RESUMO
O artigo apresenta perspectivas interseccionais nos Estudos Culturais Físicos por meio de ações do Grupo de Pesquisa Corpo, Educação Física e Diferença, apoiadas nos pressupostos da justiça social. Utilizando uma metodologia descritiva e qualitativa, baseada em relatos de experiência, o texto incursiona pelo contato inicial com pesquisas interseccionais em contexto internacional para, após, abordar como os marcadores sociais de diferença (gênero, raça, classe, entre outros) são apreendidos em contextos brasileiros específicos. Os resultados destacam a relevância da interseccionalidade para compreender as dinâmicas de poder e as desigualdades na educação física, oferecendo possibilidades analíticas e práticas para transformar as relações entre corpo, cultura e poder.
Palavras-chave: Interseccionalidade; Pedagogia crítica; Relações de poder
ABSTRACT
The article presents intersectional perspectives in Physical Cultural Studies through the actions of the Research Group on Body, Physical Education, and Difference, supported by the principles of social justice. Utilizing a descriptive and qualitative methodology, based on experience reports, the text explores the initial contact with intersectional research in an international context and then addresses how social markers of difference (gender, race, class, among others) are understood in specific Brazilian contexts. The results highlight the relevance of intersectionality in understanding power dynamics and inequalities in physical education, offering analytical and practical possibilities for transforming the relationships between body, culture, and power.
Keywords: Intersectionality; Critical pedagogy; Power relations
RESUMEN
El artículo presenta perspectivas interseccionales en los Estudios Culturales Físicos a través de las acciones del Grupo de Investigación Cuerpo, Educación Física y Diferencia, apoyadas en los principios de justicia social. Utilizando una metodología descriptiva y cualitativa, basada en relatos de experiencias, el texto explora el contacto inicial con investigaciones interseccionales en un contexto internacional para, posteriormente, abordar cómo se comprenden los marcadores sociales de diferencia (género, raza, clase, entre otros) en contextos específicos brasileños. Los resultados destacan la relevancia de la interseccionalidad para comprender las dinámicas de poder y las desigualdades en la educación física, ofreciendo posibilidades analíticas y prácticas para transformar las relaciones entre cuerpo, cultura y poder.
Palabras clave: Interseccionalidad; Pedagogía crítica; Relaciones de poder
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca apresentar perspectivas interseccionais nos Estudos Culturais Físicos por meio de ações do Grupo de Pesquisa Corpo, Educação Física e Diferença (CODEF), apoiadas nos pressupostos da justiça social. Para tanto, construímos incursões teórico-práticas a partir do diálogo com os Estudos Culturais Físicos (ECF) e suas possibilidades investigativas interseccionais na educação física para, ao final, apresentar as maneiras pelas quais temos - no sentido coletivo - impulsionado esforços para promoção da conscientização crítica e da justiça social sustentada nos pilares freireanos em contextos locais (Freire, 1982, 1996).
Os ECF, tradução de Physical Cultural Studies (PCS), materializam um projeto em desenvolvimento que tem por finalidade compreender os efeitos do poder a partir das relações que emergem das distintas expressões do corpo, nomeadas de cultura física (Silk et al., 2017; Lara et al., 2023). Originando-se da Cinesiologia norte americana, os ECF expandem suas análises para além dos aspectos técnicos e biomecânicos, focando em como a cultura física – e os corpos emergentes nessa cultura - são reconhecidos, representados, e regulados dentro de contextos sociais e culturais específicos (Sousa et al., 2023). Esse olhar foi guiado inicialmente pelas contribuições dos Estudos Culturais – nas produções de Stuart Hall, de modo a fornecer lentes para a análise das práticas culturais como espaços de luta e negociações de poder.
Para a realização de tais incursões, os ECF oferecem uma abordagem para entender como o corpo e os marcadores sociais de diferença — como gênero, classe social, raça, sexualidade, deficiência, entre outros — produzem e são produzidos pelas distintas expressões da cultura física. Essa dinâmica bidirecional enfatiza como as identidades são forjadas por meio de práticas corporais que são simultaneamente constituídas e constitutivas de contextos sociais, políticos, econômicos e culturais específicos (Silk e Andrews, 2011). Assim, a cultura física é vista como espaço de resistência e negociação de significados, na qual o poder é afirmado e também desafiado.
A partir deste entendimento dos ECF, reconhece-se que a abordagem interseccional oferece possibilidades analíticas específicas, considerando que os marcadores sociais da diferença nunca se manifestam de forma isolada, mas estão sempre interconectados na experiência humana (Collins e Bilge, 2021). Dessa forma, a interseccionalidade busca capturar os efeitos dinâmicos e estruturais entre os eixos de subordinação, ou seja, entre os marcadores sociais da diferença (Crenshaw, 2002), o que auxiliar no modo como corpos são organizados, experimentados e representados em meio às relações de poder.
Assim, para efeito da investigação, discutiremos sobre a nossa implicação com a temática em questão no interior do grupo CODEF. Portanto, trata-se de uma pesquisa descritiva, de natureza qualitativa, do tipo relato de experiência (Ludke e Cruz, 2010). Assim, nossa pesquisa será dividida em dois tópicos: marcadores sociais da diferença e os ECF; e, será realizada uma discussão sobre as produções no/do CODEF e as aproximações interseccionais no contexto de pesquisa e de intervenção no cenário da educação física. Esperamos, com isso, contribuir para que outras experiências sejam impulsionadas, notadamente, a partir de análises do poder social e seus atravessamentos interseccionais na educação física.
ESTUDOS CULTURAIS FÍSICOS E OS MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA: IMERSÕES NA UNIVERSIDADE DE MARYLAND
O contato inicial com os Estudos Culturais Físicos ocorreu a partir de ações no Grupo de Pesquisa Corpo, Cultura e Ludicidade (GPCCL), da Universidade Estadual de Maringá (UEM). O impulso inicial ocorreu em 2017, com o retorno da coordenadora do GPCCL do estágio pós-doutoral na Universidade de Bath, no Reino Unido. A partir de sua imersão, houve o acesso a inúmeras temáticas investigativas, as quais acenavam para o trato dos marcadores sociais da diferença na cultura física, a partir de temas relacionados à educação, políticas neoliberais, regulação do corpo, tecnologias aplicadas à saúde, imperativos de saúde, subjetividade feminina e métodos pedagógicos criativos (Lara e Rich, 2017).
O reconhecimento temático nos ECF e o modo como gênero, classe social, raça, etnia, deficiência e outros marcadores sociais compunham as teias das pesquisas e intervenções sociais contribuíram para aguçar a curiosidade em torno da abordagem. Dentre os manuscritos que chamaram a atenção, destaca-se o texto de “Wandering and Wondering”: Theory and Representation in Feminist Physical Cultural Studies1, de Thorpe et al. (2011). O texto explora o potencial dos ECF para uma pesquisa reflexiva, interdisciplinar e teoricamente informada sobre o corpo feminino em distintos contextos esportivos (Thorpe et al., 2011). Ancoradas em uma abordagem autoetnográfica, as autoras revisitaram as maneiras pelas quais gênero, sexualidade, classe, raça e deficiência foram negociadas, em meio às operações de poder, destacando suas agências sociais nessas paisagens.
Além dessa pesquisa, o contato com outras análises atravessadas pelos marcadores sociais de diferença foi feito a partir de leituras decorrentes da disciplina Physical Cultural Studies: corpo, saúde e esporte, ofertada pela Profa. Larissa Lara no curso de doutorado, em 2018. Essas experiências fomentaram a aproximação com a obra Routledge Handbook of Physical Cultural Studies (Silk et al., 2017) e textos complementares a ela. Esse movimento teórico contribuiu para acessar discussões sobre neoliberalismo e produção de conhecimento (Andrews et al., 2013; Silk et al., 2014); gênero no esporte paralímpico (Bush et al., 2013); classe social, raça e gênero em contextos educacionais (De Pian, 2012; Francombe-Webb et al., 2014).
Complementar às leituras, entre 2019 e 2020, foi materializada a imersão no Grupo Physical Cultural Studies da Universidade de Maryland (UMD), nos Estados Unidos. A permanência na UMD foi crucial para explorar as nuances dos ECF a partir de um local institucionalizado, em que a abordagem estruturava-se como linha de pesquisa no Programa de Pós-Graduação do Departamento de Cinesiologia, da Escola de Saúde Pública. A partir do arcabouço de disciplinas e de projetos, pesquisadores se inspiraram nos trabalhos de Silk e Andrews (2011) para identificar e compreender injustiças sociais experienciadas no campo da cultura física, a partir de propostas pedagógica, política e contextualmente situadas, compartilhando muitos de seus ‘achados’ em reuniões departamentais conjuntas entre as áreas ‘biodinâmica’ e ‘sociocultural’.
Dentre as reuniões, houve a apresentação da trajetória acadêmica de uma das professoras que integra a linha de pesquisa dos ECF. A partir de sua posição como pesquisadora, mulher e negra, houve relato dos desafios na sua carreira e, ao mesmo tempo, apresentação de suas pesquisas sobre atividade física, a partir dos atravessamentos de gênero, classe e raça. Os resultados do artigo “Between Privilege and Oppression: an intersectional analysis of active transportation experiences among Washington D.C. area youth” (Roberts et al., 2019), no qual discute-se os usos do transporte ativo (caminhada, bicicleta e transporte público) como meio de deslocamentos que oferecem oportunidade para elevar a atividade física de jovens (Roberts et al., 2019). Entretanto, apesar dos benefícios do transporte ativo, a docente destacou as variáveis sociais - a partir da tríade raça-gênero-classe - que produzem experiências de jovens de baixa renda e de cor que precisam ser analisadas com cuidado, denunciado discursos hegemônicos sobre a atividade física. Tais elementos foram fundamentais para a compreensão do trabalho desenvolvido, dadas as possibilidades dos marcadores sociais como categorias analíticas em inúmeros eixos de opressão (Akotirene, 2019; Collins e Bilge, 2021).
Além dos encontros, os ECF eram ofertados em disciplinas2 que possibilitaram a produção de sensibilidades ‘outras’ para os marcadores sociais de diferença e seus impactos na cultura física. A disciplina Sociology of Sport in Contemporary Perspective, oferecida pelo Prof. Andrews, em 2020 de modo virtual, em decorrência da pandemia da Covid-19, foi um marco nas possibilidades de análise. Isso porque o curso ofereceu um panorama da Sociologia do Esporte, desde sua concepção clássica à contemporânea, em suas abordagens empíricas e teórico-metodológicas. O curso foi dividido em quatro seções: a) Introdução à Sociologia do Esporte; b) Estruturas e Processos, com atenção às discussões sobre capitalismo tardio e classe; cultura do consumidor; e, políticas neoliberais; c) Corpos e Identidades, sob o viés dos estudos de gênero, sexualidade, classe social e raça na cultura física; d) Instituições e Experiências, com foco no nacionalismo, subculturas esportivas e outros. Para isso, o curso recrutou pesquisadores sociais esportivos, incluindo, mas não se limitando à Holly Thorpe, Michael Silk, Pirkko Markula, Ben Carrington, Joshua Newman, Ryan King-White, dentre outros e os modos como utilizavam os escritos de Karl Marx, Stuart Hall, Antonio Gramsci, Judith Butler, Max Weber, Pierre Bourdieu e Michel Foucault.
Em última análise, a leitura dos inúmeros textos e as discussões edificadas a partir do diálogo com autores/as que integram a assembleia dos ECF no contexto internacional, somada à densidade teórica, metodológica e empírica de suas produções, contribuíram para articular discussões epistemologicamente interseccionais sobre a cultura física, sob viés pedagógico, político e contextual. Por meio da experiência formativa, aliada à visualização da perspectiva interseccional nos ECF permitiu uma compreensão das dinâmicas de poder que operam dentro desses contextos, iluminando as formas de opressão e os privilégios que permeiam as expressões da cultura física.
A partir dessas experiências locais, foram considerados múltiplos marcadores sociais de diferença, como gênero, raça e classe nas experiências relacionadas à cultura física, tomando emprestada as ideias de Collins e Bilge (2021). As práticas de pesquisa e ensino nos ECF revelaram, indireta e diretamente (em muitos casos), como as intersecções de marcadores sociais não só moldam as experiências individuais, mas também como essas experiências são impactadas por estruturas de poder mais amplas, como destacado em alguns estudos (Silk e Andrews, 2011; Andrews e Silk, 2015; Thorpe et al., 2011). Em síntese, a imersão fez com que potencialidades fossem ressaltadas e, ao mesmo tempo, limites fossem sendo refletidos. Como destaque, é evidente o foco da abordagem em analisar como corpos são regulados, experienciados e representados a partir da intersecção dos marcadores sociais, o que permite visualizar a estruturação de desigualdades e, de igual forma, resistências e reinvenções contextuais.
Entretanto, a ausência de um engajamento ativo com a comunidade - preocupação alertada por Atkinson (2011) -, como ação transformadora em busca da justiça social, também foi desenhada como pouco desenvolvida pelo grupo. A ausência de um engajamento comunitário ativo, como apontado por Atkinson (2011), limita a capacidade da abordagem em promover mudanças sociais transformadoras efetivas. Essa falta de envolvimento direto com as comunidades pode resultar em uma desconexão entre as teorias discutidas e as realidades vividas pelos sujeitos, diminuindo o impacto potencial das intervenções propostas.
Assim, com o encerramento do estágio no exterior, inquietações e possibilidades foram produzidas, as quais passaram a ocupar uma agenda investigativa no contexto brasileiro. Essa agenda não se construiu de modo solitário, ao contrário, precisou ser instaurada a partir de um coletivo que auxiliasse na produção de múltiplas sensibilidades em torno dos ‘problemas sociais’ que atravessam a educação física. Logo, os recursos agrupados foram necessários e estão sendo colocados em ‘práxis’, de modo interseccional, a partir de distintas experiências educacionais que serão relatadas no próximo tópico.
CORPO, DIFERENÇA E EDUCAÇÃO FÍSICA: INSPIRAÇÕES INTERSECCIONAIS EM CURSO
As aproximações com os ECF - tanto teórica quanto empiricamente - reforçaram a ideia de que a pesquisa, em seu sentido social (Silk e Mayoh, 2017) - é uma importante ferramenta para a produção de intervenções cujo enfoque seja a justiça social (Collins e Bilge, 2021). Essa sensibilidade, inspirada nas contribuições de Andrews e Silk (2015), foi desenhada a partir do reconhecimento de que a sociedade é dividida em linhas hierárquicas de diferenciação (classificadas a partir de gênero, classe social, raça, etnia, deficiência, entre outros) responsáveis pela produção de desigualdades em paisagens esportivas.
A partir das experiências no exterior, novos conhecimentos passaram a compor o cenário de pesquisa: experiências pedagógicas e investigações diversas na Educação Física que buscassem acionar elementos constitutivos da sensibilidade dos ECF, as quais estimulavam, inspiradas nos escritos de Hooks (2013), transgressões pedagógicas rumo a uma educação como prática da liberdade. Esses elementos se referem às dimensões políticas, pedagógicas, contextuais – para citar algumas – que são elencadas como basilares para uma pesquisa/intervenção que busque reconhecer relações de poder nas intersecções entre corpo e cultura. Aliados às feministas (Thorpe et al., 2011; Olive, 2017; Thorpe e Marfell, 2019), procuramos (re)criar espaços acadêmicos preocupados em apreender o corpo como local de disputas de poder, a partir de suas interseccionalidades.
Foi nesse contexto que surgiu o Grupo de Pesquisa CODEF, concebido informalmente em 2020, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e, após três anos, foi transferido para a Universidade Federal de Goiás (UFG). Esse movimento inicial, baseado em agenda teórica preocupada com os fundamentos dos ECF culminou em reflexões sobre as disputas identitárias das/os integrantes do CODEF e como estas - a partir dos marcadores de raça, gênero e classe social - impactaram suas experiências formativas em meio às relações de poder (Marani et al., 2021a). Por de meio de discussões sobre currículo em educação física, mulheres na capoeira, gênero na dança e no futsal, o exercício interseccional no CODEF foi inicialmente constituído por meio de relatos autoetnográficos que desafiaram estruturas de poder, por meio de análises contextuais da fisicalidade, conforme Marani et al. (2021a).
Em 2021, novos desenhos passaram a compor as ações do CODEF, especialmente, a partir do ensino (graduação e pós-graduação stricto-sensu), da extensão (projetos de ações afirmativas) e de pesquisa (iniciação científica, dissertações e projetos institucionais). Foi, a partir da ampliação das fronteiras investigativas do grupo, incorporados pelo ethos da justiça social, baseado nos pressupostos de Paulo Freire, bell hooks e Henry Giroux, que passamos a estimular ações que desafiavam “estruturas e relações de poder existentes, conforme elas se manifestam e vivenciadas no complexo campo da cultura física” (Silk et al., 2017, p. 8, tradução nossa).
Em nossas práticas como intelectuais públicos, a partir de Giroux (2004), intensificamos a produção de pesquisas e intervenções associadas a um compromisso com a mudança social, que reconhecesse os efeitos das relações de poder (Silk et al., 2017). Para tanto, o CODEF foi constituído a partir de duas linhas de pesquisa, quais sejam: a) Currículo, produção de conhecimento e diferença; b) Educação, práxis e diferença. Passamos, então, a realizar estudos que favorecessem à identificação e interpretação das injustiças sociais, bem como a processos pedagógicos que gerassem mudança social, a partir de nosso engajamento ativo e crítico, a partir de inúmeras inspirações (Hooks, 2013; Collins e Bilge, 2021; Giroux, 2004; Freire, 1982).
Em decorrência desses estudos, reflexões foram materializadas em artigos cujo enfoque foram: dimensões epistemológicas e históricas dos ECF (Marani et al., 2021b; Sousa et al., 2023); fundamentos feministas nos ECF (Irber et al., 2024); gênero, raça e cultura física (Araújo et al., 2022); masculinidades na cultura física (Pereira et al., 2023); centralidade do corpo na abordagem (Sandoli e Marani, 2023); marcadores sociais em pedagogias públicas (Guimarães et al., 2023a, b). Em síntese, tais produções contribuíram para desenhos iniciais a partir da interpretação interseccional (Collins e Bilge, 2021), permeada por múltiplas camadas de opressão e privilégio, destacando a importância de uma abordagem crítica e transformadora na educação física.
Em decorrência dessa lente epistêmica, a partir do ano 2023, nosso foco de estudo centrou-se no projeto de pesquisa “Subversões político-pedagógicas em Educação Física: atravessamentos corporais em gênero, raça e classe social”, tendo como objetivo geral investigar as possibilidades de subversões pedagógicas na Educação Física, por meio de atravessamentos corporais em relação a gênero, raça e classe social, a partir de abordagem crítica e transformadora para o estudo e intervenção das diferenças. A partir da sensibilidade interseccional, temos procurado, nos projetos de pesquisa em andamento e outros concluídos, a identificação de como diferentes matrizes de poder interagem, criando experiências de marginalização que precisam ser reconhecidas e enfrentadas no cotidiano pedagógico.
Em última análise, essas produções acadêmicas e práticas pedagógicas visam não apenas entender, mas também transformar condições de desigualdade e injustiça social, alinhando-se com o compromisso dos ECF de promover uma educação crítica e engajada com a práxis (Silk e Mayoh, 2017). Nesse sentido, a pesquisas passaram a se debruçar sobre pedagogia crítica na dança a partir de relações de gênero, raça e classe social (Guimarães et al., 2023a, b); discursos sobre gênero, sexualidade e raça e suas relações com o esporte universitário (Pereira, 2024); elementos lúdicos a partir da proposta de brinquedo pós-crítico com foco nos estudos de gênero e esporte (Guirra, 2024); elementos da pedagogia freireana rumo à justiça social (França et al., 2024); pedagogia decolonial, educação física e saberes indígenas (Silva, 2024), entre outros.
Como resultado de movimentos interseccionais no CODEF, destacamos as experiências autoetnográficas em dança e capoeira, a fim de explicitar desafios político-pedagógicos do pensamento interseccional nessas manifestações corporais (Marani e França, 2024). A partir da abordagem autoetnográfica, realizamos exercício autorreflexivo interseccional das nossas experiências na dança e capoeira, atravessadas pelas categorias contextuais, políticas e pedagógicas dos ECF. Como resultado, compreendemos que a interseccionalidade é um instrumento analítico importante para reconhecer como as identidades de gênero, classe, raça e sexualidade se entrecruzam e impactam nossas práticas culturais, diante disso, intentamos criar ambientes desafiadores, atentos às complexidades das experiências identitárias e corporais (Marani e França, 2024).
Ao lado disso, nossas posições no interior do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, a partir do Grupo de Trabalho Temático (GTT) Gênero, têm estimulado o debate ativo sobre gênero e as intersecções de outros marcadores sociais da diferença na Educação Física. Como integrantes desse comitê científico, temos buscado contribuir para a promoção de discussões, organização de eventos, entre outras ações que incitam a composição de teias de análise a partir de outras relações, como raça, etnia, deficiência, classe social e outros. Dentre tais ações, discutimos as interseccionalidades na Educação Física a partir do diálogo com outros GTTs, junto ao XIII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte e X Congresso Internacional de Ciências do Esporte (XIII CONBRACE/ X CONICE), de modo a abordar as complexas interações entre diferentes formas de opressão e privilégio, por meio de pesquisas que visam desmantelar estruturas de poder e promover a justiça social na Educação Física.
Resultado desses exercícios, agenciamos as lentes interseccionais de modo a permitir ao CODEF não apenas identificar as desigualdades e injustiças sociais, mas também formular estratégias pedagógicas e realizar intervenções que visem transformar essas realidades. No trabalho do CODEF, isso se traduz em um compromisso com uma educação crítica e transformadora, que prepara estudantes e pesquisadores para reconhecer e confrontar as desigualdades nas práticas culturais físicas. A interseccionalidade, assim, não é apenas uma ferramenta analítica, mas um guia para a ação e a transformação social, alinhando-se com os princípios de justiça social (Freire, 1996). Assim, a interseccionalidade se torna um instrumento analítico e prático como fundamento para (re)imaginações sociais, impulsionando novos “fazeres” pedagógicos em nossa ação como pesquisadores/as da/na educação física.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do nosso artigo foi apresentar perspectivas interseccionais nos Estudos Culturais Físicos por meio de ações do Grupo de Pesquisa Corpo, Educação Física e Diferença (CODEF), apoiadas nos pressupostos da justiça social. Por intermédio do relato de experiência, tratamos sobre as nossas aproximações e implicações com os ECF de forma articulada com os marcadores sociais da diferença no interior do CODEF e para além dele; e destacamos os atravessamentos interseccionais no contexto de pesquisa e intervenção no cenário da Educação Física. Assim, reconhecemos os esforços do grupo de pesquisa CODEF em colaborar para a compreensão dos ECF a partir de uma lente interseccional, de forma a contribuir para a promoção da conscientização crítica e a construção de uma sociedade justa, sustentada nos pilares freireanos.
Os principais achados do estudo evidenciam a relevância da interseccionalidade para compreender as dinâmicas de poder e as desigualdades no corpo. A análise das intersecções de gênero, raça, classe e outros marcadores sociais revelou como essas categorias se entrelaçam para moldar as experiências dos indivíduos em contextos educacionais. Entretanto, nosso estudo também enfrentou limitações e desafios. A implementação prática das abordagens interseccionais ainda enfrenta resistência em contextos institucionais tradicionais. Além disso, a falta de engajamento comunitário ativo limita o impacto transformador das intervenções propostas. Futuras pesquisas poderiam explorar estratégias para superar essas barreiras, ampliando o engajamento com comunidades locais e diversificando as teorias interseccionais em diferentes contextos.
Longe de ser um caminho único, este é apenas um entre tantos e por isso encontra-se em processo aberto à crítica e pronto para reinvenções a partir do diálogo com outros grupos de pesquisa, docentes e abordagens teórico-metodológicas. Fica o convite para que outros tons sejam desenhados a partir de subjetividades distintas, desde que suas preocupações estejam atentas às relações entre corpo, cultura e como o poder social opera nessa dinâmica, ora na (re)produção ora na contestação das injustiças sociais.
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1
Este texto compõe o volume 28 da Revista Sociology of Sport Journal, uma edição especial publicada com o objetivo de demarcar os Estudos Culturais Físicos na Sociologia do Esporte. Cf.
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2
Sport and Globalization; Feminist Physical Cultural Studies; Physical Cultural Studies: Culture/Theory/Articulation; Sport and the Civil Rights Movement; Sport and Mass Media; Gender and Sport; e, Cultural Theory, the Body, and Physical Culture.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
07 Jun 2024 -
Aceito
08 Set 2024