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Sobre os limites do tempo: história do tempo presente, policronia e performatividade

On the limits of time: History of the present, polychrony and performativity

Resumo

O objeto de análise deste artigo é o problema das fronteiras temporais e suas implicações para a escrita e pesquisa em história do tempo presente. O objetivo é problematizar a ideia de que o tempo presente se define a partir da demarcação de um “começo” ou “marco de início” que o separa dos tempos passados, argumentando que essa abordagem pode levar a um impasse teórico, na medida em que ela repousa no princípio normativo da separação ontológica entre passado e presente. Esse princípio, ele próprio uma construção histórica, foi a base de muitas objeções contra a legitimidade da própria história do tempo presente. Após indicar a recorrência da busca por um “começo” do presente e expor criticamente as bases teóricas de tal perspectiva, o artigo desenvolve a hipótese de que uma saída para o referido impasse reside no reconhecimento da multiplicidade e heterogeneidade da experiência temporal e do caráter performativo e político das fronteiras entre presente e passado. Uma análise das polêmicas em torno da recente onda de ataques a monumentos dedicados a personalidades históricas permite explorar algumas implicações práticas dos argumentos apresentados no artigo.

Palavras-chave:
teoria da história; história do tempo presente; tempo histórico

Abstract

The subject of this article is the issue of temporal borders and their implications for writing and researching the history of the present. The aim is to challenge the idea that the present is defined by the demarcation of a “beginning” or a “starting point” that separates it from the past, arguing that this approach can lead to a theoretical impasse insofar as it rests on the normative principle of the ontological separation between past and present. This principle, which is in itself a historical construction, has been the basis of many objections to the legitimacy of the history of the present. After showing the recurrence of the search for a “beginning” of the present and critically exposing the theoretical bases of such a perspective, the article develops the hypothesis that a way out of this impasse lies in recognizing the multiplicity and heterogeneity of temporal experience and the performative and political nature of the boundaries between present and past. An analysis of the controversies surrounding the recent wave of attacks on monuments dedicated to historical personalities enables us to explore some practical implications of the arguments presented in the article.

Keywords:
theory of history; history of the present; historical time

“História do Tempo Presente [Zeitgeschichte]1 1 A tradução brasileira de Estratos do tempo preferiu usar “História Contemporânea” para traduzir a expressão Zeitgeschichte. Ressalte-se, no entanto, que o tradutor registrou em nota de rodapé que o termo alemão faz referência mais precisamente a “história do tempo presente”. Contudo, acrescenta o tradutor na mesma nota, ele considerou “história do tempo presente” e “história contemporânea” como expressões sinônimas. Escolhi reverter Zeitgeschichte por História do Tempo Presente, diferenciando-a da história contemporânea [neueste Geschichte], uma vez que essa diferença é relevante para a definição da área de pesquisa que este artigo discute. é uma bela expressão, mas um conceito difícil.” (KOSELLECK, 2014KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2014., p. 229). É com essa sentença que Reinhart Koselleck abre o seu ensaio “Continuidade e mudança de todas as histórias contemporâneas: notas referentes à história dos conceitos”, que foi incluído na coletânea Estratos do Tempo. Do ponto de vista historiográfico, a primeira dificuldade que essa “bela expressão” impõe é a de saber o que exatamente deve ser considerado como pertencente ao tempo presente e o que não deve ser assim considerado. “Onde devemos traçar o limite entre o que é incluído e o que já não faz parte [do tempo presente]?” (KOSELLECK, 2014KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2014., p. 229). É precisamente essa dificuldade de se localizar a fronteira que separa o presente do passado que constitui o objeto da discussão deste artigo.

Com efeito, o problema de saber onde traçar essa fronteira temporal é frequentemente levantado pelos historiadores do tempo presente. De modo geral, a necessidade de estabelecer essa demarcação é entendida como um critério básico para definir a singularidade da história do tempo presente com relação às demais áreas dos estudos históricos. Um exemplo: na introdução da importante coletânea História do tempo presente, organizada pelas historiadoras Lucília Neves Delgado e Marieta de Moraes Ferreira, lê-se:

A configuração da história do tempo presente está relacionada inexoravelmente à dimensão temporal. Algumas de suas características definidoras decorrem dessa matriz nuclear. Existe um marco de início do tempo presente? Como as mudanças e o movimento da história interferem em sua delimitação temporal? Tais elementos interferem na metodologia de sua pesquisa e na seleção das fontes que serão investigadas e produzidas? Essas são questões que o pesquisador do tempo presente não pode desconsiderar, pois são definidoras do campo constitutivo da história do tempo presente. (DELGADO; FERREIRA, 2014DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. Introdução. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). História do tempo presente. Rio de Janeiro: Editora FGV , 2014. p. 7-12., p. 8).

Na citação, a “dimensão temporal” que a história do tempo presente põe em jogo, e de onde o campo extrai suas “características definidoras” e estabelece sua “matriz nuclear”, está associada primariamente à questão de saber se “existe um marco de início do tempo presente”. Essa maneira de abordar a questão é bastante recorrente entre os historiadores ligados a esse campo de estudo, ainda que com algumas variações - e a sequência deste artigo exporá algumas delas. Trocando em miúdos, a questão de saber se existe um marco inicial do presente organiza, em grande medida, as discussões sobre como delimitar o âmbito de pesquisa da história do tempo presente.

Mais raros, porém, são os trabalhos que problematizam os fundamentos teóricos que baseiam esse modo de abordar o tempo histórico em geral e, em particular, a referida “dimensão temporal” constitutiva da história do tempo presente. Tal é o problema que motiva a escrita deste artigo. Argumento que definir a singularidade dessa área de pesquisa a partir da demarcação do marco de início do presente pode levar a um impasse teórico, na medida em que essa abordagem corre o risco de reintroduzir sub-repticiamente o princípio de representação do tempo histórico, que fundamentou grande parte das objeções levantadas contra a própria legitimidade da história do tempo presente, a saber, o princípio normativo da distinção qualitativa entre passado e presente. Minha hipótese é que uma alternativa teórica potencial para esse impasse reside no reconhecimento da multiplicidade e heterogeneidade da experiência temporal e do caráter performativo das fronteiras que distinguem e separam o “tempo presente” e os “tempos ausentes” (passados e futuros).2 2 O paradigma da multiplicidade temporal tem ganhado cada vez mais espaço na agenda dos debates da Teoria da História Contemporânea. Para uma exposição geral das discussões sobre o tema, Vf. CARDOSO JR., 2021.

Para desenvolver esse argumento, o artigo está dividido em quatro partes, além desta introdução e das considerações finais. A primeira parte tem como objetivo mostrar que o princípio da separação ontológica entre passado e presente é a raiz teórica de muitas objeções feitas contra a legitimidade da história do tempo presente, assim como indicar algumas respostas desenvolvidas pelos historiadores ligados a essa área de pesquisa. A segunda seção debate algumas categorias propostas por historiadores do tempo presente para delimitar teoricamente o âmbito de objetos próprios desse campo historiográfico, no intuito de mostrar que o princípio da separação qualitativa entre passado e presente se manteve atuante nesse debate. A terceira seção defende que uma resposta possível para esse impasse teórico consiste em lançar luz para os aspectos performativo e político das fronteiras temporais, refletindo sobre as suas implicações para a história do tempo presente. A quarta parte do artigo desdobra essas reflexões para um caso histórico concreto, a saber, a polêmica em torno da recente onda de derrubada e queima de estátuas e monumentos em homenagem a personagens históricos controversos. Tal polêmica oferece um caso interessante para explorar as implicações práticas das reflexões e argumentos teóricos apresentados ao longo deste artigo.

A distinção qualitativa entre passado e presente e o veto à história do tempo presente

Uma das principais objeções que os historiadores do tempo presente tiveram de enfrentar no contexto da institucionalização da sua área de pesquisa residia na ausência de distanciamento cronológico entre o historiador e o seu objeto de pesquisa. O pressuposto dessa objeção é que a distância entre o presente do historiador e a época passada que ele toma como seu objeto de estudo seria como um pré-requisito básico para alcançar a objetividade do conhecimento histórico; sem essa “visão retrospectiva”, conforme Marieta de Moraes Ferreira (2018FERREIRA, Marieta de Moraes. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 80-108, 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180310232018080 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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) caracteriza tal concepção de objetividade em história, o historiador estaria demasiado próximo ao seu tema de estudo e, nesse sentido, ele estaria condenado a projetar sobre o objeto o seu próprio viés, suas preferências e sua subjetividade.

A associação entre objetividade da pesquisa e distância cronológica foi assumida como uma premissa basilar no contexto da constituição da História como disciplina científica autônoma no século XIX. Tal premissa se expressou em uma certa representação do tempo histórico, que historiadores como Constantin Fasolt (2004FASOLT, Constantin. The Limits of History. Chicago: University of Chicago Press, 2004.) e Zachary Schiffman (2011SCHIFFMAN, Zachary. The Birth of the Past. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2011.) chamam de “o princípio fundador da historiografia moderna”, a saber, a postulação de uma distinção qualitativa entre passado e presente. Como demonstrou Estevão de Rezende Martins, a tradição historiográfica do historicismo alemão3 3 Não ignoro as diversas significações que o termo “historicismo” pode assumir. No contexto deste artigo, subscrevo a definição mais estrita do termo, expressa por Estevão de Rezende Martins (2008, p. 15): “Por historicismo entende-se a época da historiografia alemã ao longo de todo o século XIX, de metodização e de formatação científica do conhecimento histórico”. se baseava no entendimento de que “o pensamento histórico consiste no reconhecimento da especificidade de tempos passados em comparação com o presente, de modo a elaborar uma correlação de interdependência do tempo passado com o tempo presente” (MARTINS, 2008MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo. O útil e o desagradável. In: VARELLA, Flávia; MOLLO, Helena; MATA, Sérgio; ARAUJO, Valdei (org.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. p. 15-48., p. 17). O primeiro gesto da historiografia historicista é o de separar esses tempos para reconhecê-los em sua singularidade e, na sequência, descobrir e fundamentar os nexos lógicos e causais entre esses tempos individualizados. Michel de Certeau chamava a atenção para esse ponto ainda na década de 1970:

A história moderna ocidental começa efetivamente com a diferenciação entre o presente e o passado. [...] Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porém, repete sempre o gesto de dividir. [...] Logo, o corte é o postulado da interpretação (que se constrói a partir de um presente) e seu objeto (as divisões organizam as representações a serem reinterpretadas). (CERTEAU, 2006CERTEAU, Michel De. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006., p. 14-15).

Cabe ressaltar que a distinção qualitativa entre passado e presente não deve ser confundida com uma mera relação de anterioridade/posterioridade cronológica (SCHIFFMAN, 2011SCHIFFMAN, Zachary. The Birth of the Past. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2011.). Do ponto de vista historiográfico, porém, conceber o passado como objeto de pensamento implica reconhecê-lo não apenas como um tempo anterior, mas, sobretudo, um tempo diferente do presente. Essa diferença diz respeito à percepção de que cada entidade histórica existe em seu contexto específico, o qual se distingue qualitativamente do contexto presente do historiador. Esse aspecto qualitativo reside na noção de que o presente se destaca do passado por constituir um horizonte de referências, normas, conceitos e valores que lhe é específico e singular. Assim, conhecer o passado “tal como ele realmente foi”, conforme o famoso adágio de Leopold von Ranke, significa analisá-lo sem permitir que os horizontes do presente orientem indevidamente a interpretação do objeto. Dessa forma, o princípio da separação qualitativa entre passado e presente expressa o princípio normativo básico das formas de perspectivação historiográfica do passado.

Tal representação do tempo histórico está na base da noção de objetividade que presidiu a institucionalização da historiografia científica. Para que o passado pudesse se tornar um objeto de apreensão científica, era essencial colocá-lo à distância do presente do sujeito-historiador. A distância entre passado e presente refletiria o corte entre sujeito e objeto; assim, violar esse princípio implicaria de saída uma impossibilidade para a elaboração de um conhecimento histórico objetivo. Desse modo, a distinção ontológica entre passado e presente se consagrou como um princípio normativo basilar da ciência histórica. A singularidade qualitativa entre as épocas do passado e do presente torna a distância cronológica um fator que não diminui, mas, ao contrário, aumenta as oportunidades para o conhecimento de uma época passada em seus próprios termos, isto é, considerando a sua individualidade com relação ao tempo presente.

A distinção ontológica entre passado e presente se impôs como princípio normativo básico da historiografia científica do século XIX. Uma de suas consequências foi a de impor uma forte interdição ao estudo dos eventos e processos cronologicamente próximos do historiador. “Uma história do tempo presente é impensável em um regime de historicidade moderno que estabelece uma ruptura clara entre o passado e o presente.” (MUDROVCIC, 2017MUDROVCIC, María Inés. História do Tempo Presente e América Latina: Argentina. Entrevista concedida a Camila Serafim Daminelli e Elisangela da Silva Machieski. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 21, p. 450-471, 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180309212017450 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 464). Jacob Burckhardt expressou essa interdição de forma exemplar em uma carta para Bernhard Kugler em 2 de julho de 1871:

Primeiro e antes de tudo meus cordiais parabéns por rejeitar a proposta de uma ‘história alemã contemporânea’ [neueste deutschen Geschichte]. Nada favorece tão pouco um melhor conhecimento, nada destrói tanto a vida científica quanto o ocupar-se de forma exclusiva com os acontecimentos contemporâneos. (KUGLER, 1871 apudKOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006., p. 360 [nota 76]).

No decorrer do século XX, o veto à história do tempo presente continuava a ser repetido por eminentes historiadores, como Fernand Braudel: “É importante, ao estudar um drama, conhecer a sua última palavra” (AUTOR, ANO, PÁGINA apudROUSSO, 2016ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016., p. 172). Ainda mais recentemente, Gabrielle Spiegel (2002SPIEGEL, Gabrielle. Memory and History: Liturgical Time and Historical Time. History and Theory, Middletown, v. 41, n. 2, p. 149-162, 2002. Disponível em: Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/0018-2656.00196 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 161) reconhece e reivindica que “o postulado básico da historiografia moderna é o desaparecimento do passado do presente, seu movimento da visibilidade para a invisibilidade”, sendo este o ponto que, segundo ela, diferencia a história da memória.

Portanto, a emergência da história do tempo presente durante o século XX exigiu uma confrontação com esse postulado da historiografia historicista - mas não somente historicista. Para que essa área de estudos se afirmasse enquanto um campo legítimo da pesquisa histórica, foi necessário demonstrar que a ausência de distanciamento cronológico não implica direta ou necessariamente uma ausência de objetividade. Diversos argumentos foram desenvolvidos pelos historiadores do tempo presente para justificar a legitimidade de seu métier. Muitos lembraram que a distinção qualitativa entre passado, presente e futuro somente surgiu na cultura ocidental em fins do século XVIII e, portanto, não pode ser assumida como um reflexo neutro de uma suposta ordem natural do tempo, pois se trata, ela própria, de uma construção histórica (FERREIRA, 2018FERREIRA, Marieta de Moraes. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 80-108, 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180310232018080 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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; ROUSSO, 2016ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.).

Outro argumento desenvolvido pelos historiadores do tempo presente é que as formas de concepção, experiência e conceituação do tempo foram sensivelmente transformadas ao longo do século XX, muito em função da ocorrência das experiências traumáticas de larga escala - as guerras mundiais, extermínios, a ameaça nuclear, as ditaduras militares na América Latina, o apartheid, entre outros processos. Tais experiências não apenas desafiaram a ideia de que a história da “humanidade” caminhava no sentido do progresso universal, como também tornaram mais difícil admitir que o passado passa e se distancia do presente em função da própria passagem do tempo. A emergência da injunção moral e política do “dever de memória”, que impunha a necessidade de se prestar contas com o passado, reforçou a percepção de que há passados que não passam e nem devem passar (LORENZ, 2014LORENZ, Chris. Blurred Lines: History, Memory and the Experience of Time. International Journal for History, Culture and Modernity, Leiden, v. 2, n. 1, p. 43-63, 2014. Disponível em: Disponível em: https://brill.com/view/journals/hcm/2/1/article-p43_3.xml?rskey=2E9jfz&result=1&ebody=article%20details . Acesso em: 29 abr. 2023.
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).

Nesse sentido, diversos estudiosos têm apontado que, a partir do pós-guerra, “a distância que normalmente nos separa do passado foi fortemente desafiada em favor da insistência de que o passado [...] está constante e urgentemente presente como parte da nossa experiência cotidiana” (TORPEY, 2004TORPEY, John. The Pursuit of the Past: A Polemical Perspective. In: SEIXAS, Peter (org.). Theorizing Historical Consciousness. Toronto: University of Toronto Press, 2004. p. 240-255., p. 240-241). Tal cenário de profundas transformações nas relações sociais com o tempo e, especialmente, a crescente reiteração pública do passado no presente não apenas resultou em novos discursos e políticas de memória, mas também demandou do campo historiográfico profissional o desenvolvimento de novas formas de historicização da experiência vivida que não se baseiem exclusivamente na demarcação de fronteiras rígidas entre passado e presente (LORENZ; BEVERNAGE, 2013LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (org.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.). Nesse sentido, afirma Mateus Pereira (2022PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 23), “o desenvolvimento da pesquisa histórica, ao longo do século XX, permitiu superar o corte radical entre passado e presente construído em fins do século XIX pelos historiadores profissionais, com o objetivo de justificar suas competências de especialistas”.

Foi justamente nesse contexto que a história do tempo presente foi institucionalizada como uma área da pesquisa histórica (FERREIRA, 2018FERREIRA, Marieta de Moraes. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 80-108, 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180310232018080 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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; ROUSSO, 2016ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.). Sob esse aspecto, é possível dizer que a emergência da história do tempo presente foi simultaneamente um reflexo e uma resposta às novas relações sociais com a temporalidade que tensionaram o princípio historicista da separação qualitativa entre passado e presente - um processo que Berber Bevernage (2021BEVERNAGE, Berber. ‘A passeidade do passado’: Reflexões sobre a política da historicização e a crise da passeidade historicista. RTH, Goiânia, v. 24, n. 1, p. 21-39, 2021. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufg.br/teoria/article/view/69673 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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) chamou de “crise da passeidade historicista”. Em vez de insistir na separação rígida entre passado (morto) e presente (vivo), a história do tempo presente abrange um campo plural de objetos e abriga variadas abordagens sobre a experiência temporal (LOHN; CAMPOS, 2017LOHN, Reinaldo Lindolfo; CAMPOS, Emerson Cesar de. Tempo Presente: entre operações e tramas. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 10, n. 24, p. 97-113, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1176 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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; RODRIGUES, 2021RODRIGUES, Rogério Rosa. Tempo-do-agora (Jetztzeit), História do Tempo Presente e Guerra do Contestado. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, n. esp., e0111, 2021. Disponível em: Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/21751803ne2021e0111 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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). Inclui-se aí as formas de persistência do passado no presente, seus modos de evocação e circulação no discurso público, redimensionando as relações complexas entre história e memória, bem como a questão dos usos e abusos do passado no presente. Daí também a importância de temas como os “passados que não passam”, o testemunho, a revalorização da história política, bem como as tensões entre o discurso histórico e as demandas sociais do presente, colocando em maior evidência a questão da responsabilidade social do historiador.

Em suma, a proposição de uma história do tempo presente apresenta potenciais teóricos relevantes não apenas para essa área de pesquisa em particular, mas para o pensamento histórico em geral, na medida em que ela propõe formas de historicização que tensionam com o princípio normativo de representação do tempo histórico consagrado pela tradição historiográfica disciplinar. Assim, a história do tempo presente “deve levar em conta temporalidades diferenciadas e uma dialética particular entre passado e presente” (ROUSSO, 2016ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016., p. 16). Não será por acaso, portanto, que François Bédarida, o primeiro diretor do Institut d’histoire du temps présent (IHTP), asseverou que “a união e a interação do presente e do passado constituem a principal inovação trazida pelo projeto IHTP” (BÉDARIDA, 2006BÉDARIDA, François. Tempo presente e presente da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 219-229., p. 220). Vale ressaltar como essa afirmação se contrapõe de forma clara e direta com o princípio da separação entre passado e presente, que fundamentou as formas hegemônicas de perspectivação historiográfica do passado desde o século XIX.

Reintroduzindo o veto pela porta dos fundos: o problema das fronteiras temporais

Não obstante, essa marca de singularidade da história do tempo presente não foi objeto de elaboração teórica e conceitual mais profunda no momento da institucionalização dessa área de pesquisa. Como observam Augusto de Carvalho, Marcelo Rangel e Rogério Rodrigues, a questão da temporalidade “não estava na ordem do dia das discussões acerca da emergência da história do tempo presente no seu processo de institucionalização” (LEITE; RANGEL; RODRIGUES, 2022LEITE, Augusto B. de Carvalho Dias; RANGEL, Marcelo de Mello; RODRIGUES, Rogério Rosa. Os tempos da História: novas perspectivas. In: RODRIGUES, Rogério Rosa; CUBAS, Caroline Jaques; OLIVEIRA, Fernanda; CONEDERA, Leonardo de Oliveira (org.). Fio que se faz trama: a História do Tempo Presente e a responsabilidade na pesquisa histórica. Vitória: Editora Milfontes, 2022. p. 37-60., p. 43). Por sua vez, Henry Rousso (2016ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016., p. 2015) destacou que “a criação do IHTP [Institut d’histoire du temps présent] e, portanto, de um campo da ‘história do tempo presente’ na historiografia francesa não resultou de um trabalho teórico prévio que teria resultado na institucionalização de um conceito mais ou menos bem definido e já posto à prova”. Em um tom ainda mais crítico, Julio Aróstegui (2004ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: sobre la historia del presente. Madri: Alianza Editorial, 2004., p. 22) argumentou que essa ausência de elaboração teórica fez com que “o conteúdo da história do presente fosse compreendido no início de uma forma bastante convencional”.

Essa convencionalidade se torna manifesta quando se observa que a maior parte das discussões sobre os contornos do “tempo presente” como âmbito da pesquisa histórica são pautadas pelo problema de saber quando começa o tempo presente - tal como foi anunciado no início deste artigo. Essa forma de colocar a questão induz o historiador a conceber o tempo presente como um período (ou subperíodo) da história contemporânea, especialmente a partir da localização de acontecimentos epocais. Em outros termos, a definição do escopo da história do tempo presente é geralmente orientada pela pergunta sobre como definir o marco cronológico inicial do presente de modo que a questão da temporalidade é reduzida desde a saída à questão da periodização. Nesse sentido, Eugenia Allier Montaño, César Vilchis Ortega e Camilo Vicente Ovalle (2020ALLIER MONTAÑO, Eugenia; VILCHIS ORTEGA, César Iván; VICENTE OVALLE, Camilo (org.). En la cresta de la ola: debates y definiciones en torno a la historia del tiempo presente. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2020., p. 16) observam que existe “uma tradição do Institute d’Histoire du Temps Présent” de entender o tempo presente “como uma espécie de período histórico que vai da Segunda Guerra Mundial até a atualidade”.

Na mesma direção, Christian Delacroix (2018DELACROIX, Christian. A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras? Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 39-79, 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/12709 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 49) aponta que a singularização do tempo presente como “objeto” de pesquisa histórica passou por “um procedimento clássico de periodização por datas-rupturas, sendo o ‘tempo presente’ definido como um novo período ou subperíodo da história contemporânea”. Alguns historiadores procuraram formalizar, em linguagem teórica, esse procedimento de demarcação do início do tempo presente. Sem dúvida, a mais conhecida dessas formalizações foi dada inicialmente por Hermann Heimpel (1957HEIMPEL, Heimpel. Der Mensch in seiner Gegenwart: Acht Historische Essais. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1957 [1954]. [1954], p. 12) nos anos 1950, e que foi retomada e desenvolvida mais tarde por Henry Rousso (2016ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016., p. 24), segundo o qual o tempo presente começa a partir da última catástrofe em data, o evento catastrófico que marca o começo de uma nova configuração histórica singular “presente”, distinta das épocas anteriores.

Existe também a posição de Geoffrey Barraclough formulada nos anos 1960, segundo a qual “a História do Tempo Presente [Contemporary History] começa quando os problemas que são reais no mundo atual tomaram, pela primeira vez, uma forma visível; começa com as mudanças que nos habilitam, ou melhor, que nos compelem a dizer que entramos em uma nova era” (BARRACLOUGH, 1976BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à História Contemporânea. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976., p. 21, grifos do original). Ainda que a posição de Barraclough se caracterize por definir a história do tempo presente como um campo de pesquisa orientado por problemas, distinguindo-se assim do critério da datação da última catástrofe, a citação acima evidencia que a preocupação do historiador britânico se mantém vinculada ao problema de saber como determinar o começo do tempo presente como uma “nova era histórica”, qualitativamente distinta e singular em relação às eras anteriores.

Ora, a conceituação do tempo presente como um período histórico, que se expressa na definição dos seus marcos de início, está sustentada em uma concepção de temporalidade que, em seu aspecto formal, se mantém presa aos pressupostos da representação do tempo histórico herdada do século XIX. E, como tenho argumentado ao longo deste artigo, o princípio básico dessa representação reside na distinção qualitativa entre passado e presente. Afinal, só se pode declarar que o presente tem um começo identificável no fluxo temporal à medida que ele esteja individualizado com relação aos períodos históricos anteriores. Portanto, ao delimitar a singularidade da história do tempo presente por meio da lógica da periodização, reintroduz-se pela porta dos fundos o mesmo princípio de representação do tempo histórico que a própria história do tempo presente teve de se confrontar no contexto de sua institucionalização. E, embora essa reintrodução ocorra sob o argumento de que é possível, sim, historicizar o tempo que se encontra a jusante da fronteira que separa o presente do passado, o próprio ato de estabelecer essa fronteira permanece inquestionado, de modo que o “tempo presente” passa a ser entendido, nesses termos, como um período histórico.

Para situar o problema de forma mais precisa, é importante lembrar da diferença entre questões de metodologia e de epistemologia: o ato de periodização é sem dúvida um procedimento importante do ponto de vista metodológico para toda pesquisa histórica, mas outra coisa é basear a singularidade de uma área de investigação delimitando o seu campo de objetos em função do critério da periodização4 4 Para uma reflexão crítica da periodização como base epistemológica da pesquisa historiográfica, Cf., entre outros, Davis (2008), Jordheim (2012), Le Goff (2015), Mudrocvic (2019). . Nesse sentido, traçar uma fronteira que separa o presente do passado parece se colocar em contradição aberta com a afirmação de Bédarida, citada anteriormente, de que “a união e a interação do presente e do passado constituem a principal inovação trazida pelo projeto IHTP” (BÉDARIDA, 2006BÉDARIDA, François. Tempo presente e presente da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 219-229., p. 220).

Poder-se-ia argumentar que a noção de “balizas móveis”, frequentemente citada entre os historiadores do tempo presente, forneceria uma saída para tal impasse. Com efeito, essa noção traz a vantagem de flexibilizar os marcos cronológicos do tempo presente, pois a ideia de mobilidade implica reconhecer que as balizas temporais variam conforme a passagem do tempo. Contudo, é notável que, na própria formulação do conceito, a questão específica das fronteiras temporais aparece como um dos seus critérios definidores:

Uma sequência histórica marcada por duas balizas móveis. [A] montante, essa sequência remonta aos limites da duração de uma vida humana, fazendo com que seja um campo marcado, sobretudo pela presença de testemunhas vivas, traço mais visível de uma história que virá a ser. A jusante, essa sequência é delimitada pela fronteira, muitas vezes difícil de localizar, entre o momento presente - a atualidade - e o instante passado. (Les Cahiers d’IHTP, 1991 apudDOSSE, 2012DOSSE, François. História do tempo presente e historiografia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 5-22, 2012. Disponível em: Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180304012012005 . Acesso em: 29 abr. 2023.
https://revistas.udesc.br/index.php/temp...
, p. 15, grifos meus).

Ao passo que uma dessas balizas - “a montante” - diz respeito ao espaço de tempo abarcado pela presença de testemunhas vivas dos eventos e processos estudados pelo historiador, a outra baliza - “a jusante” - é definida justamente pelo estabelecimento de uma fronteira que separa o momento presente e o instante passado. Ainda que a passagem citada reconheça que essa fronteira seja “difícil de localizar”, a sua demarcação é considerada um critério essencial para definir os contornos da história do tempo presente enquanto um campo de pesquisa.

É importante registrar, porém, que existem historiadores do tempo presente que contestam diretamente a definição do presente segundo a lógica da periodização. Até onde a pesquisa bibliográfica realizada para a escrita deste artigo indicou, Julio Aróstegui foi quem assinalou de modo mais enfático os limites da caracterização do tempo presente como um período histórico, uma concepção que o autor de La historia vivida: sobre la historia del presente reputa como o maior obstáculo para uma compreensão mais plena sobre as possibilidades que a história do tempo presente pode aportar para a reflexão historiográfica em geral. Nas palavras de Aróstegui, “a caracterização válida do tempo presente em cada momento não pode partir senão do pressuposto inamovível de que o tempo presente nunca é um período” (ARÓSTEGUI, 2004ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: sobre la historia del presente. Madri: Alianza Editorial, 2004., p. 56). Mas quais seriam as alternativas? Que conceitos e categorias temporais poderiam servir para uma historicização do tempo presente que escapem (ou ao menos não se reduzam) à determinação do tempo presente como um período cronológico?

A resposta de Aróstegui está apresentada de forma sintética na seguinte passagem de seu livro:

Com efeito, o tempo presente é uma categoria alheia à de período histórico. [...] Do ponto de vista conceitual, os limites temporais de uma história do presente são o resultado de uma decisão social, materializada por um projeto intelectual concreto, vinculado ao fenômeno geracional e à delimitação da coetaneidade e, em seu aspecto mais técnico, à possibilidade de captar um tempo histórico homogêneo a partir de uma mudança significativa. Neste último sentido, a história do presente não pode se basear [...] senão na consciência de uma grande mudança, na determinação do grande acontecimento de onde cada “época” começa ou crer começar. (ARÓSTEGUI, 2004ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: sobre la historia del presente. Madri: Alianza Editorial, 2004., p. 27, grifos do original).

Há vários pontos a se observar nessa citação. Aróstegui ressalta que os “limites temporais de uma história do presente” devem ser entendidos como resultado de uma “decisão social” que se materializa por meio de um “projeto intelectual concreto” e, portanto, historicamente situado e realizado por atores sociais específicos. Adianto aqui a minha inteira concordância com essa proposição, e retomarei esse ponto na próxima seção deste artigo.

Minha discordância reside na forma como Aróstegui desenvolve a proposição. É importante observar que o historiador espanhol vincula a “decisão social”, que estabelece os “limites temporais de uma história do presente”, ao “fenômeno geracional e à delimitação da coetaneidade”. Mas, para dar consequência ao argumento de que essa decisão social é materializada por atores sociais concretos, importa considerar não apenas quando tal decisão é realizada, mas também quem a realiza e, coextensivamente, quem fica incluído ou excluído dos limites traçados para definir o tempo presente. Isso fica ainda mais claro quando Aróstegui argumenta um pouco mais adiante em seu livro que “a história do presente sempre define o tempo desde um nós, desde um nosso tempo” (ARÓSTEGUI, 2004ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: sobre la historia del presente. Madri: Alianza Editorial, 2004., p. 57). Contudo, alguns autores já observaram que a fórmula “nosso tempo” comporta armadilhas não apenas epistemológicas, mas também éticas e políticas. Nesse sentido, torna-se fundamental questionar: quem participa e compõe efetivamente o “nós” e o “nosso tempo”? E, inversamente: quem fica excluído ou não pertence a essas categorias? Segundo Berber Bevernage (2021BEVERNAGE, Berber. ‘A passeidade do passado’: Reflexões sobre a política da historicização e a crise da passeidade historicista. RTH, Goiânia, v. 24, n. 1, p. 21-39, 2021. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufg.br/teoria/article/view/69673 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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), a fórmula “nosso tempo” frequentemente implica o estabelecimento de fronteiras que separam o “nós” do “outro”, e isso por meio de critérios temporais. Retomarei e desenvolverei melhor este ponto na próxima seção. Por ora, basta apontar a necessidade de questionar quem realiza a decisão social que estabelece, a cada vez, os limites temporais do presente histórico; e, além disso, quem fica excluído dessa mesma delimitação.

Talvez porque Aróstegui oculta o sujeito da “decisão social” de que fala na citação, com o consequente risco de deixar o “nós” como a expressão de uma suposta subjetividade universal, o autor afirma na citação em destaque que o aspecto “técnico” da delimitação do tempo presente reside na “possibilidade de captar um tempo histórico homogêneo”. Mas o autor não explica por que a homogeneidade temporal é um critério necessário para a fundamentação epistemológica da história do tempo presente. Por um lado, diversos especialistas têm destacado que uma das principais características da experiência contemporânea do tempo é justamente a grande heterogeneidade temporal, a enorme profusão de ritmos, cadências e lógicas temporais que têm coexistido de forma cada vez mais dessincronizada entre si (TURIN, 2019TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Dansk: Zazie Edições, 2019.). Portanto, “captar um tempo histórico homogêneo” implica impor uma característica alheia à maneira como a experiência temporal tem se processado no mundo contemporâneo. Por outro lado, a imposição de uma homogeneidade temporal acaba por bloquear uma das grandes possibilidades teóricas abertas pela história do tempo presente, a saber, a produção de pesquisas dedicadas a identificar, analisar e produzir descrições densas sobre as múltiplas formas de experiência, percepção e conceituação do tempo histórico que coexistem simultaneamente, estabelecendo relações de concorrência, conflito e cooperação entre si.

Mas é no final da citação que se revela mais fortemente a contradição em que o historiador espanhol parece recair, pois, embora o autor afirme e insista ao longo de todo o livro a sua recusa em definir o tempo presente como um período histórico, ele reintroduz sub-repticiamente essa mesma lógica periodizante ao estabelecer um começo desse tempo presente a partir de um “grande acontecimento”. Nesse aspecto, não há muita novidade entre a argumentação do historiador espanhol e outros historiadores do tempo presente que defendem a ideia de “última catástrofe” para demarcar o início do tempo presente, como já discutido acima.

Portanto, ainda permanece em aberto a questão de saber como delimitar teórica e conceitualmente as possibilidades de historicização da experiência vivida apresentadas pela historiografia do tempo presente que não reduzam o presente histórico a uma forma temporal pura, homogênea a si mesma e cuja identidade possa ser demarcada pelo estabelecimento de um marco de início que o distingue qualitativamente das épocas passadas. Essa questão importa para a história do tempo presente porque o problema de “traçar o limite entre o que é incluído e o que já não faz parte” (KOSELLECK, 2014KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2014., p. 226), para voltar à citação que de Koselleck que abre este artigo, deve levar em conta o que está implicado e pressuposto no ato de traçar esse limite: tratar-se-ia de uma “simples” operação metodológica, neutra nas suas dimensões práticas e políticas? Seria esse limite um dado puro que o historiador do tempo presente “encontra” na experiência vivida? Ou seria ele construído na prática da pesquisa e no discurso do historiador e/ou dos atores sociais em suas relações com a temporalidade? A depender da resposta, diferentes serão os sentidos ontológicos, epistemológicos e ético-políticas que o historiador do tempo presente assumirá ao conduzir o processo de produção do conhecimento histórico.

Não se trata aqui de invalidar toda a produção da historiografia do tempo presente que concebe o seu métier assumindo o presente histórico como um período, singularizado pela demarcação do seu marco de início. Trata-se, em vez disso, de buscar outras possibilidades de historicização do tempo presente que tensionem de forma mais aberta e direta o ato de demarcar fronteiras que separam ontologicamente o presente do passado. Significa assumir que essas fronteiras temporais não são simplesmente dadas do mundo objetivo. Elas são historicamente construídas e socialmente “negociadas” - para tomar de empréstimo a expressão de Chris Lorenz e Berber Bevernage (2013LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (org.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.) - nas práticas dos atores sociais em seus contextos específicos. Seja o presente definido a partir da ocorrência deste ou daquele grande acontecimento ou última catástrofe, seja qual for o lugar do tempo onde se afirma iniciar uma nova era histórica, o que se entende por “tempo presente” será inevitavelmente composto por uma miríade de temporalidades ausentes (passados e futuros) (LANDWEHR; WINNERLING, 2019LANDWEHR, Achim; WINNERLING, Tobias. Chronisms: on the past and future of the relation of times. Rethinking History, Londres, v. 23, n. 4, p. 435-455, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13642529.2019.1677294 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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); carregará múltiplas camadas ou “estratos de tempo” (KOSELLECK, 2014KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2014.), que coexistem e articulam-se uns aos outros de formas plurais, divergentes, com espessuras, durações, velocidades, ritmos, cadências e direções dissonantes e frequentemente conflitivas entre si. Trocando em miúdos: um presente histórico policrônico.

Mas, afinal, existiriam alternativas teóricas viáveis e operacionais para a história do tempo presente que não assumam a distinção ontológica entre passado e presente como um princípio normativo insuperável? Poder-se-ia fundamentar a pesquisa historiográfica sobre o tempo presente sem dar como primeiro passo uma resposta taxativa à pergunta sobre o marco inicial do presente? A próxima seção é dedicada a demonstrar que a resposta a tais questões deve ser afirmativa.

A heterogeneidade do presente histórico e a performatividade das fronteiras temporais

O primeiro passo para o meu argumento consiste em propor um deslocamento teórico: encarar a questão da distinção ontológica entre passado e presente não como um princípio normativo, mas como um tema de investigação para a história do tempo presente. Isso implica assumir que o tempo presente é, como Julio Aróstegui afirmara na citação comentada acima, instituído por meio de uma decisão social que, enquanto tal, resulta de uma ação que sujeitos históricos concretos realizam em suas relações com a temporalidade. Porém, enquanto Aróstegui vincula essa decisão social como uma base para definir o presente como “um tempo histórico homogêneo”, ocultando o problema de saber quem são os atores que, a cada vez, realizam tal decisão, defendo, de minha parte, que essa decisão deve ser compreendida efetivamente como uma forma de ação no tempo e sobre o tempo. Em outras palavras, a fronteira entre passado e futuro não é algo que possa ser simplesmente constatada na experiência temporal, mas envolve também uma dimensão performativa.

Se realmente estiver correto em minha exposição, então se torna possível circunscrever um campo de objetos de pesquisa próprio à história do tempo presente, sem que isso invalide ou se sobreponha a outras abordagens existentes nessa área. Não o presente enquanto um bloco de tempo no qual se pode encaixar as ocorrências do mundo histórico que compartilham certa unidade epocal, mas como um tempo relacional, policrônico, heterogêneo, que abriga em sua composição múltiplas modalizações entre passados e futuros, apresentando historicidades dissonantes e, não raro, concorrentes entre si. Em suma, o presente como um tempo não-contemporâneo a si mesmo.5 5 A ideia de não contemporaneidade do presente a si mesmo remete à concepção ekstática da temporalidade exposta na analítica existencial do Dasein formulada por Heidegger em Ser e Tempo (HEIDEGGER, 2012 [1927]; ver também LEITE, 2018). Jacques Derrida retomou e deu nova formulação a essa concepção em sua crítica da metafísica da presença (Cf., por exemplo, Derrida, 1994). Essa formulação derridiana inspirou historiadores a desenvolveram as implicações historiográficas do conceito de não contemporaneidade do presente, por exemplo, Dipesh Chakrabarty (1998), Berber Bevernage (2018 e 2021), entre outros. Em vez de atribuir ao tempo presente uma identidade homogênea, definida por um recorte (dado ou construído) no fluxo da cronologia histórica, trata-se de reconhecer a multiplicidade temporal como um traço constitutivo da experiência do presente histórico.

Assumir a distinção ontológica entre passado e presente como um princípio normativo pode eventualmente levar ao encobrimento das implicações políticas das concepções e relações práticas que os sujeitos estabelecem com o tempo. No intuito de desencobrir essa dimensão política do tempo histórico, alguns historiadores como María Inés Mudrovcic (2019MUDROVCIC, María Inés. The politics of time, the politics of history: who are my contemporaries? Rethinking History, Londres, v. 23, n. 4, p. 456-473, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13642529.2019.1677295 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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), Berber Bevernage (2021BEVERNAGE, Berber. ‘A passeidade do passado’: Reflexões sobre a política da historicização e a crise da passeidade historicista. RTH, Goiânia, v. 24, n. 1, p. 21-39, 2021. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufg.br/teoria/article/view/69673 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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), Chris Lorenz (2014LORENZ, Chris. Blurred Lines: History, Memory and the Experience of Time. International Journal for History, Culture and Modernity, Leiden, v. 2, n. 1, p. 43-63, 2014. Disponível em: Disponível em: https://brill.com/view/journals/hcm/2/1/article-p43_3.xml?rskey=2E9jfz&result=1&ebody=article%20details . Acesso em: 29 abr. 2023.
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; Cf. também LORENZ; BEVERNAGE, 2013LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (org.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.), entre outros, têm encontrado na teoria dos atos de fala de John Austin (1990AUSTIN, John. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.) um caminho promissor. Essa teoria se baseia na reflexão sobre um certo uso da linguagem cuja função primordial não é a da representação, mas sim a de realizar ações no mundo prático. Dessa forma, Austin distinguiu dois tipos de proferimento: os constatativos, que descrevem um determinado aspecto da realidade, podendo ser julgados como verdadeiros ou falsos; e os performativos, quer dizer, proferimentos que causam ou fazem acontecer uma certa realidade no mundo social, e que não podem ser avaliados como verdadeiros nem falsos, mas antes como “felizes” ou “infelizes”, de acordo com a sua capacidade de realizar a ação e o efeito intencionados pelo proferimento.

O que esses historiadores têm proposto é aplicar essa diferenciação entre o constatativo e o performativo para problematizar as fronteiras temporais entre presente e passado. Assim, as distinções temporais passam a ser entendidas como “distinções performativas, isto é, elas são o resultado de ações linguísticas realizadas no presente” (MUDROVCIC, 2019MUDROVCIC, María Inés. The politics of time, the politics of history: who are my contemporaries? Rethinking History, Londres, v. 23, n. 4, p. 456-473, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13642529.2019.1677295 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 457). O performativo enfatiza que a separação entre passado e presente é regulada e modulada no interior de um presente por meio dos atos de fala realizados pelo historiador ou pelo ator social em questão, sem descuidar da situação histórica específica em que se dá o proferimento. Tal perspectiva teórica complica de forma decisiva a questão da periodização do tempo presente ou da “contemporaneidade”, no sentido de uma época histórica (seja ela fixada pela última catástrofe, seja ela demarcada por balizas móveis). No que concerne à historiografia do tempo presente, a própria insistência na pergunta de saber “quando começa o tempo presente” sugere que esse marco de início, essa fronteira que separa o período presente das épocas passadas, não é algo simplesmente dado que o historiador pode constatar na realidade do tempo, mas é instituída pelo próprio discurso historiográfico - e, de resto, pelos diferentes discursos que tematizam as temporalidades do mundo da vida. Em vez de conceber o tempo presente como uma “coisa”, isto é, uma forma do tempo definível a partir de um começo dado no tempo cronológico, a ênfase no caráter performativo das fronteiras temporais implica reconhecer a multiplicidade de tempos como constituindo a dimensão básica da experiência temporal (Cf. SALOMON, 2018SALOMON, Marlon. Introdução. In: SALOMON, Marlon (org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Edições Ricochete, 2018. p. 8-38.; TAMM; OLIVIER, 2019TAMM, Marek; OLIVIER, Laurent (org.). Rethinking Historical Time: New Approaches To Presentism. Londres: Bloomsbury Academic, 2019.).

Ao chamar a atenção para a dimensão performativa das distinções temporais, o debate teórico coevo tem indicado uma maior ênfase na carga política envolvida nas distinções dos tempos presentes em relação aos tempos ausentes. Significa assumir que o modo como os sujeitos históricos constroem significados para o presente não envolve apenas reflexão e contemplação, mas também uma forma de intervenção no mundo. Não é sem razão, portanto, que muitos autores encontram no conceito de políticas do tempo uma noção central. O conceito foi definido por Peter Osborne (1995OSBORNE, Peter. The politics of time: Modernity and avant-garde. Londres: Verso, 1995., p. XII) como “uma política que considera as estruturas temporais das práticas sociais como o objeto específico de sua intenção transformadora (ou preservadora)”. Sua função heurística consiste em revelar como certos atos linguísticos são realizados no presente no sentido de (des)construir articulações significativas com os tempos ausentes, produzindo assim efeitos políticos mais ou menos intencionais.

Para María Inés Mudrovcic (2019MUDROVCIC, María Inés. The politics of time, the politics of history: who are my contemporaries? Rethinking History, Londres, v. 23, n. 4, p. 456-473, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13642529.2019.1677295 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 459), “a noção de políticas do tempo nos permite problematizar como nós definimos as fronteiras do nosso presente e criamos formas de alteridade temporal que são alheias à mera simultaneidade cronológica”. Nesse sentido, o ato de delimitar o presente como um tempo separado e distinto do passado e do futuro não se reduz a uma simples constatação ou representação politicamente neutra sobre a temporalidade, mas é um ato performativo que se realiza em um contexto específico e por atores sociais concretos enredados em relações (temporais) de poder. Essa perspectiva teórica problematiza a experiência do presente histórico como se fosse algo simplesmente dado, pronto para ser observado, e não construído no próprio fazer-se da experiência temporal. Ela permite interrogar como as fronteiras temporais são estabelecidas na prática concreta e observar essas práticas em nível empírico. Isso implica “perguntar o que nós estamos realmente fazendo quando nos referimos às fronteiras entre passado, presente e futuro” (BEVERNAGE; LORENZ, 2013BEVERNAGE, Berber; LORENZ, Chris. Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Storia della Storiografia, v. 63, n. 1, p. 31-50, 2013., p. 49, grifos dos autores).

A noção de políticas do tempo permite preencher uma lacuna indicada durante a leitura crítica de Julio Aróstegui, a saber, quem realiza a “decisão social” que estabelece os limites temporais do presente histórico, e quem fica excluído dessa mesma delimitação. O antropólogo Johannes Fabian (2013FABIAN, Johannes. O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece o seu objeto. Tradução de Denise Jardim Duarte. Petrópolis: Vozes, 2013.) cunhou o conceito de alocronismo para nomear certos usos políticos do tempo por meio dos quais o sujeito do discurso estabelece uma barreira temporal que distancia o outro ao alocá-lo simbolicamente para um passado distante, expulsando-o do “nosso tempo”. Fabian alinha o alocronismo com a “negação da coetaneidade” para com o outro, uma atitude que o autor reputa ser estrutural da ciência antropológica em geral. Mais recentemente, porém, Berber Bevernage (2016BEVERNAGE, Berber. Tales of pastness and contemporaneity: On the politics of time in history and anthropology. Rethinking History, Londres, v. 20, n. 3, p. 352-374, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13642529.2016.1192257 . Acesso em: 25 jul. 2023.
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) propôs desassociar alocronismo e negação da coetaneidade, argumentando que o problema não reside em apontar a não-contemporaneidade do “outro”, mas sim em pressupor que essa diferença temporal deva ser pensada em termos normativos e hierárquicos. Somente quando o “nosso presente” é ideologicamente construído como uma norma e um padrão de referência sociocultural é que se pode incorrer em alocronismo, descaracterizando outros modos de ser, agir e pensar como “atrasados”, “pertencentes ao passado”, “anacronismos vivos”6 6 A caracterização do anacronismo como forma política de exclusão foi feita por Jacques Rancière (2011), que situou essa discussão nas interseções entre o campo político e o campo historiográfico. A esse respeito, ver também o artigo de André Fabiano Voigt (2017). , enfim: reminiscências de um tempo que já foi ou deveria ter sido superado.

Usos alocrônicos do tempo permeiam boa parte do discurso historiográfico e político. A obra Os sertões, de Euclides da Cunha, por exemplo, foi construída com base em uma noção coerente e sistemática de distância, na qual a dimensão espacial (dualidade sertão e litoral) possui a sua contrapartida temporal (o sertanejo vivia “atrasado” com relação à população litorânea) (NICOLAZZI, 2010NICOLAZZI, Fernando. À sombra de um mestre: Gilberto Freyre leitor de Euclides da Cunha. História (São Paulo), v. 29, n. 1, p. 254-277, 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/his/a/6DWXjdSNVBwDmHyZPCDBWCP/?lang=pt . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 258). Formas alocrônicas também pervadem o discurso político atual; por exemplo, a postagem feita por Ricardo Salles em 20 de abril de 2021 nos stories de sua página no Instagram na qual o ex-ministro do meio ambiente tentou ridicularizar dois sujeitos indígenas que estavam em uma comissão no Congresso sobre o marco temporal com a frase: “recebemos a visita da tribo do Iphone” (SALLES [...], 2021SALLES ironiza índios por uso de celular em protesto: 'Tribo do iPhone'. Poder360, Brasília, 21 abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/salles-ironiza-indios-por-uso-de-celular-em-protesto-tribo-do-iphone/ . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, n.p.). Está implícita nessa mensagem a intenção (política e preconceituosa) de que os índígenas vivem em um outro tempo, não sendo contemporâneos do tempo das tecnologias digitais, as quais tem no Iphone um dos seus símbolos mais celebrados. Pode-se também pensar em como esses usos alocrônicos do tempo permeiam boa parte das falas dos setores progressistas, que tendem a imaginar os preconceitos sociais como se fossem resquícios de uma mentalidade atrasada e anacrônica que já deveria ter sido superada.7 7 A pregnância desse pré-conceito de tempo histórico foi abordada no último livro de Joan Scott (2020).

O conceito de alocronismo torna mais visível os limites éticos e políticos da produção de fronteiras temporais, na medida em que elas repercutem nas relações com o outro. Tais efeitos éticos e políticos tendem a ser ocultados quando o historiador assume a distinção ontológica entre passado e presente como um dado e, mais ainda, um princípio normativo básico de seu ofício. Problematizar essa distinção e revelar a sua carga política implica, portanto, abrir os horizontes de possibilidade de pesquisa em história do tempo presente, e isso no sentido de experimentar possibilidades de historicização do presente que vão além do paradigma temporal historicista. Trocando em miúdos, ao tematizar de forma explícita a produção sócio-histórica das distinções temporais, torna-se possível compreender como o tempo presente é historicamente construído por meio de práticas sociolinguísticas que não simplesmente constatam o significado do presente, mas constroem performativamente esse significado, produzindo, assim, efeitos de conhecimento e políticos.

A polêmica em torno da recente onda de derrubada das estátuas em diversas cidades ao redor do mundo evidencia como a demarcação de fronteiras entre passado e presente são objeto de disputas políticas acirradas na vida prática e podem, por vezes, se tornar literalmente incendiárias. Uma análise rápida das diferentes posições a respeito dos ataques aos monumentos oferece um excelente caso ilustrativo para pôr em prática - ainda que de maneira preliminar - o modo de historicização do tempo presente que tenho proposto neste artigo.

Fronteiras sob tensão

A polêmica das estátuas é interessante para esta reflexão não tanto por se tratar de episódios recentes, como se a história do tempo presente devesse se limitar exclusivamente aos fenômenos ocorridos no campo de visibilidade temporal comum entre autor e leitor desse discurso, tal como Mateus Pereira (2022PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 26) discute em seu último livro. Afinal, ataques realizados por grupos sociais contra monumentos históricos não vêm de hoje (MENEGUELLO; BENTIVOGLIO, 2022MENEGUELLO, Cristina; BENTIVOGLIO, Júlio (org.). Corpos e pedras: estátuas, monumentalidade e história. Vitória: Milfontes, 2022.). Para Alexandre Avelar (2022AVELAR, Alexandre. Por que a derrubada de estátuas não deveria incomodar os historiadores? Tempo, anacronismo e disputas pelo passado. ArtCultura, Uberlândia, v. 24, n. 44, p. 134-156, 2022. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/66583 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 136), “a novidade dos últimos episódios de derrubada de estátuas se situa em sua difusão imagética global e em sua vinculação a uma nova onda de protestos antirracistas que varreram o mundo desde o assassinato de George Floyd, ocorrido em maio de 2020”.

A razão mais profunda pela qual os episódios de derrubada de estátuas interessam no contexto deste trabalho é o fato de não apenas evidenciarem as disputas políticas sobre o tempo histórico, mas principalmente porque no centro da polêmica está a diferença de concepção sobre o caráter das fronteiras temporais que distinguem o presente do passado. Com efeito, uma das questões que pautaram o debate sobre o significado daquelas ações foi a maneira como se concebe o tempo histórico e, mais precisamente, como os atores sociais constroem performativamente as fronteiras temporais e, assim, estabelecem uma unidade e singularidade do presente com relação ao passado. Essa diferença se reflete e ganha corpo nas posições concorrentes sobre o significado e legitimidade política das ações realizadas contra os monumentos, e também entre as diferentes interpretações sobre o sentido e a base lógica do raciocínio histórico que cada posição considera mais “autêntico”.

Os ataques aos monumentos históricos ocuparam o centro do debate público em diversos países do mundo, inclusive com participação importante da comunidade historiográfica profissional. Mas, como não poderia ser diferente, não houve consenso entre os historiadores sobre a justificação política daquelas ações, tampouco quanto a justificação lógica da concepção de história que as motivaram. Quanto a este último ponto, foi frequente a mobilização do conceito de anacronismo, tanto por parte dos críticos, quanto por parte das vozes mais favoráveis à derrubada das estátuas. Por exemplo, um grupo de cinco historiadores franceses publicou, em junho de 2020, no jornal Le Monde, um texto intitulado O anacronismo é um pecado sobre a inteligência do passado. Condenando a “febre iconoclasta” como uma ameaça a toda a República, os autores argumentam que o “pecado contra a inteligência do passado consiste, com base nas nossas certezas do presente, em aplicar às personagens do passado um juízo retrospectivo tanto mais peremptório quanto mais irresponsável” (JEANNENEY et. al., 2020JEANNENEY, Jean-Noel et al. Déboulonnage des statues: "L’anachronisme est un péché contre l’intelligence du passé". Le Monde, Paris, 24 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/06/24/deboulonnage-des-statues-lanachronisme-est-un-peche-contre-l-intelligence-du-passe_6043963_3232.html . Acesso em 29 abr. 2023.
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). O pecado do anacronismo, segundo o argumento, não é só um erro lógico, mas também ético-político, pois julgar os personagens representados nos monumentos segundo as lentes morais do presente é não só violar o preceito básico da lógica histórica - a distinção qualitativa entre passado e presente -, mas uma “irresponsabilidade” tanto com relação ao passado, quanto ao presente.

Ora, como Zachary Schiffman (2011SCHIFFMAN, Zachary. The Birth of the Past. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2011.) desenvolve em The Birth of the Past, o conceito de anacronismo tem, ele próprio, uma história. Ele apenas se formou a partir do momento em que o passado passou a ser compreendido como um tempo qualitativamente distinto do presente - uma ideia nascida na época do Renascimento e que somente ganhou a sua forma mais plena, adquirindo status de senso comum, a partir da segunda metade do século XVIII. Isso significa que o veto ao anacronismo tem como sua premissa básica a ideia de que existe uma barreira que separa qualitativamente o passado do presente, isto é, o horizonte de referências, valores, normas e conceitos de um tempo é entendido como singular em relação ao outro tempo. É somente quando entendemos que entidades históricas diferentes existem em contextos históricos e temporais singulares que a ideia de anacronismo pode ser formulada conceitualmente. O “anacrônico” nasce justamente quando se percebe que uma coisa está situada ou sendo interpretada fora de seu contexto temporal específico.

Foi também essa caracterização dos manifestantes como movidos por um julgamento anacrônico do passado que perpassou parte importante das reações de historiadores brasileiros à queima da estátua de Borba Gato, ocorrida em 24 de julho de 2021 no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Mary Del Priori, por exemplo, fez algumas intervenções na imprensa expondo sua leitura do episódio a partir do preceito do anacronismo. Em uma entrevista dada logo após o episódio ao programa Fantástico, da TV Globo, a historiadora construiu seu argumento contestando a possibilidade de se avaliar o bandeirantismo segundo a regra moral estabelecida pela noção de direitos humanos, pois essa ideia não existia no contexto vital de Borba Gato. Nas suas palavras, “é completamente anacrônico falar em violações de direitos humanos e genocídio no período colonial. [A sociedade colonial] era uma sociedade movida a violência, a carnificina, a batalhas, e é nesse contexto que nós temos que entender o bandeirantismo” (GLOBO, 2021GLOBO. Levantamento aponta que existem pelo menos 41 esculturas polêmicas em São Paulo. Globoplay, 01 ago. 2021. Disponível em: Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9733621/ . Acesso em: 05 maio 2023.
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, n.p.).

A perspectiva moralizante do passado por parte dos realizadores da queima do monumento de Borba Gato foi também criticada por Marcos Napolitano, em seu comentário sobre o episódio público no Nexo Jornal. Após evidenciar a sua posição como politicamente mais próxima daqueles que reconhecem a legitimidade daquelas ações do que entre os que condenam os atos como sendo vandalismo inconsequente, Napolitano explica as suas ponderações: “A análise crítica do passado deve ir além do mero julgamento moral, embora inevitavelmente passe por este, sob pena de derrapar no anacronismo”. Fazendo coro aos que defendem uma nova política de memória no país que estivesse apoiada em uma historiografia crítica, o historiador entende que “essas premissas não significam que devemos conhecer e analisar a história com a moral do presente” (NAPOLITANO, 2021NAPOLITANO, Marcos. A guerra às estátuas e a política pública de memória. Nexo Jornal, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/A-guerra-às-estátuas-e-a-política-pública-de-memória . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, n.p.).

É preciso registrar que as posições de Del Priore e Napolitano são mais complexas do que o que foi exposto aqui. Tampouco as suas intervenções coincidem em todos os aspectos. Mas não é o caso, neste artigo, de expor em detalhes as suas interpretações, mas sim de indicar a presença (em tonalidades distintas) de uma ideia comum: ambos partem do princípio de que seria um erro (historiográfico e político) não reconhecer a diferença qualitativa do passado com relação ao presente - a base da representação do tempo histórico que sustenta o conceito de anacronismo. A perspectivação historiográfica do passado estaria assentada, em última instância, no postulado da separação qualitativa entre passado e presente.

Mas, como tenho defendido ao longo deste artigo, esse postulado não pode ser assumido como um dado inquestionado ou como norma inquebrantável. A fronteira que limita esses tempos não está sempre lá, pronta para ser contemplada. Ela é performativamente instituída, atestada e/ou contestada por atores sociais enredados em relações de poder. De mais a mais, o conceito de anacronismo tem sido objeto de novas interpretações e há muito deixou de figurar como um tabu absoluto para a interpretação histórica, notadamente após o conhecido “elogio” de Nicole Loraux (1992LORAUX, Nicole. Elogio do anacronismo. In: NOVAIS, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 57-70.) e, mais ainda, a crítica radical de Jacques Rancière, que enxergou no veto ao anacronismo um esforço dos historiadores para congelar o tempo, impondo aos sujeitos históricos limites para as suas ações e pensamentos com base em uma noção reificada de “época”. Tal concepção de tempo acaba por ocultar que a historicidade da existência se dá em uma “multiplicidade de linhas de temporalidade presentes em ‘um’ tempo” (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História, Verdade e Tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49., p. 47).

À luz dessas e outras discussões, muitos historiadores problematizaram a noção de anacronismo como forma adequada para caracterizar os ataques aos monumentos. Em um artigo escrito para o jornal O Globo, Paulo Pachá e Thiago Krause argumentaram que a acusação de anacronismo estaria equivocada por duas razões fundamentais: ela esquece que a monumentalização de Borba Gato diz mais respeito aos projetos políticos das elites paulistas de meados do século XX, e quase nada sobre a sociedade colonial de fins do século XVII. E também porque “o espantalho do anacronismo frequentemente não passa de uma adoção irrefletida da perspectiva dominante que perpetua a negação da alteridade. Por que o espaço público deve continuar a ser dominado por figuras da elite branca numa sociedade majoritariamente negra e pobre?” (PACHÁ; KRAUSE, 2020PACHÁ, Paulo; KRAUSE, Thiago. Derrubando estátuas, fazendo história. Época, Rio de Janeiro, 19 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/cultura/artigo-derrubando-estatuas-fazendo-historia-24487372 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, n.p.).

Valdei Araujo, em um prefácio à coletânea Estátuas e Pedras, organizada por Cristina Meneguello e Julio Bentivoglio, entende que, diante dos críticos que veem na derrubada das estátuas realizadas pelos movimentos antirracistas um tipo de anacronismo, seria preciso lembrar que “o racismo não é algo (ultra)passado, ele ainda vigora enquanto um passado-presente e tem consequências significativas nas nossas vidas” (ARAUJO, 2022ARAUJO, Valdei. Atualizar monumentos e (des)ativar histórias. In: MENEGUELLO, Cristina; BENTIVOGLIO, Júlio (org.). Corpos e pedras: estátuas, monumentalidade e história. Vitória: Milfontes, 2022. p. 7-16., p. 11). A adequação da acusação de anacronismo é problematizada por Araujo ao justamente tensionar as fronteiras entre passado e presente, que, no caso em questão, se mostra muito mais fluida e borrada. Quando se trata do racismo, o “passado” habita o presente, não sendo possível demarcar claramente que ele é (ou deve ser) do passado, mas não é (ou deveria ser) do presente. Portanto, os atos contra os monumentos passam a ser entendidos como manifestações expressivas e simbólicas que desafiam o padrão de representação do tempo dominante na historiografia disciplinar.

Nessa mesma linha de raciocínio, Alexandre Avelar levanta a seguinte questão: “As distinções e demarcações entre passado, presente e futuro são elas mesmas atos que fazem apenas observar uma ordem natural, cronológica, e que define o que pode ser considerado ou não contemporâneo a partir de uma lógica de simples pertencimento temporal?” (AVELAR, 2022AVELAR, Alexandre. Por que a derrubada de estátuas não deveria incomodar os historiadores? Tempo, anacronismo e disputas pelo passado. ArtCultura, Uberlândia, v. 24, n. 44, p. 134-156, 2022. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/66583 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 147). A resposta de Avelar, com a qual assumo de bom grado a minha concordância, é negativa, pois tal ato não se resume a uma constatação ou pura representação, mas é também uma forma de intervenção no tempo e com o tempo. Esse ato possui um caráter performativo, como Avelar faz questão de enfatizar. A alteridade do presente para com o passado não está simplesmente dada, mas é resultado de relações políticas com o tempo. Assim, em vez de condenar os atos contra as estátuas como “anacrônicos”, o autor indica que “as controversas e disputas envolvendo os destinos de incômodas estátuas demonstram que o presente é habitado por diversas temporalidades, numa policronia em que a definição de fronteiras entre o passado e o presente é mais um exercício de uma política do tempo do que uma ordem natural” (AVELAR, 2022AVELAR, Alexandre. Por que a derrubada de estátuas não deveria incomodar os historiadores? Tempo, anacronismo e disputas pelo passado. ArtCultura, Uberlândia, v. 24, n. 44, p. 134-156, 2022. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/66583 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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, p. 155). Destaque-se o emprego da noção de políticas do tempo, indicando que o estabelecimento das fronteiras temporais não resulta de uma mera constatação do tempo objetivo, tampouco se reduz a uma questão de representação temporal, mas se estabelece pela força performativa dos “atos de fala” sobre o tempo e a historicidade.

Esse breve resumo dos debates historiográficos sobre a natureza e a função política das fronteiras temporais não pretende ser exaustivo. Minha intenção é, antes, evidenciar como a distinção qualitativa entre passado e presente pode ser deslocada pelo historiador do tempo presente, subtraindo o seu sentido normativo para, então, constituir-se como o próprio tema da investigação histórica. Tal deslocamento permite estudar os processos de produção, atestação e contestação do tempo presente nas suas relações (ora de proximidade, ora de distância) com os tempos ausentes. Nesse sentido, Victoria Fareld argumentou que contestar a existência de uma fronteira dada entre passado e presente, tanto por parte dos historiadores quanto dos agentes responsáveis pelos ataques aos monumentos, “pode gerar uma consciência crítica do tempo que joga luz para como os historiadores performam passado e presente como figuras temporais constitutivas do pensamento histórico” (FARELD, 2019FARELD, Victoria. Coming to Terms with the Present: Exploring the Chrononormativity of Historical Time. In: TAMM, Marek; OLIVIER, Laurent (org.). Rethinking Historical Time: New Approaches to Presentism. Londres: Bloomsbury Academic, 2019. p. 57-70., p. 57). Acentuar o caráter performativo das distinções temporais revela, assim, uma maneira específica de historicizar a experiência do presente, possibilitando produzir, a partir dos instrumentos metodológicos desenvolvidos pela história do tempo presente, análises críticas e interpretações densas, empiricamente embasadas e teoricamente consequentes das práticas sociais de construção de sentidos do presente histórico.

Considerações finais

As diferentes posições assumidas pelos historiadores citados na seção anterior demonstram que não há consenso sobre qual seria a perspectiva historiográfica mais adequada para interpretar os ataques aos monumentos. Deve o historiador atuar como um “patrulheiro de fronteira”, para tomar de empréstimo a metáfora de Joan Scott (1998SCOTT, Joan. Border Patrol. French Historical Studies, Durham, v. XXI, n. 3, p. 383-397, 1998. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/286938 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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)?8 8 Essa metáfora foi lembrada e apropriada por Bevernage e Lorenz (2013). Para Gabrielle Spiegel (2002SPIEGEL, Gabrielle. Memory and History: Liturgical Time and Historical Time. History and Theory, Middletown, v. 41, n. 2, p. 149-162, 2002. Disponível em: Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/0018-2656.00196 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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), a singularidade da história em relação aos discursos da memória reside em última instância na ideia de que o passado passa e se distancia do presente em função da própria passagem do tempo. Argumento semelhante foi utilizado por Henry Rousso ao expor os motivos que o levaram a recusar a participação no tribunal de Maurice Papon: segundo ele, o discurso histórico se coloca em uma tensão com o discurso judiciário porque, entre outas questões, o historiador deve “situar o passado à distância [do presente]”, e sua abordagem deve ampliar “a compreensão da distância que separa” esses tempos (ROUSSO, 2002ROUSSO, Henry. The Haunting Past: History, Memory and Justice in Contemporary France. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 2002., p. 8; ver também BEVERNAGE; LORENZ, 2013BEVERNAGE, Berber; LORENZ, Chris. Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Storia della Storiografia, v. 63, n. 1, p. 31-50, 2013., p. 42).

O argumento apresentado neste artigo não visa negar in toto a validade dessa forma de pensar a história do tempo presente, mas sim de indicar que ela não é uma norma absoluta, sem a qual o conhecimento histórico perderia sua razão de ser. O limite que separa o passado e presente é, como diz Koselleck na citação que abriu este artigo, realmente difícil de traçar. Mas essa dificuldade não se resume a uma questão de miopia teórica, como se o problema fosse a visão turva do historiador, incapaz de ver algo que já está lá, dado, à espera de ser descoberto. Conforme argumentei neste artigo, a dificuldade reside no fato de que nem os sujeitos históricos nem os historiadores profissionais estão de acordo com a definição dessas fronteiras. Elas são performativamente instituídas, contestadas, atestadas e negociadas em cada situação sócio-histórica singular e concreta. A experiência do tempo é radicalmente heterocrônica (SALOMON, 2018SALOMON, Marlon. Introdução. In: SALOMON, Marlon (org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Edições Ricochete, 2018. p. 8-38.). Seja qual for o começo ou marco de início que atribuímos ao “tempo presente”, este último permanecerá um conceito relacional, não sendo concebível fora ou independente da relação com os tempos ausentes, que, não obstante, coabitam e dinamizam o presente (LANDWEHR; WINNERLING, 2019LANDWEHR, Achim; WINNERLING, Tobias. Chronisms: on the past and future of the relation of times. Rethinking History, Londres, v. 23, n. 4, p. 435-455, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13642529.2019.1677294 . Acesso em: 29 abr. 2023.
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).

Ao refletir sobre a pergunta “quando começa o presente?”, Peter Osborne (2013OSBORNE, Peter. Global Modernity and the Contemporary: Two Categories of the Philosophy of Historical Time. In: LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (org.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013. p. 69-84., p. 82) afirma que a questão “possui respostas muito diferentes, dependendo de onde você está pensando, geopoliticamente, e isso depende de como se responde à questão ‘Onde é o agora?”9 9 A questão “onde é o agora” dá título ao ensaio de Chakrabarty (2004). . O aspecto político da questão sobre o marco inicial do tempo presente se revela de forma mais aguda quando se compreende o caráter performativo das distinções temporais. É o observador que, em cada situação específica, institui o corte temporal para demarcar o começo do presente. E esse observador pode ser tanto um historiador, como os atores sociais em suas relações pragmáticas com a temporalidade. Trata-se, portanto, de operar um deslocamento na questão: não “onde ou quando começa o presente”, mas sim quais práticas sociais e quais políticas do tempo instituem o presente historicamente, performativamente e politicamente.

A história do tempo presente pode se dedicar a mapear e analisar as disputas políticas de sentido sobre o presente histórico. O ponto de partida é reconhecer que o tempo presente é policrônico, relacional, abrigando numerosas historicidades. Em vez de assumir a fronteira entre passado e presente como um princípio normativo básico de toda interpretação histórica, a história do tempo presente pode tematizar as fronteiras temporais como objeto de investigação, produzindo estudos sobre como os atores sociais estabelecem significados para o seu presente na relação com outros sujeitos e outros tempos (passados e futuros). No lugar de um presente histórico, definido como uma unidade homogênea demarcada por um começo/marco de início, trata-se aqui de assumir a policronia constitutiva da experiência temporal e a não-contemporaneidade do presente a si mesmo, de modo a revelar a densidade de suas historicidades plurais e dissonantes.

Agradecimentos

A escrita deste artigo contou com a colaboração e incentivo de muitas pessoas, como Luiza Campos Antunes, Rogério Rosa Rodrigues, Rodrigo Bonaldo e todas(os) as colegas que participam do “Fórum Teorias do Tempo Presente” na FAED/UDESC. Estendo o agradecimento aos(às) pareceristas ad hoc e, também, à equipe editorial da Revista História (São Paulo).

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    » https://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/74086

Notas

  • 1
    A tradução brasileira de Estratos do tempo preferiu usar “História Contemporânea” para traduzir a expressão Zeitgeschichte. Ressalte-se, no entanto, que o tradutor registrou em nota de rodapé que o termo alemão faz referência mais precisamente a “história do tempo presente”. Contudo, acrescenta o tradutor na mesma nota, ele considerou “história do tempo presente” e “história contemporânea” como expressões sinônimas. Escolhi reverter Zeitgeschichte por História do Tempo Presente, diferenciando-a da história contemporânea [neueste Geschichte], uma vez que essa diferença é relevante para a definição da área de pesquisa que este artigo discute.
  • 2
    O paradigma da multiplicidade temporal tem ganhado cada vez mais espaço na agenda dos debates da Teoria da História Contemporânea. Para uma exposição geral das discussões sobre o tema, Vf. CARDOSO JR., 2021CARDOSO JR, Hélio Rebello. The Analytical Metaphysics of Time and the Recent Theory of History: Overtones of the Debate about Presentism. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 14, n. 35, p. 145-169, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1739 . Acesso em: 29 abr. 2023.
    https://www.historiadahistoriografia.com...
    .
  • 3
    Não ignoro as diversas significações que o termo “historicismo” pode assumir. No contexto deste artigo, subscrevo a definição mais estrita do termo, expressa por Estevão de Rezende Martins (2008MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo. O útil e o desagradável. In: VARELLA, Flávia; MOLLO, Helena; MATA, Sérgio; ARAUJO, Valdei (org.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. p. 15-48., p. 15): “Por historicismo entende-se a época da historiografia alemã ao longo de todo o século XIX, de metodização e de formatação científica do conhecimento histórico”.
  • 4
    Para uma reflexão crítica da periodização como base epistemológica da pesquisa historiográfica, Cf., entre outros, Davis (2008DAVIS, Kathleen. Periodization and Sovereignty: How Ideas of Feudalism and Secularization Govern the Politics of Time. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2008.), Jordheim (2012JORDHEIM, Helge. Against Periodization: Koselleck’s Theory of Multiple Temporalities. History and Theory, Middletown, v. 51, n. 2, p. 151-171, 2012. Disponível em: Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-2303.2012.00619.x . Acesso em: 29 abr. 2023.
    https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1...
    ), Le Goff (2015LE GOFF, Jacques. A história deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Editora UNESP, 2015.), Mudrocvic (2019MUDROVCIC, María Inés. The politics of time, the politics of history: who are my contemporaries? Rethinking History, Londres, v. 23, n. 4, p. 456-473, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13642529.2019.1677295 . Acesso em: 29 abr. 2023.
    https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
    ).
  • 5
    A ideia de não contemporaneidade do presente a si mesmo remete à concepção ekstática da temporalidade exposta na analítica existencial do Dasein formulada por Heidegger em Ser e Tempo (HEIDEGGER, 2012HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 10. ed. Tradução revisada e apresentação de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, Bragança Paulista: Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2012 [1927]. [1927]; ver também LEITE, 2018LEITE, Augusto B. de Carvalho Dias. A estrutura ontológica do tempo presente. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 43-63, 2018. Disponível em: Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180310242018043 . Acesso em: 29 abr. 2023.
    https://revistas.udesc.br/index.php/temp...
    ). Jacques Derrida retomou e deu nova formulação a essa concepção em sua crítica da metafísica da presença (Cf., por exemplo, Derrida, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.). Essa formulação derridiana inspirou historiadores a desenvolveram as implicações historiográficas do conceito de não contemporaneidade do presente, por exemplo, Dipesh Chakrabarty (1998CHAKRABARTY, Dipesh. Minority histories, subaltern pasts. Postcolonial Studies, v. 1, n. 1, p. 15-29, 1998. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13688799890219. Acesso em: 29 abr. 2023.
    https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
    ), Berber Bevernage (2018BEVERNAGE, Berber. Tales of pastness and contemporaneity: On the politics of time in history and anthropology. Rethinking History, Londres, v. 20, n. 3, p. 352-374, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13642529.2016.1192257 . Acesso em: 25 jul. 2023.
    http://www.tandfonline.com/doi/full/10.1...
    e 2021BEVERNAGE, Berber. ‘A passeidade do passado’: Reflexões sobre a política da historicização e a crise da passeidade historicista. RTH, Goiânia, v. 24, n. 1, p. 21-39, 2021. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufg.br/teoria/article/view/69673 . Acesso em: 29 abr. 2023.
    https://revistas.ufg.br/teoria/article/v...
    ), entre outros.
  • 6
    A caracterização do anacronismo como forma política de exclusão foi feita por Jacques Rancière (2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História, Verdade e Tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49.), que situou essa discussão nas interseções entre o campo político e o campo historiográfico. A esse respeito, ver também o artigo de André Fabiano Voigt (2017VOIGT, André Fabiano. Qual a importância de uma época? Anacronismo e história. Anos 90, Porto Alegre, v. 24, n. 46, p. 23-44, 2017. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/74086 . Acesso em: 26 ago. 2023.
    https://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/a...
    ).
  • 7
    A pregnância desse pré-conceito de tempo histórico foi abordada no último livro de Joan Scott (2020SCOTT, Joan. On the Judgment of History. Nova York: Columbia University Press, 2020.).
  • 8
    Essa metáfora foi lembrada e apropriada por Bevernage e Lorenz (2013LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (org.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.).
  • 9
    A questão “onde é o agora” dá título ao ensaio de Chakrabarty (2004CHAKRABARTY, Dipesh. Where is the Now? Critical Inquiry, v. 20, n. 2, p. 458-462, 2004.).

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    25 Ago 2023
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