Acessibilidade / Reportar erro

Condillac: um negligenciado pioneiro da catalática

Resumo

Este artigo estuda a pioneira contribuição de Condillac à Economia, que antecipa em diversos aspectos as teorias neoclássicas do valor e trocas. O trabalho argumenta que a teoria econômica do autor se relaciona com sua filosofia, o sensacionalismo, que provê uma fundamentação possível para uma Economia baseada no conceito de ação humana e escolha. A rejeição por parte dos economistas do século dezenove do modelo de trocas e da teoria do valor desenvolvidos por Condillac é relacionada no artigo com as diferenças nucleares entre as perspectivas plutológica e catalática. A despeito dessa rejeição, mostramos como a filosofia do autor ainda assim influencia as obras de alguns economistas do período, notadamente Destutt de Tracy.

Palavras-chave
Condillac; Sensacionalismo; Catalática; Subjetivismo

Abstract

This article studies Condillac’s pioneering contribution to economics, which in many ways anticipates modern neoclassical value and exchange theory. The paper argues that his economic theory is related to his philosophy, known as sensationalism, which provides a possible foundation for an economic theory based on the concept of human action and choice. The rejection by nineteenth-century economists of the exchange model and theory of value developed by Condillac is related in the article to the core differences between the plutological and catallactic perspectives. Despite this rejection of his contributions, we show how the author’s philosophy still influenced the works of some economists of the period, notably Destutt de Tracy.

Keywords
Condillac; Sensationalism; Catallactics; Subjectivism

1.

Introdução

Dentre os pioneiros da teoria econômica, o nome de Condillac é raramente mencionado. Esse autor, porém, publicou uma das primeiras obras a oferecer uma análise sistemática dos fenômenos econômicos, utilizando explanações bem próximas da teoria moderna. Sua teoria é baseada em modelo de trocas no qual a riqueza é gerada a partir das diferenças de valor subjetivo atribuído a porções concretas dos bens, conforme a importância ou utilidade que assumem nas diferentes situações problema enfrentadas pelos agentes.

Étienne Bonnot, Abade de Condillac (1714–1780), foi um dos filósofos iluministas. Sua filosofia, conhecida como sensacionalismo, é derivada do empirismo lockeano e procura explicar os fenômenos mentais em termos de reações a estímulos sensoriais. Trata-se de um modelo de como o homem percebe o mundo e age. Sua negligenciada contribuição à teoria econômica, por sua vez, ao contrário do que alega Schumpeter (2006, 171, nota de rodapé 8)Schumpeter, Joseph Alois. (1954) 2006. History of Economic Analysis. Londres: Routledge., está intimamente associada a essa filosofia, pois explica os fenômenos econômicos a partir de um modelo de ação individual e sua filosofia oferece uma base possível para o desenvolvimento de um modelo dessa natureza.

Provavelmente um dos fatores que tenha levado um filósofo reconhecido a escrever sobre temas econômicos tenha sido sua contratação, entre 1758 e 1768, como tutor do príncipe de Parma, Don Philippe, filho do rei Bourbon da Espanha e marido da filha mais velha de Luiz XV, pois a instrução de um futuro monarca naturalmente envolve assuntos econômicos. Essa experiência de tutoria, aliada ao desejo de defender as reformas de Turgot durante o reinado de Luiz XVI, resultou na publicação de Comércio e Governo Considerados em Relação Um ao Outro, no mesmo ano que a veio à luz a Riqueza das Nações de Adam Smith.

Macleod (1896, 69)———. 1896. The History of Economics. Londres: Bliss, Sands and Co. percebe essa coincidência e, ao comparar as duas obras, nota uma estrutura comum: influência do pensamento fisiocrata 1 1 Orain (2002) estuda a relação entre Condillac, os fisiocratas e Turgot. , importância atribuída à teoria do valor e defesa do comércio livre contra o protecionismo. Mas, ao contrário de Smith, com frequência tido como o “pai da economia”, Condillac mal é citado pelos comentaristas da história do pensamento econômico 2 2 Embora não ocupe um papel importante nos livros de história do pensamento econômico, a contribuição de Condillac é objeto de alguns trabalhos acadêmicos. S. Eltis e W. Eltis (1997), na introdução de Comércio e Governo, oferecem um sumário sobre vida e obra de Condillac. S. Eltis e W. Eltis (1999) analisam a crítica ao estatismo francês no século dezoito. W. Eltis (1993) aplica a análise de Condillac de desregulação à tentativa de transição da Rússia para uma economia de mercado nos anos noventa do século vinte, Klein (1985) discute a metodologia da economia segundo Condillac e Destutt de Tracy. Orain (2003) examina diversos textos de Condillac para identificar a filosofia da história do autor, que supõe que civilizações passam por ciclos de vida. No contexto da mesma filosofia da história, Orain (2006) trata das opiniões de Condillac sobre a discussão fisiocrata a respeito das demandas por bens de luxo em contraste com bens necessários. . Antes da Revolução Marginalista, essa diferença de tratamento é perfeitamente compreensível. Afinal, o próprio núcleo do pensamento do autor francês, a saber, um modelo de ganhos de trocas derivado de diferenças subjetivas dos valores, contraria o pressuposto herdado do pensamento grego e central entre os economistas clássicos, segundo o qual os valores envolvidos nas trocas seriam iguais. Como veremos mais adiante, autores como Say, Bastiat e Marx explicitamente rejeitam a teoria de Condillac exatamente por esse motivo.

Com a Revolução Marginalista, porém, poderíamos esperar uma atenção maior dispensada a esse pioneiro da teoria moderna. A afinidade entre as teses de Condillac e a teoria moderna fica clara quando consideramos a seguinte caracterização da evolução da disciplina. Hicks (1976)Hicks, John. 1976. “‘Revolutions’ in Economics”. Em Method and Appraisal in Economics, editado por Spiros Latsis. Cambridge: Cambridge University Press., assim como Macleod (1887)Macleod, Henry. D. 1887. On the Modern Science of Economics. Londres: John Heywood., divide a história do pensamento econômico em duas grandes tradições, denominadas plutologia e cataláxia. A primeira consiste em um modelo agregado de crescimento, que define o problema econômico como o estudo da produção e distribuição de riqueza material e usa uma teoria objetiva do valor cujo propósito central é medir essa riqueza, enquanto a segunda é um modelo de trocas que redefine o problema central da disciplina como o problema alocativo e utiliza uma teoria subjetiva do valor com o propósito de representar os ganhos advindos dessas trocas. Condillac, ao propor um modelo de trocas como fundamento de sua análise, deveria, portanto, ser reconhecido como pioneiro da perspectiva catalática.

A atenção dada ao autor, porém, ainda é algo limitada. Jevons ([1871] 1983, 18)Jevons, William S. A. (1871) 1983. A Teoria da Economia Política. São Paulo: Abril., como participante da Revolução Marginalista, no prefácio de seu livro coloca Condillac no início de uma lista de autores franceses cuja análise considera superior à tradição britânica. Macleod (1896, 73)———. 1896. The History of Economics. Londres: Bliss, Sands and Co., entusiasta da abordagem catalática, afirma que o trabalho de Condillac “foi totalmente negligenciado, mas ainda assim, no espírito científico, é infinitamente superior ao de Smith”. Schumpeter (2006, 171)Schumpeter, Joseph Alois. (1954) 2006. History of Economic Analysis. Londres: Routledge., por outro lado, mais preocupado com a evolução de modelos formais, minimiza a contribuição de Condillac.

Eltis e Eltis (2008)Eltis, Shelagh e Walter Eltis. 1997. “The Life and Contribution to Economics of the Abbé de Condillac”. Em Commerce and Government considered in their mutual relationship, de Étienne Bonnot de Condillac. Indianapolis: Liberty Fund., no ensaio introdutório da edição em inglês de Comércio e Governo, proveem um sumário da teoria econômica desenvolvida por Condillac, bastante útil para uma maior divulgação da obra. Falta, porém, uma análise que interprete tal teoria no contexto da evolução da teoria econômica. Este artigo investiga o legado de Condillac ao longo da história do pensamento econômico, explorando as características centrais de sua teoria, a relação com sua filosofia, os motivos da rejeição dessa teoria no século dezenove, a influência de suas ideias no pensamento de alguns economistas clássicos, em especial na França, além de explorar a afinidade entre o modelo de trocas e teoria do valor do autor com a teoria econômica moderna.

Pioneiros antecipam desenvolvimentos teóricos posteriores, sendo muitas vezes ignorados ou rejeitados em seu tempo. No caso de Condillac, diferentes fatores podem ter colaborado para explicar esse fenômeno, como a publicação simultânea com a obra de maior impacto de Smith, menor influência geradas por obras não publicadas em inglês ou ainda alguns aspectos da teoria do autor, mencionadas ao longo do texto. A incompatibilidade com teorias mais aceitas, contudo, se destaca como explicação sobretudo quando defensores destas últimas explicitamente rejeitam a alternativa teórica em termos de sua incompatibilidade com a doutrina então aceita.

Este artigo explora diferentes aspectos do reduzido impacto gerado pelas ideias econômicas de Condillac em termos do contraste entre os núcleos duros dos programas de pesquisa clássico e neoclássico, na medida em que o modelo de trocas e teoria do valor propostos pelo autor contrariam hipótese nuclear do primeiro programa, que estabelece a igualdade entre valores nas trocas. De fato, Jean-Baptiste Say, o autor principal da tradição clássica na França 3 3 J.-B. Say é figura central da escola clássica francesa, tradição baseada em Adam Smith e composta por autores como G. Garnier, Destutt de Tracy, Storch, Ch. Comte, Ch. Dunoyer, P. Rossi, J.-A. Blanqui, Bastiat, Coquelin, Chevalier, Courcelle-Seneuil, J.C. Garnier, Molinari, Leroy-Beaulieu e Guyot, cujos livros e cursos seguem o programa de pesquisa plutológico. , cuja obra estabelece o padrão plutológico de análise definidor dessa tradição em termos da tríade produção, distribuição e consumo de riqueza, sendo esta última medida em termos de valores equivalentes transacionados, explicitamente rejeita o modelo de Condillac precisamente por contrariar essa perspectiva, assim como outros autores clássicos que se depararam com Comércio e Governo.

O artigo é organizado da seguinte maneira. A próxima seção trata brevemente de sua filosofia e do impacto desta para o pensamento dos Ideólogos, o grupo de intelectuais que direciona o pensamento econômico francês no período. Tendo em vista essa filosofia, a seção seguinte se debruça sobre os elementos centrais da teoria econômica de Condillac, precursora da abordagem catalática, além de examinar sua aplicação ao problema de transição durante reformas institucionais. As duas seções subsequentes documentam respectivamente a rejeição do modelo do autor em termos de sua incompatibilidade com o núcleo duro da economia clássica e a influência de Condillac nas ideias metodológicas de Destutt de Tracy e, através deste último, na visão de mundo de Bastiat, além de mostrar como as mesmas ideias econômicas ressurgem na obra de Storch. A conclusão recapitula as teses desenvolvidas ao longo do texto.

2.

A Filosofia de Condillac

O desenvolvimento da teoria econômica na França está intimamente relacionado à discussão geral sobre quais seriam as instituições adequadas para o país no contexto pós-revolucionário, discussão essa associada ao Iluminismo. J.-B. Say, a figura central da escola clássica francesa de economia, é classificado (Forget, 1999)Forget, Evelyn. L. 1999. The Social Economics of Jean-Baptiste Say: markets and virtue. Londres: Routledge. como membro do grupo dos Ideólogos 4 4 Entre os autores pertencentes ao grupo, podemos citar Cabanis, Condorcet, Benjamin Constant, Germaine de Staël, Destutt de Tracy, J. B. Say, Roederer e Pinel. , termo relacionado à ideologie ou ciência das ideias, programa de pesquisa proposto por Destutt de Tracy e derivado da filosofia de Condillac.

O reformismo que motiva o grupo foi caracterizado por um entusiasmo pelo racionalismo científico. Esse racionalismo adota como fundamento o empirismo inglês, para o qual o conhecimento sobre o mundo exterior é obtido pelos sentidos e não por ideias inatas. Filósofos como Helvétius e Condillac desenvolvem o empirismo de Locke na direção do sensacionalismo, que descreve a filosofia deste último autor e fornece um modelo de ação usado pelos economistas antes do desenvolvimento do utilitarismo de Bentham.

O desenvolvimento dessa tradição filosófica no grupo dos ideólogos é atestado por um de seus membros, Cabanis (1815, ix-x)Cabanis, Pierre J. G. (1802) 1815. Rapports du Physique et du Moral de L’Homme. 3ª ed. Paris: Caille et Ravier.:

Helvétius resumiu a doutrina de Locke, apresentando-a com grande clareza, simplicidade e elegância. Condillac desenvolveu-a, ampliou-a, aperfeiçoou-a, ele demonstra a verdade através de novas análises, mais profundas e mais capazes de direcionar sua aplicação. Os discípulos de Condillac, cultivando diferentes ramos do conhecimento humano, melhoraram ainda mais, alguns até corrigiram em vários pontos sua imagem dos processos do entendimento.

Cabanis acrescenta, em nota na mesma página, a observação de que: “Os Elementos de Ideologia de meu colega Tracy é o único livro verdadeiramente completo sobre esse assunto”. A compreensão da evolução do subjetivismo na economia, isto é, o desenvolvimento de explanações que partem da ação humana proposital, requer, portanto, menções a Helvétius e Condillac.

Claude-Adrien Helvétius (1715–1771), depois de fazer fortuna ao assumir um cargo público, se dedica em sua aposentadoria à filantropia e projetos intelectuais. Seu livro, Da Mente, desenvolve uma explanação sobre o funcionamento do intelecto humano que dispensa noções religiosas, sendo por isso condenado como um texto que defende imoralidades e o ateísmo. A obra foi queimada e seu autor forçado a se retratar.

Helvétius (1758)Helvétius, Claude-A. 1758. De L’Esprit. Paris: Durand. parte da crença empirista de que os estímulos ambientais imprimem sensações na mente, formando as ideias, emoções e memórias, como em uma tabula rasa. As diferenças entre indivíduos são então explicadas pelo conjunto de estímulos aos quais cada um é exposto, em particular no que diz respeito à capacidade de despertar emoções que atiçam a curiosidade. Não existiriam, portanto, diferenças significativas de inteligência entre as pessoas, sendo as diferenças entre elas de ordem ambiental. Um sistema educacional apropriado, por conseguinte, seria a chave para o desenvolvimento dos indivíduos e para o progresso da sociedade.

A viúva de Helvétius, Anne-Catherine de Ligniville (1722–1800), Madame Helvétius, realizou por mais de cinco décadas em seu salão eventos que contaram com a presença de filósofos como Diderot, Condillac e Condorcet, mais tarde ideólogos como Cabanis e Destutt de Tracy, economistas como Turgot e Galiani ou ainda políticos como Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e Napoleão Bonaparte. Como Helvétius, Condillac parte do empirismo de Locke. Condillac (1746)Condillac, Étienne Bonnot de. 1746. Essai sur L’Origine des Connoissances Humaines: ouvrage où l’on réduit à um seus principe tout ce que concerne l’Entendement Humain. Amsterdam: Pierre Mortier., em seus Ensaios sobre a Origem do Conhecimento Humano, pretende expandir a filosofia empirista ao tentar explicar a formação dos próprios processos mentais a partir das sensações. Conceitos como a classificação de algo como agradável ou desagradável, bem como atenção, memória e cálculo seriam todos frutos de processos de aprendizado derivado da ação continuada das sensações. Partindo do experimento mental de imaginar um ser humano como uma estátua inicialmente desprovida de sentidos, Condillac (1754)———. 1754. Traité des Sensations, Paris: Durand. investiga em seu Tratado sobre as Sensações a natureza do conhecimento a partir da gradual reintrodução nessa estátua de cada um dos sentidos e especulando qual seriam seus possíveis atributos intelectuais proporcionados por cada combinação de aparatos sensoriais. Assim como Helvétius, a filosofia de Condillac reforça a importância da educação na tradição dos ideólogos, inspirando ainda os trabalhos de Cabanis e Pinel em saúde, além de fornecer a base para o subjetivismo metodológico na economia de Destutt de Tracy.

No grupo dos ideólogos, Claude Destutt de Tracy (1754–1836) ———. 1811. Commentary and Review of Montesquieu’s ’Spirit of Laws’: to which are annexed, Observations on the Thirty First Book by the late M. Condorcet; and Two Letters of Helvetius, on the Merits of the same Work, Philadelphia: W. Duane. http://oll.libertyfund.org/title/960. Acessado em 17/01/2018.
http://oll.libertyfund.org/title/960...
ocupa um papel central. Embora para a ciência econômica a obra de J.-B. Say tenha sido mais importante, o primeiro se destacou na composição da visão de mundo do grupo, ao articular as diversas áreas de interesse de seus membros em um referencial comum, a ciência das ideias, construída a partir da filosofia de Condillac.

Destutt de Tracy propõe que a teoria econômica seja fundamentada no programa de pesquisa aludido acima. Como veremos mais adiante, isso equivale metodologicamente à proposta de uma reestruturação subjetivista da disciplina, na qual os fenômenos econômicos são explicados tendo como base categorias analíticas derivadas de fenômenos mentais. Concretamente, considera como os indivíduos percebem o mundo e imprimem sua vontade a ele a partir de sua ação, que exige escolhas, ou comparações entre alternativas. Esse programa praxiológico, pode-se perceber, consiste aproximadamente no mesmo modo como a disciplina será mais de um século depois caracterizada por autores como Mises ([1949] 2011)———. (1949) 2011. Ação Humana. São Paulo: Instituto Mises Brasil. e Robbins (1932)Robbins, Lionel. 1932. An Essay on the Nature and Significance of Economic Science. Londres: MacMillan.. Vejamos na sequência como esse tipo de teoria econômica é esboçado por Condillac, em seguida rejeitado pela abordagem plutológica, mas ainda assim presente em alguns autores dessa mesma tradição no século dezenove.

3.

A Economia de Condillac

Como seria de se esperar de um filósofo racionalista, o tratado de economia de Condillac apresenta um caráter sistemático, que expõe alguns poucos princípios abstratos dos quais resultados são claramente deduzidos e ilustrados historicamente. O livro de Condillac (1997)———. (1776) 1997. Commerce and Government Considered in their Mutual Relationship. Indianapolis: Liberty Fund. é dividido em duas partes, a primeira dedicada ao funcionamento de mercados supondo liberdade de comércio e a segunda introduzindo o governo. No início da obra são expostos os princípios utilizados pelo autor, a saber, uma teoria do valor subjetivo aplicada a um modelo de trocas, a partir da qual todo fenômeno econômico é avaliado em termos de realização ou não dos ganhos mútuos gerados pela diferença de apreciação da utilidade dos bens por parte de diferentes pessoas. Condillac adota desse modo uma perspectiva catalática em vez de plutológica, a despeito da influência em sua obra do pensamento fisiocrata, base da perspectiva plutológica. Depois de expor sua teoria do valor e modelo de trocas, esse aparato é utilizado para explicar fenômenos como formação de preços em competição, moeda, especialização na produção, monopólio, bancos, mercados de fundos emprestáveis e comércio exterior. Na segunda parte são discutidas restrições ao comércio de diferentes naturezas, como protecionismo, guerra ou concessão de privilégios monopolísticos, sempre sob o ponto de vista de variações nos ganhos de troca, como na teoria moderna.

Da obra, exporemos apenas os fundamentos teóricos e, como ilustração da parte prática, sua aplicação à reforma proposta por Turgot. Iniciemos com os fundamentos do valor. Este, para Condillac (1997, 99)———. (1776) 1997. Commerce and Government Considered in their Mutual Relationship. Indianapolis: Liberty Fund., é dado pela utilidade das coisas, ou seja, sua capacidade de suprir necessidades, sejam elas naturais (fisiológicas) ou artificiais (derivadas dos costumes). O valor dos bens deve considerar tanto a importância da necessidade atendida quanto a sua disponibilidade:

Agora, devido ao fato que o valor das coisas é baseado na necessidade, é natural que uma necessidade percebida mais fortemente confira as coisas maior valor, e que necessidades menos sentidas gerem menor valor. O valor das coisas portanto aumenta com a escassez (rareté) e diminui com a abundância. O valor pode até se reduzir a nada com a abundância. (Condillac 1997, 100)———. (1776) 1997. Commerce and Government Considered in their Mutual Relationship. Indianapolis: Liberty Fund.

De forma congruente com sua filosofia, o autor adota postura marcadamente subjetivista. Para Condillac (101) “[...] o valor não está no objeto, mas em como nós o estimamos, e essa estimativa é relativa as nossas necessidades: cresce e diminui, assim como a nossa própria necessidade cresce e diminui.” Ao deslocar a noção de valor da natureza dos bens para as circunstâncias dos agentes, o autor escapa do paradoxo do valor (101), enfatiza o caráter opinativo ou especulativo da valoração e estabelece a diferença de valor dos bens em datas diferentes, fenômeno derivado da incerteza sobre a disponibilidade futura dos mesmos.

Se o valor for subjetivo, isto é, se for uma relação entre cada indivíduo e a coisa valorada, esta pode ter diferentes valores, conforme o avaliador e o momento da avaliação. Esta será a base da teoria de trocas e preços desenvolvida no segundo capítulo de Governo e Comércio. Para ilustrar os ganhos de troca derivados da noção subjetiva do valor, Condillac utiliza um exemplo concreto. Partindo de uma situação inicial com um produtor de vinho e outro de trigo, que possuem mais de seus produtos do que poderiam consumir, Condillac afirma que a troca envolve dois excedentes, de maneira que ambos ganham; ou seja, cada um abdica de algo que não tem valor para si em troca de algo preferível.

A barganha entre os envolvidos faz com que um preço seja estabelecido. Quando mais pessoas participam do processo de trocas, os preços praticados passam a refletir as estimativas a respeito do valor relativo dos bens. Condillac enfatiza ainda que não se deve confundir valor com preço. O valor antecede o preço e as trocas só ocorrem se houver diferença de valoração por parte dos indivíduos.

Com isso chegamos ao ponto do sistema de Condillac rejeitado pelos economistas clássicos, que por motivos diferentes seguem a tese segundo a qual trocas sempre envolvem valores iguais, de forma que preços funcionam como uma espécie de medida de valor. Condillac antecipa essa postura rival e oferece duas explicações para ela. A primeira (120) é de natureza moral: existiria uma noção de justiça por trás da ideia de que trocas devam envolver valores equivalentes. A segunda explicação (144), por sua vez, é derivada da evolução da moeda: o emprego de uma unidade de conta geraria a ilusão de que o valor seria algo objetivo e mensurável, diferente das utilidades para vendedores e compradores.

No sexto capítulo de Comércio e Governo, dedicado a mostrar como o comércio cria riqueza (por trocar de mãos bens concretos com utilidades diferentes para diferentes indivíduos), a diferença entre catalática e plutologia se manifesta através da seguinte metáfora proposta por Condillac (1997, 121)———. (1776) 1997. Commerce and Government Considered in their Mutual Relationship. Indianapolis: Liberty Fund.:

Uma fonte que desaparece nas rochas e areia para mim não é riqueza; mas nela se transforma se eu construir um aqueduto para atraí-lo para os meus prados. Essa fonte representa os produtos excedentes pelos quais estamos em dívida com os agricultores e o aqueduto representa os comerciantes.

As flutuações nos preços coordenam as ações dos comerciantes, que atuam como “canais de comunicação entre produtores e consumidores” (116-117), fazendo com que regiões distantes sejam conectadas, abrindo oportunidades de ganho mediante a especialização das indústrias.

Essa descrição do processo de multiplicação da riqueza marca mais nitidamente a separação de Condillac da tese central do pensamento fisiocrata. Embora o processo de especialização implique que as novas atividades devam usar recursos do setor agrícola, que em um certo sentido consiste em “riqueza primária” (124), o reconhecimento de que a base do valor reside na utilidade faz com que os comerciantes e os outros setores produtivos, em competição no comércio, sejam corresponsáveis pelo aumento de riqueza. “Portanto”, afirma Condillac (226), “eu peço que não perguntem se devemos preferir agricultura à manufatura ou manufatura à agricultura. Não se deve preferir nada: deve-se considerar ambos”.

A mensagem central de Condillac é a mesma encontrada em Smith: a prosperidade das nações depende da natureza das instituições. Normas que garantam a liberdade de comércio fazem com que o autointeresse seja canalizado para ações que promovem ganhos mútuos, ao passo que instituições que permitam tratamento diferenciado fazem com que esse mesmo autointeresse se volte para a disputa por privilégios monopolísticos, que geram exploração e entraves ao comércio, reduzindo o processo de formação de riqueza.

Se na primeira parte da obra de Condillac a riqueza é associada aos ganhos de utilidade subjetiva implicados nas trocas comerciais, a segunda usa o mesmo arcabouço para mostrar como restrições comerciais reduzem o bem- estar. Cada capítulo da segunda parte é dedicado a um atentado ao comércio ( atteintes portées au commerce), como guerras, tarifas aduaneiras, privilégios monopolísticos, depreciação da moeda e controle do comércio de grãos.

O tratamento dado por Condillac às restrições ao comércio segue os passos de Gournay e Turgot (2011a)———. (1776) 2011b. Six Projects of Edits. Em The Turgot Collection, editado por David Gordon. Auburn: Ludwig von Mises Institute., enfatizando os elementos que caracterizarão as obras dos economistas franceses no século seguinte. O primeiro deles é descrição da atividade de rent-seeking ou comércio de privilégios entre reguladores e regulados à custa dos consumidores (265). O segundo é a assimetria informacional entre reguladores e regulados sobre as condições locais dos mercados, que explicaria a ineficiência de políticas como controles de preços (291). O terceiro, derivado deste último, é a descrição da dinâmica de processos intervencionistas, que lembra a análise de Mises (2010)Mises, Ludwig. (1929) 2010. Uma Crítica ao Intervencionismo. São Paulo: Instituto Mises Brasil. no século vinte: os erros derivados de um controle centralizado convidam novas intervenções, gerando um processo de acúmulo de erros que em geral é acompanhado pela atribuição aos mercados dos distúrbios causados pelas próprias intervenções prévias. O governo, para Condillac (1997, 292)———. (1776) 1997. Commerce and Government Considered in their Mutual Relationship. Indianapolis: Liberty Fund. “se convenceu de que o preço elevado ou escassez [de trigo] resultou do resíduo de liberdade. Por conseguinte, era proibido para todas as pessoas atuar no comércio de grãos sem permissão dos oficiais designados para essa função”.

A atribuição aos mercados dos problemas causados pela regulação é ilustrada ainda pela análise da gestão de Turgot como ministro das finanças. Essa análise consiste em interessante estudo de caso sobre desregulação 5 5 W. Eltis (1993). , explorando em última análise o trade-off entre gradualismo e terapia de choque no que diz respeito à estratégia de mudança institucional. A regulação do fornecimento de alimentos em Paris e da produção de trigo no interior da França impunha controles de preços, requisição de estoques e estabelecimento de companhias que monopolizavam o comércio de trigo em cada localidade. A escassez de pão nas cidades, resultado dessa estrutura, gerava protestos e ameaçava a estabilidade política do país.

As reformas de Turgot (2011b)Turgot, Anne. R. J. (1759) 2011a. In Praise of Gournay. Em The Turgot Collection, editado por David Gordon. Auburn: Ludwig von Mises Institute., que permitiram que produtores negociassem livremente suas safras, geraram, no entanto, ainda outros aumentos no preço do pão. Os consumidores se juntaram então aos vários grupos de interesse que perderam renda com as reformas (reguladores, firmas com exclusividade de comércio e proprietários que passaram a arcar com impostos) e aos intelectuais que atribuíam a culpa pela escassez ao egoísmo dos comerciantes e à própria desregulação. A pressão resultou na demissão de Turgot em 1776, que teria dito 6 6 Ver S. Eltis e W. Eltis (1997, 55). ao monarca para “nunca esquecer que foi a fraqueza que colocou a cabeça de Charles I no cepo”, antecipando o que de fato ocorreria com o monarca francês.

Condillac, que publicou seu livro antes da demissão de Turgot e reversão de suas reformas, fornece em seu livro uma explicação para o fracasso. Essa explicação enfatiza o aspecto temporal da atividade produtiva. Para Condillac, a substituição do sistema centralizado por mercados livres requer tempo para a formação de mercados nas várias etapas da cadeia produtiva. Essa formação implica em estabelecimento de contatos comerciais e aprendizado empresarial, que ocorre por tentativas e erros ao longo do tempo:

De fato, para ter sucesso em qualquer tipo de comércio, não basta ter a liberdade de exercê-lo; é preciso, já observamos, ter obtido contatos, e esses contatos só podem ser fruto da experiência, que muitas vezes é lenta. É preciso também ter capital, lojas, transportadores, agentes, correspondentes: em uma palavra, é preciso ter tomado muitas precauções e muitas medidas. Assim, a liberdade restaurada ao comércio de grãos era um benefício que não podia ser desfrutado. Uma palavra do monarca foi suficiente para acabar com essa liberdade; uma palavra não a restaurou e preços altos ocorreram alguns meses depois. (Condillac 1997, 298)———. (1776) 1997. Commerce and Government Considered in their Mutual Relationship. Indianapolis: Liberty Fund.

Segundo Condillac, os aumentos de preços que se seguiram às reformas foram politicamente atribuídos à própria reforma, esquecendo-se a origem do problema nos controles prévios. O elemento temporal da análise, seja referente ao tempo necessário para a organização de mercados, seja relativo à percepção do público sobre a causa dos problemas se situar na regulação prévia ou nas tentativas de reformas podem ser encontradas na mencionada análise de Mises do intervencionismo.

A discussão de Condillac transcende de fato o episódio francês, sendo relevante para o exame de reformas institucionais em geral. Terapias de choque, desde que libertem as restrições em todos os pontos da cadeia, trazem a vantagem de possibilitar adaptações necessárias não antecipadas e por sua rapidez dificulta o reagrupamento político daqueles que perdem com o conjunto de reformas, mas ainda assim requer tempo para que seus efeitos sejam sentidos, nem sempre suportáveis politicamente. As vantagens e desvantagens do gradualismo, por sua vez, são simétricas: possibilitam adaptação gradual, mas geram reformas em apenas alguns pontos das redes de atividades produtivas controladas centralmente.

O modelo de trocas do autor aplicado à análise das reformas de Turgot se insere na tradição francesa de análise econômica da política, que por sua vez antecipa a análise da moderna escola de escolha pública. No centro das preocupações do autor está a resistência à reforma exercida por grupos dedicados à atividade de rent-seeking.

O modelo de trocas desenvolvido por Condillac no início de seu livro é utilizado como ferramenta analítica de forma consistente em toda a obra. Sendo assim, a importância do livro não se restringe ao pioneirismo em relação à tradição catalática no que diz respeito à teoria do valor, análise de reformas institucionais ou rent-seeking, mas também deve ser reconhecido como uma das primeiras análises sistemáticas dos fenômenos econômicos, merecendo por esse motivo destaque maior na história da disciplina.

Se por um lado inova ao adotar uma teoria subjetiva do valor, por outro não elabora uma teoria do capital como aquela desenvolvida por Turgot, necessária para dar conta do fenômeno cada vez mais importante do crescimento econômico, que ocupa papel central no livro de Adam Smith publicado no mesmo ano. Além desse fator, que reduz o impacto da obra, o texto foi publicado em época marcada pelo desenvolvimento da tradição plutológica rival. Na próxima seção, mostraremos como o núcleo da obra de Condillac foi por isso rejeitado pelos economistas nos cem anos seguintes a sua publicação.

4.

A Rejeição de Condillac pela Tradição Plutológica

A contribuição de Condillac à Economia foi rejeitada por diversos autores, incluindo aqueles que adotaram a teoria do valor utilidade, como J.-B. Say e demais autores da vertente francesa da escola clássica. Vejamos como essa rejeição pode ser explicada em termos de diferenças entre as tradições plutológica e catalática.

A perspectiva plutológica é antiga, inspirada pela produção agrícola. A determinação do montante agregado de riqueza material produzida por ano depende da fração da produção poupada no período anterior e investida em empregos produtivos. O restante é distribuído entre classes e destruído pelo consumo. Esse modelo está presente na disciplina pelo menos desde o livro de Cantillon (1755)Cantillon, Richard. (1755) 2002. Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral. Curitiba: Segesta., surgindo também nos escritos dos fisiocratas, além dos títulos do livro de Turgot (1766)———. (1766) 1844. Réflexions sur La Formation et la Distribuition des Richesses. Em Oeuvres de Turgot. Paris: Guillaumin. e da primeira parte do livro de Smith (1776)Smith, Adam. (1776) 1987. Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian..

Tanto Smith quanto Condillac se depararam com o problema de negar a tese fisiocrata sobre a exclusividade da agricultura na geração de riqueza. J.-B. Say (1803), no início do século dezenove, buscou em Smith a solução desse problema, herdando assim a estrutura plutológica inerente à obra do autor escocês, apesar de preferir uma teoria subjetiva do valor. Buscando em seu tratado sistematizar o corpo da doutrina econômica da época, Say define a Economia em termos da tríade produção-distribuição-consumo de riqueza, tríade que define a estrutura dos tratados teóricos ao longo do século dezenove.

Para Say, produção de riqueza é definida como geração de utilidade. A teoria do valor utilidade é então empregada por Say para legitimar atividades 7 7 Ou “indústria”, na terminologia do autor. em qualquer setor e não apenas na agricultura. Desse modo, a teoria do valor é em essência utilizada para gerar uma medida agregada de riqueza, tal como requerido pela abordagem plutológica, preocupada com o crescimento. A discussão dos preços, por sua vez, é tratada no âmbito da distribuição, depois da discussão da capacidade produtiva de uma economia. Embora o valor seja explicado em termos de utilidade, seu uso para fins de medição o coloca no campo plutológico.

Considerando as diferenças entre plutologia e catalática, o choque entre as teorias de Condillac e Say é inevitável e se manifesta na discussão sobre a natureza do comércio. Se na perspectiva de Condillac e na tradição catalática em geral essa atividade cria valor pela diferença entre avaliações individuais dos bens, na perspectiva plutológica é valorizada se for associada a algum esforço útil. Para Say (1841, 62)Say, Jean-Baptiste. (1803) 1841. Traité D’Économie Politique ou Simple Exposition de la Manière dont se Forment, se distribuent et se Consomment les Richessses. 6a ed. Paris: Guillaumin.:

A indústria comercial contribui para a produção tanto quanto a indústria manufatureira, ao aumentar o valor de um produto transportando-o de um lugar para outro. Um quintal de algodão do Brasil adquiriu a faculdade de poder servir, e vale mais em uma loja da Europa do que em uma loja de Pernambuco.

Para o autor, o comércio é visto essencialmente como a indústria de transporte de bens, uma atividade produtiva útil. Isso nos leva ao primeiro fator de rejeição da doutrina de Condillac, pois para Say a igualdade de valor entre objetos trocados faz parte da avaliação da justiça das trocas. Qualquer valor recebido que não tenha sido fruto de alguma atividade produtiva seria ilegítimo, ou usando os termos do próprio Say (1841, 353)Say, Jean-Baptiste. (1803) 1841. Traité D’Économie Politique ou Simple Exposition de la Manière dont se Forment, se distribuent et se Consomment les Richessses. 6a ed. Paris: Guillaumin., “uma espoliação da qual é culpado: não há meio termo”.

A objeção a Condillac apresentada por Say consiste em restringir, por definição, o conceito de valor ao preço de equilíbrio, uma propriedade objetiva do bem ou serviço que é definido como riqueza, barrando por princípio a possibilidade de valores subjetivos diferentes para agentes diferentes. De fato, para Say (1841, p. 63)Say, Jean-Baptiste. (1803) 1841. Traité D’Économie Politique ou Simple Exposition de la Manière dont se Forment, se distribuent et se Consomment les Richessses. 6a ed. Paris: Guillaumin. a tese de Condillac seria errônea...

... pois sendo a venda uma troca na qual se recebe uma mercadoria, dinheiro, por exemplo, em troca de outra mercadoria, a perda que cada um dos contratantes teria com uma compensaria o ganho que ele teria com a outra, e não haveria na sociedade valor produzido pelo comércio.

É curioso recordarmos que o próprio Condillac antecipara que essa objeção seria devida à confusão induzida pela existência da moeda, pois valores efetivamente pagos em termos monetários mascarariam o fato de que trocas envolvem valorações subjetivas diferentes, conforme a situação de cada participante nas trocas.

Existe um segundo motivo pelo qual Say rejeita a tese de Condillac sobre valores subjetivos diferentes: seu empirismo metodológico, que rejeita “sistemas” metafísicos baseados em hipóteses, em favor de análise fundada em observação de fatos. Para Say (1821, 49-50)———. 1821. Letters to Mr. Malthus on Several Subjects of Political Economy Londres: Sherwood, Neely, and Jones. Edição eletrônica da Online Library of Liberty. http://oll.libertyfund.org/title/1795. Acessado em 11/04/2021.
http://oll.libertyfund.org/title/1795...
, a ciência requer medida e, em Economia, esta seria fornecida pela noção de igualdade de valor entre dois objetos trocados. O fato de que os objetos que compõem a riqueza nacional possuem um valor identificável nos mercados, passível de aumento e diminuição, forneceria a base científica para a Economia, o que a “tiraria do domínio da fantasia”.

Por fim, autores como Condorcet, Turgot e Condillac são recriminados pela sua associação à fisiocracia, tida pelo autor, ao lado do ricardianismo, como um “sistema” não científico. Para Say (1841, 26)Say, Jean-Baptiste. (1803) 1841. Traité D’Économie Politique ou Simple Exposition de la Manière dont se Forment, se distribuent et se Consomment les Richessses. 6a ed. Paris: Guillaumin., Condillac teria construído em seu livro um sistema arbitrário sobre assunto de que nada entenderia.

A rejeição do referencial de Condillac por parte de Say marca a consolidação da perspectiva plutológica nos escritos da maioria dos economistas franceses do século dezenove, que, assim como os autores ingleses, adotam o pressuposto de igualdade de valores nas trocas, a despeito da maior adesão ao subjetivismo metodológico por parte dos primeiros. De fato, todos os manuais de economia política escritos na tradição da escola clássica francesa são organizamos nos mesmos moldes teóricos adotados por Say, excluindo, portanto, a alternativa de Condillac.

Bastiat, por sua vez, fornece um exemplo interessante da tensão entre elementos subjetivos e objetivos na obra dos economistas da escola clássica francesa. Na próxima seção veremos como Bastiat é indiretamente influenciado por Condillac via Destutt de Tracy. Aqui, documentaremos apenas a negação da tese de Condillac de que uma troca envolva valores diferentes.

Como Say, Bastiat não oferece objeções substanciais à tese de Condillac. Sua crítica consiste na acusação de que a tese de que cada lado da troca cederia algo supérfluo por algo útil seria vazia de conteúdo e que a observação dos fatos revelaria alternativa melhor. De fato, para Bastiat (1864, 101)———. 1864. Harmonies Économiques. Oeuvres Completes, vol. 6, 5a ed. Paris: Guillaumin., as trocas seriam vantajosas por permitirem a união dos esforços e a obtenção dos ganhos com a divisão do trabalho e com a divisão dos recursos naturais, isto é, com a distribuição heterogênea destes no espaço. Sendo assim, as vantagens das trocas estariam do lado dos custos, não das utilidades.

Novamente a explanação de Condillac é rejeitada por ser incompatível com aquela usada pelo autor. A principal função da teoria do valor proposta por Bastiat, assim como no caso de Say, consiste na separação entre trocas legítimas e espoliação e a igualdade entre valores trocados serve a esse propósito, a despeito de presença maior de elementos subjetivos na teoria do valor serviço proposta pelo autor.

Na tradição francesa, mesmo autores posteriores, já expostos à Revolução Marginalista, como Molinari (1887)Molinari, Gustave. 1887. Les lois naturelles de l’économie politique. Paris: Guillaumin. e Leroy-Beaulieu (1914)Leroy-Beaulieu, Peter Paul. 1914. Traité Théoretique et Pratique d’Économie Politique. 4 vols. 6a ed.. Paris: Félix Alcan et Guillaumin Réunies., aceitam a nova teoria do valor apenas como um refinamento da antiga, sem abdicar da estrutura plutológica descrita em termos da tríade produção-distribuição- consumo de riqueza. Os tratados escritos pelos economistas da escola clássica francesa ao longo de todo o século dezenove são de fato estruturados segundo o modelo proposto por Say.

Na tradição ricardiana, o modelo catalático de Condillac também é rejeitado. Marx (1909, 177)Marx, Karl H. 1909. Capital: a critique of political Economy. vol 1. Chicago: Charles Kerr., por exemplo, não o apresenta como uma teoria rival, mas como uma confusão entre os conceitos de valor de uso e troca. Como Condillac utiliza uma ilustração concreta de sua doutrina, na qual dois indivíduos trocam excedentes de produção de dois bens (vinho e trigo), considerados em termos da utilidade que teriam para cada agricultor, Marx conclui ainda que Condillac teria “infantilmente suposto” que cada produtor gera seu próprio sustento.

A leitura de Condillac, no entanto, revela que o suposto de que produtores reservam parte da produção para consumo próprio na verdade é mero acidente da ilustração e não característica central da teoria exposta. Afinal, nada muda na explanação dos preços e dos ganhos de troca caso os ofertantes consumissem zero unidades do que fabricam. No texto de Marx, também não encontramos objeção substancial ao modelo além do fato de que trata de explanação diferente daquela defendida por ele próprio.

As avaliações da teoria de Condillac estudadas nesta seção indicam diferenças nucleares entre os programas de pesquisa plutológico e catalático: os críticos em essência apontam que a análise de Condillac é inconsistente com o pressuposto de igualdade de valores nas trocas.

A rejeição da teoria do valor e troca proposta por Condillac pode ser entendida pelo contraste entre os programas de pesquisa plutológico e catalático. Condillac escreveu no início do período de predomínio da tradição plutológica, cujo desenvolvimento oferecia oportunidades para contribuições teóricas originais. De fato, os autores da escola clássica francesa seguiram de perto a estrutura teórica sistematizada por Say. Além disso, a contribuição pioneira de Condillac consiste em modelo catalático básico, calcado em diferenças de valores de porções concretas de bens segundo a situação de cada agente envolvido nas trocas. Quando elaborado, não foi possível vislumbrar o potencial que esse modelo teórico viria a oferecer cem anos depois. Desse modo, a obra de Condillac foi negligenciada, embora diversos pioneiros da catalática no século dezenove tenham feito contribuições compatíveis com ela, embora nem sempre cientes de que propunham ideias assemelhadas a esse pioneiro, que permaneceu relativamente negligenciado.

5.

Herdeiros de Condillac

Depois de discutir a rejeição do modelo de trocas de Condillac pelos defensores da plutologia no século dezenove, passamos a considerar alguns economistas do mesmo período, cujos trabalhos ecoam de alguma maneira suas ideias. Em particular, trataremos em primeiro lugar da influência direta desse autor na filosofia da economia de Destutt de Tracy, na sequência da influência indireta, via Tracy, na teoria econômica de Bastiat e por fim do reconhecimento, por parte de Storch, de que seu modelo de trocas e teoria do valor são variantes da doutrina de Condillac.

Embora a teoria econômica de Condillac expressa em Comércio e Governo [1776] não influencie de forma significativa o Tratado de Economia Política [1817] de Destutt de Tracy, que prefere seguir os passos de Say, a filosofia de Condillac é fundamental para a teoria econômica do Tracy, pois serve de base para a fundamentação filosófica em seu tratado e essa fundamentação é seu aspecto mais notável. De fato, o livro de Destutt de Tracy não pretende ser uma obra completa de Economia, mas apenas uma parte do seu projeto editorial mais amplo sobre a ciências das ideias. Dessa obra mais geral, o volume que trata de Economia é apresentado como um estudo sobre as consequências sociais da vontade ( volonté), que por sua vez seria um atributo mental passível de análise a partir do sensacionalismo de Condillac.

O Tratado de Destutt de Tracy (1970, 40)———. (1817) 1970. A Treatise on Political Economy. Nova York: Augustus M. Kelley. se inicia com um resumo da ciência das ideias. A perspectiva é inteiramente tomada de Condillac, com a redução dos fenômenos mentais às sensações. Destutt de Tracy sugere que um ser exposto às impressões sensoriais pode preservar essas sensações na forma de memória, o que dá origem a julgamentos sobre bem-estar proporcionado por essas sensações, o que por sua vez dá origem à vontade, faculdade mental a partir da qual o autor pretende derivar sua teoria econômica. Tomando uma necessidade fisiológica como exemplo, odores associados a alimentos são sensações que se fixam na memória, dando origem ao entendimento sobre o nexo causal entre ingestão do alimento e sensação de saciedade, gerando por sua vez o conceito de vontade. Sensação, memória, julgamento e vontade seriam então as quatro “faculdades primordiais do entendimento humano” (37), derivadas inicialmente da capacidade sensorial.

A memória associada a sensações que geram a percepção de consequências desejáveis leva o indivíduo a perceber sua própria existência e a posse de suas faculdades, o que permite que ele aja no sentido de substituir estados de coisas indesejáveis por outros considerados superiores. A vontade sugere um ordenamento de objetivos, que são parcialmente atendidos a partir do emprego de meios, que têm origem última nas faculdades intelectuais e físicas dos indivíduos. O autor expressa de forma peculiar o pressuposto comportamental utilizado em sua teoria econômica: os agentes teriam o “direito” de buscar seus objetivos e o “dever” de empregar os meios percebidos da melhor forma que imaginarem.

Originária na vontade, a Economia é definida por Destutt de Tracy como ciência da ação. Tal ciência ancora seus conceitos em planos de ação individuais, que envolvem meios e fins, além da avaliação de vias alternativas de ação, tendo em vista as prioridades dos indivíduos. Imitando Condillac, que utilizava o experimento mental de sucessivamente atribuir os sentidos humanos a uma estátua, Destutt de Tracy (1970, p. 76)———. (1817) 1970. A Treatise on Political Economy. Nova York: Augustus M. Kelley. modifica o experimento para fazer a ponte entre ação individual e ação em sociedade. Utilizando sua nomenclatura de direitos e deveres, inicialmente um ser sensível e provido de vontade, mas incapaz de agir teria “direitos” e não “deveres”, isto é, teria necessidades, mas não haveria como imaginar plano de ação que envolva meios e fins. Já um ser sensível e provido de vontade e capacidade de agir, mas que estivesse em isolamento, tal como um Robinson Crusoé, teria todos os “direitos” e o “dever” de empregar seus recursos da melhor maneira possível. Diante do mesmo ser, agora em contato com seres sensíveis, mas com os quais não é possível comunicação significativa, como o caso dos animais, devemos incorporar na análise o conceito de simpatia, modificando o campo dos “deveres” do agente. Finalmente, diante de seres com os quais é possível se comunicar, entram em cena os motivos racionais que justificam a vida em sociedade.

A colaboração social proporciona significativo aumento de nossa capacidade de atender às nossas necessidades. Para Destutt de Tracy (1970, xvi)———. (1817) 1970. A Treatise on Political Economy. Nova York: Augustus M. Kelley., as vantagens da vida em sociedade podem ser identificadas com a noção geral de trocas. Isso aproxima ainda mais o autor, via influência de Condillac, da perspectiva catalática. Porém, se considerarmos o conteúdo da análise econômica além desse programa metodológico catalático, nos deparamos novamente com uma análise plutológica da produção e distribuição de riqueza, herdada da obra de seu colega J.-B. Say.

O programa metodológico de fundamentação da análise econômica na lógica da ação humana se assemelha em diversos aspectos com o subjetivismo metodológico desenvolvido no século vinte por autores como Mises (2011)———. (1949) 2011. Ação Humana. São Paulo: Instituto Mises Brasil., que caracteriza a Economia como praxiologia ou lógica da ação, ou Robbins (1932)Robbins, Lionel. 1932. An Essay on the Nature and Significance of Economic Science. Londres: MacMillan., que do mesmo modo a retrata como lógica da escolha diante da escassez.

Embora ideias semelhantes às de Tracy viriam a frutificar apenas durante o desenvolvimento do programa de pesquisa neoclássico, ainda assim podemos identificar no período clássico alguma influência das ideias desse autor. A sugestão de fundamentação subjetivista da teoria econômica, apenas sugerida por Destutt de Tracy, foi parcialmente seguida por Frédéric Bastiat, a despeito da rejeição por parte deste último do modelo de trocas proposto por Condillac. Bastiat, embora também baseie sua análise no arcabouço teórico provido por Say, acrescenta mais elementos subjetivistas sob a influência indireta de Condillac, transmitida pela obra de Destutt de Tracy. Com efeito, a economia que Bastiat desenvolve em suas Harmonias Econômicas desloca o foco analítico dos meios para os fins da atividade econômica.

De fato, reagindo contra o recrudescimento da tendência plutológica de privilegiar a produção dissociada da discussão das relações entre meios e fins, Bastiat coloca no centro da teoria econômica a praxiologia empirista de Destutt de Tracy. Bastiat (1864, 386)———. 1864. Harmonies Économiques. Oeuvres Completes, vol. 6, 5a ed. Paris: Guillaumin. lamenta que o consumo seja tópico secundário na teoria de seu tempo, discutido apenas no final dos manuais de economia. O autor (74), em contraste, afirma que a Economia “tem como seu sujeito o homem, considerado do ponto de vista de seus desejos e dos meios pelos quais ele pode satisfazê-los”. A análise parte da noção de percepção sensorial – as dores, desejos, necessidades, preferências e apetites humanos. Como em Tracy, as sensações são vistas como dados últimos, não sendo, portanto, errôneas, por definição. O julgamento humano, em contraste, quando exercido sobre as comparações e escolhas, é sujeito a erros e reavaliações. Em outros termos, a teoria econômica em Bastiat sugere o estudo do aprendizado dos agentes.

A ação, por sua vez, tem como propósito a satisfação dos objetivos propostos pelos agentes. Como Say, Bastiat (53) também define utilidade de um bem como “tudo aquilo que realiza a satisfação de necessidades”. A tríade produção- distribuição-consumo adotada por Say, porém, é substituída por outra: necessidade-esforço-satisfação. Nas palavras de Bastiat (94): “Necessidade, esforço, satisfação: tal é o homem, do ponto de vista da economia”. Nessa tríade, o termo “satisfação” substitui “consumo” uma vez que a destruição de um bem, importante na perspectiva materialista plutológica, cede espaço para o fato mais significativo de que os propósitos da ação foram atingidos.

Na obra de Bastiat, com o auxílio dessa nova tríade, toda avaliação de política econômica é levada a cabo tendo em vista os impactos das políticas em todos os mercados interconectados, de forma a evitar falácias da composição que ignorem custos dessas políticas que se manifestam em outros mercados.

A análise baseada na relação entre meios e fins é estendida à própria lógica da escolha pública em termos de incentivos gerados por diferentes arranjos institucionais. Além de estudar como a ação proposital guia as atividades voluntárias nos mercados, Bastiat (1863)Bastiat, Frédéric. 1863. Sophismes Économiques et petits pamplets I. Oeuvres Completes, vol. 4, 2a ed. Paris: Guillaumin. utiliza o mesmo ponto de partida de sua teoria econômica, isto é, em termos da relação entre necessidade, esforço e satisfação para estudar atividades extrativas ou espoliativas. Para o autor, os dois tipos de atividades seriam derivados da natureza humana, de forma que a teoria deve contemplar os incentivos induzidos pelas instituições aos dois tipos.

Tendo em vista a centralidade desses elementos subjetivistas na obra de Bastiat, podemos afirmar que este último autor avançou o programa metodológico proposto por Destutt de Tracy, por sua vez baseado na filosofia de Condillac, a despeito da opção do autor pelo programa plutológico de Say.

Por fim, as ideias de Condillac se manifestam ainda na obra de um terceiro autor associado à escola clássica francesa, Andrei Karlovich Storch, economista russo influenciado por Say e que foi tutor do czarevitch Nicolau, futuro czar Nicolau I, e de seu irmão Miguel. Storch desenvolveu uma teoria subjetiva do valor e um modelo de trocas equivalente ao de Condillac, inicialmente de modo independente, mas reconhecendo posteriormente a afinidade com o autor francês.

As teses de (1810,Storch, Heirich. F. 1810a. “Des théories sur les valeurs établies jusqu’ ici”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 413-429. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences. 1823)———. 1823. Cours d’économie politique, ou Exposition des Principes qui Déterminent la Prospérité des Nations. 4 vols. Paris: L’Imprimerie de Rignoux.Storch sobre teoria do valor surgem pela primeira vez ainda na primeira década do século dezenove, em artigos publicados na Rússia e reaparecem no início de seu Curso ministrado aos filhos do czar Alexandre I. Nesses artigos, assim como Say, Storch (1810a, 415)Storch, Heirich. F. 1810a. “Des théories sur les valeurs établies jusqu’ ici”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 413-429. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences. rejeita toda perspectiva materialista no que diz respeito à causa do valor dos bens; isto é, perspectivas que consideram o valor “como uma propriedade inerente às coisas”. Para o autor, o valor se relaciona com a utilidade e, como é derivada da relação entre meios e fins, tem caráter prospectivo e não determinado por ações passadas. Em contraste, a teoria subjetivista do valor de Storch (1810c, 466)———. 1810c. “Des sources de la valeur”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 465-475. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences. destaca a natureza opinativa das avaliações dos agentes econômicos:

Mas o valor não é uma qualidade absoluta e inerente das coisas: depende do nosso julgamento. Julgamos que tal coisa é mais ou menos adequada para algum propósito para o qual desejamos empregá-la, e é essa estima que constitui seu valor. Portanto, o valor não possui outra fonte além da opinião.

A partir da teoria subjetiva do valor Storch constrói um modelo de trocas no qual os agentes contrastam a utilidade direta dos bens para uso próprio com a sua utilidade como meio para as trocas, relacionada com a utilidade direta desses bens para os demais. O acréscimo no número de agentes demandando ou ofertando cada bem, por sua vez, faz com que a faixa de preços que se formam nas barganhas se estreite. Assim, sem conhecer ainda Condillac, Storch (1810b)———. 1810b. “De la nature de la valeur et ses différentes espèces”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 430-443. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences. parte da mesma perspectiva desse autor, que supõe utilidades diferentes para porções diferentes de certa quantidade do bem possuída pelas pessoas envolvidas na troca.

O tratamento subjetivista dado aos fenômenos de valor e troca de fato parecem situar a teoria de Storch ao lado de Condillac. O próprio Storch nota a semelhança entre os dois (1810c, 474):———. 1810c. “Des sources de la valeur”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 465-475. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences.

Enquanto eu estava ocupado com este trabalho, a leitura do trabalho de Condillac, que eu negligenciara até então, trouxe-me novas luzes. Este filósofo fundou todo o seu sistema no princípio da opinião; mas com exceção dos primeiros capítulos que expõem esse princípio, o resto do trabalho dificilmente merece a atenção do leitor instruído. Aqueles que desejam se dar ao trabalho de comparar as ideias de Condillac com as que acabei de afirmar nessas memórias, estarão em condições de julgar o quanto devo a ele.

Os fundamentos empregados pelos dois autores são sem dúvidas os mesmos. A avaliação negativa sugerida na segunda parte da citação, mais uma vez, pode ser explicada pelas diferenças entre as abordagens plutológica e catalática. Storch (1823)———. 1823. Cours d’économie politique, ou Exposition des Principes qui Déterminent la Prospérité des Nations. 4 vols. Paris: L’Imprimerie de Rignoux. adapta a obra de Say para o estudo do que chama de “civilização”, uma parcela de riqueza não expressa em termos monetários e que coevolui com a riqueza expressa pelo sistema de preços. A civilização é examinada sob a ótica da tríade produção-distribuição-consumo de riqueza não comercializada, tríade que caracteriza a perspectiva plutológica. Sua teoria subjetiva do valor, embora formalmente equivalente à de Condillac, é utilizada para os mesmos fins plutológicos utilizados por Say, isto é, como maneira de definir riqueza.

Além dos críticos listados na seção anterior e das influências positivas expostas na presente seção, poucos economistas mencionam Condillac além de Macleod e Jevons. Isso sugere uma influência limitada exercida pela teoria econômica proposta por Condillac no século dezenove, mas que merece maior atenção por parte de historiadores das ideias tendo em vista a evolução da disciplina a partir da revolução marginalista, que situa o autor como precursor da teoria moderna, como mostramos ao longo deste artigo.

6.

Conclusão

Condillac publica no mesmo ano que Smith um tratado de teoria econômica que chama a atenção por desenvolver uma teoria mais próxima à atual do que aquela que se desenvolveria nos cem anos subsequentes e pelo seu caráter sistemático, isto é, por analisar todos os fenômenos econômicos em termos dos mesmos princípios. Concretamente, o autor cria uma teoria subjetiva do valor aplicada a um modelo de trocas e avalia políticas em termos de ganhos de excedentes. Embora não postule hipótese sobre o comportamento da utilidade marginal, reconhece diferenças de valores de porções diferentes de bens trocados e isso basta para a construção de um modelo de trocas.

Como pioneiro, não faz sentido esperar que o autor tenha desenvolvido todos os aspectos desse modelo, como por exemplo a interpretação da noção de custo como utilidade preterida e, portanto, redefinir a questão fundamental da disciplina como o problema alocativo, que enfatiza as conexões entre mercados. A falta de percepção sobre o potencial da perspectiva catalática, aliada à existência de alternativa plutológica que se desenvolvia no século subsequente, figuram entre as causas possíveis do pouco impacto gerado por Governo e Comércio, tal como manifesto nas críticas a Condillac feitas Say e outros economistas do século dezenove.

A influência de Condillac sobre os economistas desse período, contudo, se manifesta através de sua filosofia do sensacionalismo. Esta guiou a visão de mundo dos Ideólogos, que contribuíram com a ciência das ideias proposta por Destutt de Tracy. Como essa filosofia provê um modelo sobre fenômenos mentais que serve como base para a construção de um modelo de ação econômica, calcada na relação entre meios e fins dos planos dos agentes, Condillac contribui com o desenvolvimento gradual da perspectiva catalática pela sugestão de fundamentos praxiológicos para a disciplina, que embora apareçam na obra de autores franceses como Destutt de Tracy e Bastiat, maturaria apenas no século vinte com a definição da disciplina como lógica da escolha.

Referências

  • Bastiat, Frédéric. 1863. Sophismes Économiques et petits pamplets I. Oeuvres Completes, vol. 4, 2a ed. Paris: Guillaumin.
  • ———. 1864. Harmonies Économiques. Oeuvres Completes, vol. 6, 5a ed. Paris: Guillaumin.
  • Cabanis, Pierre J. G. (1802) 1815. Rapports du Physique et du Moral de L’Homme. 3ª ed. Paris: Caille et Ravier.
  • Cantillon, Richard. (1755) 2002. Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral. Curitiba: Segesta.
  • Condillac, Étienne Bonnot de. 1746. Essai sur L’Origine des Connoissances Humaines: ouvrage où l’on réduit à um seus principe tout ce que concerne l’Entendement Humain. Amsterdam: Pierre Mortier.
  • ———. 1754. Traité des Sensations, Paris: Durand.
  • ———. (1776) 1997. Commerce and Government Considered in their Mutual Relationship. Indianapolis: Liberty Fund.
  • Eltis, Walter. 1993. “France’s free market reforms in 1774-6 and Russia’s in 1991-3: the immediate relevance of L’Abbé de Condillac’s analysis”. European Journal of the History of Economic Thought. 1 (1): 5-19.
  • Eltis, Shelagh e Walter Eltis. 1997. “The Life and Contribution to Economics of the Abbé de Condillac”. Em Commerce and Government considered in their mutual relationship, de Étienne Bonnot de Condillac. Indianapolis: Liberty Fund.
  • ———. 1999. “The Abbé de Condillac’s Critique of French Dirigism.” Journal of the History of Economic Thought Vol. 21, no. 3: 237-256.
  • Forget, Evelyn. L. 1999. The Social Economics of Jean-Baptiste Say: markets and virtue. Londres: Routledge.
  • Hicks, John. 1976. “‘Revolutions’ in Economics”. Em Method and Appraisal in Economics, editado por Spiros Latsis. Cambridge: Cambridge University Press.
  • Helvétius, Claude-A. 1758. De L’Esprit. Paris: Durand.
  • Jevons, William S. A. (1871) 1983. A Teoria da Economia Política. São Paulo: Abril.
  • Klein, Daniel. 1985. “Deductive economic methodology in the French Enlightenment: Condillac and Destutt de Tracy”. History of Political Economy, 17 (1): 51-71.
  • Leroy-Beaulieu, Peter Paul. 1914. Traité Théoretique et Pratique d’Économie Politique. 4 vols. 6a ed.. Paris: Félix Alcan et Guillaumin Réunies.
  • Marx, Karl H. 1909. Capital: a critique of political Economy. vol 1. Chicago: Charles Kerr.
  • Macleod, Henry. D. 1887. On the Modern Science of Economics. Londres: John Heywood.
  • ———. 1896. The History of Economics. Londres: Bliss, Sands and Co.
  • Mises, Ludwig. (1929) 2010. Uma Crítica ao Intervencionismo. São Paulo: Instituto Mises Brasil.
  • ———. (1949) 2011. Ação Humana. São Paulo: Instituto Mises Brasil.
  • Molinari, Gustave. 1887. Les lois naturelles de l’économie politique. Paris: Guillaumin.
  • Orain, Arnauld. 2002. “Condillac face à la physiocratie: Terre, valeur et repartition”. Revue économique. 53 (5): 1075-1099.
  • ———. 2003. “Decline and Progress: the economic agent in Condillac’s theory of history”. European Journal of the History of Economic Thought, 10 (3): 379-407.
  • ———. 2006. “Directing or Reforming Behaviors? A Discussion of Condillacʼs Theory of Vrai Prix”. History of Political Economy. 38 (3): 497-530.
  • Robbins, Lionel. 1932. An Essay on the Nature and Significance of Economic Science. Londres: MacMillan.
  • Say, Jean-Baptiste. (1803) 1841. Traité D’Économie Politique ou Simple Exposition de la Manière dont se Forment, se distribuent et se Consomment les Richessses. 6a ed. Paris: Guillaumin.
  • ———. 1821. Letters to Mr. Malthus on Several Subjects of Political Economy Londres: Sherwood, Neely, and Jones. Edição eletrônica da Online Library of Liberty. http://oll.libertyfund.org/title/1795 Acessado em 11/04/2021.
    » http://oll.libertyfund.org/title/1795
  • Schumpeter, Joseph Alois. (1954) 2006. History of Economic Analysis. Londres: Routledge.
  • Smith, Adam. (1776) 1987. Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
  • Storch, Heirich. F. 1810a. “Des théories sur les valeurs établies jusqu’ ici”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 413-429. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences.
  • ———. 1810b. “De la nature de la valeur et ses différentes espèces”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 430-443. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences.
  • ———. 1810c. “Des sources de la valeur”. Em Mémoires L’Académie Impériale des Sciences de São Petersburgo, vol. 2, 465-475. São Petersburgo: L’Imprimérie de L’Académie Impériale des Sciences.
  • ———. 1823. Cours d’économie politique, ou Exposition des Principes qui Déterminent la Prospérité des Nations. 4 vols. Paris: L’Imprimerie de Rignoux.
  • ———. 1811. Commentary and Review of Montesquieu’s ’Spirit of Laws’: to which are annexed, Observations on the Thirty First Book by the late M. Condorcet; and Two Letters of Helvetius, on the Merits of the same Work, Philadelphia: W. Duane. http://oll.libertyfund.org/title/960 Acessado em 17/01/2018.
    » http://oll.libertyfund.org/title/960
  • ———. (1817) 1970. A Treatise on Political Economy. Nova York: Augustus M. Kelley.
  • Turgot, Anne. R. J. (1759) 2011a. In Praise of Gournay. Em The Turgot Collection, editado por David Gordon. Auburn: Ludwig von Mises Institute.
  • ———. (1766) 1844. Réflexions sur La Formation et la Distribuition des Richesses. Em Oeuvres de Turgot. Paris: Guillaumin.
  • ———. (1776) 2011b. Six Projects of Edits. Em The Turgot Collection, editado por David Gordon. Auburn: Ludwig von Mises Institute.
  • 1
    Orain (2002)Orain, Arnauld. 2002. “Condillac face à la physiocratie: Terre, valeur et repartition”. Revue économique. 53 (5): 1075-1099. estuda a relação entre Condillac, os fisiocratas e Turgot.
  • 2
    Embora não ocupe um papel importante nos livros de história do pensamento econômico, a contribuição de Condillac é objeto de alguns trabalhos acadêmicos. S. Eltis e W. Eltis (1997)Eltis, Shelagh e Walter Eltis. 1997. “The Life and Contribution to Economics of the Abbé de Condillac”. Em Commerce and Government considered in their mutual relationship, de Étienne Bonnot de Condillac. Indianapolis: Liberty Fund., na introdução de Comércio e Governo, oferecem um sumário sobre vida e obra de Condillac. S. Eltis e W. Eltis (1999)———. 1999. “The Abbé de Condillac’s Critique of French Dirigism.” Journal of the History of Economic Thought Vol. 21, no. 3: 237-256. analisam a crítica ao estatismo francês no século dezoito. W. Eltis (1993)Eltis, Walter. 1993. “France’s free market reforms in 1774-6 and Russia’s in 1991-3: the immediate relevance of L’Abbé de Condillac’s analysis”. European Journal of the History of Economic Thought. 1 (1): 5-19. aplica a análise de Condillac de desregulação à tentativa de transição da Rússia para uma economia de mercado nos anos noventa do século vinte, Klein (1985)Klein, Daniel. 1985. “Deductive economic methodology in the French Enlightenment: Condillac and Destutt de Tracy”. History of Political Economy, 17 (1): 51-71. discute a metodologia da economia segundo Condillac e Destutt de Tracy. Orain (2003)———. 2003. “Decline and Progress: the economic agent in Condillac’s theory of history”. European Journal of the History of Economic Thought, 10 (3): 379-407. examina diversos textos de Condillac para identificar a filosofia da história do autor, que supõe que civilizações passam por ciclos de vida. No contexto da mesma filosofia da história, Orain (2006)———. 2006. “Directing or Reforming Behaviors? A Discussion of Condillacʼs Theory of Vrai Prix”. History of Political Economy. 38 (3): 497-530. trata das opiniões de Condillac sobre a discussão fisiocrata a respeito das demandas por bens de luxo em contraste com bens necessários.
  • 3
    J.-B. Say é figura central da escola clássica francesa, tradição baseada em Adam Smith e composta por autores como G. Garnier, Destutt de Tracy, Storch, Ch. Comte, Ch. Dunoyer, P. Rossi, J.-A. Blanqui, Bastiat, Coquelin, Chevalier, Courcelle-Seneuil, J.C. Garnier, Molinari, Leroy-Beaulieu e Guyot, cujos livros e cursos seguem o programa de pesquisa plutológico.
  • 4
    Entre os autores pertencentes ao grupo, podemos citar Cabanis, Condorcet, Benjamin Constant, Germaine de Staël, Destutt de Tracy, J. B. Say, Roederer e Pinel.
  • 5
    W. Eltis (1993)Eltis, Walter. 1993. “France’s free market reforms in 1774-6 and Russia’s in 1991-3: the immediate relevance of L’Abbé de Condillac’s analysis”. European Journal of the History of Economic Thought. 1 (1): 5-19..
  • 6
    Ver S. Eltis e W. Eltis (1997, 55)Eltis, Shelagh e Walter Eltis. 1997. “The Life and Contribution to Economics of the Abbé de Condillac”. Em Commerce and Government considered in their mutual relationship, de Étienne Bonnot de Condillac. Indianapolis: Liberty Fund..
  • 7
    Ou “indústria”, na terminologia do autor.
  • Classificação JEL

    B11, B3, B41

Editado por

Editor Responsável:

Rogério Arthmar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2021
  • Aceito
    05 Dez 2022
Departamento de Economia; Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Av. Prof. Luciano Gualberto, 908 - FEA 01 - Cid. Universitária, CEP: 05508-010, Tel.: (55 11) 3091-5803/5947 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudoseconomicos@usp.br