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O ESVAZIAMENTO DAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR1 1 Artigo publicado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq/Brasil para os serviços de edição, diagramação e conversão de XML.

LA AUSENCIA DE LAS DIRECTRICES CURRICULARES NACIONALES EN LA BASE NACIONAL CURRICULAR COMUN

RESUMO:

O presente artigo analisa o esvaziamento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN) na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Trata-se de uma pesquisa documental de abordagem crítica inserida nos debates curriculares ancorados nos fundamentos teórico-metodológicos da Pedagogia Histórico-Crítica. Objetiva-se analisar e refletir sobre as diretrizes para a educação de grupos pouco reconhecidos e considerados nas políticas educacionais curriculares brasileiras, no sentido de fomentar o debate em torno dos processos de formação dos sujeitos que se pretende formar. As categorias de análise foram: 1) modalidades da educação (Escolar Indígena; Escolar Quilombola; do Campo; Especial; de Jovens e Adultos; Profissional e Tecnológica); e 2) eixos temáticos contemporâneos (Educação Ambiental; Educação em Direitos Humanos; Educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais; Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; Atendimento escolar de crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância). Os resultados apontam que há um silenciamento e um retrocesso na BNCC, no que tange a algumas modalidades e eixos temáticos que já tinham seus direitos assegurados na DCN. Em contrapartida, na BNCC, mesmo apresentando os princípios de igualdade e universalidade, os sujeitos são homogeneizados, sem considerar as diferenças e subjetividades que existem ou podem existir. Posiciona-se aqui em defesa de uma educação que, considerando efetivamente a diversidade e as profundas desigualdades da sociedade brasileira, advogue por uma formação omnilateral dos sujeitos na perspectiva da transformação social.

Palavras-chave:
DCN; BNCC; exclusão social; formação humana

RESUMEN:

El presente artículo analiza la ausencia de las Directrices Curriculares Nacionales para la Educación Básica (DCN) en la Base Nacional Curricular (BNCC). Se trata de un estudio documental de abordaje crítica de los debates curriculares fundamentados teóricamente en la Pedagogía Histórico-Crítica. El objetivo es analizar y reflexionar sobre las directrices para la Educación de grupos poco reconocidos y considerados en las políticas educacionales curriculares con el objetivo de promover el debate en torno de los procesos de formación de los sujetos que se pretende formar. Las categorias de análisis fueron: 1) modalidades de la educación (Escolar Indígena; Escolar Quilombola; del Campo; Especial; de Jóvenes y Adultos; Profesional y Tecnológica); e 2) ejes temáticos contemporaneos (Educación Ambiental; Educación en Derechos Humanos; Educación para jóvenes y adultos en situación de privación de liberdad en establecimientos penales; Educación de las Relaciones Étnico-Raciales y la Enseñanza de Historia y Cultura Afro-Brasileña y Africana; Atención escolar de niños, adolecentes y jóvenes en situación de itinerancia). Los resultados indican que hay un silenciamiento y un retroceso en la BNCC, en algunas modalidades y ejes temáticos cuyos derechos ya habían sido asegurados en las DCN. En contrapartida, em la BNCC, aún presentando los principios de igualdad y universalidad, se observa que los sujetos son homogenizados, sin considerar las diferencias y subjetividades que existen o pueden existir. Se posiciona aquí en defensa de una educación que, considerando efectivamente la diversidad y las profundas desigualdades de la sociedad brasileña, abogue por una formación omnilateral de los sujetos en una perspectiva de transformación social.

Palabras clave:
DCN; BNCC; exclusión social; formación humana

ABSTRACT:

This article analyzes the near absence of the National Curriculum Guidelines for Basic Education (in Portuguese, DCN) in the Common National Curriculum Framework (BNCC in Portuguese). We conducted a documentary study with a critical approach to the curricular debates anchored in the Historical-Critical Pedagogy theoretical-methodological foundations. The aim is to analyze and reflect on the educational guidelines for groups underrepresented in curricular educational policies to debate the formation processes of the subjects. The categories of analysis were: 1) modalities of education (Indigenous School; Quilombola School; Rural; Special; Youth and Adult; Vocational and Technological Schools); and 2) contemporary thematic axes (Environmental education; Human Rights Education; Education for young people and adults deprived of liberty in penal institutions; Education of Ethnic-Racial Relations and the Teaching of Afro-Brazilian and African History and Culture; School assistance for children, adolescents and young people in itinerant situations). The results indicate a silencing and a setback in the BNCC, concerning some modalities and thematic axes that had their rights guaranteed in the DCN. On the other hand, in the BNCC, though presenting the principles of equality and universality, the subjects are homogenized, disregarding the differences and subjectivities that exist or may exist. We advocate for an education that effectively considers Brazilian society's diversity and profound inequalities, seeking an omnilateral formation of subjects from a social transformation perspective.

Keywords:
DCN; BNCC; social exclusion; human formation

INTRODUÇÃO

A última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi aprovada em 2018. Vale destacar que a BNCC já estava prevista no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, que prevê que a referida base deverá ser “[...] complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 de dezembro de 1996. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm . Acesso em:15 mar. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, p. 21).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN) contemplam todas as etapas e modalidades da educação básica e eixos temáticos (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
), bem como atribuem e definem uma atenção diferenciada para os grupos historicamente excluídos e marginalizados pela sociedade. As referidas diretrizes foram discutidas e elaboradas de forma democrática e se constituem como um marco normativo da educação brasileira, citadas no próprio texto da BNCC, mesmo que de forma superficial, como referência para a elaboração dos currículos.

Face ao exposto, a questão problematizadora do presente estudo não está centrada no que comumente se faz: “o que” ensinar; mas, sim, qual sujeito se pretende formar a partir dos pressupostos da BNCC sob o olhar das DCN de 2013? Portanto, o objetivo será analisar e refletir sobre as orientações contidas nesses documentos que caracterizam grupos ou temas pouco reconhecidos nas políticas educacionais curriculares, no sentido de discutir a sua importância na construção da sociedade brasileira com vistas a questionar e fomentar o debate em torno do processo de formação dos sujeitos.

Trata-se de uma pesquisa documental de abordagem crítica inserida nos debates curriculares. Para Cechinel et al. (2016CECHINEL, André et al. Estudo/Análise Documental: uma revisão teórica e metodológica. Criar Educação. Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação - UNESC, Criciúma, v. 5, n. 1, p. 1-7, jan./jun. 2016., p. 4), “[...] a análise documental inicia-se pela avaliação preliminar de cada documento, realizando o exame e a crítica do mesmo [...]” conforme o olhar epistemológico do pesquisador. Após a análise preliminar, deve-se fazer uma interpretação coerente e profunda, porém não deixando de lado os “[...] elementos da problemática ou do quadro teórico, contexto, autores, interesses, confiabilidade, natureza do texto, conceitos-chave” (Cellard, 2012CELLARD, André. A Análise Documental. In: POUPART, Jean et al. A Pesquisa Qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Tradução de Ana Cristina Nasser. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. (Coleção Sociologia). p. 295-316., p. 303).

Nessa perspectiva, o texto foi elaborado a partir dos estudos, debates e reflexões com base em referenciais teóricos que versam sobre o currículo sob uma visão crítica, contra-hegemônica e de superação da “mercantilização da educação” (Mészáros, 2008MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.). A discussão desses documentos legais vai ao encontro da necessidade de se analisar e se questionar o contexto de elaboração desses marcos regulatórios e como isso influencia na compreensão que esses documentos apresentam sobre a formação humana no processo educativo.

Das leituras das DCN e BNCC emergiram duas categorias de análise apresentadas no Quadro 1. A categorização pode ser entendida como um processo de síntese de dados. Por meio dessa análise, almeja-se desenvolver uma síntese de uma comunicação, destacando-se nesse decurso os aspectos mais importantes no que tange ao processo de esvaziamento das modalidades e da diversidade e inclusão da educação básica na BNCC (Olabuenaga; Ispizúa, 1989OLABUENAGA, José I. R.; ISPIZUA, María A. La descodificacion de la vida cotidiana: metodos de investigacion cualitativa. Bilbao: Universidad de Deusto, 1989.) .

Quadro 1
Categorias e subcategorias dos documentos analisados

Devido à quase ausência da abordagem das DCN no texto da BNCC, as categorias e subcategorias presentes no Quadro 1 serão discutidas no tópico que se refere às DCN. No entanto, para se compreender a construção dos documentos analisados e suas influências, inicialmente será apresentado um panorama histórico das políticas públicas educacionais e curriculares a partir da redemocratização do País atravessada pelo viés neoliberal.

POLÍTICAS CURRICULARES NO BRASIL

As mudanças das relações institucionais ocorreram com a redemocratização na década de 1980 no contexto da passagem do capitalismo industrial para o de mercado globalizado. Malanchen (2016MALANCHEN, Júlia. Cultura, Conhecimento e Currículo: contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas: Autores Associados, 2016.) afirma que no Brasil havia uma efervescência das lutas da classe trabalhadora, enquanto no exterior eram difundidas as ideias neoliberais e pós-modernas. Naquele período, teve início a onda construtivista que, até o fim daquela década, já se mostrava como o grande modismo na educação brasileira. O projeto neoliberal foi institucionalizado a partir do governo do presidente Fernando Collor de Mello no final dos anos 1980. Para Coggiola e Katz (1996COGGIOLA, Osvaldo L.; KATZ, Cláudio. Neoliberalismo ou crise do capital? São Paulo: Xamã, 1996.), o representante oficial do neoliberalismo no País foi Fernando Henrique Cardoso, que, quando senador, impôs à reforma constitucional de 1988 os princípios fundamentais dessa doutrina: dentre os principais está a abertura política permitindo a inserção de organismos internacionais na educação pública e fomentando as privatizações.

Com a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 64/2010, pelo Decreto nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010. 544 p.), asseguraram-se os direitos fundamentais dos cidadãos e garantiu-se que a educação passasse a ser um direito humano subjetivo no Art. 205 e estabelecido como dever do Estado no Art. 208. Dessa forma, a primeira intencionalidade de elaboração de um currículo nacional apareceu na CF/1988 no Art. 210: “[...] serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito dos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (Brasil, 2010BRASIL. Decreto nº 10.502, 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE 2020). Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm . Acesso em:30 mar. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, p. 137).

Nesse contexto, somado às mudanças no mundo do trabalho e à elaboração de uma nova LDB, surgiu na sociedade o debate sobre uma formação que contemplasse dimensões políticas comprometidas com a cidadania. Em contrapartida, ocorreu a mobilização em torno da reformulação curricular no interior das instituições federais pela implantação de um currículo comum da educação tecnológica baseado na conexão entre ensino e trabalho, excluindo-se a oposição entre cultura e profissão. Nessa perspectiva, havia um discurso de alinhavar a educação escolarizada “[...] com as mudanças tecnológicas, culturais e socioeconômicas, mas o que se colocou em prática foi um intenso processo de formatação da escola segundo os moldes impostos pela lógica do capitalismo do fim do século XX e início do século XXI de acordo com o ideário neoliberal” (Malanchen; Santos, 2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020., p. 3).

O panorama de reformas que se realizaram na maioria dos países a partir dos anos de 1990 teve como marco inicial a Conferência Mundial de Educação para Todos em Jomtien, que trouxe como resultado a assinatura da Declaração Mundial sobre Educação para Todos e o Marco de Ação para a Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem (1993). Essas necessidades básicas eram, e ainda são, definidas conforme as adaptações às novas relações do capital. Isto corrobora com os apontamentos que Duarte (2018DUARTE, Newton. O Currículo em Tempos de Obscurantismo Beligerante. Revista Espaço do Currículo, v. 2, n. 11, p. 139-145, 2018. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/rec/article/view/ufpb.1983-1579.2018v2n11.39568 . Acesso em:25 jun. 2022.
https://periodicos.ufpb.br/index.php/rec...
) apresenta no artigo “O currículo em tempos de neoliberalismo beligerante”. Nessa acepção, posiciona-se aqui pelo “enriquecimento das necessidades”, e não pela satisfação das necessidades básicas.

No Brasil, um documento central nas reformas é o Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), com o título Educação: um tesouro a descobrir, organizado por Jacques Delors e publicado em parceria com o Ministério da Educação (MEC) em 1998. Esse relatório apresenta e defende os quatro pilares da educação - aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser -, que sinalizam a transferência das responsabilidades do Estado para o sujeito individual.

Um marco legislativo na educação é a aprovação da LDB, em 20 de dezembro de 1996, que definiu e regulamentou o sistema educacional brasileiro. A aprovação dessa lei intensificou o movimento de reformas na educação brasileira, que tomou corpo mediante as regulamentações posteriores realizadas na estrutura educacional.

Malanchen e Santos (2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020., p. 3) afirmam que “[...] as reformas na educação escolar brasileira tiveram como um de seus alvos o currículo escolar, tendo-se constituído num marco, nesse sentido, a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (PCN)”. Esse documento indicou trabalhar por área de conhecimento e por “temas transversais” (ética, saúde, meio ambiente, pluralidade cultural, orientação sexual e trabalho e consumo). Os fundamentos dos PCN trazem em seu bojo o que é proposto pelo Relatório Delors, isto é, atender às exigências da sociedade capitalista, mantendo a coesão social, ou seja: evitar a “ameaça de fratura” das instituições provenientes da pobreza, da desigualdade, do desemprego, da injustiça social (Hayek, 1985HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, 1985.).

Para a formulação de uma política de diversidade cultural nos anos de 1990, o MEC agiu de várias formas, iniciando com um seminário internacional intitulado Multiculturalismo e racismo, e tentou adaptar as políticas do multiculturalismo norte-americano à realidade brasileira, evidenciando o que a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) salienta sobre as lutas de grupos historicamente excluídos: “[...] que as contradições assentadas em interesses de classes não podem ser superadas, mas as diferenças podem ser articuladas” (Faustino, 2006FAUSTINO, Rosângela C. Política Educacional nos anos de 1990: o Multiculturalismo e a interculturalidade na educação escolar indígena. 334 f. Tese (Doutorado em Educação). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2006., p. 107).

Num contexto de críticas e de reações negativas aos PCN por parte de representantes do meio acadêmico nacional, surgiram discussões para a elaboração de diretrizes, em que intelectuais desse campo foram convidados a assessorar na elaboração das novas Diretrizes Nacionais para o Currículo da Educação Básica. Assim o fizeram a partir da teoria multicultural, que já tinha sua semente plantada no Relatório Delors e nos PCN de 1997. Uma das justificativas para a reformulação das DCN foi a Lei nº 11.274 de 2006, que instituiu a implantação do Ensino Fundamental de nove anos. Dessa maneira, ficou acordado, entre o Conselho Nacional de Educação (CNE) e diversas entidades e instituições ligadas à educação, revisar e atualizar as diretrizes para atender as demandas da nova forma de oferta da Educação Básica (Malanchen, 2016MALANCHEN, Júlia. Cultura, Conhecimento e Currículo: contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas: Autores Associados, 2016.).

Os anos de 1990 foram marcados por reformas curriculares na educação básica brasileira. Essas mudanças visaram difundir e implantar, supostamente, uma nova concepção do papel da escola, bem como dos conteúdos curriculares e dos métodos de ensino e aprendizagem. Dessa forma, o processo de escolarização continuou a ser utilizado como mecanismo de conformação da classe trabalhadora, agora dentro de um paradigma societário renovado pelo espírito neoliberal.

A formação escolar aqui é entendida como indispensável para o projeto de nação e construção de uma nova sociedade. A educação é vista como a condição primeira para o exercício da cidadania e o acesso aos direitos sociais, econômicos, civis e políticos, além de proporcionar o desenvolvimento humano na sua plenitude, em condições de liberdade, dignidade, respeito e valorização das diferenças.

DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS (DCN)

Na publicação de 2013 estão reunidas as novas DCN, que estabelecem a base nacional comum, responsável por orientar a organização, a articulação, o desenvolvimento e a avaliação das propostas pedagógicas de todas as redes de ensino brasileiras. Para elaborar essas diretrizes, o CNE contou com a participação e contribuição de especialistas, pesquisadores, integrantes de sistemas de ensino, técnicos do MEC e membros das entidades representativas dos trabalhadores em educação que participaram dos seminários, debates e audiências públicas. Isso foi feito com o objetivo de promover o aperfeiçoamento da educação nacional, tendo em vista o atendimento às novas demandas educacionais geradas pelas transformações sociais e econômicas e pela acelerada produção de conhecimentos. Sendo assim, a reelaboração das DCN é um instrumento que insere e busca repensar o currículo da educação básica, caracterizado por um viés progressista e que destaca os movimentos sociais. Nesse sentido, o documento foi construído em âmbito democrático.

Desse modo, o MEC coloca à disposição das instituições educativas e dos sistemas de ensino de todo o Brasil um conjunto de Diretrizes Curriculares que articulam os princípios, os critérios e os procedimentos que devem ser observados na organização e com vistas à consecução dos objetivos da Educação Básica. As DCN são normas obrigatórias para a educação básica que orientam o planejamento curricular das escolas e do sistema de ensino. Mesmo após a elaboração da BNCC, as diretrizes curriculares continuam em vigência e deveriam ser complementares e dar estrutura desse marco normativo no detalhamento dos conteúdos e competências. Nas DCN de 2013, o trabalho é compreendido como princípio educativo diferentemente de como está estabelecido na Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018, que atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, enfatizando a qualificação a partir da educação para o mundo do trabalho (Brasil, 2018bBRASIL. Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018. Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, 2018b. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/novembro-2018-pdf/102481-rceb003-18/file . Acesso em:25 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/novembro...
).

As DCN reúnem resoluções e pareceres que estabelecem, em forma de lei, referências para a educação básica no País. Essas diretrizes trouxeram resultados de um amplo debate no campo educacional que visava promover uma formação ampla que considerasse as diferentes condições sociais, culturais, emocionais, físicas e étnico-raciais dos estudantes, o que representou um grande avanço na agenda educacional, delineando as concepções político-pedagógicas para todas as etapas e modalidades de ensino, além das diretrizes e resoluções dos eixos temáticos contemporâneos.

Em relação à categoria 1 (Quadro 1), que se refere às modalidades da educação, as DCN, no tocante à subcategoria Educação Escolar Indígena, destacam as particularidades dos povos indígenas e o protagonismo que exercem no cenário educacional brasileiro. Isso se deve à luta de organizações de professores, a ocupações nos espaços institucionais estratégicos como as escolas, a Coordenações Indígenas nas Secretarias de Educação, ao Grupo de Trabalho Técnico Multidisciplinar da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena do MEC e ao próprio CNE. Essa modalidade de ensino objetiva a garantia dos direitos dos povos indígenas que, ao longo da história, tiveram seus direitos violados. Como o próprio texto destaca, é pela “[...] construção de uma relação mais respeitosa e promotora da justiça social por meio das práticas da educação escolar que se dá a construção destas diretrizes como forma de promover a ampliação do diálogo intercultural entre o Estado brasileiro e os povos indígenas” (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
, p. 375).

Outra subcategoria especificada nas DCN é a Educação Escolar Quilombola, cujo objetivo é a formação dos estudantes quilombolas. O processo formativo nas unidades educacionais inscritas nos quilombos considera todos os aspectos que norteiam a cultura negra, que requer uma pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente. Partindo desse pressuposto, “[...] o projeto político-pedagógico a ser construído é aquele em que os estudantes quilombolas e demais estudantes presentes nas escolas da Educação Escolar Quilombola possam estudar a respeito dessa realidade de forma aprofundada, ética e contextualizada” (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
, p. 450).

Esses movimentos de discussões nos âmbitos nacional e internacional contribuíram de forma decisiva para a criação da educação quilombola, que propõe um processo formativo pensado a partir da realidade de vida nas comunidades remanescentes, tendo em vista a preservação de suas manifestações culturais e a sustentabilidade de seu território tradicional (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
).

Para a subcategoria Educação do Campo, as diretrizes operacionais descritas pela Resolução nº 1, de 3 de abril de 2002, expressam um alerta importante sobre a recente preocupação com essa modalidade no País e sobre a necessidade da “[...] utilização do espaço do campo como fundamental em sua diversidade, para a constituição da identidade da população rural” (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
, p. 282). Esse marco representou um grande avanço para a educação básica nas escolas dessas localidades, pois pela primeira vez na história da educação brasileira foi produzido um documento legal que orienta e se ocupa da organização do processo formativo da população que vive no campo, de modo que os estudantes tenham seus direitos sociais e culturais garantidos e possam reafirmar suas identidades sem descaracterizar o ambiente de formação.

No que concerne à subcategoria Educação Especial, em janeiro de 2008, foi publicada a nova Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva da Secretaria de Educação Especial (SEESP), que passou a orientar os sistemas educacionais para a organização dos serviços e recursos da Educação Especial, de forma a complementar o ensino regular, como oferta obrigatória e de responsabilidade dos sistemas de ensino. Essa política resgata o sentido da Educação Especial expresso na CF/1988, que interpreta esta modalidade não substitutiva da escolarização comum e define a oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE) em todas as etapas, níveis e modalidades, preferencialmente no atendimento à rede pública de ensino. A concepção da Educação Especial nessa perspectiva da educação inclusiva busca superar a visão do caráter da organização de espaços educacionais separados para alunos com deficiência. Essa compreensão orienta que a oferta do AEE será planejada para ser realizada em turno inverso ao da escolarização, contribuindo efetivamente para garantir o acesso desses estudantes à educação comum e disponibilizando os serviços e apoios que complementam a formação desses sujeitos nas classes comuns da rede regular de ensino. Dado o caráter complementar dessa modalidade e sua transversalidade em todas as etapas, níveis e modalidades, a política visa atender alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação e inova ao trazer orientações pertinentes às condições de acessibilidade dos alunos, necessárias à sua permanência na escola e ao prosseguimento acadêmico. Além disso, as DCN ressaltam que, desde 2010, esses alunos deveriam ser contabilizados duplamente no âmbito do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), quando matriculados em classes comuns do ensino regular e no atendimento educacional especializado.

A subcategoria que discorre sobre a Educação de Jovens e Adultos está expressa na Resolução nº 3, de 15 de junho de 2010, que institui Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos nos aspectos relativos à duração dos cursos e à idade mínima para ingresso nos cursos de EJA; e idade mínima e certificação nos exames de EJA e Educação de Jovens e Adultos desenvolvida por meio da Educação à Distância (EaD). Essa diretriz manteve a idade mínima para a matrícula nos cursos de EJA e para a realização de exames de conclusão de EJA no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, que é de 15 e 18 anos completos, respectivamente. Isto já era observado no artigo 4º, inciso VII, da LDB/1996 (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 de dezembro de 1996. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm . Acesso em:15 mar. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). A novidade dessa diretriz no que tange à EJA é a normatização da modalidade desenvolvida por meio da EaD. Sobre esse aspecto, o Art. 9º especifica o reconhecimento do ambiente virtual como espaço de aprendizagem restrito ao segundo segmento do Ensino Fundamental (EF) e ao Ensino Médio (EM). Além disso, detalha as características como carga horária e idade mínima tanto para o EF quanto para o EM.

A última subcategoria sobre as modalidades da educação aqui discutidas é a Educação Profissional e Tecnológica, que, nos termos da LDB/1996, alterada pela Lei nº 11.741/2008, abrange os cursos de formação inicial e continuada ou qualificação profissional; Educação Profissional Técnica de Nível Médio e Educação Profissional Tecnológica, de graduação e pós-graduação. De acordo com as DCN, a Educação Profissional Técnica de Nível Médio pode ser desenvolvida nas formas articulada e subsequente ao Ensino Médio, podendo a primeira ser integrada ou concomitante com essa etapa da Educação Básica, a exemplo dos Institutos Federais e algumas instituições que atendem essa modalidade, e passaram a ser obrigatórias a partir da publicação do documento.

Como já mencionado, além das diretrizes das modalidades supracitadas, nas DCN de 2013, estão previstos os eixos temáticos contemporâneos tratados na categoria 2 (Quadro 1), a exemplo da Educação Ambiental (EA), descrita na Resolução n° 2, de 15 de junho 2012, baseada na Lei n° 9.795/1999, que institui a obrigatoriedade e o direito da inserção da EA nos currículos escolares no Brasil. O documento orienta que a EA deve ser trabalhada de forma transversal e interdisciplinar em todos os níveis e modalidades do processo educativo (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
). Para tanto, é importante que os professores tenham conhecimento desse instrumento legal e, a partir dele, organizem suas atividades de modo a superarem a forma fragmentada como a EA é feita nos ambientes educacionais formais e não formais. A inserção da temática ambiental na prática educativa é essencial na formação dos sujeitos, pois, por meio dela, é possível repensar e refletir ações para problemas ambientais planetários como consequências advindas das ações antrópicas resultantes das relações capitalistas de produção.

A subcategoria Educação em Direitos Humanos é descrita a partir dos direcionamentos da Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012, descritos como “[...] frutos da luta pelo reconhecimento, realização e universalização da dignidade humana” (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
, p. 515). Nesse documento normativo, a educação é entendida como parte fundamental para o processo de superação das contradições e desigualdades construídas historicamente, que marcam e assolam a sociedade e a educação brasileira, bem como é reconhecida como parte do conjunto de direitos dos sujeitos. Nesse contexto, os direitos humanos aparecem como uma necessidade para adotar novas formas e medidas nas organizações educacionais de forma a superar paradigmas homogeneizantes presentes.

A Educação em Direitos Humanos é refletida na própria noção de educação expressa na CF/1988 e na LDB/1996 na busca da redefinição dos compromissos nacionais com a formação dos direitos e deveres dos sujeitos; ou seja, significa dizer que todos têm o direito de usufruir da educação democrática e não discriminatória, respeitando-se a subjetividade de cada indivíduo, tanto quanto formar crianças, jovens e adultos para exercitar seus direitos e participar da vida em sociedade de forma ativa e cidadã, com respeito e promoção dos direitos das demais pessoas.

No que tange à subcategoria Educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais, observa-se que, mesmo antes da aprovação das DCN, a Lei de Execução Penal Brasileira (LEP) (Lei n° 7.210, de 11/7/1984), marco legal mais importante na área, determinava expressamente que os estabelecimentos deveriam respeitar os direitos humanos a partir da oferta e assistência educacional aos presos e presas. Entretanto, a LDB/1996, embora posterior à LEP, não contemplou propriamente dispositivos específicos sobre a educação em espaços de privação de liberdade. Essa omissão foi corrigida no Plano Nacional de Educação (PNE), instituído pela Lei n° 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Em relação aos direitos das pessoas privadas de liberdade, as DCN afirmam que eles “[...] mantêm a titularidade dos demais direitos fundamentais, como é o caso da integridade física, psicológica e moral. O acesso ao direito à educação lhe deve ser assegurado universalmente na perspectiva acima delineada e em respeito às normas que o asseguram” (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
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, p. 317).

Nessa perspectiva, as DCN não têm o objetivo de “resolver” questões administrativas e nem de ordem da execução penal, mas, sim, questões de ordem da política de educação para o sistema penitenciário que sejam atribuição do órgão normativo da educação nacional. Até então não havia orientação nacional por meio de uma norma, certamente para evitar que as políticas de oferta de educação nas prisões fossem pontuais, dispersas e destituídas de orientação pública. Não existe no País uma experiência homogênea nacional de educação nas prisões, nem existe uma política nacional para implementação da LEP. Necessita-se da inserção de ações de política de Estado. A oferta de educação nos estabelecimentos penais é importante para mudar a atual cultura de prisão, a partir da sensibilização e mobilização da sociedade sobre os direitos educativos das pessoas encarceradas. Diante do explicitado, assegurar educação a essas pessoas não é benefício, pelo contrário, é direito humano subjetivo previsto nas legislações internacional e brasileira e faz parte da proposta de política pública de execução penal com o objetivo de possibilitar a reinserção social do apenado e, principalmente, garantir a sua plena cidadania.

Outra subcategoria é a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que está fundamentada na indicação do CNE/CP 6/2002 e regulamentada por meio da alteração da LDB/1996 pela Lei nº 10.639/2003. A referida diretriz versa sobre o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, além das histórias e culturas que foram a mola mestra para a formação da identidade do povo brasileiro, cumprindo o que determina a CF/1988. Estas discussões reforçam a necessidade da elaboração de currículos que atendam às demandas e urgências em relação ao processo de reconhecimento dos diferentes grupos étnicos raciais que historicamente estiveram numa condição de inferioridade, negação de direitos e, principalmente, vítimas de um racismo estrutural. Portanto, as DCN destacam a necessidade da criação de políticas de ações afirmativas, fundamentadas nas dimensões históricas, sociais e antropológicas oriundas da realidade brasileira, voltadas para a reparação das demandas da população afrodescendente, por meio do desenvolvimento de políticas de reparações e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade. Esses dispositivos legais incorporados nos currículos partem das reivindicações e propostas do Movimento Negro ao longo do século XX, ao evidenciarem a necessidade de diretrizes que orientem a formulação de projetos empenhados na valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e africanos (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
).

A última subcategoria dos eixos temáticos contemporâneos versa sobre as diretrizes de atendimento escolar de crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância. A descontinuidade e a não permanência de crianças, adolescentes, jovens e adultos nas escolas, causadas pela condição de itinerância, têm afetado sua formação na Educação Básica, impedindo-lhes o direito à educação. Assim, o CNE, por meio da Resolução nº 3, de 16 de maio 2012, estabeleceu as diretrizes para o atendimento escolar na Educação Infantil e Ensino Fundamental e Médio de crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância, “[...] pertencentes a diferentes grupos sociais que, por motivos culturais, políticos, econômicos, de saúde, dentre outros, se encontram nessa condição fora do ambiente escolar” (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional de Educação; Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC; SEB; DICEI, 2013. 565 p. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013-pdf/file . Acesso em: 10 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/docman/julho-20...
, p. 417). Em resumo, essas orientações têm relevância na atualidade pois estabelecem, em forma de lei, os encaminhamentos que não se limitam à matrícula desses estudantes, mas concernem à permanência na escola por meio da garantia dos direitos às atividades e estratégias pedagógicas adequadas às suas necessidades de aprendizagem e que considerem as particularidades desses sujeitos, sem preconceito e discriminação, de modo a lhes assegurar o direito à educação.

Na última década, conseguiram-se avanços significativos e contribuições importantes no desenvolvimento de normativas voltadas para a compreensão sócio-histórica e cultural do País, como apresentadas nas DCN. Tais avanços trouxeram reconhecimento e valorização dessa diversidade sociocultural para o campo curricular. Por isso, é importante mencionar que, ao contemplar as modalidades de ensino e eixos temáticos contemporâneos citados anteriormente, as DCN enfatizam o desenvolvimento de propostas curriculares que atendam às particularidades desses grupos que historicamente vivenciaram o processo de silenciamento. Contudo, mesmo ao considerar os avanços que essas diretrizes trouxeram, a BNCC, construída num período de obscurantismo beligerante, “[...] trata-se da difusão de uma atitude de ataque ao conhecimento e à razão” (Duarte, 2018DUARTE, Newton. O Currículo em Tempos de Obscurantismo Beligerante. Revista Espaço do Currículo, v. 2, n. 11, p. 139-145, 2018. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/rec/article/view/ufpb.1983-1579.2018v2n11.39568 . Acesso em:25 jun. 2022.
https://periodicos.ufpb.br/index.php/rec...
, p. 139), que provocou uma fragilização na organização da proposta curricular para a Educação Básica, que será discutida a seguir.

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

A expressão “base nacional comum” tem sido utilizada no campo educacional desde a década de 1980 (Cássio, 2019CÁSSIO, Fernando. Existe vida fora da BNCC?In: CÁSSIO, Fernando; CATELLI JÚNIOR, Roberto (Orgs.). Educação é a Base? 23 educadores discutem a BNCC. São Paulo: Ação Educativa, 2019. p. 13-39.). Após oito anos da promulgação da CF/1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 64/2010, pelo Decreto nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010. 544 p., foi aprovada a LDB/1996 afirmando, no Art. 26, que “[...] os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum” (Brasil, 1996, p. 21). Dessa forma, o processo de construção da BNCC foi pensado a longo prazo e articulado com instituições e organismos vinculados a um projeto de sociedade neoliberal; isto é, a recente homologação da BNCC demonstra a capacidade de articulação e empenho, desde 2013, de um novo conglomerado de forças econômicas para a educação - o Movimento pela Base (MPB) -, que transcende o Todos Pela Educação e é composto por grupos monopolistas de capital financeiro, frações da grande burguesia brasileira (Neves; Peccinini, 2018NEVES, Rosa Maria C. das; PICCININI, Cláudio L. Crítica do Imperialismo e da Reforma Curricular Brasileira da Educação Básica: evidência histórica da impossibilidade da luta pela emancipação da classe trabalhadora desde a escola do estado. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 10, n. 1, p. 184-206, maio 2018.).

Contudo, a efetivação da produção da BNCC passou por três versões: a primeira no ano de 2015; a segunda em 2016, definindo as orientações para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental; e a última versão homologada no final do ano de 2017. Para o Ensino Médio, a aprovação aconteceu em dezembro de 2018, logo após a Reforma do Ensino Médio, ao se reafirmar a fragmentação da escolarização básica. É importante destacar o contexto político e de disputa envolvido no processo da construção e elaboração desse documento, que teve início no governo Dilma Rousseff (2011-2016). Até a sua publicação e homologação final, passou pelos governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022), caracterizando o campo de disputa que ocorreu em um momento de pressão dos grupos monopolistas de “empresariamento da educação”.

Segundo Malanchen e Santos (2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020.), na primeira versão da BNCC, o foco da pedagogia das competências não estava explícito. Na segunda versão, aprovada em meio ao golpe político de 2016, já são perceptíveis as transformações nas suas entrelinhas, além de apresentar um processo de construção acelerado e antidemocrático. Na terceira e última versão, aprovada em dezembro de 2017, “[...] como também na versão aprovada para o Ensino Médio no final de 2018, o documento está todo definido e organizado, por competências e habilidades [...]”, ou seja, o modelo da pedagogia das competências “[...] já criticado na época dos PCNs e está de volta na BNCC” (Malanchen; Santos, 2020, p. 6). Nessa perspectiva, as autoras corroboram a forma fragmentada da elaboração desse documento, além da incorporação, no texto, das necessidades básicas de aprendizagem para atender ao mercado de trabalho por meio de itinerários formativos e projetos de vida que atribuem a responsabilidade da própria formação ao estudante, definindo o êxito no viés meritocrático.

As autoras lembram também que o marco regulatório da implementação da pedagogia das competências no Brasil foi a LDB/1996. Essa lei pressupõe que a formação educacional seja pautada no desenvolvimento de competências e habilidades para o mercado de trabalho. Tal orientação está alinhada aos pressupostos pedagógicos emanados dos organismos multilaterais, especialmente a UNESCO e o Banco Mundial.

A BNCC é um documento normativo que orienta os currículos dos sistemas e redes de ensino das Unidades Federativas, como também as propostas pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, em todo o Brasil, com as quais os currículos têm de se identificar na comunhão de princípios e valores que orientam a LDB/1996 e as DCN/2013. Dessa maneira, reconhece-se que a educação tem um compromisso com a formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica (Brasil, 2018aBRASIL. Base Nacional Comum Curricular, 2018a. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf . Acesso em: 10 mar. 2022.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
).

BNCC e currículos têm papéis complementares para assegurar as aprendizagens essenciais definidas para cada etapa da Educação Básica, uma vez que tais aprendizagens só se materializam mediante o conjunto de decisões que caracterizam o currículo em ação. São essas decisões que vão adequar as proposições da BNCC à realidade local, considerando a autonomia dos sistemas ou das redes de ensino e das instituições escolares, como também o contexto e as características dos alunos. Essa abertura é dada pela BNCC, que pode ocorrer - como está ocorrendo - em processo de esvaziamento do que propõem as diretrizes curriculares.

Coaduna-se com Saviani no questionamento quanto a haver tanto empenho em elaborar um documento sobre a base comum curricular se as DCN definidas pelo CNE continuam em vigência. Para compreender a resposta, é necessário entender todo o contexto político, econômico, social e educacional de várias décadas anteriores e inferir que o ideal de sujeitos que a escola quer formar está indissoluvelmente ligado às políticas educacionais de cada época histórica (Saviani, 2016SAVIANI, Demerval. Educação Escolar, Currículo e Sociedade: o problema da Base Nacional Comum Curricular. Revista de Educação Movimento, ano 3, n. 4, p. 54-84, 2016.).

DCN VERSUS BNCC

Ao se analisarem e contrastarem as DCN e a BNCC, percebem-se muitas discrepâncias. A primeira delas é o tratamento dado às diretrizes no documento da BNCC, em que as DCN são referenciadas no corpo do texto, e as resoluções e os pareceres são citados por meio de notas de rodapé, considerando que ainda estão em vigência. Além disso, a BNCC ressalta a necessidade de utilização das DCN na elaboração de currículos. Contudo, o documento normativo direciona a construção autônoma do currículo das modalidades a encargo das secretarias estaduais e municipais. Dessa forma, estas decisões deverão estar adequadas à realidade local e considerar as particularidades e singularidades dos alunos. Essa abertura remete a uma fragilidade, isto é, a liberdade que as instituições de ensino têm de incluir ou não as modalidades nas propostas curriculares e a não garantia do cumprimento por falta de fiscalização dos órgãos competentes e de políticas públicas, visto que a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) foi extinta no início do mandato do governo Jair Bolsonaro por meio do Decreto nº 9.465/2019 (Brasil, 2019BRASIL. Decreto nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Educação, remaneja cargos em comissão e funções de confiança e transforma cargos em comissão do Grupo Direção e Assessoramento Superiores - DAS e Funções Comissionadas do Poder Executivo - FCPE. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/decreto-9465-janeiro-2019-ensino-militar.pdf. Acesso em:13 fev. 2023.). A SECADI desenvolvia políticas para a melhoria dos indicadores na Educação Básica, e tais políticas tinham como objetivo a elevação da qualidade das escolas, bem como a garantia de que as necessidades, direitos sociais e formação integral dos educandos fossem preservados. O referido decreto não atribuiu a mesma importância das políticas de inclusão e diversidade desenvolvidas nos governos anteriores como resultado dos diferentes debates e movimentos sociais que eclodiram nos últimos anos.

Nessa perspectiva, evidencia-se um processo de invisibilidade na BNCC quanto ao que é proposto nas DCN. Segundo Evangelista e Shiroma (2018EVANGELISTA, Olinda; SHIROMA, Eneida O. Subsídios Teórico-Metodológicos para o Trabalho com Documentos de Política Educacional: contribuições do marxismo. In: CÊA, Georgia S.; RUMMERT, Sonia M.; GONÇALVES, Leonardo D. (Orgs.). Trabalho e Educação: interlocuções marxistas. Rio Grande: FURG, 2018. p. 87-124.), é preciso decifrar os objetivos explícitos ou implícitos e as vozes caladas nos documentos de políticas educacionais a fim de compreender suas contribuições para a reprodução da hegemonia burguesa. Nesse sentido, o documento normativo afirma que:

[...] devem levar em consideração a necessidade de superação dessas desigualdades. Para isso, os sistemas e redes de ensino e as instituições escolares devem se planejar com um claro foco na equidade, que pressupõe reconhecer que as necessidades dos estudantes são diferentes. De forma particular, um planejamento com foco na equidade também exige um claro compromisso de reverter a situação de exclusão histórica que marginaliza grupos - como os povos indígenas originários e as populações das comunidades remanescentes de quilombos e demais afrodescendentes - e as pessoas que não puderam estudar ou completar sua escolaridade na idade própria. Igualmente, requer o compromisso com os alunos com deficiência, reconhecendo a necessidade de práticas pedagógicas inclusivas e de diferenciação curricular, conforme estabelecido na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) (Brasil, 2018aBRASIL. Base Nacional Comum Curricular, 2018a. Disponível em: Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf . Acesso em: 10 mar. 2022.
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, p. 15-16).

Entretanto, a BNCC não corrobora com estas considerações ao não especificar as modalidades de ensino e os sujeitos excluídos historicamente pela sociedade, tentando homogeneizar o ensino. Nesse sentido, “[...] adequar os sujeitos ao capitalismo é manter as desigualdades educacionais referentes ao atendimento escolar do público alvo da educação especial” (Ferreira; Moreira; Volsi, 2020FERREIRA, Gesilaine M.; MOREIRA, Jani Alves da S.; VOLSI, Maria Eunice F. Políticas Educacionais, Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Educação Especial no Brasil. In: XIIIREUNIÃO CIENTÍFICA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO(ANPEd-Sul), 2020, Blumenau. 2020 Anais [...]. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/19/6033-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em:28 mar. 2022.
http://anais.anped.org.br/regionais/site...
, p. 4). Soma-se a essa acomodação a publicação da Resolução nº 1/2021, de 28 de maio de 2021, que institui as Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos nos aspectos relativos ao seu alinhamento à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e a Educação de Jovens e Adultos à Distância (Brasil, 2021bBRASIL. Resolução nº 1, de 28 de maio de 2021. Institui Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos nos aspectos relativos ao seu alinhamento à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e Educação de Jovens e Adultos a Distância, 2021b. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=191091-rceb001-21&category_slug=junho-2021-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 25 jun. 2022.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
). Em relação à elaboração do documento, percebe-se que não houve diálogo nem participação dos diferentes segmentos sociais, incluindo os Fóruns de EJA do Brasil2 2 Fóruns de EJA do Brasil são redes de movimentos coletivos que agregam instituições e indivíduos dedicados à defesa da dignidade e do direito humano à educação de trabalhadores jovens, adultos e idosos. Atuam propositando políticas e práticas de EJA, de forma horizontal, autônoma e suprapartidária, voltados à salvaguarda e ao desenvolvimento da educação popular e continuada durante toda a vida, objetivando uma sociedade justa, democrática e plural. , para garantir uma construção democrática e ampliar o direito da população na definição dos rumos educacionais brasileiros. Mesmo com diversas manifestações contrárias a essa diretriz, não houve posicionamento do MEC - o que era de se esperar, dada a extinção da SECADI. Nesse sentido, é “[...] oportuno denunciar que, no atual momento histórico, a EJA está relegada à invisibilidade, dentro da estrutura da gestão [...]” (Sousa; Dantas; Conceição, 2021SOUSA, Roberto F.; DANTAS, Tânia R.; CONCEIÇÃO, Ana Paula S. da. O Currículo da Educação de Jovens e Adultos e a Formação dos Sujeitos. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 15, n. 32, p. 321-338, maio/ago. 2021. Disponível em: Disponível em: https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/1300/0 . Acesso em:19 mar. 2022.
https://retratosdaescola.emnuvens.com.br...
, p. 324) do Poder Executivo Federal.

A Resolução CNE/CEB nº 1/2021 e o Parecer CNE/CEB nº 1/2021 (Brasil, 2021aBRASIL. Parecer CNE/CEB nº 1/2021, aprovado em 18 de março de 2021. Reexame do Parecer CNE/CEB nº 6, de 10 de dezembro de 2020, que tratou do alinhamento das Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) apresentadas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e outras legislações relativas à modalidade, 2021a. Disponível em: Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/CNE_PAR_CNECEBN12021.pdf?query=educacao%20escolar%20quilombola . Acesso em:1º abr. 2022.
https://normativasconselhos.mec.gov.br/n...
) vão ao encontro do Decreto nº 10.502 de 2020 que instituiu os princípios da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE) (Brasil, 2020). Esse decreto foi muito criticado pelos pesquisadores e militantes da Educação Inclusiva porque é um retrocesso nas lutas pela equidade, pelo acesso, permanência e qualidade no atendimento do público nas escolas regulares. Sendo assim, não se pode esperar que a Resolução analisada seja inclusiva.

É importante pontuar que a revogação do Decreto nº 10.502/2020, que sustentava a PNEE, já estava contido no relatório final de transição de governo e, no dia 1º de janeiro de 2023, o atual presidente Luís Inácio Lula da Silva o revogou por meio do Decreto nº 11.370/2023 (Brasil, 2023bBRASIL. Decreto nº 11.370, de 1º de janeiro de 2023. Revoga o Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, 2023b. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11370.htm . Acesso em:27 jan. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Além disso, o atual presidente restituiu a SECADI por meio do Decreto nº 11.342/2023 (Brasil, 2023aBRASIL. Decreto nº 11.342, de 1º de janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Educação e remaneja cargos em comissão e funções de confiança, 2023a. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11342.htm . Acesso em:27 jan. 2023.
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). Contudo, cabe refletir que, ainda que seja uma avanço que o atual governo retome a secretaria que trata de desenvolvimento de políticas de inclusão e diversidade, é consenso que será um grande desafio superar as fragilidades causadas pelo desmonte que o governo Bolsonaro desencadeou na educação.

O professor Salomão Barros Ximenes, da Universidade Federal do ABC (UFABC), especialista em políticas públicas, numa entrevista na Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), em janeiro de 2023, esclarece que o desafio no momento é a SECADI incluir na sua agenda o direito a uma educação ampliada (Lula [...], 2023LULA autoriza reestruturação do MEC com volta da diversidade e inclusão. CNTE. 4 jan. 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.cnte.org.br/index.php/menu/comunicacao/posts/noticias/75631-lula-autoriza-reestruturacao-do-mec-com-volta-da-diversidade-e-inclusao . Acesso em: 27 jan. 2023.
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). Isso requer ações articuladas que perpassam diferentes secretarias do governo, dos movimentos sociais no provimento de debates e reflexões sobre a realidade gritante que assola os povos historicamente silenciados, como, por exemplo, o genocídio e omissão de socorro aos povos indígenas Yanomami. É importante considerar que essas mudanças ocorrerão paulatinamente, uma vez que demandam tempo, cautela e reestruturação. Não se pode esperar que essas transformações necessárias aconteçam num curto espaço de tempo, sobretudo pela polarização que ainda existe no campo político; todavia, é necessário que os diferentes sistemas de ensino, pesquisadores da educação e demais organismos sociais desenvolvam um trabalho articulado de mobilização para superar as fragilidades que ainda imperam no contexto nacional e que tanto enfraquecem a educação inclusiva.

Uma expressão que aparece diversas vezes, tanto no parecer quanto na resolução e na diretriz, é “Educação ao Longo da Vida” - apropriação neoliberal de um princípio que surgiu no início do século XX e está vinculado aos ideários da Educação Popular, que prevê a formação humana, em condição de Educação Permanente, no seu caráter emancipatório e democrático. Tal princípio considera a Educação ao Longo da Vida articulada a espaços escolares e não escolares (Gadotti, 2016GADOTTI, Moacir. Educação Popular e Educação ao Longo da Vida. In: Coletânea de Textos - Confintea Brasil +6. Brasília: MEC/Secadi, 2016. p. 50-69. Disponível em: Disponível em: https://www.catedraunescoeja.com.br/documento/eafbae3bac97da6d551367213a890d3d638876.pdf .Acesso em:2 abr. 2022.
https://www.catedraunescoeja.com.br/docu...
), levando-se em conta que a instituição escolar é o local que permite uma maior possibilidade de acessar os conhecimentos elaborados e sistematizados historicamente. Segundo Rodrigues e Costa (2018RODRIGUES, Maria Emília de C.; COSTA, Cláudia B. Trabalho e Educação Popular: diálogos entre educação profissional e educação de jovens e adultos. R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 27, n. 65/1, p. 447-467, maio/ago. 2018., p. 462), na educação popular, “[...] trabalho, ciência e cultura precisam estar em diálogo permanente com a formação geral e a profissional”. Nesse sentido, a educação permanente contrapõe-se ao ideário neoliberal que caracteriza o embate entre capital e trabalho na educação institucionalizada.

Dessa maneira, nas Diretrizes para a EJA de 2021, identifica-se que a expressão tem relação com a formação para o mercado de trabalho, na perspectiva de qualificação de mão de obra barata a ser usada em momentos de crise da sociedade capitalista, num viés utilitarista de atenção ao capital humano, que propõe perspectivas de formação acumulativa ao longo da vida. Esta vertente está alinhada à BNCC e é corroborada por Malanchen e Santos (2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020., p. 9) quando afirmam que se trata de “[...] desenvolver habilidades e competências que consolidam os princípios pedagógicos de manutenção do modo de produção capitalista, utilizando a escola pública, como meio de divulgação desses ideários[...]”, reduzindo o processo formativo à fragmentação da formação integral dos estudantes ao se direcionar para a ideia de uma sociedade mercadológica. Assim, os organismos internacionais foram desvirtuando o sentido da expressão, adequando-se à racionalidade econômica, isto é, “[...] o conceito nasceu no contexto do Estado-Previdência e acabou sendo reconceituado pelo Estado-Neoliberal” (Gadotti, 2016GADOTTI, Moacir. Educação Popular e Educação ao Longo da Vida. In: Coletânea de Textos - Confintea Brasil +6. Brasília: MEC/Secadi, 2016. p. 50-69. Disponível em: Disponível em: https://www.catedraunescoeja.com.br/documento/eafbae3bac97da6d551367213a890d3d638876.pdf .Acesso em:2 abr. 2022.
https://www.catedraunescoeja.com.br/docu...
, p. 57). Essa concepção de educação aponta para uma direção oposta a uma formação integrada do ser humano em um mundo digno e sustentável, pois se pretende homogeneizar a classe trabalhadora, não se respeitando as diferenças, com ênfase no individualismo e na competitividade. Por tudo isto, essa visão da educação “[...] não pode ser considerada como um princípio da educação do futuro mas um princípio da educação do passado” (Gadotti, 2016GADOTTI, Moacir. Educação Popular e Educação ao Longo da Vida. In: Coletânea de Textos - Confintea Brasil +6. Brasília: MEC/Secadi, 2016. p. 50-69. Disponível em: Disponível em: https://www.catedraunescoeja.com.br/documento/eafbae3bac97da6d551367213a890d3d638876.pdf .Acesso em:2 abr. 2022.
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, p. 67). De tal maneira, Ventura (2013VENTURA, Jaqueline. Educação ao Longo da Vida e Organismos Internacionais: apontamentos para problematizar a função qualificadora da Educação de Jovens e Adultos. Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, v. 1, n. 1, p. 29-44, 2013.) coaduna com os autores sobre a educação ao longo da vida e acrescenta que sua noção político-ideológica “[...] não é neutra, nem desprovida de intencionalidades. Pelo contrário, é uma contribuição fundamental para tecer e manter a hegemonia” (Ventura, 2013VENTURA, Jaqueline. Educação ao Longo da Vida e Organismos Internacionais: apontamentos para problematizar a função qualificadora da Educação de Jovens e Adultos. Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, v. 1, n. 1, p. 29-44, 2013., p. 41).

Cada contexto histórico, político, social e econômico demarca uma sociedade, e essa relação está refletida no ambiente escolar sob uma ideologia imperceptível aos questionamentos de muitos cidadãos. Atualmente, vivem-se tempos em que a classe dominante produz “[...] os discursos, suas justificativas e seus termos próprios para expressar o poder e suas determinações. Não sem contradições, mas sob o espírito inovador do capitalismo, geram-se novas sociabilidades adaptadas aos interesses dos grupos no poder” (Ciavatta; Ramos, 2012CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. A “Era das Diretrizes”: a disputa pelo projeto de educação dos mais pobres. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 49, p. 11-37, jan./abr. 2012., p. 13).

No que concerne à Educação Especial, Ferreira, Moreira e Volsi (2020FERREIRA, Gesilaine M.; MOREIRA, Jani Alves da S.; VOLSI, Maria Eunice F. Políticas Educacionais, Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Educação Especial no Brasil. In: XIIIREUNIÃO CIENTÍFICA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO(ANPEd-Sul), 2020, Blumenau. 2020 Anais [...]. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/19/6033-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em:28 mar. 2022.
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) salientam que na primeira e na segunda versões preliminares havia um tópico intitulado “A educação especial na perspectiva inclusiva e a Base Nacional Comum Curricular”; e, na segunda versão, constava um parágrafo com um breve resumo sobre a educação especial no tópico “A BNCC e as modalidades da educação básica”. As autoras evidenciam que esses dois tópicos foram extintos a partir da terceira versão preliminar, e não mais retomados. A BNCC não discrimina adequadamente o público-alvo da educação especial, mas o restringe às pessoas com deficiência, desconsiderando “[...] os alunos com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. A despeito de assumir o compromisso com os alunos com deficiência, a BNCC não trata das diferentes formas de deficiências e das respostas educativas por elas requeridas” (Ferreira; Moreira; Volsi, 2020FERREIRA, Gesilaine M.; MOREIRA, Jani Alves da S.; VOLSI, Maria Eunice F. Políticas Educacionais, Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Educação Especial no Brasil. In: XIIIREUNIÃO CIENTÍFICA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO(ANPEd-Sul), 2020, Blumenau. 2020 Anais [...]. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/19/6033-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em:28 mar. 2022.
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, p. 2). Com base nas reflexões das autoras, o processo de silenciamento da educação especial na BNCC é um retrocesso em relação às políticas da educação inclusiva no País, pois há um “[...] pseudodiscurso de respeito à diversidade e de inclusão como um instrumento ideológico de obtenção de consenso acerca da necessidade da BNCC, cuja implementação favorecerá os grupos dominantes atrelados ao mercado” (Ferreira; Moreira; Volsi, 2020FERREIRA, Gesilaine M.; MOREIRA, Jani Alves da S.; VOLSI, Maria Eunice F. Políticas Educacionais, Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Educação Especial no Brasil. In: XIIIREUNIÃO CIENTÍFICA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO(ANPEd-Sul), 2020, Blumenau. 2020 Anais [...]. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/19/6033-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em:28 mar. 2022.
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, p. 4).

De igual maneira, a Educação Escolar Indígena construída a partir de um ato político nas DCN não é refletida com a mesma intensidade na BNCC. Assim, no momento que se faculta a construção dos currículos às Secretarias de Educação, descaracterizam-se o comprometimento e a responsabilidade do Estado para com o processo de valorização e de manutenção da identidade e desenvolvimento desses povos. Mesmo reconhecendo a importância da Educação Escolar Indígena e considerando as diretrizes como marco normativo na elaboração dos currículos, observa-se que a BNCC não atribui a mesma atenção e importância aos direitos dos povos indígenas, sobretudo por facultar a elaboração dos currículos aos estados e às secretarias de educação. Nota-se que uma discussão tão complexa como esta, que demandou espaços de debates e construção de um posicionamento crítico, simplesmente foi reduzida a notas de rodapé.

No que tange à Educação do Campo, é possível observar um “recuo” nas políticas, ao se enfatizar na BNCC um sujeito individual e homogêneo que se contrapõe aos princípios e ideais da educação do e no campo, que se baseiam na coletividade.

Em síntese, as discussões desenvolvidas até o momento permitem afirmar que todas as modalidades da educação e eixos temáticos contemporâneos foram comprometidos com a aprovação da BNCC. Essa controvérsia entre os documentos normativos está explícita na discussão desta temática nas diretrizes, contemplando um vasto espaço de reflexões, enquanto no texto da BNCC é tratado apenas de forma superficial nas páginas 16 e 17 na parte introdutória. Nota-se, nesse sentido, um retrocesso no que tange à garantia dos direitos dessas pessoas. É preciso refletir sobre as urgências que se fazem presentes no processo de elaboração dos currículos e, principalmente, traçar possíveis caminhos de resistência e luta que possam minimizar os impactos que a BNCC traz para a formação dos grupos negligenciados historicamente.

Outra questão importante a ser refletida é que a BNCC por si só não alterará o quadro de desigualdades presente na Educação Básica do Brasil. Entende-se que é essencial que o processo de mudanças das políticas educacionais tenha início; contudo, é importante não esquecer que discussões e reflexões envolvidas nesses retrocessos representam um “território de disputa” no campo curricular (Arroyo, 2013ARROYO, Miguel G. Currículo, Território em Disputa. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.).

Convém destacar que o desenvolvimento do processo educacional de um país se reflete de forma proporcional à concepção de futuro pensada para a vida das pessoas. Nesse sentido, Lima (2021LIMA, Elmo S. Os impactos da BNCC nas Políticas de Educação do Campo e nos Projetos Educativos das Escolas Famílias Agrícolas. Revista Espaço do Currículo, v. 14, n. 2, p. 1-16, 2021.) menciona que a BNCC traz implicações diretas na formação das gerações e do projeto de sociedade que haverá no futuro. Nessa lógica, observa-se que o direito de acesso aos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos produzidos pela humanidade (Saviani, 2003SAVIANI, Demerval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 8. ed.Campinas: Autores Associados, 2003.) está sendo negado, pois há uma redução nos conteúdos da área das Ciências da Natureza no Ensino Médio, com diminuição da carga horária dos componentes curriculares e a integração das disciplinas por área. Soma-se a isto a desqualificação e desprofissionalização do(a) professor(a) para atuar por área de conhecimento, já que a sua formação inicial não o(a) prepara para essa nova reforma curricular.

Sendo assim, um dos principais objetivos a ser alcançado é resistir ao esvaziamento do conteúdo escolar proposto na BNCC e o Novo Ensino Médio. Isto é corroborado por Malanchen e Santos (2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020.) quando afirmam que:

Observamos que o primeiro grande desafio a ser superado com a BNCC e com a Lei n. 13.415/2017, é o esvaziamento do conteúdo escolar que vem acompanhado de uma ênfase em desacreditar a importância da teoria para a formação dos indivíduos, tendo as competências como parâmetro epistemológico do discurso inovador e transformador da educação escolar. [...] Rever a função social da escola a partir do entendimento do conteúdo escolar como prioridade na formação dos indivíduos requer enfrentamentos mais amplos, no campo da concepção de educação que defendemos. Que escola pública queremos e que temos condições de fazer acontecer. Esse desafio passa pela luta coletiva, por proposições da sociedade, sistematizadas em um Plano Nacional de Educação, que faça valer uma política de acesso ao conhecimento sistematizado às crianças, jovens e adultos (Malanchen; Santos, 2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020., p. 12).

Dessa maneira, é possível observar implicitamente que a BNCC impõe conceitos permeados de competências curriculares na elaboração dos currículos escolares, ao invés de debater questões relacionadas a direitos e objetivos de aprendizagem, conforme determina o Plano Nacional de Educação (2014-2024) (PNE). E isso explica a proposta acabada de currículo por idade/série no texto da BNCC e a preponderância dos testes nacionais estandardizados que se consagraram como a linha mestra do currículo escolar. Esta proposta dialoga com a Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização, ao propor conteúdos mínimos facilmente traduzidos para cartilhas a serem seguidas por professores ou “instrutores” (Malanchen; Santos, 2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020.). Outrossim, a privatização da educação está embutida no conceito dessas reformas, que reduzem o currículo das escolas públicas, investem na desprofissionalização dos(as) educadores(as) e estimulam o mercado de livros, apostilas e de métodos pedagógicos e de gestão escolar atrelados a conceitos de qualidade empresarial.

Nesse contexto, haverá indivíduos capazes de adaptar e tolerar as demandas da sociedade neoliberal na busca pela sobrevivência. A educação serve à reprodução da ideologia dominante, contudo é o único lugar em que os(as) filhos(as) da classe trabalhadora têm a oportunidade de se apropriarem dos conhecimentos na busca da superação de alguns desafios por meio da compreensão do contexto político, histórico e social dos conhecimentos científicos (Saviani, 2003SAVIANI, Demerval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 8. ed.Campinas: Autores Associados, 2003.).

Enfim, as políticas educacionais iniciadas na década de 1990 foram intensificadas com a aprovação da BNCC, distanciando cada vez mais a ideia de “[...] uma formação sólida em conteúdo escolar disciplinar” (Malanchen; Santos, 2020MALANCHEN, Júlia; SANTOS, Silvia A. dos. Políticas e Reformas Curriculares no Brasil: Perspectiva de Currículo a Partir da Pedagogia Histórico-Crítica versus a Base Nacional Curricular Comum e a Pedagogia das Competências. Rev. HISTEDBR On-line, Campinas, v. 20, p. 1-20, 2020., p. 11). Segundo as autoras, está sendo consolidado um projeto de educação excludente por meio da “audaciosa e indecorosa” implantação do Novo Ensino Médio - uma concepção de educação e formação atrelada ao modelo das competências, articulação dessa pedagogia ao ideário neoliberal, que visa atender os interesses e lógicas de superação das crises cíclicas do capital, ou seja, a pedagogia das competências como parâmetro epistemológico da BNCC.

Por tudo isso, percebe-se que a BNCC demarca um retrocesso em relação às políticas públicas de Estado, nas lutas dos movimentos sociais e dos pesquisadores da educação inclusiva no Brasil. O documento confunde base nacional com currículo mínimo, chegando a propor conteúdos por idade/série. E esse critério autoritário extrapola os limites legais da LDB/1996 para a construção do currículo à luz do projeto político-pedagógico das escolas. É evidente que a BNCC, frente ao elenco de disposições político-ideológicas e epistemológicas, aspira à submissão da população historicamente excluída ao projeto neoliberal, negando o direito de apropriação dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos produzidos pela humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, as discussões desenvolvidas até o momento permitem refletir e compreender as diferenças desses documentos que orientam os currículos de todas as instituições escolares do País. Na presente análise, foi proposto ampliar e fomentar o debate sobre os interesses e comprometimentos implícitos para a formação dos sujeitos por meio do currículo. Assim, o silenciamento das modalidades evidencia o retrocesso das políticas públicas de atendimento a grupos historicamente excluídos, como quilombolas, indígenas, moradores do campo, pessoas privadas de liberdade e pessoas com necessidades educacionais especiais, uma vez que as especificidades dos sujeitos que constituem esses grupos não foram consideradas no referido documento, apesar de haver um pseudodiscurso de respeito à diversidade e inclusão ressaltado pelo termo “equidade”. Isto posto, a BNCC engessa o processo educacional ao desenvolvimento de competências e habilidades que contemplam os conteúdos mínimos, dando maior ênfase aos componentes curriculares de Língua Portuguesa e Matemática, negando o acesso aos outros conhecimentos. Os conteúdos das áreas de Ciências da Natureza e Ciências Humanas, que foram omitidos na BNCC, contribuem para uma formação ampla voltada para o desenvolvimento integral dos sujeitos, ao contrário da lógica do sistema neoliberal de formação mínima alinhada aos interesses do mercado do trabalho, que não leva em consideração o direito e o desenvolvimento emancipatório dos educandos.

Dentre os aspectos ressaltados acima, considera-se que, de todas as modalidades da educação e eixos temáticos contemporâneos, a Educação Especial e a Educação de Jovens e Adultos são as que apresentam maior invisibilidade na BNCC, pois há uma repercussão devido à aprovação de decreto e resolução, que representam perda dos direitos conquistados, provenientes de discussões e debates de mais de uma década no CNE.

Ademais, é importante considerar que, mesmo com o retorno da SECADI, que trata das questões de inclusão e diversidade, as mudanças necessárias para uma educação que assegure os direitos dos grupos silenciados demandarão um trabalho constante, com a articulação e a mobilização dos diferentes segmentos sociais no movimento por uma educação voltada para a formação omnilateral dos sujeitos.

Por fim, convém salientar, mais uma vez, o quanto o campo curricular é um território de disputas, pois a pergunta central e fundamental que subjaz a qualquer proposta curricular é: que ser humano se quer formar e para qual sociedade?

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Artigo publicado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq/Brasil para os serviços de edição, diagramação e conversão de XML.
  • 2
    Fóruns de EJA do Brasil são redes de movimentos coletivos que agregam instituições e indivíduos dedicados à defesa da dignidade e do direito humano à educação de trabalhadores jovens, adultos e idosos. Atuam propositando políticas e práticas de EJA, de forma horizontal, autônoma e suprapartidária, voltados à salvaguarda e ao desenvolvimento da educação popular e continuada durante toda a vida, objetivando uma sociedade justa, democrática e plural.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

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