, luta contra as políticas neoliberais e as estruturações hegemônicas que seguem moldando não apenas a lógica do sistema escolar, mas a produção de conhecimentos no interior dessas instituições, afetando as formas dos(as) educandos(as) de compreenderam o mundo. Refutando essa realidade, a interseccionalidade se concentra “[…] nas causas individuais e pessoais da desigualdade social, mostrando que fatores estruturais estão em ação” (Collins e Bilge, 2021, p. 268).

É necessário, portanto, não apresentarmos a interseccionalidade em um processo reducionista, configurado em uma estrutura consolidada que caminha por uma direção sistemática (Bilge, 2020). Compreendendo essa ferramenta analítica como um paradigma, podemos construir pesquisas direcionada por problemáticas contemporâneas. Primeiramente, observando um problema no mundo, analisando-o e indo além de abordagens teóricas anteriores sobre essa questão e, posteriormente, formando uma discussão mais poderosa para tentar problematizar a questão apontada (Hancock, 2007b).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse texto teve como proposta dar mais um passo para a discussão da interseccionalidade na EFE, contribuindo com a produção acadêmica da área, que ainda se encontra em fase de desenvolvimento, mas também apresentando alguns caminhos e diálogos que representassem uma posição contrastada com marcas epistemológicas de um debate também inicial nas práticas pedagógicas do componente curricular. As professoras entrevistadas direcionam olhares que vão na contramão de uma conjuntura que segue invisibilizando análises associadas aos marcadores sociais das diferenças, colocando em pauta discursos alimentados pelas nuances da vida real.

Nessa esfera, percebemos a discussão da interseccionalidade como pauta elementar e necessária nas práticas político-pedagógicas de professores(as) de EFE. Essa concepção articula-se sob ideias da pluralidade dos sujeitos, das divergências e convergências identitárias, da diversidade de condições de existência, e da luta por uma educação e EF contra hegemônica e progressista.

Caminhando dentro dessa perspectiva, ao compreendermos a realidade que nos cerca e nos atinge enquanto sujeitos plurais, as práxis pedagógicas de docentes atuantes na EB podem se unir a interseccionalidade e seguir por um caminho diferente, possivelmente mais complexo, mas marcado pelos anseios da justiça social, de resistências e transgressões.

  • 1
    Aníbal Quijano foi um importante sociólogo peruano que desenvolveu o conceito da “colonialidade do poder”, que trata-se de uma ideia da configuração de um poder eurocentrado, articulado sob uma idealização de naturalização de inferioridade dos povos colonizados aos colonizadores. Atualmente, o autor é bastante discutido nos estudos da teoria crítica e decoloniais.
  • 2
    Nesse contexto, Françoise Vergès refere-se à cientista política francesa, e não ao pseudônimo escolhido pela professora. Portanto, os(as) discentes organizaram a atividade também a partir da leitura de textos da autora Françoise Vergès.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2024
  • Aceito
    18 Set 2024
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