Resumo
Atualmente discursos sobre temas como “marxismo cultural” e “globalismo” colocaram a questão das teorias da conspiração na ordem do dia. Os evidentes impactos políticos das teorias da conspiração na atualidade trazem à tona a necessidade de que elas sejam estudadas a sério. O objetivo deste artigo é analisar o funcionamento de uma teoria da conspiração num contexto político específico, o da Guerra Fria e da Ditadura Militar no Brasil nos anos 1970. Nesta análise, busca-se compreender as estratégias narrativas e retóricas que deram à teoria da conspiração do livro Os subversivos, de Bernard Hutton, um certo poder de convencimento. Sobretudo, o uso do discurso factual, o apelo a supostos documentos secretos e o recurso a uma linguagem melodramática. Procura-se, ainda, entender como um discurso como o aqui analisado teve efeitos na realidade, seja em termos práticos quanto à lógica repressiva da Ditadura, seja quanto à orientação de agentes e funcionários dos serviços de inteligência, a quem o livro de Hutton foi indicado como uma espécie de livro didático.
Palavras-chave:
Ditadura Militar; Guerra Fria; teoria da conspiração
Abstract
Currently, speeches on topics such as “cultural Marxism” and “globalism” have put the issue of conspiracy theories on the agenda. The evident political impacts of conspiracy theories today bring to light the need for them to be studied seriously. With this situation in mind, the objective of this article is to analyze the functioning of a conspiracy theory in a specific political context, that of the Cold War and the Military Dictatorship in Brazil in the 1970s. In this analysis, we seek to understand the narrative and rhetorical strategies that gave the conspiracy theory in Bernard Hutton’s The subversives a certain convincing power. Above all, the use of factual discourse, the appeal to supposed secret documents, and the use of melodramatic language. We also seek to understand how a discourse such as the one analyzed here had effects in reality, whether in practical terms regarding the repressive logic of the dictatorship, or regarding the orientation of agents and employees of the intelligence services, to whom Hutton’s book was indicated as a kind of textbook.
Keywords:
Military Dictatorship; Cold War; conspiracy theory
Quais são os limites para a mentira organizada na política contemporânea e até onde pode chegar a credulidade ou o cinismo de agentes dotados de poderes sobre as vidas e a morte das populações? Perplexidade imersa numa atmosfera de conspirações, irrealidade e mesmo um certo ar fantasmagórico no mundo da Guerra Fria.
Em 1973, dezenas de estudantes da Universidade de Brasília foram detidos e presos; desses, muitos foram torturados - depois, partiram para o exílio (Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, 2015COMISSÃO ANÍSIO TEIXEIRA DE MEMÓRIA E VERDADE. Relatório final. Brasília: Universidade de Brasilia, 2015. Disponível em: https://www.comissaoverdade.unb.br/images/docs/Relatorio_Comissao_da_Verdade.pdf . Acesso em: 13 jun. 2022.
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, p. 162-166). Isso porque, como se pode constatar em relatório do Exército posterior à operação, oficiais da Ditadura Militar construíram a teoria de que havia uma rede de repúblicas estudantis em Brasília que funcionavam como instrumentos de subversão, usando como armas, sobretudo, as artes, a fotografia, o consumo de drogas e a vida sexual “desregrada”. Essa teoria se tornou uma hipótese da chamada “comunidade de informações” - o seu teste de realidade, tal como um cientista que realiza experimentos num laboratório para verificar uma hipótese, passava pelos interrogatórios e torturas dos suspeitos. Acreditava-se que a maconha era a famosa “porta de entrada”, mas não para outras drogas, e sim para a Guerrilha do Araguaia (Lima, 2017LIMA, Alexandre Siqueira. Primavera nos dentes. Desbunde, anticomunismo e repressão na cidade em quadrinhos (1972-1973). 2017. 197 f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2017.).1
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O relatório consta em: Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 ROS 033.
Pois bem, pouco tempo antes dessa operação de 1973, uma série de documentos guardados pela assessoria do Serviço Nacional de Informações na UnB (ASI/UnB) alertava para o “fato” de que, após a derrota das organizações de luta armada, a esquerda “fantoche” do Movimento Comunista Internacional vinha adotando uma nova estratégia, a subversão, uma espécie de guerra psicológica voltada para o abalo dos fundamentos morais, políticos e econômicos da sociedade, tendo em vista sua posterior destruição final (Ishaq; Franco; Sousa, 2012ISHAQ, Vivian; FRANCO, Pablo; SOUSA, Teresa E. de. A escrita da repressão e da subversão, 1964-1985. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012., p. 279). Esses alertas também faziam parte das apostilas que o diretor da ASI/UnB, o advogado Joselito Eduardo Sampaio, vinha estudando num curso de formação pela escola do SNI (ESNI). As apostilas versavam sobre temas previsíveis, como o comunismo internacional, “como eles agem”, etc. (Fico, 2001FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar, espionagem e polícia política. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2001.). Mas o texto de orientação específica para análise do movimento estudantil, em particular sobre as tais novas estratégias de subversão, trazia também uma indicação de leitura (na verdade, o documento era basicamente um resumo dessa leitura indicada), o livro Os subversivos, de J. Bernard Hutton (1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972.).
O tema deste artigo é o livro de Hutton. Porém, pensado a partir dessa história específica da informação sobre “infiltração subversiva” na Universidade de Brasília em 1973. É importante destacar esse ponto de partida porque ele marca as possibilidades e limites desse trabalho. Não se partiu de um estudo sobre a editora responsável pelo livro, a ArteNova, e nem mesmo do livro de Hutton por si mesmo. Trata-se aqui de um livro situado num contexto pragmático, um trabalho “de inteligência” vinculado a uma ação - ação, esta, parte de uma mobilização de guerra ora chamada de contrarrevolucionária (Martins Filho, 2009MARTINS FILHO, João Roberto. Tortura e ideologia, os militares brasileiros e a doutrina da guerre révolutionnaire (1959-1974). In: SANTOS, Cecília; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida. Desarquivando a ditadura. Memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. p. 179-203.), ora de contrainsurrecional (Gill, 2004GILL, Lesley. The school of the Americas. Military training and political violence in the Americas. Duke: Duke University Press, 2004.) pelos agentes da Ditadura. Ou, para ser mais preciso, trata-se do livro de Hutton como instrumento de guerra. Evidentemente, a partir dessa questão inicial, tornou-se necessário procurar entender quem era Hutton e quais eram as relações da editora e do autor com a Ditadura Militar e a Guerra Fria.
Este artigo está organizado da seguinte forma: uma breve apresentação do que foi possível levantar sobre o livro e a editora, seguido de algumas perguntas derivadas da perplexidade com a qual começamos, quais estratégias o livro mobiliza para convencer o leitor de sua “verdade” (uso de documentos, teorias explicativas e estética melodramática) e qual o significado do uso desse livro no contexto mais específico da “comunidade de informações”, sempre tendo em vista a atmosfera algo alucinada da Guerra Fria.
Sugeri a leitura desse livro de Hutton a alguns de meus orientandos que trabalham com a temática da Ditadura Militar. Curiosamente, em momentos diversos, todos me perguntaram a mesma coisa: será que alguém realmente acreditava no conteúdo dessa obra? Porque seu conteúdo é, por assim dizer, no mínimo fantástico. Ela trata de uma rede internacional de subversão que está em praticamente todos os lugares, sendo responsável direta pelos eventos mais disparatados, tensões raciais nos Estados Unidos, o “poder negro”; greves de todo tipo; crise econômica e inflação; manifestações estudantis; manifestações contra Guerra do Vietnã; consumo de drogas; atentados terroristas, do IRA, de palestinos e outros; guerras; genocídios como o do Paquistão; hippies e beatniks; assaltos e assassinatos erradamente considerados crimes comuns, mas também os assassinatos de Martin Luther King e Che Guevara; sedução de soldados alemães por espiãs (o livro tem uma ampla gama de casos e anedotas envolvendo sedução, erotismo e espionagem), etc. Não que esse conteúdo seja exclusividade do livro de Hutton, ele é corriqueiro em toda a literatura anticomunista do período (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Laura de. Guerra Fria e política editorial. A trajetória da Edições GRD e a campanha anticomunista dos Estados Unidos no Brasil (1956-1968). Maringá: Editora da UEM, 2015.). Trata-se de uma versão extrema, exagerada, de um gênero literário e não de um livro excepcional. Apenas, o “exagero” pode ter um sentido além do anedótico, considerando o uso desse livro como material didático pelo SNI.
A questão aqui não é reduzir nossa incredulidade perante o conteúdo desse livro. A perplexidade é real, ou o que resta de real é a perplexidade. Geralmente, espera-se que um bom trabalho de história nos deixe com a sensação de que, pelo menos, pisamos num território conhecido, familiar. Contudo, mesmo correndo alguns riscos, não se pretende aqui substituir a incredulidade por uma certeza qualquer, pretende-se, sim, dar densidade a esse estado incrédulo.
Para que não restem dúvidas, o livro de Hutton é uma fraude, uma mentira, e isso é evidente em sua própria tessitura (documentos secretos que caem milagrosamente nas mãos do autor, mais ainda, documentos em que os autores, os comunistas, fazem questão de declarar em alto e bom som o quanto são maus, que o que desejam é apenas destruir o Ocidente, dando instruções secretas completamente desnecessárias aos seus “agentes subversivos”, sempre com o mesmo teor, “é preciso continuar a agitação”, “atirem tijolos nos policiais”, “usem crianças e mulheres”, com o indefectível “memorize” - não havendo nada a ser memorizado - e “queime depois de ler”). O aspecto da produção da fraude pode vir a ser desvendado com pesquisas. Já a credulidade é impossível de ser medida. Até porque, afinal de contas, o que é acreditar em alguma coisa? Para um oficial de informações, inclusive, a questão talvez não fosse tanto de acreditar ou não, e sim de agir segundo a hipótese de que uma trama desse nível era possível. E então, manter-se em estado de alerta diante do perigo. Por via das dúvidas, o pior cenário possível era que a trama mundial dos subversivos clandestinos realmente existisse e você, um oficial do SNI, tivesse deixado passar por uma atitude cética. Daí que esse tipo de literatura tenha produzido efeitos na história. Ou seja, é uma ação política.
A última questão em torno da perplexidade que move este texto é a de pensar em que medida um instrumento pode ser usado sem modificar aquele que o usa. O instrumento no caso seria a “mentira organizada” como arma de dominação (Arendt, 2009ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 282-326.). Segundo Hannah Arendt (2009ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 282-326.), a verdade factual, mundana (não a verdade teórica ou filosófica), compartilha da fragilidade de tudo que é humano. Os fatos são produtos humanos e sua duração no mundo depende da permanência de vestígios e testemunhos. Não que a “mentira organizada” que ela detectou nas experiências totalitárias e no pós-guerra (como no caso dos documentos do Pentágono e a guerra do Vietnã) consiga criar sozinha uma nova realidade - ou, dizendo de outro modo, fazer com que a mentira se torne realidade. Isso porque a verdade, mesmo a frágil verdade factual, é aquilo que não pode ser modificado pela ação. O que a mentira organizada cria é uma sensação de irrealidade, um cinismo generalizado. Hannah Arendt (2009ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 282-326.) aponta para uma conclusão ainda mais aterradora, a mentira usada como instrumento de dominação acaba atingindo aqueles que a instrumentalizam. O mentiroso sistemático precisa agir como se suas mentiras fossem verdades, porque a aura de veracidade é essencial para persuadir os outros. E ele pode mesmo convencer a si mesmo de que suas mentiras são verdades. Pensando no caso do livro de Hutton, surgem, assim, outras hipóteses, o autor pode ter sido um fraudador consciente, alguém que deliberadamente forjou os documentos citados no seu livro (fez isso sozinho ou com algum apoio)? O livro foi escrito e depois apresentado aos serviços de informação por alguém ou foi encomendado?
Hannah Arendt (2009ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 282-326.) observa que, nesse assunto de mentira organizada, estamos num nível muito baixo da política. Ela não pretendia nos convencer de que a política se reduz às estratégias do engodo. E observa também que sua discussão sobre as fraquezas da verdade factual se refere a verdades muito brutas, como, por exemplo, a de que a Alemanha invadiu a Polônia, e não o contrário. Não se trata aqui de uma discussão teórica sobre acontecimentos, fatos e interpretações num trabalho de história. Não estamos diante de erros, ilusões, nem muito menos da intrincada relação entre narrativa e produção de sentidos a partir da matéria bruta, e anterior a toda linguagem, do real.
Sobre o tópico das teorias da conspiração, há uma vasta e crescente bibliografia. Dessa literatura, retiro algumas diretrizes metodológicas que informam a escrita deste artigo. Uma frente de discussões se refere à questão da racionalidade, mais especificamente sobre porque as pessoas acreditam em teorias conspiratórias. Uma análise psicológica escapa à minha competência, mas retiro desse debate uma advertência fundamental, não tratar o fenômeno da crença em teorias conspiratórias como efeito de uma patologia, algum tipo de psicose coletiva (Douglas; Sutton; Cichoka, 2017DOUGLAS, Karen; SUTTON, Robbie; CICHOCKA, Aleksandra. The psychology of conspiracy theories. Current Directions in Psychological Science, v. 26, n. 6, p. 538-542, 2017. ). Atribuir a crença em teorias conspiratórias à estupidez ou à loucura é tentador, embora enganoso, na medida em que não dá conta de seu sentido político. Aliás, essa discussão também tem lugar em debates já clássicos da metodologia da história - penso aqui, por exemplo, em Quentin Skinner, que propõe um programa mínimo para a análise da racionalidade dos atores históricos, a tese de que uma crença seja consistente com os pressupostos que informam uma leitura do mundo, sem recorrer a uma ideia metafísica da Razão Universal (Skinner, 2002SKINNER, Quentin. Interpretation, rationality, and truth. In: SKINNER, Quentin. Visions of politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 27-56. , p. 27-56). Ideia de razão que conflui para uma imagem da modernidade como marcha vitoriosa da ciência, o que torna os aspectos míticos que associamos às teorias conspiratórias impensáveis, impedindo-se, assim, paradoxalmente, uma análise racional das mesmas (Nicolas, 2017NICOLAS, Loïc. As teorias da conspiração como espelho do século: entre a retórica, a sociologia e a história das ideias. Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, v. 12, n. 1, p. 255-279, jul./dez. 2017. ).
Outra frente de discussões é sobre as teorias conspiratórias como parte de uma tradição política, em particular a extrema-direita. Isso, começando pela Revolução Francesa (Castro, 2015CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Conspiracionismo e contrarrevolução, da Revolução Francesa à Guerra Fria. In: Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História, 27 a 31 de julho de 2015. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548945017_ddf48a32bd67bdcc459e6e6edd5e1c83.pdf . Acesso em: 11 nov. 2022.
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) e chegando até o século XXI, com os fenômenos que vêm sendo classificados como novo fascismo, populismo, etc. Esses fenômenos políticos atuais remetem à persistência de uma cultura política de extrema direita, com novas características, mas com vínculos a uma determinada tradição. Como o caso da proeminência das teorias conspiratórias. Importante aqui é observar que as teorias da conspiração são, antes de tudo, uma linguagem política. Nessa linguagem, a mentira organizada tem um papel central, ela organiza a realidade segundo um esquema explicativo rígido, oferecendo uma espécie de saída para a instabilidade política da modernidade, sobretudo com os fenômenos revolucionários que a caracterizam. Haveria mesmo uma teoria política dos fascismos sobre a mentira, a mentira como instrumento de realização de uma verdade superior, a verdade do próprio movimento e de seu líder (Finchelstein, 2020FINCHELSTEIN, Frederico. Uma breve história das mentiras fascistas. Tradução de Mauro Pinheiro. São Paulo: Vestígio , 2020. ). Essa discussão alcança o Brasil recente, sobretudo em torno da figura de Jair Bolsonaro (Meneses, 2020MENESES, Sônia. Bolsonarismo, um problema ‘de verdade’ para a história. In: KLEM, Bruna Stutz; ARAÚJO, Valdei; PEREIRA, Mateus (org.). Do fake ao fato. (Des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020. p. 43-56. ). Passando, ainda, pela longa história do anticomunismo no século XX (Motta, 2002MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho. O anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva , 2002. ). A defesa da hierarquia e da ordem, marca da extrema-direita, é, assim, bem afinada com a função das teorias conspiratórias, justamente a de oferecer a um mundo instável a imagem de uma ordem bem definida e transparente.
Ainda nesse aspecto de linguagem política, há trabalhos importantes que dialogam mais teoricamente com conceitos como os de mito e imaginário - entendendo-se o imaginário como um conjunto de representações e valores que ordenam, simbolicamente, o mundo (Taguieff, 2006TAGUIEFF, Pierre-André. L’ imaginaire du complot mondial. Aspects d’un mythe moderne. Paris: Mille et une nuits, 2006.). Em Girardet (1987GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.), imaginário que revela que a política não é apenas um jogo de interesses racionais, mas envolve projeções, desejos, fantasias e afetos. A ideia de mito, importante reter, remete ao conceito de trama narrativa, enredo. Seguindo mais de perto a proposta de Byford (2011BYFORD, Jovan. Conspiracy Theories. A critical introduction. London: Palgrave Macmillan, 2011.), aqui a teoria da conspiração é pensada como uma forma narrativa que oferece esquemas explicativos simplificados sobre o mundo. Isso pode explicar, ao menos em parte, o seu poder de atração, num mundo em que tudo que é sólido desmancha no ar, para usar a célebre frase de Karl Marx. A teoria da conspiração oferece àqueles que aderem a ela uma explicação simples para todos os acontecimentos que podem pôr em crise o seu mundo (Byford, 2011BYFORD, Jovan. Conspiracy Theories. A critical introduction. London: Palgrave Macmillan, 2011.). É nessa mesma linha que Trouillot observa que, quando da Revolução Haitiana, proliferaram teorias conspiratórias - elas eram uma forma de denegar o impensável, o que seja, que escravizados fossem sujeitos políticos (Trouillot, 2016TROUILLOT, Michel-Ralph. Silenciando o passado. O poder e a produção da história. Tradução de Sebastião Nascimento. Curitiba: Huya, 2016., p. 154-156). Ou, ainda, que Hugo Pérez Hernáiz discute como as teorias conspiratórias visaram a encontrar uma espécie de racionalidade diante do acontecimento brutal dos atentados às Torres Gêmeas (Perez Hernáiz, 2021PÉREZ HERNÁIZ, Hugo. As teorias da conspiração e o problema do mal: “o 11 de setembro de 2001”. Locus: Revista de História, v. 27, n. 2, p. 44-73, 2021.). E é nesse sentido que uma teoria da conspiração é uma “teoria”, um conjunto de teses sobre o funcionamento do mundo (no caso, a ideia central de que todos os acontecimentos derivam de ações deliberadas de um pequeno grupo que age em segredo).
Por fim, existe uma linha de trabalhos que procura desvendar, empiricamente, a história da produção das fraudes, da mentira organizada. O exemplo clássico aqui é Norman Cohn, que fez um estudo detalhado sobre as fontes literárias utilizadas para a fabricação dos Protocolos de Sião (Cohn, 1981COHN, Norman. Warrant for genocide. The myth of the Jewish world-conspiracy and the protocols of the Elders of Zion. Washington: Scholars Press, 1981. ). Nessa linha, não se trata de refutar as teorias da conspiração, mas sim de entender como e por que a mentira organizada é arquitetada. Isso remete ao tema um tanto delicado da manipulação pura e simples, como, por exemplo, em situações mais recentes, que envolvem a produção em massa de mentiras para circularem nas redes sociais, as quais, embora fujam ao escopo desse artigo, remetem ao dado de que há toda uma rede de produção envolvida na elaboração e circulação de teorias conspiratórias (Empoli, 2019EMPOLI, Giulliano da. Os engenheiros do caos. Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019. ).
Para este artigo, consideramos uma teoria da conspiração específica num contexto pragmático, procurando desvendar sua produção, sua lógica interna e sua recepção por agentes políticos específicos. Não se oferece aqui uma tese geral sobre as teorias da conspiração. Trata-se mais de um estudo de caso. Esse estudo pode ajudar pesquisadores interessados numa leitura mais geral sobre o estatuto das teorias da conspiração, mas visa, antes de tudo, trazer uma contribuição para a história da Ditadura Militar no contexto da Guerra Fria. Ou seja, aqui a questão é menos sobre o que é uma teoria da conspiração e mais sobre como uma teoria específica funciona num contexto determinado. Mas indico aqui uma possível linha de pesquisa interessante para aqueles que estudam as teorias conspiratórias num sentido mais genérico, a questão das fórmulas narrativas do melodrama e a atenção à situação pragmática que envolve a circulação de uma teoria, ou seja, a teoria conspiratória como um tipo de ação política.
O autor, o livro, a editora
A 31 de maio de 1973, a Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura (DSI/MEC) encaminhou para o serviço de informação da Universidade de Brasília (e, evidentemente, o mesmo documento foi enviado a outras assessorias localizadas nas demais universidades brasileiras) um texto intitulado “O Movimento Estudantil”,2 2 Arquivo Nacional. Memórias Reveladas. Acervo dos órgãos de informação do regime militar, Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 008. subdividido nos itens “Levantamento sobre Movimento Estudantil”, “Guerra Psicológica” e “Teste sobre guerra psicológica”. Na apresentação do documento, o diretor da DSI/MEC, Pedro Vercillo, indicou o texto como complementar às “súmulas Movimento Comunista Internacional e Como eles agem distribuídas nos cursos de Segurança e Informação ministrados por essa OSI”. Tratava-se, portanto, de um texto complementar específico para agentes e oficiais da área de informações no campo da educação, uma vez que os outros dois textos citados se referiam às questões mais genéricas do comunismo internacional e das estratégias da “subversão”.3 3 Documentos que também estão no acervo da ASI/UnB. Arquivo Nacional. Memórias Reveladas. Acervo dos órgãos de informação do regime militar, Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 002 e Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 007. A apresentação do documento foi concluída com a sugestão da leitura de um livro em particular: “para maior esclarecimento da matéria sugerimos seja lida a publicação Os subversivos (1972) de J. Bernard HuttonHUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972.”. Como dito antes, o texto “O Movimento Estudantil” era, na verdade, basicamente, um resumo desse livro de Hutton.
Num primeiro momento, surge uma indagação sobre o teor desse livro, apresentado como referência e mesmo uma espécie de material didático para a formação de agentes de espionagem nas universidades brasileiras. Mas é preciso atentar para o fato de que a própria existência desse livro em particular é uma parte mínima de uma situação muito ampla e multifacetada, os programas editoriais e toda a mobilização intelectual e cultural da Guerra Fria (Cancelli, 2017CANCELLI, Elizabeth. O Brasil na Guerra Fria Cultural. São Paulo: Intermeios/USP-PPGHS, 2017.). Em relação a esse período, Elizabeth Cancelli (2017CANCELLI, Elizabeth. O Brasil na Guerra Fria Cultural. São Paulo: Intermeios/USP-PPGHS, 2017.) nos mostra a construção de uma linguagem política, e isso não apenas no sentido abstrato das ideias, mas também por meio de mecanismos de financiamento e investimentos em instituições e redes de intelectuais; linguagem essa fundamentada na tese da centralidade do totalitarismo e do terror como experiências fundantes do século XX e da contraposição destas com ideias e práticas de desenvolvimento econômico, papel das ciências sociais na gestão governamental e democracia. Democracia, esta, idealizada como de baixa intensidade, de centro, isenta de conflitos e defendida, inclusive, se necessário, pelos instrumentos das ditaduras de emergência (não havendo, portanto, dentro dessa lógica, uma incompatibilidade entre liberalismo e defesa de ditaduras em nome da democracia). Nessa situação mais ampla, é de se destacar o sentido de terror presente no livro do Hutton, mas também a legitimidade que a publicação pretendia extrair do fato de o autor ser, supostamente, uma testemunha direta do comunismo.
Diferentes edições apresentam de modo um tanto desencontrado dados sobre o autor J. Bernard Hutton, que seria pseudônimo adotado por Joseph Heisler. Na edição de Os subversivos, publicada em 1972 pela Artenova, Hutton é apresentado como um jornalista e diplomata nascido na Tchecoslováquia, “antigo membro do Comitê Central do Partido Comunista Tcheco”, que teria se desiludido com o comunismo, residindo em Sussex, Inglaterra. Hutton teria, ainda, aos 13 anos, fugido da Alemanha em 1933, com a ascensão do nazismo (a edição não diz o motivo). Já no livro Escola de espiões, publicado em 1961 pela editora Forense, Hutton é descrito como alguém que teria estudado o serviço de espionagem soviético em Moscou durante quatro anos. Além disso, teria recebido um “treinamento especializado na Escola Lenine”, “foi amigo íntimo da Direção dos Comunistas Soviéticos”. Nessa edição, Robert Bruce Lockhart, agente do MI6 (o serviço britânico de inteligência), é citado como fonte das informações biográficas sobre Hutton.
Essas informações desencontradas podem, evidentemente, dever-se a meros descuidos. Mas ao menos eles revelam que se trata de uma figura cuja trajetória, a partir das informações disponíveis, é bastante confusa. Além de aspectos que tendem ao impossível, por exemplo, se ele saiu da Alemanha aos 13 anos de idade, em 1933, isso significaria que, por volta dos 18 anos de idade, ele já era membro do Comitê Central do Partido Comunista Tcheco. Certamente, seria interessante tentar descobrir quem, afinal de contas, era mesmo Bernard Hutton/Joseph Heisler (quais teriam sido, efetivamente, suas relações com o comunismo tcheco e, sobretudo, de que natureza eram os seus vínculos com serviços de inteligência do Ocidente, se é que tais vínculos existiam), mas, no que se refere ao tema aqui estudado, mais importante é perceber como ele era apresentado quando figurava como autor nas edições de seus livros.
Um livro de teor um tanto sensacionalista de autoria de Nigel West (2016WEST, Nigel. Tales of Espionage, Genuine or Bogus? Barnsley: Frontline Books, 2016.)4 4 Em sua página oficial, o autor é apresentado como escritor especializado em termas de espionagem e editor europeu da revista World Intelligence Review. dedica um bom espaço ao caso de Joseph Heisler/Bernard Hutton. O autor repete mais ou menos a mesma biografia do ex-comunista, ex-membro do Comitê Central do Partido Tcheco. O interesse desse livro aqui se resume ao fato de que seu autor se dedicou a conferir a veracidade factual das referências aos nomes de agentes e das escolas citadas por Hutton e conclui que, em sua quase totalidade, trata-se de invenção pura e simples. Hutton seria, inclusive, uma espécie de campeão no quesito das falsificações e fraudes em toda literatura de espionagem da Guerra Fria (o que não é pouca coisa). Nigel West (2016WEST, Nigel. Tales of Espionage, Genuine or Bogus? Barnsley: Frontline Books, 2016.) diz também que a veracidade das obras de Hutton não foi contestada nos anos de sua publicação, o que não é verdade. Numa pesquisa em bases de dados de publicações acadêmicas encontrei algumas, bem poucas, resenhas de livros de Hutton. O tom geral é de que se tratava de farsa e mesmo “subliteratura de espionagem”.
As incertezas sobre Hutton são potencializadas pela proliferação de textos na internet. O livro é citado quase exclusivamente em páginas de extrema-direita. Por exemplo, um texto de Plínio Correia de Oliveira datado de 1976OLIVEIRA, Plínio Correio de. A nova rede do comunismo. pliniocorreadeoliveira.info. 1976. Disponível em: https://www.pliniocorreadeoliveira.info/OUT_76-01-27_A_nova_rede_do_comunismo.htm . Acesso em: 13 jun. 2022.
https://www.pliniocorreadeoliveira.info/...
(Oliveira, 1976) e em vários textos de autoria de Félix Maier, um dos discípulos de Olavo de Carvalho (Maier, 2012MAIER, Félix. Movimento comunista internacional. WikiTerrorismo Brasil, 2012. ). Nessas referências na rede, ora Hutton é apresentado como um jornalista alemão, ora como diplomada tcheco, por vezes, um espião treinado na URSS e que teria se convertido ao anticomunismo, não faltando mesmo alusões ao fato de ele ter viajado no tempo em 1932, antevendo a destruição da cidade de Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial, 11 anos antes do acontecimento (Mckanzie, 2015MCKANZIE, Cynthia. Three fascinating old time travel cases: These people say they saw the future and past. MessageToEagle, 2015. Disponível em: https://www.messagetoeagle.com/three-fascinating-old-time-travel-cases-these-people-say-they-saw-the-future-past/ . Acesso em: 13 jun. 2022.
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). Em acervos de trabalhos acadêmicos, como o Jstor, há poucas resenhas de livros de Bernard Hutton, quase todas apontando as inconsistências do livro, sobretudo o fato de o autor citar documentos secretos sem nunca revelar suas origens.
Sobre a circulação do livro de Hutton, observa-se que a editora Artenova consta na lista de conveniados com a USIA, tal como apresentada por Laura de Oliveira (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Laura de. Guerra Fria e política editorial. A trajetória da Edições GRD e a campanha anticomunista dos Estados Unidos no Brasil (1956-1968). Maringá: Editora da UEM, 2015., p. 130). Não só isso, como o catálogo da Artenova tem muitas semelhanças com o da editora GRD, estudada em detalhes no trabalho citado, estando, portanto, imersa nos programas editoriais da Guerra Fria Cultural. Refiro-me à extensa lista de livros de história, ciência política, ciências sociais e literatura de autores norte-americanos com forte teor anticomunista.
Efeitos de realidade em Os subversivos
Os Subversivos (1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972.), na capa da edição da Artenova é apresentado como “a primeira revelação mundial do plano comunista de conquista do mundo ocidental”. Efeito de choque sobre o eventual comprador do livro e suas ideias, porque evidentemente não era a primeira. Por outro lado, um dos grandes trunfos do livro é a grande quantidade de documentos secretos a que o autor supostamente teve acesso, graças a seu passado comunista e ao vínculo com agentes da chamada Cortina de Ferro. Muitos desses documentos são transcritos, outros, resumidos para “não cansar o leitor”. O autor é bem econômico no uso da primeira pessoa. Suas informações pessoais ou explicações mais detalhadas sobre como teve acesso a tantos documentos tão secretos são mínimas, “por motivo de segurança”. Hutton também diz que contou com a colaboração de vários serviços secretos e de segurança do Ocidente, sem citar nenhum em particular e muito menos a natureza dessa colaboração.
A apresentação do autor como ex-comunista não é feita no sentido de um testemunho pessoal e apaixonado sobre os horrores do totalitarismo. Pelo contrário, o tom da narrativa é objetivo e impessoal, quase sempre em terceira pessoa. Sua condição tem mais a função de garantir veracidade à trama que o livro “revela”, explicando como o autor conhece tão detalhadamente o mundo, de outro modo tido como indevassável, da subversão. Por exemplo, ele sabe o número de “agentes clandestinos subversivos” que saíram da União Soviética nos anos de 1966 a 1970. Transcreve, como se fosse literal, uma fala ultrassecreta de Stalin em reunião fechada com a KGB em março de 1948, na qual se decidiu pela adoção da tática da “subversão clandestina” em grande escala - o próprio Stalin, por sinal, nesse discurso a que Hutton teve acesso não se sabe como, teria nomeado, com grande pendor didático, as atividades de “subversivas clandestinas”, criando uma nova divisão de guerra, esta com o nome ingenuamente revelador de “Divisão Especial para a Subversão” (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 26-28). Hutton conhece a localização e mesmo descreve minuciosamente as escolas de espionagem ultrassecretas de que ninguém, fora ele, tem notícia, como a escola central de Gaczyna, uma espécie de parque temático onde aprendizes de espião passavam anos se aclimatando ao estilo de vida anglo-saxão (Hutton, 1972, p. 80).
Em síntese, Os Subversivos (1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972.) é apresentado como verdade histórica, algo como uma história do tempo presente baseada em documentação e narração objetiva. Apenas em termos de estrutura narrativa e estratégias de explicação e convencimento do leitor, porque se trata de uma fraude, o livro de Hutton cabe perfeitamente nos moldes clássicos da historiografia, seguindo aquilo que Ivan Jablonka chama de “modo objetivo” de exposição (Jablonka, 2016JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporanea. Manifiesto por las ciencias sociales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2016., p. 85). Esse modo de exposição tem as seguintes diretrizes, a imparcialidade do sábio, na figura do narrador desapaixonado; do ponto de vista discursivo, o modo objetivo se pauta pela interdição do “eu” (em praticamente todo livro, Hutton descreve situações, sempre como um observador não implicado naquilo que relata - como no caso da reunião secreta de Stalin, em que o leitor “vê” o cenário como se estivesse assistindo a cena); constrói-se, assim, um “ponto de vista universal” sobre a história. Para Jablonka (2016JABLONKA, Ivan. La historia es una literatura contemporanea. Manifiesto por las ciencias sociales. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2016.), um dos problemas desse “modo objetivo” é que ele subtrai do leitor toda a complexidade das operações efetuadas no processo de investigação, como se a escrita da história fosse mera apresentação do que aconteceu e não resultado de um trabalho de elaboração.
Bernard Hutton diz que suas provas foram conferidas e “reconferidas” e viriam de “arquivos soviéticos, chineses e ocidentais”, mediante o apoio de uma rede de cooperadores anônimos que lhe passavam documentos secretos, agradecendo também “às diversas organizações de segurança do Ocidente que me ajudaram em tudo” (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 10). Boa parte do livro é ocupada pela transcrição e resumo desses tais documentos, como, por exemplo, o transcrito entre as páginas 16 e 18, com as garrafais “ESTE DOCUMENTO NÃO DEVE CAIR EM MÃOS ESTRANHAS! MEMORIZE E DEPOIS QUEIME” (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 16-18). Esse documento em particular conteria instruções secretas da “Divisão Especial de Subversão de Pequim” para o IRA, com o seguinte teor, “atacar sem trégua com atiradores isolados”,
Será fácil conseguir gente do IRA e outros fanáticos para isso. Os melhores são os rapazes e as crianças já mais velhas. Chamam menos atenção do que os adultos, gostam de ser gratificadas com dinheiro e não fazem perguntas. Se forem apanhados não estarão em condições de fornecer informações. As crianças estão sendo muito usadas no Vietnã e vocês deverão usá-las também (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 18).
Ao longo do livro inteiro, absolutamente todas as instruções secretas citadas seguem esse estilo. Não há nada além de, sempre, causar mais agitação, gerar tumultos, provocar policiais e usar crianças e mulheres como instrumentos de subversão. Nada de mais específico como nomes de vítimas em potencial, alvos para atentados, instruções políticas concretas, revelações sobre estrutura e funcionamento das redes de contato entre “subversivos”, precauções de segurança (exceto as de memorizar e queimar depois de ler). Os documentos não estavam criptografados e nem eram transmitidos com qualquer zelo pela segurança. Apenas bilhetes com esse tipo de instrução. Os supostos documentos não são objeto de análise e nem, muito menos, trazem qualquer informação nova ao leitor. São redundantes, como se a repetição de instruções idênticas em diferentes momentos e lugares fosse suficiente para persuadir, e não necessariamente convencer, o leitor.
Em termos de sua localização na narrativa e argumentos do livro de Hutton, geralmente, os documentos são citados como se fossem elos que revelam o significado oculto de uma cadeia de eventos aparentemente distintos e não relacionados. A rigor, é a simultaneidade de acontecimentos “subversivos” a prova mais importante da trama revelada pelo livro, a agitação estudantil, o poder negro, o consumo de drogas, atentados terroristas, greves, crises econômicas, “não podemos ver como simples coincidência o assassinato de Martin Luther King, os violentos tumultos de Grosvernor Square, as revoltas estudantis em Paris e outros lugares, além de muitos outros atos de violência ocorridos quase ao mesmo tempo” (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 20).
Há, portanto, uma teoria implícita na trama, essa é a de que, na história, não há complexidade, não há diferenças e pluralidade de interesses, concepções. E que a comprovada existência de ações e serviços de espionagem, com suas infiltrações e traições ao longo da Guerra Fria, não teria se dado em meio a situações complicadas, envolvendo interesses contraditórios e disputas de poder. Os acontecimentos, todos, são efeitos de uma única causa. Causalidade que remete, basicamente, a intenções subjetivas. Essas intenções, por sua vez, são expressas em planos que as tornam evidentes, transparentes. Os planos são elaborados por um pequeno grupo de agentes - que são, portanto, o verdadeiro “motor da história”. Estamos diante de um quadro clássico das chamadas “teorias da conspiração” (Byford, 2011BYFORD, Jovan. Conspiracy Theories. A critical introduction. London: Palgrave Macmillan, 2011.).
Um dos problemas com esse gênero discursivo, de acordo com Jovan Byford (2011BYFORD, Jovan. Conspiracy Theories. A critical introduction. London: Palgrave Macmillan, 2011.), é o de que suas “explicações” são irrefutáveis, porque qualquer prova ou contraprova pode ser remetida ao argumento da conspiração. Inclusive, temos no livro advertências contra a possível incredulidade do leitor. De acordo com Hutton, o cidadão do Mundo Ocidental tende a ser cético e pode considerar impossível a existência de uma trama subversiva tão onipresente e eficaz (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 80). Essa disposição de não acreditar, porém, coloca em risco a sobrevivência da própria civilização.
Como elementos de persuasão no livro de Hutton temos, até aqui, a simulação de uma investigação histórica; o uso de uma teoria explicativa, a conspiração como filosofia da história e a advertência ao leitor de que deve se preparar para acreditar no inacreditável, se não quiser ser um inocente útil. Mas a força persuasiva desse livro não se limita a isso. A leitura do livro de Hutton causa uma forte impressão de literatura de espionagem, com todos os seus clichês fundamentais (as forças ocultas que controlam o mundo e que são alienígenas ao mundo dos mortais comuns, a tecnologia de ponta, tendendo ao milagroso, a perversidade e o erotismo, que deriva para a pornografia e a geopolítica). O livro tem uma forte carga afetiva, oculta na exposição aparentemente objetiva e neutra, carga esta que resulta de seu modo de expressão, sua forma literária, o melodrama. Teor melodramático que certamente não é uma característica exclusiva desse livro, no que se refere à Guerra Fria cultural.
A força do melodrama na cultura contemporânea, de acordo com o livro já clássico de Peter Brooks (1995BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination. Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess. New Haven; London: Yale University Press, 1995.), advém do fato de se tratar de uma linguagem que lida com a questão do significado de nossos atos humanos. A pressuposição básica de todo melodrama é a de que todos os acontecimentos são intensamente significativos, para além da banalidade e mesmo do caos, na superfície de nossa existência mortal e contingente. Nós não somos apenas seres que vivem num vazio, na futilidade e na morte de deus, ensina o melodrama, porque cada um de nossos gestos, cada um dos dramas que vivemos, na verdade, apenas revelam a ação de forças profundas, transcendentais. Como, por exemplo, o embate entre o Bem e o Mal, como moral oculta daquilo que, de resto, poderia parecer apenas uma luta brutal pelo poder.
Essa pressuposição histórica ou moral, ainda seguindo Peter Brooks (1995BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination. Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess. New Haven; London: Yale University Press, 1995.), tem implicações nas formas e nas expressões estéticas melodramáticas. A narrativa melodramática visa exatamente a expor esse grande sentido oculto no mais contingente - daí um tipo de narrativa que, de variadas formas, tende a forçar a emergência desses grandes significados na superfície do que é contado (o leitor pode sentir que a narrativa é exagerada, mas isso não é um defeito e sim o funcionamento do melodrama). Menos do que uma história particular, específica, o que o melodrama procura revelar é a força secreta que molda a realidade.
Uma das técnicas mais comuns, e que aqui interessa de perto, é a do vilão que diz em voz alta a sua vilania interior, geralmente acompanhando a fala perversa de gestos caricaturais como as risadas e mãos entrelaçadas. Esse aspecto, por assim dizer, literário, dá um outro sentido ao uso dos documentos no livro de Hutton. Não que esse sentido exclua os comentados anteriormente; além de conferir “veracidade” e ar de “investigação séria” ao relato, os documentos têm essa função melodramática porque é neles que os perversos declaram em alto e bom som a sua própria perversidade (vamos usar crianças, somos “subversivos clandestinos”, Stalin dando uma gargalhada depois de criar a Divisão Especial da Subversão, etc.).
Esse teor melodramático também se deixa perceber em outro elemento marcante do livro de Hutton, até aqui não comentado: o uso dos nomes próprios, de pessoas ou instituições. Uma das marcas da revelação melodramática, ainda seguindo Peter Brooks (1995BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination. Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess. New Haven; London: Yale University Press, 1995.), é a cena em que um personagem revela sua verdadeira identidade (“sim, sou eu mesmo, seu filho que você pensou que tinha morrido”, etc.). Ao longo do livro de Hutton, casos concretos de “subversivos clandestinos” são narrados de modo redundante a partir da descrição de uma pessoa comum (um pequeno empresário, uma secretária, um gerente de hotel) seguida da revelação de seu verdadeiro nome. O verdadeiro nome tem o mesmo impacto estético que o das diversas divisões subversivas que se nomeiam como Subversivas mesmo, ou, por exemplo, o misterioso Instituto 631 de Moscou, em que os números, sem qualquer explicação acerca de sua possível referência, remetem a algo como um conhecimento esotérico. Complementando os nomes próprios estão o uso de epítetos que sempre se repetem, como o de “clandestinos subversivos”, ou “clandestinos subversivos vermelhos”, e não só nas descrições do narrador, mas também na “primeira pessoa” dos documentos secretos que constantemente se referem a “nossos subversivos clandestinos”. O mal nesse livro, usado como material didático pelo SNI, também não dispensa o didatismo.
Subversivos clandestinos não são meros espiões, sua atividade é infiltração e agitação, provocar motins, crises, guerras e tumultos. Para tanto, sabem usar a seu favor ladrões, vagabundos, hippies, viciados e toda sorte de “fraqueza humana”. Assim, por exemplo, exploram as tensões raciais nos Estados Unidos, insuflando o “poder negro” a declarar uma guerra contra os brancos. Subversivos clandestinos incentivam o consumo de drogas (a tática usada é vender as drogas por um preço bem barato) porque sabem que elas “enfraquecem a força de vontade, destroem a capacidade para os julgamentos morais, viciados são escravos de um desejo, perdem orgulho e dignidade” e por isso “os subversivos clandestinos cultivam os viciados” (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 181).
Emblemático, por congregar todos os elementos “historiográficos” e melodramáticos do livro de Hutton, é o caso de Norma. “Norma Sullivan foi o nome dado a Vira Borisovna Smirnova quando se matriculou na escola de Gaczyna.” (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 90 e ss.). Norma, ou melhor, Vira, teria passado três anos na escola até se tornar indistinguível de uma autêntica estadunidense. Entrou no território dos Estados Unidos escondida num navio mercante soviético que se destinava a Vancouver. “Era bonita, calma e inteligente” e conseguiu um emprego de recepcionista num escritório de uma empresa de aviação. Devidamente ambientada, só tinha contato com um comunista clandestino americano, que lhe passava as ordens de Moscou. Sua missão era explorar as tensões raciais: “Norma explorava ao máximo os sentimentos raciais e jogava os italianos contra os irlandeses, os judeus contra os católicos e esses contra os protestantes”. Depois de um tempo, Norma conseguiu um emprego de gerente numa boate e foi aí que começou sua perdição. “Possuía uma fraqueza intrínseca que toda a especializada lavagem cerebral e treino da escola de espionagem não conseguiram eliminar. Era mulher e apaixonou-se num primeiro encontro.” Apaixonou-se justamente por um diplomata “vagamente ligado ao serviço de contraespionagem”. Por amor, Norma então contou tudo ao diplomata, com quem se casou.
Hutton lido pela Inteligência brasileira
Talvez Os Subversivos (1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972.) figurasse apenas numa espécie de bestiário das teorias da conspiração contemporâneas, ao lado de teses como a de Olavo de Carvalho sobre a pepsi-cola usar células de fetos abortados como adoçantes, se o livro não tivesse sido adotado como material didático e obra de referência para agentes e oficiais de informação durante a Ditadura Militar. Ou seja, referendado pelo governo e orientando ações de seus representantes, inclusive ações violentas como prisões arbitrárias e torturas.
É necessário considerar o livro de Hutton nesse contexto específico de leitura. Trata-se de um exercício de imaginação procurar desvendar algo como um roteiro de leitura possível, dentro da lógica da formação de um oficial de informações. Considero esse exercício válido porque, em primeiro lugar, a experiência da leitura e interpretação de um texto é social e historicamente condicionada. Talvez os erros e aberrações, os “exageros”, como do próprio livro de Hutton, não fossem meros acidentes ou desvios e sim parte intrínseca de uma lógica, a lógica da mentira organizada como instrumento de dominação.
No Brasil, o livro de Hutton foi publicado no final de 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972. e no começo do ano seguinte já era adotado como leitura de referência pelo SNI. O livro, portanto, já foi publicado com essa finalidade? Ou seja, já vinha como encomenda e com a garantia de circulação fomentada pelo governo e para esse uso bem específico? Se for assim, como o livro de Hutton chegou ao conhecimento do governo brasileiro?
Não é uma hipótese descabida supor que alguém que teve que ler o livro de Bernard Hutton, por dever funcional, tenha desconfiado que poderia se tratar de uma fraude. E que, se esse fosse o caso, o alvo da contrainformação não era o inimigo e sim ele mesmo. E o responsável por essa fraude, supondo que o encarregado pela indicação desse livro como leitura de referência sabia que se tratava de uma fraude, não cogitou a hipótese de que havia o risco de perda de credibilidade do SNI perante seus próprios oficiais? Ou, quem sabe, apenas o próprio Hutton sabia que seu livro era uma fraude e conseguiu iludir a todos?
Essas perguntas aqui são feitas apenas para dar nitidez à perplexidade diante do uso desse livro pelo SNI. Algumas, não explicações, mas meras interpretações possíveis podem ser delineadas. Em primeiro lugar, um aspecto importante que Os Subversivos (1972) compartilha com as explicações oferecidas pelas teorias da conspiração é o de ser irrefutável, em seus próprios termos. Se a conspiração dos “subversivos clandestinos” existe, pode bem ser que um ou outro caso relatado por Hutton esteja errado, mas a trama geral não. A teoria geral da conspiração mundial, por sua vez, nada mais era do que o senso comum da Guerra Fria, expresso numa enxurrada de publicações anticomunistas.
É difícil ter uma noção mais concreta sobre como Hutton foi lido, mesmo no caso de um agente individual como Joselito Eduardo Sampaio, cujas apostilas estão guardadas no acervo da ASI/UnB, inclusive com os exercícios e provas que ele fez durante o curso de formação na ESNI,5 5 Arquivo Nacional. Memórias Reveladas. Acervo dos órgãos de informação do regime militar, Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 006. porque essas avaliações eram basicamente no estilo “decoreba”, completar frases e múltipla escolha. Por um lado, esse estilo de avaliação sugere um estilo de recepção esperado pela instituição, incorporação mecânica e sem crítica de pressupostos. Por outro lado, um general da mais alta hierarquia, Olavo Viana Moog, no já citado relatório sobre “infiltração subversiva” na Universidade de Brasília, depois de uma grande operação que envolveu prisões e torturas, em 1973, citava como um dos temas fundamentais a questão do uso da maconha por estudantes. A maconha como porta de entrada para o comunismo - repetindo, não necessariamente por uma leitura direta, uma das teses centrais do livro de Hutton. Seria então o caso do mentiroso que acaba iludindo a si mesmo? Ou talvez, mais cinicamente, apenas de um argumento disponível para justificar uma grande operação militar?
É preciso também se considerar, em termos mais gerais, de que relação com a verdade se tratava, quando o assunto era verdade para um oficial de informações. Temos uma excelente fonte para isso, o manual de Washington Platt (1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967.) sobre informações estratégicas. A forte presença desse manual na “comunidade de informações” brasileira pode ser medida. A famosa classificação do grau de confiança nos informes e suas fontes, de A a F e de 1 a 6, a distinção entre informe como dado bruto e informação como dado analisado e interpretado, bem como a própria ideia da necessidade de reconhecer a informação como uma profissão específica com formação técnica, são sugestões desse manual. A própria expressão “comunidade de informações” vem desse livro - seu intuito era o de criar um espírito de corpo, uma identidade profissional para oficiais e agentes.
Do manual de Platt (1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967.) , tendo em vista a tentativa de pensar num possível roteiro de leitura para o livro de Hutton no âmbito da área de informações, destaco alguns pontos. O primeiro é que as informações, segundo o manual, têm um sentido preventivo, o de “evitar guerras” e de “estimar o que outros seres humanos podem fazer e farão” (Platt, 1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967., p. 21). Com esse intuito, a relação entre informes, dados brutos, e informação elaborada era parte central do trabalho. O sentido mesmo da produção de informação seria encontrar o significado de dados brutos. Daí a importância de se registrar praticamente tudo. Um viés obsessivo com o acúmulo de informes. Segundo Platt (1967), dados brutos por si só não dizem nada, “fatos não falam por si mesmos”, por outro lado, o acúmulo de muitos “nadas” pode vir a produzir alguma coisa (Platt, 1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967., p. 73). O simples ato de colecionar e cotejar informes poderia revelar sentidos insuspeitados. Por isso, um oficial de informações deveria estar atento à correlação entre duas séries de acontecimentos; sincronismo de dois ou mais acontecimentos, ocorrência de um acontecimento com alto grau de improbabilidade (Platt, 1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967., p. 221). Nesse sentido, o livro de Hutton é até didático, um dos seus principais argumentos é o de que “subversões” simultâneas não podem ser pensadas como simples coincidências. Outro, o de que existe um motivo para causas aparentemente irrisórias darem ensejo a grandes tumultos. Caberia ao oficial de informações então desvendar a moral oculta do enredo.
O segundo ponto se refere à situação dada como estabelecida por Platt (1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967.), um pressuposto mesmo sobre o contexto histórico da produção de informações. A informação, diz Platt, é parte de um todo maior chamado guerra; a informação total é uma demanda da guerra total (Platt, 1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967., p. 32). Ao longo do livro, Platt (1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967.) dá vários exemplos fictícios, apenas a título de ilustração, sobre como funciona a informação nesse horizonte da guerra. Por exemplo, o autor inventou um país chamado Cortínia, com evidente alusão à “Cortina de Ferro”. Na documentação da ESNI em que consta a indicação do livro de Hutton, em meio às apostilas do curso realizado por Joselito Eduardo Sampaio, há vários documentos explicitamente fictícios. São documentos de histórias irreais, porém possíveis, visando um exercício de análise por parte do oficial em formação. Os casos inventados são extremamente parecidos com os documentos dados como verídicos. Isso acontece porque tanto os casos inventados quanto os “reais” são lidos sob o mesmo modelo de interpretação. Nesse caminho, verídico ou não, o que Hutton oferece ao seu leitor é um modelo teórico baseado no pressuposto da guerra total.
No trabalho da produção de informações, segundo Platt (1967PLATT. Washignton. A produção de informações estratégicas. Rio de Janeiro: Agir, 1967.), é fundamental considerar o seu sentido primordial utilitário. O compromisso de uma informação não devia ser a de uma erudição ou procura de uma verdade sólida. A informação deveria ser, antes de tudo, oportuna. Daí, o critério da velocidade se sobrepor ao da qualidade da informação, isso porque, numa situação de guerra, uma informação tenderia a perder o valor rapidamente. Esse, na Ditadura Militar e em outras semelhantes pelo mundo, era o argumento central em defesa da tortura, a necessidade de “extrair” rapidamente informações guardadas por um prisioneiro. Aqui, o sentido de urgência do alarmismo de um livro como o de Hutton ganha outro tom, a emergência no sentido violento do estado de emergência.
Na Inglaterra e nos Estados Unidos os subversivos contam muito com as liberdades democráticas que a lei garante a todos os cidadãos. Nesses países não é crime fazer demonstrações, comícios em praça pública ou até mesmo decretar greves. Qualquer cidadão tem liberdade para incitar operários à greve por qualquer razão, por mais absurda que seja, mesmo que com isso cause a dispensa de milhares de trabalhadores. Na Espanha totalitária esses provocadores são logo investigados pela polícia, mas os países democráticos respeitam as leis. Os provocadores podem criar casos, fomentar o descontentamento, inflamar os ânimos e paralisar indústrias inteiras, tudo isso sem infringir a lei (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 253).
O devido processo legal, em países “civilizados”, era instrumentalizado por subversivos, que assim, protegidos, espalhavam a barbárie. Nos seus territórios, Moscou e Pequim faziam de tudo para eliminar o vício das drogas, “as punições são muito severas, e para aqueles que não podem mais ser recuperados a pena é simplesmente a morte” (Hutton, 1972HUTTON, J. Bernard. Os subversivos. Rio de Janeiro: ArteNova, 1972., p. 181). Ao passo que fazem de tudo para viciar em drogas as outras populações. Exemplo de combate bem-sucedido à subversão? O governo espanhol, que caçava subversivos com um zelo digno da Santa Inquisição.
Não que a etimologia explique tudo, mas se sabe que a palavra “revolução” deriva da ideia do movimento irresistível dos astros para a de um movimento irresistível da história em direção ao futuro. Já subversão, em seus usos mais antigos, designa simplesmente a destruição, o arruinamento. É bem possível que a hipótese da destruição seja ainda mais aterradora que a da revolução e que o “subversivo” seja, assim, ainda mais perigoso do que o comunista, de quem é um “instrumento”. Os estados de exceção (como a Ditadura Militar brasileira) e o estado de guerra civil internacional se legitimavam em nome da democracia, um conceito específico de democracia “mitigada”. Só assim se entende que nesse vocabulário o oposto de comunismo era democracia, e não capitalismo. É no espectro do antitotalitarismo que vai ser alimentada a cultura e a matriz ideológica do anticomunismo. É a ideologia do anticomunismo que, por assim dizer, dá profundidade moral e histórica ao combate à subversão. Por fim, a questão sobre os subversivos (afinal de contas um dos conceitos centrais do vocabulário da Ditadura Militar) revelou-se extremamente eficaz em termos mais pragmáticos, de controle social. Exatamente por serem menos identificáveis e passíveis de uma localização política que os comunistas, é que os “subversivos” de toda sorte serão essenciais para a militarização da sociedade.
Considerações finais
Em texto recente, Rosa Maria Cardoso da Cunha (Cunha, 2020CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. Comissão Nacional da Verdade, impulso à democratização ou fator de retrocesso? In: TELES, Edson; QUINALHA, Renan (org.). Espectros da ditadura. Da comissão da verdade ao bolsonarismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 179-206., p. 196) observa a forte presença, no bolsonarismo, de teorias conspiratórias, como as sobre o “marxismo cultural”, inspiradas, sobretudo, pelas obras de Olavo de Carvalho (mas também por figuras como o General Sérgio Augusto de Avellar Coutinho, chefe do Centro de Inteligência do Exército nos anos 1980). O “marxismo cultural” seria uma teoria adjacente às doutrinas anticomunistas do nazismo e da Guerra Fria. O inimigo, tal como na Ditadura, segue Rosa Maria Cardoso da Cunha, seriam os comunistas, os socialistas, os democratas libertários, os ativistas de direitos humanos e os intelectuais. Ou seja, todo o amplo espectro da chamada subversão. É inegável que a política atual é perigosamente marcada por esse tipo de discurso, que já teve consequências violentas em nossa história. Inclusive, é interessante que a própria teoria conspiratória do “marxismo cultural” seja uma leitura da história do Brasil pós-Ditadura Militar, porque a sua tese central é de que as esquerdas, depois da derrota da luta armada, teriam mudado de estratégia, passando a empreender uma espécie de guerra cultural (Secco, 2019SECCO, Lincoln. Gramscismo, uma ideologia da extrema-direita. Blog da Boitempo, 8 maio 2019. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/05/08/gramscismo-uma-ideologia-da-extrema-direita/ . Acesso em: 28 dez. 2022.
https://blogdaboitempo.com.br/2019/05/08...
).
A Guerra Fria, como situação geopolítica, acabou. Mas teorias conspiratórias daquele período, em particular as referentes à tradição do anticomunismo, sobreviveram. E mesmo, mais do que isso, ganharam proeminência no debate político. O que tem levado pesquisadores a um profundo desconcerto. O tema desse artigo é a Ditadura Militar, mas foi a situação política atual que inspirou o seu autor a tomar o tema a sério - em geral, na memória da Ditadura Militar, esses aspectos conspiratórios são tratados como folclore político, motivo de riso e escárnio. A situação atual revela que a paranoia política sobrevive por ser, ao mesmo tempo, resultante e força de destruição do espaço público (Acselrad, 2015ACSELRAD, Henri. Sinais de fumaça na cidade. Uma sociologia da clandestinidade na luta contra a Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina/FAPERJ, 2015., p. 200). Não que a Ditadura Militar e o neoliberalismo destruam o espaço público da mesma maneira. A questão é que, já apontava Hannah Arendt, a verdade factual, bruta, depende de vestígios, traços, palavras humanas que são tão frágeis quanto o mundo em que habitamos. Sem um espaço público vivo e plural, a mentira organizada pode se realizar como complemento ao terror. Além disso, o fim da Guerra Fria não significou que as crises e impasses do capitalismo tenham sido resolvidos. E se é desses impasses que nascem projetos como socialismo, comunismo e anarquismo, essas tradições políticas continuam assombrando o presente como verdadeiros “espectros”, como sugerido na hipótese frutífera de Derrida, embora o autor não faça uma boa leitura da obra de Karl Marx (Derrida, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O estado da dívida, o trabalho de luto e a Nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. ). As teorias da conspiração, nesse novo contexto do pós-Guerra Fria, seguem oferecendo uma imagem de estabilidade e ordem para uma realidade conflituosa e instável. Também dão uma espécie de rosto para um inimigo supostamente onipresente que impede que o mundo prometido pelo “fim da História” dos anos 1990 se realize. Aqui seria necessária uma discussão mais profunda, mas, como dito anteriormente, o tema deste artigo é a Ditadura Militar, lida neste presente do começo do século XXI. O fundamental é que nosso tempo não permite mais que as teorias conspiratórias sejam vistas apenas como itens de um folclore das loucuras da política.
Frente a isso, pode-se esperar que a historiografia procure repor a verdade submetida ao poder destrutivo daquilo que Hannah Arendt (2009ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 282-326.) chama de “mentira organizada”. Uma outra aposta, que é a seguida por este artigo, é a de tentar entender a lógica de funcionamento de uma teoria conspiratória, observando sua linguagem e seus contextos pragmáticos, ou seja, tentar desvendar como opera a mentira organizada e quais seus efeitos políticos numa dada sociedade.
Referências
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1
O relatório consta em: Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 ROS 033.
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2
Arquivo Nacional. Memórias Reveladas. Acervo dos órgãos de informação do regime militar, Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 008.
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3
Documentos que também estão no acervo da ASI/UnB. Arquivo Nacional. Memórias Reveladas. Acervo dos órgãos de informação do regime militar, Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 002 e Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 007.
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4
Em sua página oficial, o autor é apresentado como escritor especializado em termas de espionagem e editor europeu da revista World Intelligence Review.
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5
Arquivo Nacional. Memórias Reveladas. Acervo dos órgãos de informação do regime militar, Fundo ASI/UnB BR DF ANBSB AA1 0 LGS 006.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
05 Out 2022 -
Aceito
04 Abr 2023