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As reformas previdenciárias no Brasil e a expansão da previdência complementar

Pension reforms in Brazil and the expansion of supplementary pensions

Resumos

Resumo

Este artigo destaca como as reformas previdenciárias produzidas no Brasil desde o final da década de 1990 contribuíram para a expansão dos esquemas privados de previdência complementar. Medidas restritivas e de caráter ambíguo, adotadas por diferentes coalizões de governo no curso dessas reformas, tornaram a previdência pública no Brasil menos atrativa por fixarem limites para o recebimento das aposentadorias dos servidores públicos. Isto promoveu significativas reduções nas taxas de reposição de renda dos benefícios vinculados ao sistema público de repartição. Apoiando-se na literatura sobre mudança institucional e contrariando argumentos path dependence mais rígidos, a análise proposta busca demonstrar empiricamente como essas medidas ajudaram a difundir os fundos de pensão e os planos privados de previdência no Brasil, particularmente entre os grupos com maiores rendimentos, resultando no fortalecimento do pilar privado do sistema previdenciário.

Palavras-chave:
Reformas; Previdência Social; Previdência Complementar; Fundos de Pensão, Brasil


Abstract

This article highlights how the pension reforms produced in Brazil since the late 1990s contributed to the expansion of private supplementary pension schemes. Restrictive and ambiguous measures, adopted by different government coalitions in the course of these reforms, made public pensions in Brazil less attractive by setting limits on the receipt of pensions from public servants, also promoting significant reductions in the rates of replacement of income from benefits linked to the public pay-as-you-go system. Based on the literature on institutional change, and contradicting stricter path dependence arguments, the proposed analysis seeks to demonstrate empirically how these measures helped to disseminate pension funds and private pension plans in Brazil, particularly among groups with higher income, resulting in the strengthening of the private pillar of the pension system.

Keywords:
Reforms; Social Security, Supplementary Pension, Pension Funds, Brazil


Introdução

Diversos estudos têm destacado os fatores responsáveis pela inibição de reformas nos sistemas de bem-estar, salientando não o desmonte desses sistemas, mas sua recalibragem para enfrentar um cenário de fortes incertezas (Myles e Pierson, 2001MYLES, John; PIERSON, Paul. (2001), “The comparative political economy of pension reform”, in P. Pierson (ed.), The new politics of the welfare state, Oxford, Oxford University Press.). Grosso modo, esses estudos apontam os sistemas previdenciários de repartição como instituições difíceis de serem modificadas por reformas mais radicais (Bonoli, 2000BONOLI, Giuliano. (2000), The politics of pension reform. Institutions and policy change in Western Europe. Cambridge, Cambridge University Press.; Häusermann, 2010HÄUSERMANN, Silja. (2010), The politics of welfare state reform in Continental Europe: modernization in hard times. New York, Cambridge University Press.)

No entanto, a literatura sobre a retração do Estado de Bem-estar produzida nas últimas décadas mostrou que os fatores subjacentes ao desmonte de políticas são bastante complexos, identificando uma variedade de mudanças nas políticas sociais, geralmente ativadas por meio de ações discretas (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.; Bauer e Knill, 2014BAUER, Michael; KNILL, Christoph. (2014), “A conceptual framework for the comparative analysis of policy change: measurement, explanation and strategies of policy dismantling”. Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice, 16, 1: 28-44.; Béland e Schlager, 2019BÉLAND, Daniel; SCHLAGER, Edella. (2019), “Varieties of policy feedback research: looking backward, moving forward”. Policy Studies Journal, 47, 2: 185-205.). A despeito do fato de os sistemas previdenciários maduros terem se mostrado mais resilientes ao desmonte de políticas, os sistemas de vários países – situados fora do restrito espaço dos densos sistemas contributivos da Europa Continental e Nórdica – sofreram intensos processos de privatização. De 1981 a 2014, trinta países, em sua maioria situados na América Latina e no Leste da Europa, privatizaram, em graus variados, os seus sistemas previdenciários (Ortiz et al., 2018ORTIZ, Isabel; DURÁN-VALVERDE, Fabio; URBAN, Stefan; WODSAK, Veronika; YU, Zhiming. (2018), La reversión de la privatización de las pensiones: Reconstruyendo los sistemas públicos de pensiones en los países de Europa Oriental y América Latina (2000-2018). Documento de Trabajo, 63, Ginebra: OIT. ). A maioria desses países, contudo, reverteu total ou parcialmente seus processos de privatização, particularmente após a crise financeira de 2008 (Ortiz et al., 2018ORTIZ, Isabel; DURÁN-VALVERDE, Fabio; URBAN, Stefan; WODSAK, Veronika; YU, Zhiming. (2018), La reversión de la privatización de las pensiones: Reconstruyendo los sistemas públicos de pensiones en los países de Europa Oriental y América Latina (2000-2018). Documento de Trabajo, 63, Ginebra: OIT. ).

Este artigo adota uma perspectiva distinta para analisar as mudanças que têm afetado as instituições de proteção social em diversos países. Apesar de corroborar com as hipóteses de que as reformas privatizantes nos sistemas previdenciários maduros raramente se produzem de forma abrupta, destaca que o caráter sequencial e negociado dessas reformas pode catalisar algumas mudanças oriundas de medidas restritivas, uma vez introduzidas nos sistemas públicos de repartição.

Dados os custos políticos associados aos processos radicais de privatização dos sistemas previdenciários, as medidas mais utilizadas pelos reformadores para “suavizar” a privatização dos riscos (e dilatar seus efeitos no tempo) é a introdução gradual de esquemas complementares de capitalização nos sistemas públicos de repartição. Correlato a isso, como incentivos ao crescimento desses esquemas, também despontam medidas de redução da atratividade dos sistemas públicos, quais sejam: o aumento da idade mínima para a concessão das aposentadorias, a fixação de tetos previdenciários e a diminuição dos valores dos benefícios.

A utilização dessas medidas é notória nos processos de reforma de países com regimes previdenciários do tipo bismarckiano, os quais possuem maior densidade organizativa e vinculação com os sindicatos. Embora nos diversos países se observem graus variados de resistência aos processos de privatização da previdência pública (ou mesmo de reversão de tais processos), um dos aspectos centrais adotados por governos premidos por fortes pressões fiscais é a tentativa de substituir, ainda que de forma progressiva e negociada, os regimes de repartição por fundos de pensão capitalizados.

Este artigo enfatiza que alguns esquemas de provisão de benefícios, a exemplo dos fundos de pensão, podem facilitar essas reformas, pois possuem uma natureza ambivalente, guardando diferentes funções e significados, dependendo do modo como são manejados e interpretados pelas coalizões políticas e interesses organizados. Os fundos de pensão podem ser caracterizados por sua “ambiguidade” por operar nas interfaces do Estado com as finanças. Além disso, geralmente são mobilizados pelos governos durante os processos de reforma para conciliar objetivos contraditórios, produzindo assim “acordos ambíguos” (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.) relativos aos interesses que constituem o setor de previdência social.

A hipótese central que norteia este trabalho é que as mudanças recentes produzidas no sistema previdenciário brasileiro – que tornaram esse sistema, aparentemente resiliente, mais receptivo aos arranjos privados de provisão de benefícios – são sintomáticas desses acordos ambíguos. Tais mudanças se devem aos efeitos cumulativos gerados pela combinação de medidas restritivas introduzidas no sistema de repartição pelas diversas coalizões de governo, na sequência das reformas previdenciárias, com a disseminação dos fundos de pensão. Se, por um lado, a introdução dessas medidas preservou o papel hegemônico da previdência pública, por outro, a expansão dos fundos de pensão para diversas categorias de trabalhadores comprometeu essa hegemonia ao fortalecer o pilar de capitalização do sistema previdenciário do país.

Além desta introdução, este artigo está dividido em quatro seções. A primeira seção discute as recentes transformações nos sistemas previdenciários decorrentes da expansão do mercado de seguros e dos fundos de pensão, demonstrando a particular ambiguidade que caracteriza a operação dos fundos. A segunda seção aborda a dinâmica de mudança institucional dos sistemas de repartição na sequência das reformas, questionando os argumentos path dependence. A terceira seção analisa o caso das reformas previdenciárias empreendidas no Brasil desde o final da década de 1990, enfatizando como a expansão da previdência complementar foi facilitada a partir da introdução de medidas restritivas. A quarta seção conclui o trabalho.

Mudança nos sistemas previdenciários e a ambiguidade dos fundos de pensão

As pressões fiscais sobre os governos, as mudanças demográficas e as transformações nos mercados de trabalho trouxeram substanciais desafios aos sistemas de seguridade social. A conjunção desses fatores afetou diretamente as bases de financiamento da previdência pública, contribuindo para a emergência de diversas reformas que reinseriram a lógica da autoproteção dos riscos nos sistemas previdenciários.

Diante da retração do Estado e lançando mão de novas técnicas de classificação dos riscos, as empresas financeiras passaram a disseminar uma variedade de serviços de bem-estar “customizados”. No encalço desse processo, bancos e seguradoras se transformaram nos “novos avalistas dos riscos individuais” (Fourcade e Healy, 2013, pFOURCADE, Marion; HEALY, Kieran. (2013), “Classification situations: life-chances in the neoliberal era”. Accounting, Organizations and Society, 38, 8: 559-572..7). Mudanças na estrutura de governança das empresas financeiras, somadas a um crescente processo de endividamento das famílias e privatização dos riscos, contribuíram para acentuar a expansão dos seguros privados (Crouch, 2009CROUCH, Colin. (2009), “Privatised Keynesianism: an unacknowledged policy regime”. The British Journal of Politics and International Relations, 11: 382-399.). No entanto, tal expansão não surge isenta de consequências sociais e políticas. Além de promover o advento de relações sociais mais atomizadas e insolidárias, a disseminação de seguros privados junto à população possibilita a emergência de novas formas de estratificação que alteram radicalmente a percepção dos indivíduos sobre suas diferenças e desigualdades (Fourcade e Healy, 2013FOURCADE, Marion; HEALY, Kieran. (2013), “Classification situations: life-chances in the neoliberal era”. Accounting, Organizations and Society, 38, 8: 559-572.). Ademais, a difusão dos arranjos de capitalização transforma os segurados da previdência em “investidores individuais”, constituindo uma base de legitimidade para os governos consolidarem suas políticas de liberalização e austeridade fiscal (Schamis, 2002SCHAMIS, Hector. (2002), Re-forming the state: the politics of privatization in Latin America and Europe. Ann Arbor, University of Michigan Press.).

A despeito dos custos políticos associados à privatização da previdência pública, políticos e burocratas têm incentivado o crescimento de tais arranjos (ainda que moderadamente). Para contornar as pressões fiscais sobre seus orçamentos, os governos vêm reformando seus sistemas de emprego e seguridade social, introduzindo medidas restritivas e de baixo custo político (Bauer e Knill, 2014BAUER, Michael; KNILL, Christoph. (2014), “A conceptual framework for the comparative analysis of policy change: measurement, explanation and strategies of policy dismantling”. Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice, 16, 1: 28-44.). Segundo alguns autores, a extensa utilização dessas medidas nos processos de reforma redutoras de direitos sociais decorre de suas “propriedades ambíguas” (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.; Bonoli, 2010BONOLI, Giuliano. (2010), “The political economy of active labor-market policy”. Politics & Society, 38,4: 435-457.). Algumas medidas, como as atuais medidas de ativação do emprego – largamente utilizadas nas reformas flexibilizadoras da regulamentação do trabalho –, são bastante contraditórias e podem ser mobilizadas pelos governos para perseguir diferentes finalidades, seja a proteção ou a mercantilização do emprego, a exemplo das políticas de workfare (Bonoli, 2010BONOLI, Giuliano. (2010), “The political economy of active labor-market policy”. Politics & Society, 38,4: 435-457.). Os fundos de pensão, igualmente, abrangem uma diversidade de instrumentos que divergem em relação aos seus objetivos, influenciando distintamente os sistemas previdenciários, seja na perspectiva da preservação dos pilares públicos contributivos ou da mera financeirização da previdência social (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.).

Organizados a partir de esquemas de capitalização variados, os fundos de pensão tornaram-se os principais arranjos complementares aos regimes públicos de repartição de diversos países. Parte da literatura, no entanto, interpreta esses fundos como instrumentos de financeirização das economias domésticas (Van der Zwan, 2017VAN DER ZWAN, Natascha. (2017), “Financialisation and the pension system: Lessons from the United States and the Netherlands”. Journal of Modern European History, 15, 4: 554–78.). É indubitável que os fundos de pensão ganharam força e expressão sob a égide de um capitalismo crescentemente financeirizado (Chesnais, 2005CHESNAIS, François. (2005), “O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos”, in F. Chesnais (org.), A finança mundializada, São Paulo, Boitempo.). Porém, deve-se ressalvar que a difusão dos fundos como instrumentos de financeirização é um fenômeno mais saliente nos países anglo-saxões; embora, atualmente, sua expressão financeirizada extrapole os limites desses países (Magnani, Jardim e Jard da Silva, 2020MAGNANI, Maira; JARDIM, Maria Aparecida Chaves; JARD DA SILVA, Sidney. (2020), “Os fundos de pensão como agentes do capital: estado da arte da literatura recente”, BIB, 93: 1-22. ).

Vários fatores explicam essa peculiar difusão dos fundos nos países anglo-saxões. Neles, o poder das grandes corporações aliado à disseminação de uma cultura liberal e individualista, constrangeu o desenvolvimento de arranjos públicos de previdência. Ao lado disso, medidas legais adotadas pelos governos desses países transformaram os fundos em grandes “investidores institucionais” (Clark, 2000CLARK, Gordon. (2000), Pension fund capitalism. Oxford, Oxford University Press.). Desde o final da década de 1980, os fundos dos países anglo-saxões, especialmente dos Estados Unidos, passaram a orientar sua enorme massa de recursos para ativos mais arriscados, buscando diferentes formas de rentabilidade nos mercados financeiros internacionais (Schelkle, 2019SCHELKLE, Waltraud. (2019) “EU pension policy and financialisation: purpose without powers?”. Journal of European Public Policy, 26, 4: 23-41.).

Entretanto, é importante destacar que os fundos de pensão nem sempre são levados pela lógica da finança. A variável temporal é uma dimensão analítica relevante para capturar as diferentes funções desempenhadas pelos fundos. A utilização de fundos previdenciários, incluindo os de capitalização coletiva, para fomentar estratégias nacionais de desenvolvimento foi bastante comum durante o ciclo fordista de regulação das economias políticas. Vários países de industrialização tardia (latecomers), a exemplo dos países escandinavos e da Europa Continental, viabilizaram formas alternativas de investimento que levaram os fundos a desempenhar importantes papéis desenvolvimentistas e de incremento das políticas nacionais de bem-estar (Kangas, 2006KANGAS, Olli. (2006), “Pensions and pension funds in the making of a Nation-State and a national economy. The case of Finland”. Social Policy and Development, 25:1-15.; Anderson, 2019ANDERSON, Karen Marie. (2019), “Financialisation meets collectivisation: occupational pensions in Denmark, the Netherlands and Sweden”. Journal of European Public Policy, 26, 4: 1-18.).

Vale ainda lembrar que, nesses países, a participação dos sindicatos na gestão dos fundos previdenciários conferiu aos trabalhadores poder de decisão na formulação de políticas sociais e econômicas. Como salienta Philip Manow (1997), aMANOW, Philip. (1997), “Social insurance and the German political economy”. Max Planck Institute for the Study of Societies. Discussion Paper, 97, 2:2-48. rápida recomposição do movimento operário alemão, em 1890, após a fratura na organização sindical provocada por Bismarck, surgiu concomitantemente ao advento de formas inovadoras de gestão dos fundos do seguro social. Pertencer a uma carreira profissional como a de kassenbeamter (um administrador sindical de fundo previdenciário) tornou-se uma oportunidade para os trabalhadores alemães entrarem no domínio da burocracia pública. A entrada dos trabalhadores nesse domínio, além de ter contribuído para democratizar a burocracia, ajudou a disseminar no seio dos sindicatos uma “cultura administrativa”, que logo se tornaria um importante recurso de ação coletiva para os trabalhadores reivindicarem novos direitos e condições mais favoráveis de barganha no sistema de relações industriais alemão (Manow, 1997MANOW, Philip. (1997), “Social insurance and the German political economy”. Max Planck Institute for the Study of Societies. Discussion Paper, 97, 2:2-48. ).

A direção tomada pelos fundos de pensão nos diferentes países é uma variável dependente da capacidade de os Estados nacionais manejarem o seu arsenal regulatório para estruturar coalizões redistributivas, orientar os investimentos e constranger atividades especulativas. Enquanto os países do modelo anglo-saxão induzem seus fundos a maior exposição aos riscos do mercado financeiro, vários países da Europa Continental têm introduzido regulações que obrigam seus fundos a garantir taxas mínimas de retorno sobre os investimentos e os montantes poupados pelos segurados (Wib, 2015WIB, Tobias. (2015), “Pension fund vulnerability to the financial market crisis: The role of trade unions”. European Journal of Industrial Relations, 21, 2: 131–47.). Ademais, é importante salientar que em vários países, notadamente naqueles em que os fundos contam com forte participação sindical, eles são geridos de forma não lucrativa, limitando a margem de ação das companhias seguradoras (Anderson, 2019ANDERSON, Karen Marie. (2019), “Financialisation meets collectivisation: occupational pensions in Denmark, the Netherlands and Sweden”. Journal of European Public Policy, 26, 4: 1-18.).

Nesse aspecto, a literatura sobre “variedades de capitalismo” fornece importantes aportes analíticos para compreender como os fundos de pensão estão subordinados a diferentes políticas regulatórias, regimes produtivos e de bem-estar, inserindo-se ainda nos distintos “sistemas financeiros” de países com economias mais “coordenadas” – Alemanha, França e Japão – ou “liberais” – EUA, Grã-Bretanha e Canadá (Hall e Soskice, 2001HALL, Peter; SOSKICE, David (org.). (2001) Varieties of capitalism: the institutional foundations of comparative advantage, Oxford, New York, Oxford University Press.). O modo variado de atuação dos fundos nessas diferentes economias é um desdobramento da existência (ou não) de certas “complementariedades estratégicas”, que no caso das “economias de mercado coordenadas” imbricam os sistemas financeiros ao fortalecimento das empresas, mercados de trabalho e sistemas de proteção social (Hall e Soskice, 2001HALL, Peter; SOSKICE, David (org.). (2001) Varieties of capitalism: the institutional foundations of comparative advantage, Oxford, New York, Oxford University Press.).

É importante mencionar que mesmo recentemente, em alguns países emergentes, incluindo o Brasil, os fundos de pensão têm desempenhado importantes funções, estabelecendo relações entre atores estatais e empresariais na busca de estratégias para potencializar os investimentos produtivos. A experiência recente de alguns países latino-americanos com os fundos de pensão, em que houve maior participação do Estado na alocação e direção dos investimentos, embora se mostrasse efêmera, levou alguns autores a nomear essa experiência de “desenvolvimentismo de fundos de pensão” (Datz, 2014DATZ, Gisele. (2014), “Varieties of power in Latin American pension finance: pension fund capitalism, developmentalism and statism”. Government and Opposition, 49, n. esp.: 483-510. ).

Contudo, a mera intenção de políticos e burocratas de transplantar, acriticamente, “modelos de fundos de pensão” no sentido de produzir um incremento das taxas de investimento nas suas economias domésticas – na ausência das “complementaridades” acima destacadas – pode se constituir num “voo cego” em vista da natureza ambígua dos fundos e da incerteza dos seus resultados.

Vale lembrar que durante as décadas de 1980 e 1990, vários países latino-americanos e do Leste da Europa buscaram emular a estrutura institucional dos fundos de pensão dos países de economia liberal, promovendo uma extensiva privatização dos seus sistemas previdenciários. Em alguns países da América Latina – a exemplo do caso pioneiro do Chile, que em 1981 privatizou seu sistema previdenciário – o mercado de capitais foi deliberadamente estimulado através da criação de sistemas individuais de capitalização (Orenstein, 2008ORENSTEIN, Mitchell. (2008). Privatizing pensions: the transnational campaign for social security reform. Princeton, Princeton University Press.). A ideia difundida para esses países, por diversos organismos internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), era que a privatização da previdência pública criaria um volume suficiente de recursos financeiros para facilitar o acesso das firmas aos investimentos (Orenstein, 2008ORENSTEIN, Mitchell. (2008). Privatizing pensions: the transnational campaign for social security reform. Princeton, Princeton University Press.). No entanto, tal processo não alcançou os resultados esperados, produzindo efeitos limitados no mercado de capitais e no crescimento desses países. Ademais, como resultado da privatização, as taxas de cobertura previdenciária permaneceram estagnadas ou diminuíram; os valores dos benefícios se deterioraram; as desigualdades de renda e gênero aumentaram; e os custos de transição da substituição dos sistemas públicos pelos privados criaram pressões fiscais intratáveis (Ortiz et al., 2018ORTIZ, Isabel; DURÁN-VALVERDE, Fabio; URBAN, Stefan; WODSAK, Veronika; YU, Zhiming. (2018), La reversión de la privatización de las pensiones: Reconstruyendo los sistemas públicos de pensiones en los países de Europa Oriental y América Latina (2000-2018). Documento de Trabajo, 63, Ginebra: OIT. ).

Mais importante do que destacar as “propriedades imanentes” dos fundos de pensão é analisar suas contradições. A dinâmica de atuação dos fundos, nos diversos países, revela uma tensão constitutiva advinda dos seus diferentes modos de apreensão pelas coalizões políticas e interesses organizados; operando ora como um instrumento a serviço da especulação financeira; ora como um mecanismo para potencializar os investimentos produtivos; ora como as duas coisas ao mesmo tempo (o que é paradoxal). Os fundos podem ser utilizados para expandir o emprego e os sistemas públicos de bem-estar; e, ao contrário, para desmantelar sub-repticiamente esses sistemas. Ademais, esses fundos são cobiçados por vários interesses, tornando-se objeto de acirradas disputas por parte de seguradoras, bancos e conglomerados empresariais; mas também de sindicatos, burocracias e sobretudo de políticos interessados em manipular a ambiguidade dos fundos para perseguir diferentes objetivos.

Conforme destacado, políticos e burocratas se veem cada vez mais premidos a utilizar a ambiguidade dos fundos para conciliar objetivos de reforma contraditórios. Agem desse modo, no entanto, conscientes do fato de que miram numa aposta arriscada. Uma barganha fáustica parece envolver as escolhas dos governos nesse quesito: para contornar seus problemas fiscais, os governos trocam a segurança dos regimes públicos de repartição pela incerteza e os riscos dos fundos de pensão.

A crise financeira de 2008 revelou o impasse dos fundos entre a necessidade de maior volatilidade/risco e segurança/retorno dos investimentos (Hassel, Naczyk e Wib, 2019HASSEL, Anke; NACZYK, Marek; WIB, Tobias. (2019), “The political economy of pension financialisation: public policy responses to the crisis”. Journal of European Public Policy, 26:4: 483-500.). Para atenuar os efeitos da crise, os fundos direcionaram seus recursos para ativos menos arriscados, como títulos da dívida, mas o contexto pós-crise de juros baixos afetou suas taxas de retorno, comprometendo os montantes poupados pelos segurados.

No entanto, pese esse impasse, a ambiguidade que caracteriza os fundos (e sua interpretação vaga pelos governos e interesses organizados) possui uma funcionalidade nas estratégias de reformas redutoras de direitos nos sistemas previdenciários maduros, como será demonstrado a seguir.

Mudança sub-reptícia dos sistemas públicos previdenciários

A literatura que investiga os fatores responsáveis pela resiliência das instituições de bem-estar aos processos de mudança aponta que as reformas privatizantes nos sistemas previdenciários de repartição são constrangidas pelos efeitos de path dependence (Myles e Pierson, 2001MYLES, John; PIERSON, Paul. (2001), “The comparative political economy of pension reform”, in P. Pierson (ed.), The new politics of the welfare state, Oxford, Oxford University Press.; Häusermann, 2010HÄUSERMANN, Silja. (2010), The politics of welfare state reform in Continental Europe: modernization in hard times. New York, Cambridge University Press.). De acordo com essa perspectiva, os sistemas de repartição seriam exemplos de instituições inerciais, considerando a força dos seus legados para estruturar coalizões de interesse, além de incentivos materiais favorecendo sua continuidade no tempo (Myles e Pierson, 2001MYLES, John; PIERSON, Paul. (2001), “The comparative political economy of pension reform”, in P. Pierson (ed.), The new politics of the welfare state, Oxford, Oxford University Press.). Duas principais razões justificariam a ausência de reformas radicais nesses sistemas: 1) os altos custos fiscais associados à transição dos modelos públicos de repartição para os privados de capitalização; e 2) os interesses dos sindicatos, que são a base de sustentação dos arranjos bismarckianos de seguro social (Bonoli, 2000BONOLI, Giuliano. (2000), The politics of pension reform. Institutions and policy change in Western Europe. Cambridge, Cambridge University Press.).

Os benefícios dos sistemas de repartição proporcionam importantes recursos econômicos e de ação coletiva para diferentes grupos de trabalhadores. Embora não possuam poder de veto institucional, os sindicatos podem legitimar propostas de reforma nos sistemas previdenciários por meio dos seus representantes (Jard da Silva, 2018JARD DA SILVA, Sidney. (2018), “Bancada sindical, política previdenciária e processo decisório no governo Dilma”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33, 98:1-20.). A rigor, não existe uma relação automática entre maior presença dos sindicatos e preservação dos arranjos públicos de previdência. As resistências do sindicalismo aos intentos mais radicais de reforma são mais salientes em países onde a fragmentação corporativa dos sistemas previdenciários se estruturou dentro de arranjos públicos de provisão, caso dos sistemas bismarckianos europeus (Manow, 1997MANOW, Philip. (1997), “Social insurance and the German political economy”. Max Planck Institute for the Study of Societies. Discussion Paper, 97, 2:2-48. ).

Deve-se destacar, todavia, que os sindicatos podem se tornar importantes “parceiros” das coalizões reformistas (Béland, 2001BÉLAND, Daniel. (2001), “Does labor matter? Institutions, labor unions and pension reform in France and United States”. Journal of Public Policy, 21, 2:153-172.). No auge dos processos de liberalização na América Latina, os governos Menem na Argentina, Salinas de Gortari no México e Andrés Pérez na Venezuela (governos representantes de partidos com fortes bases sindicais) utilizaram-se deliberadamente de sua maior interlocução com os sindicatos para impor reformas bastante impopulares. Ademais, aproveitaram-se da existência de sistemas de provisão de benefícios fragmentados e desiguais para cooptar sindicatos dispostos a negociar sua lealdade ao repertório trabalhista em troca de benefícios privados de bem-estar (Murillo, 2001MURILLO, Maria Victoria. (2001), Labor unions, partisan coalitions, and market reform in Latin America. Cambridge, Cambridge University Press.).

Em suma, a fragmentação corporativa de alguns sistemas de repartição pode contribuir para sua maior resiliência institucional, dependendo do grau de coesão do sindicalismo em torno da defesa dos arranjos públicos.

Entretanto, desde a década de 1990, vários países com sistemas de repartição maduros experimentaram sucessivas reformas que, sem serem radicais, transformaram progressivamente a natureza desses sistemas. De acordo com Palier (2007), oPALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107. que caracteriza essas reformas é um processo de feedback, no qual medidas que visam diminuir os benefícios nos sistemas de repartição levam à expansão da previdência privada complementar. Os efeitos cumulativos advindos dessas reformas vêm gradualmente liberando as amarras dos sistemas de repartição maduros dos fenômenos path dependence (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.).

Ao analisar as reformas previdenciárias na França, Palier (2007)PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107. destacou como os fundos de pensão transformaram o sistema de repartição do país; considerado um sistema difícil de ser reformado. Até a década de 1990, a introdução dos fundos sofreu forte oposição dos sindicatos e dos partidos de esquerda. Porém, algumas reformas incrementais introduzidas a partir de 1992 por diversas coalizões de governo, incluindo coalizões de centro-esquerda, tornaram o sistema de repartição francês menos atrativo para diversas categorias profissionais. Ao lado disso, houve um acentuado avanço dos fundos de pensão ocupacionais; avanço este proporcional à diminuição das taxas de reposição das aposentadorias do sistema público (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.).

Pese o fato de as ideias mais radicais terem desempenhado alguma influência no desenho inicial dessas reformas, surtindo mais efeitos retóricos do que reais, as mudanças significativas no sistema previdenciário francês somente ocorreram através de acordos entre as coalizões de governo e os interesses organizados; e quando medidas decorrentes da introdução dos fundos de pensão passaram a operar de um modo contraditório ao sistema que se pretendia “preservar”, no caso, o de repartição (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.). No início, vários atores, incluindo os sindicatos, se opuseram frontalmente à introdução dessas medidas. Mas essa oposição foi um tanto dissimulada, à medida que esses atores se aproveitaram da tradicional fragmentação corporativa do sistema previdenciário francês para negociar benefícios diferenciados de capitalização, modificando suas atitudes pregressas (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.).

O que deve ficar claro em relação a esses argumentos, é que a percepção dos atores sobre a adoção de medidas impopulares introduzidas no curso das reformas previdenciárias, como a instituição de fundos de pensão, advém de sua ambiguidade política. Mesmo sistemas previdenciários estruturados por interesses mais coesos estão sujeitos a uma súbita mudança provocada pela interpretação vaga e ambígua de algumas medidas, uma vez introduzidas nesses sistemas. Geralmente, as medidas produzidas para precipitar reformas restritivas nos sistemas previdenciários resistentes à mudança são aquelas que contemplam múltiplos interesses e que possuem uma “peculiar polissemia interpretativa”, a exemplo dos fundos de pensão (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.). E é justamente por comportar tal ambiguidade que os fundos proporcionam uma utilidade política durante os processos de reforma. A multiplicidade de objetivos perseguidos pelos fundos e sua interpretação vaga pelas coalizões de governo e interesses organizados, ajuda a estruturar “acordos ambíguos” relativos às controvérsias que surgem em torno das inovações introduzidas nos processos de reforma, conformando consensos provisórios entre interesses divergentes (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.).

É por meio da apropriação direta ou sub-reptícia dessas medidas ambíguas que alguns atores organizados, particularmente vinculados ao mercado financeiro, dispendem suficientes recursos para explorar brechas legislativas deixadas pelos processos de reforma, criando uma variedade de “vias ocultas” que terminam por inviabilizar as diretrizes estruturantes dos sistemas de proteção social (Hacker e Pierson, 2014HACKER, Jacob; PIERSON, Paul. (2014), “After the `master theory`: Downs, Schattschneider, and the rebirth of policy-focused analysis”. Perspectives on Politics, 12, 3:643-662.).

Em suma, é por trazerem implícita essa ambiguidade que os regimes complementares de capitalização são introduzidos nos sistemas de repartição durante os processos de reforma, mesmo que a previdência pública não seja deliberadamente privatizada. Em face da inércia que caracteriza os sistemas de repartição, as inovações decorrentes da introdução dos arranjos de capitalização passam a se desenvolver de maneira incremental (e muitas vezes sub-reptícia), até alcançarem uma abrangência significativa. Na próxima seção serão abordados os processos de reforma previdenciária no Brasil, destacando as mudanças discretas, porém transformadoras que vêm afetando o sistema previdenciário do país.

A expansão da previdência complementar no Brasil

A previdência social no Brasil se desenvolveu de forma bastante fragmentada, possuindo vários regimes com benefícios diferenciados e desiguais. Mesmo após sua unificação em 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), segmentos significativos da população permaneceram sem cobertura previdenciária.1 1 Na década de 1970, os benefícios da previdência passam a ser estendidos aos trabalhadores rurais, autônomos e empregados domésticos. Características estruturais do mercado de trabalho brasileiro, como a acentuada heterogeneidade das situações de trabalho, altos índices de informalidade e rotatividade no emprego foram fortes inibidores do movimento de extensão da proteção previdenciária.

A Constituição Federal de 1988 trouxe importantes inovações ao criar um sistema integrado de seguridade social. No que concerne à previdência, a Constituição instituiu o trabalhador rural como “segurado especial”, equiparando o plano de benefícios para todos os trabalhadores, tendo sido fixado o piso no valor de um salário mínimo indexado aos níveis correntes de inflação.2 2 No campo da assistência instituiu-se o Benefício de Prestação Continuada (BPC): no valor de um salário-mínimo destinado aos idosos (65 anos) e portadores de deficiências com renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo. O sistema previdenciário brasileiro possui importantes características bismarckianas, e assim de “resiliência institucional”, mas nunca atingiu a abrangência dos seus congêneres europeus, tornando-se bastante suscetível aos processos de reforma.

Logo no início da década de 1990, os preceitos de seguridade social estabelecidos na Carta de 1988 começaram a ser desafiados pelas ideias de liberalização econômica e austeridade fiscal. Nessa conjuntura, em 1993, é aberto o processo de revisão constitucional. Na Câmara Federal foi instalada uma Comissão Especial para Estudo do Sistema Previdenciário. Os trabalhos dessa Comissão, sintetizados no “Relatório Antônio Britto”, sinalizavam para a necessidade de ajustar as fontes de financiamento da previdência e definir um sistema misto. Durante o processo de revisão constitucional, em 1993, as entidades empresariais, em especial a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - FIESP, mobilizaram-se ativamente para influenciar os rumos da previdência social no país. Na época, diversos seminários foram realizados com o fito de promover alternativas privadas ao sistema previdenciário diante de sua propalada “crise”. No bojo dessa discussão, defendia-se a criação de um sistema complementar privado para os trabalhadores com remuneração superior a três salários-mínimos (Delgado, 2001DELGADO, Ignacio Godinho. (2001), Previdência Social e mercado no Brasil. São Paulo, LTR.).

Entretanto, com a derrocada da revisão constitucional, as atenções se voltaram para o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que, em março de 1995, enviou ao Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição cuja finalidade era reformar o sistema previdenciário em consonância aos objetivos de promoção da estabilização monetária e fiscal. Transformada posteriormente na Emenda Constitucional nº 20 de 15 de dezembro de 1998, a primeira reforma previdenciária do governo FHC envolveu tanto o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que cobre os trabalhadores da iniciativa privada, quanto o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores públicos. A EC nº 20/98 substituiu a aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tempo de contribuição e decretou o fim da aposentadoria proporcional (Brasil, 1998BRASIL. (1998), Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm, consultado em 22/06/2023.
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). Apesar dessas mudanças, o governo não logrou estabelecer a idade mínima para o recebimento das aposentadorias no RGPS e a contribuição dos inativos do RPPS.

Características atinentes ao sistema político brasileiro, notadamente o maior poder de agenda do Executivo, permitiram ao governo FHC superar os principais vetos à reforma, destacando-se, ainda, sua baixa interlocução com os sindicatos (Jard da Silva e Cortez, 2007 JARD DA SILVA, Sidney; CORTEZ, Rafael. (2007), “Interação sindicalismo-governo na reforma previdenciária brasileira”, in G. Hochman; M. Arretche & E. Marques (org.), Políticas públicas no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Fiocruz.). A principal mudança trazida pela primeira reforma foi a desconstitucionalização da fórmula de cálculo das aposentadorias, abrindo um precedente para uma segunda reforma (infraconstitucional) realizada no início do segundo governo FHC (1999-2002), introduzindo o Fator Previdenciário, que alterou as regras de cálculo do valor dos benefícios do RGPS. De acordo com a nova regra, quem procurou se aposentar em idades prematuras acabou pagando o preço por meio de taxas de reposição mais baixas nos valores das aposentadorias (Matijascic, Ribeiro e Kay, 2007MATISJASCIC, Milko; RIBEIRO, José Olavo; KAY, Stephen. (2007), “Aposentadorias, pensões, mercado de trabalho e condições de vida: o Brasil e os mitos da experiência internacional”. Carta Social e do Trabalho, 7: 152-173.).

A segunda fase dessas reformas se concretiza durante os governos da coalizão de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – nos governos Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). No início do primeiro mandato do presidente Lula, é aprovada a Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003. A EC nº 41/2003 equiparou as regras previdenciárias para todos os trabalhadores do país (Brasil, 2003BRASIL. (2003), Emenda Constitucional n. 41, de 19 de Dezembro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc41.htm, consultado em 23/06/2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
). Para isso, foi estabelecido um teto de remuneração para as aposentadorias e pensões dos servidores públicos equivalente ao do RGPS, aumentando-se a idade para aposentadoria dos servidores: de 53/48 anos para 60/55 (homens e mulheres respectivamente). A reforma também instituiu a taxação dos inativos no RPPS. Assim, os servidores públicos aposentados, cujos proventos excediam o teto dos benefícios, passaram a contribuir com 11% do valor de suas aposentadorias ou pensões (Lavinas e Araújo, 2017LAVINAS, Lena; ARAÚJO, Eliane. (2017), “Reforma da previdência e regime complementar”. Revista de Economia Política, 37, 3: 615-635.). O governo Lula também promoveu medidas de inclusão previdenciária ao reduzir as alíquotas contributivas para incentivar os trabalhadores do setor informal a se filiar no RGPS.3 3 Um exemplo de tais medidas foi o Microempreendedor Individual (MEI). É importante destacar que entre 2004 e 2012, a expansão do emprego formal e a valorização do salário-mínimo impactaram positivamente a previdência social; e suas transferências contribuíram significativamente para reduzir as desigualdades no país (Kerstenetzky, 2017KERSTENETZKY, Celia Lessa. (2017), “Foi um pássaro, foi um avião? Redistribuição no Brasil no século XXI”. Novos Estudos CEBRAP, 36, 2: 15-34.).

O movimento de inclusão previdenciária iniciado por Lula, em 2004, continuou no primeiro mandato de Dilma (2010-2014), mas foi perdendo vigor. Em 2015, o governo logrou a aprovação da Lei nº 13.135/2015, que alterou significativamente as regras de pensão por morte e auxílio-doença (Brasil, 2015BRASIL. (2015), Lei n. 13.135, de 17 de Junho de 2015. Disponível em: https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI№=13135&ano=2015&ato=726QTV65UNVpWTcee, consultado em 23/06/2023.
https://legislacao.presidencia.gov.br/at...
). Tais alterações foram consideradas bastante restritivas. Premido por fortes pressões fiscais e em meio a uma crise política, o governo foi impelido a adotar uma política de ajuste fiscal que, além de criar restrições para os trabalhadores terem acesso a uma série de benefícios, incluindo o seguro-desemprego, trazia explícita a necessidade de mais uma reforma da previdência. Enfim, todas essas medidas afetaram negativamente a base de sustentação política da presidente Dilma, deixando o caminho livre para que um conjunto de forças conservadoras contestasse o seu segundo mandato, em 2016, através de um controverso processo de impeachment (Singer, 2018SINGER, André. (2018), O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo, Companhia das Letras.).4 4 De acordo com Singer (2018), diante da perda na capacidade de governar o país, a ex-presidente Dilma “se tornou errática”. Prova disso foi a construção de uma campanha eleitoral, em 2014, de caráter desenvolvimentista e a repentina guinada ortodoxa da política econômica após sua vitória nas eleições; tal guinada fez com que a ex-presidente perdesse parte do apoio da esquerda (Singer, 2018).

Cabe destacar que foi durante o primeiro governo Dilma que se regulamentou a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp) para administrar a previdência complementar dos servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário. Jard da Silva (2018)JARD DA SILVA, Sidney. (2018), “Bancada sindical, política previdenciária e processo decisório no governo Dilma”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33, 98:1-20. destaca que a tramitação da lei que regulamentou a Funpresp no Congresso Nacional enfrentou forte resistência dos parlamentares vinculados aos servidores ativos e inativos da União, base de apoio tradicional do PT e do seu principal braço sindical, a Central Única dos Trabalhadores – CUT. Segundo o autor, a criação da Funpresp foi marcada por um debate entre os parlamentares sindicalistas vinculados ao serviço público (filiados ao RPPS) de um lado, e os parlamentares sindicalistas vinculados aos trabalhadores de empresas estatais e privadas (filiados ao RGPS) do outro. Os primeiros se opunham à criação da Funpresp, enquanto os últimos defendiam a iniciativa. A despeito dessas clivagens, a bancada sindical seguiu de forma disciplinada a orientação da base governista, da qual a ampla maioria dos seus integrantes fazia parte, votando favoravelmente ao projeto de criação da Funpresp em 2012 (Jard da Silva, 2018JARD DA SILVA, Sidney. (2018), “Bancada sindical, política previdenciária e processo decisório no governo Dilma”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33, 98:1-20.).

Embora moderadas, as reformas previdenciárias produzidas no Brasil, até 2015, criaram um ambiente favorável à difusão da previdência privada e dos fundos de pensão. A introdução de medidas restritivas para incentivar os arranjos de previdência complementar, no curso dos processos de reforma, acentuou o caráter híbrido e fragmentado do sistema previdenciário, tornando seu pilar privado mais atrativo para diversas categorias profissionais.

A Previdência Complementar (PC) no Brasil possui arranjos de capitalização variados e constitui-se num complemento aos benefícios do RGPS e RPPS. Estabelece vínculo estreito entre contribuição e benefício, possuindo planos de benefícios em sua maioria na modalidade de Contribuição Definida (CD).5 5 No modelo CD decide-se o tamanho da contribuição a ser efetuada ao plano e o benefício é definido no momento da aposentadoria, baseado no montante que o segurado acumulou em sua conta individual. A PC organiza-se a partir de duas categorias: as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPCs), sem fins lucrativos (conhecidas como fundos de pensão), podendo ser instituídas por empresas (patrocinadores público ou privado) e/ou por pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial (instituidores); e as Entidades Abertas de Previdência Complementar (EAPCs), com fins lucrativos, atuando no mercado de previdência privada – os planos oferecidos por essas entidades (seguradoras e bancos) são obrigatoriamente de capitalização individual.

Apesar de remontar as origens do sistema previdenciário brasileiro, a previdência complementar somente foi regulamentada no final da década de 1970 durante o regime militar, atrelada primeiramente aos fundos de pensão das empresas estatais e ao objetivo de estimular o mercado de capitais (Jardim, 2009JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2009), “`Domesticação` e/ou `moralização do capitalismo` no governo Lula: inclusão social via mercado e via fundos de pensão”. Dados, 52, 1:123-159.).

Durante o governo FHC, a principal estratégia foi incentivar o crescimento das EAPCs como alternativa à previdência pública. Em meio a uma onda de privatizações de empresas estatais, e a partir de uma aliança forjada com atores empresariais, especialmente ligados ao setor financeiro, as reformas produzidas durante o governo FHC buscaram deslegitimar a previdência pública e os fundos de pensão geridos no âmbito das estatais. Contando com forte apoio da mídia e do governo, as seguradoras e bancos passaram a oferecer planos individuais e a vender uma imagem de que eram muito mais “eficientes” que a previdência pública e os fundos de pensão (Grün, 2005GRÜN, Roberto. (2005), “O `nó` dos fundos de pensão”. Novos Estudos CEBRAP, 3, 3:19-31.). Nesse período, os fundos foram instrumentalizados para atuar como agentes financiadores do processo de reconversão patrimonial da economia brasileira durante o auge das privatizações das empresas estatais. Grün (2005)GRÜN, Roberto. (2005), “O `nó` dos fundos de pensão”. Novos Estudos CEBRAP, 3, 3:19-31. destaca que os fundos, na época, estabeleceram uma estreita relação de “parceria” com os grupos econômicos nacionais, sustentando os esquemas financeiros que permitiram a aquisição de participações acionárias nas empresas recém-privatizadas.

Entretanto, é no início da década de 2000, ainda durante o segundo mandato de FHC, que se cria um considerável espaço para a difusão e popularização dos fundos de pensão. Segundo Jardim (2009)JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2009), “`Domesticação` e/ou `moralização do capitalismo` no governo Lula: inclusão social via mercado e via fundos de pensão”. Dados, 52, 1:123-159., foram os parlamentares de oposição ligados ao PT, vinculados ao movimento sindical, que inseriram na Câmara dos Deputados os debates sobre a necessidade de expansão e maior regulação das entidades de previdência complementar. Por meio da influência desses parlamentares, conseguiu-se aprovar, em 2001, a Lei Complementar nº 109 (LC nº 109/2001) que autorizava a criação de fundos de pensão por instituidores (Brasil, 2001BRASIL. (2001), Lei Complementar n.109, de 29 de Maio de 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp109.htm, consultado em 22/06/2023.
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).6 6 A LC nº 109/2001 também regulamentou as entidades abertas de previdência complementar (Brasil, 2001). A justificativa para essa legislação fundamentava-se na necessidade de maior fiscalização das entidades fechadas, visando estabelecer novos planos associativos e, ao mesmo tempo, promover a participação dos trabalhadores na gestão dos fundos (Jardim, 2009JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2009), “`Domesticação` e/ou `moralização do capitalismo` no governo Lula: inclusão social via mercado e via fundos de pensão”. Dados, 52, 1:123-159.). Assim, a ampliação da margem de atuação dos fundos e sua difusão junto à classe trabalhadora começa a ser efetivamente percebida como oportunidade a partir de 2001, com a LC nº 109/2001.

Até o governo Lula, as instituições fechadas gozavam de uma péssima reputação em razão da ausência de mecanismos de fiscalização e transparência. Contudo, com a chegada de Lula ao poder, em 2003, parte expressiva do movimento sindical, particularmente ligado à CUT – que, em tese, refutaria qualquer medida privatizante no âmbito previdenciário – passou a defender uma maior interlocução com o mercado financeiro em assuntos que envolviam os fundos de pensão, como mostram pesquisas recentes (Jardim, 2009JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2009), “`Domesticação` e/ou `moralização do capitalismo` no governo Lula: inclusão social via mercado e via fundos de pensão”. Dados, 52, 1:123-159.; Sória e Silva, 2014SÓRIA E SILVA, Sidartha. (2014), “As relações entre sindicalismo e fundos de pensão no governo Lula”, in R.V. de Oliveira, M.A. Bridi & M. Ferraz (org.), O sindicalismo na era Lula: paradoxos, perspectivas e olhares. Belo Horizonte, Fino Traço.; Jardim e Jard da Silva, 2016JARDIM, Maria Aparecida Chaves; JARD DA SILVA, Sidney. (2016), “Difusão da previdência complementar no Estado brasileiro: dos fundos de pensão de empresa pública à criação da Funpresp”, in C. Faria; D. Coêlho & S.J. da Silva (org.), Difusão de políticas públicas, São Bernardo do Campo, EdUFABC.; Jard da Silva, 2018JARD DA SILVA, Sidney. (2018), “Bancada sindical, política previdenciária e processo decisório no governo Dilma”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 33, 98:1-20.).

É importante destacar que durante os governos petistas houve uma significativa mudança de orientação no modo de operação dos fundos. Estes foram ressignificados através de sua utilização como um instrumento multifacetado de intervenção e de interlocução com os interesses organizados. Nesse período, pese a dominância do setor financeiro, o Estado desempenhou um protagonismo na direção dos investimentos, implementando projetos de infraestrutura com base nos recursos oriundos dos fundos, via emissão de títulos públicos e por meio de investimentos diretos nas empresas, exigindo ainda certa regulamentação do mercado financeiro (Jardim, 2009JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2009), “`Domesticação` e/ou `moralização do capitalismo` no governo Lula: inclusão social via mercado e via fundos de pensão”. Dados, 52, 1:123-159., 2016JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2016), “Estado e mercado no governo Lula: convergências e divergências no mercado de fundos de pensão”. Revista Agenda Política, 4, 2: 333-362.; Raimundo, 2010RAIMUNDO, Licio da Costa. (2010), “Fundos de pensão no Brasil: estratégias de portfólio e potencial de contribuição para o financiamento do investimento de longo prazo”, in E. Pinto; J.C. Cardoso Jr & P. Linhares (org.), Estado, instituições e democracia, Brasília, IPEA. ; Datz, 2014DATZ, Gisele. (2014), “Varieties of power in Latin American pension finance: pension fund capitalism, developmentalism and statism”. Government and Opposition, 49, n. esp.: 483-510. ; Conti, 2016CONTI, Bruno de. (2016), “Previ, Petros e Funcef: uma análise da alocação das carteiras das três maiores entidades brasileiras de previdência complementar”. Texto para discussão nº 2216. IPEA, Brasília: Rio de Janeiro. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6874/1/TD%202216.pdf , consultado em: 06/12/2020.
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea...
; Santana e Fracalanza, 2019SANTANA, Matheus Ubirajara; FRACALANZA, Paulo Sérgio. (2019), “Fundos de pensão como fonte de financiamento: a experiência dos fundos de pensão brasileiros na estratégia de desenvolvimento econômico dos governos do PT”. Pesquisa & Debate, 31: 136-166.).

Os fundos de pensão nos governos do PT passaram a perseguir diferentes objetivos. Em primeiro lugar, tornaram-se importantes aliados da denominada “estratégia neodesenvolvimentista” que sustentou as políticas econômicas, particularmente no segundo mandato de Lula e no primeiro de Dilma. Tal estratégia se fundamentava no estímulo ao mercado interno via expansão do consumo, e na ampliação do papel do Estado na distribuição de renda e alocação de investimentos (Bastos, 2012BASTOS, Pedro Zahluth. (2012), “A economia política do novo-desenvolvimentismo e do social-desenvolvimentismo”. Revista Economia e Sociedade, 2, n. esp.:789-810. ). Nesse sentido, os fundos de pensão ajudaram a cimentar uma coalizão desenvolvimentista de novo tipo, envolvendo bancos públicos, empresários (inclusive do setor financeiro) e quadros sindicais. Na época, defendia-se que os fundos deveriam retomar o nível de investimento do país, viabilizando o crescimento econômico de longo prazo, conferindo destaque ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como catalizador desse processo (Raimundo, 2010RAIMUNDO, Licio da Costa. (2010), “Fundos de pensão no Brasil: estratégias de portfólio e potencial de contribuição para o financiamento do investimento de longo prazo”, in E. Pinto; J.C. Cardoso Jr & P. Linhares (org.), Estado, instituições e democracia, Brasília, IPEA. ).

Mudanças na estrutura de regulamentação realizadas pelos governos petistas foram fundamentais para reorientar as estratégias de aplicação dos fundos no período.7 7 A fiscalização das entidades de previdência complementar foi reforçada através da criação de órgãos como a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc). Com a Resolução do Conselho Monetário Nacional nº 3.792/2009, criou-se uma nova modalidade de investimento, o Investimento Estruturado, a partir do qual os fundos foram autorizados a investir até 20% do seu portfólio em programas de infraestrutura (Jardim, 2016JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2016), “Estado e mercado no governo Lula: convergências e divergências no mercado de fundos de pensão”. Revista Agenda Política, 4, 2: 333-362.). O governo passou a manejar instrumentos de política monetária, via Banco Central, para incentivar os fundos a adquirir títulos da dívida pública pré-fixados, com juros menores do que os praticados pela taxa Selic, cujos principais compradores foram bancos públicos e privados interessados no financiamento em infraestrutura (Raimundo, 2010RAIMUNDO, Licio da Costa. (2010), “Fundos de pensão no Brasil: estratégias de portfólio e potencial de contribuição para o financiamento do investimento de longo prazo”, in E. Pinto; J.C. Cardoso Jr & P. Linhares (org.), Estado, instituições e democracia, Brasília, IPEA. ; Santana e Fracalanza, 2019SANTANA, Matheus Ubirajara; FRACALANZA, Paulo Sérgio. (2019), “Fundos de pensão como fonte de financiamento: a experiência dos fundos de pensão brasileiros na estratégia de desenvolvimento econômico dos governos do PT”. Pesquisa & Debate, 31: 136-166.).

Como um resultado da mobilização desses instrumentos, os fundos provenientes das empresas estatais lideraram os investimentos em infraestrutura, particularmente entre os anos 2007 e 2013. O ano de 2007 é emblemático da “virada neodesenvolvimentista” do governo que fez largo uso dos fundos das empresas estatais para direcioná-los aos leilões de concessão de obras em infraestrutura, no intuito de incrementar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Prova disso é que se ampliou bastante a participação dos investimentos em renda variável na carteira das EFPCs. Nesse período, os fundos de pensão passaram a compor, ainda que de forma modesta, os chamados Fundos de Investimento em Participações (FIPs), com a proposta de fomentar vários setores, como energia, particularmente petróleo e gás, logística (construção de terminais portuários) e construção civil (Raimundo, 2010RAIMUNDO, Licio da Costa. (2010), “Fundos de pensão no Brasil: estratégias de portfólio e potencial de contribuição para o financiamento do investimento de longo prazo”, in E. Pinto; J.C. Cardoso Jr & P. Linhares (org.), Estado, instituições e democracia, Brasília, IPEA. ; Conti, 2016CONTI, Bruno de. (2016), “Previ, Petros e Funcef: uma análise da alocação das carteiras das três maiores entidades brasileiras de previdência complementar”. Texto para discussão nº 2216. IPEA, Brasília: Rio de Janeiro. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6874/1/TD%202216.pdf , consultado em: 06/12/2020.
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).

Ao analisar as carteiras de investimento dos três maiores fundos de pensão do Brasil (Previ, Petros e Funcef)8 8 Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ), Fundação Petrobras de Seguridade Social (Petros) e Fundação dos Economiários Federais (Funcef), vinculada aos funcionários da Caixa Econômica Federal. entre 2003 e 2013, Conti (2016)CONTI, Bruno de. (2016), “Previ, Petros e Funcef: uma análise da alocação das carteiras das três maiores entidades brasileiras de previdência complementar”. Texto para discussão nº 2216. IPEA, Brasília: Rio de Janeiro. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6874/1/TD%202216.pdf , consultado em: 06/12/2020.
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concluiu que estes, além de concentrarem mais de 45% dos ativos das EFPCs, possuíam recursos expressivos investidos em grandes companhias, inclusive ampliando sua participação em empresas privatizadas, como a Companhia Vale do Rio Doce. Apesar de deterem maior participação em investimentos em renda variável, estas três entidades também se caracterizaram por uma gestão conservadora de suas carteiras, particularmente após a crise de 2008; com grande concentração de recursos alocados em títulos públicos, revelando o comportamento errático da composição das carteiras dos fundos (Conti, 2016CONTI, Bruno de. (2016), “Previ, Petros e Funcef: uma análise da alocação das carteiras das três maiores entidades brasileiras de previdência complementar”. Texto para discussão nº 2216. IPEA, Brasília: Rio de Janeiro. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6874/1/TD%202216.pdf , consultado em: 06/12/2020.
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).

Em segundo lugar, presumia-se que a maior participação dos sindicatos na gestão dos fundos de pensão poderia “domesticar o capitalismo” (Jardim, 2009JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2009), “`Domesticação` e/ou `moralização do capitalismo` no governo Lula: inclusão social via mercado e via fundos de pensão”. Dados, 52, 1:123-159.), possibilitando, além da construção de uma nova relação capital-trabalho a partir da cogestão dos fundos, a entrada dos trabalhadores na burocracia estatal (D'Araújo, 2009D’ARAÚJO, Maria Celina. (2009), A elite dirigente do governo Lula. Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.). Para alguns autores, no entanto, essa maior imbricação entre sindicatos e fundos de pensão seria reveladora de um processo de “financeirização da burocracia sindical” (Oliveira, 2003OLIVEIRA, Francisco de. (2003), Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo.), conformando uma “nova elite” de sindicalistas com íntimas ligações ao mercado financeiro (Jardim, 2009JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2009), “`Domesticação` e/ou `moralização do capitalismo` no governo Lula: inclusão social via mercado e via fundos de pensão”. Dados, 52, 1:123-159.; Sória e Silva, 2014SÓRIA E SILVA, Sidartha. (2014), “As relações entre sindicalismo e fundos de pensão no governo Lula”, in R.V. de Oliveira, M.A. Bridi & M. Ferraz (org.), O sindicalismo na era Lula: paradoxos, perspectivas e olhares. Belo Horizonte, Fino Traço.). Nessa perspectiva, Sória e Silva (2014)SÓRIA E SILVA, Sidartha. (2014), “As relações entre sindicalismo e fundos de pensão no governo Lula”, in R.V. de Oliveira, M.A. Bridi & M. Ferraz (org.), O sindicalismo na era Lula: paradoxos, perspectivas e olhares. Belo Horizonte, Fino Traço. aponta que essa “elite” viu nos fundos de pensão uma frente de expansão do poder sindical, atuando decisivamente no sentido de ampliar suas ações em direção ao mundo financeiro. Jardim (2016)JARDIM, Maria Aparecida Chaves. (2016), “Estado e mercado no governo Lula: convergências e divergências no mercado de fundos de pensão”. Revista Agenda Política, 4, 2: 333-362. destaca que a ascensão de Lula à presidência permitiu que atores sindicais ligados ao PT, com certa proximidade com o mercado financeiro – a exemplo dos bancários – fossem nomeados para o comando dos maiores fundos de pensão do país.

Por fim, o mais contraditório dos objetivos, é que os fundos poderiam se converter em instrumentos auxiliares à estratégia de contenção de gastos nos subsistemas públicos previdenciários (RGPS e RPPS), visto que o “neodesenvolvimentismo” dos governos petistas deixou intacto os pilares da ortodoxia macroeconômica que, no Brasil, se baseiam em elevada taxa de juros, na realização constante de superávits primários e num rígido sistema de metas fiscais. Ademais, a alta taxa de juros no período permitiu forte rentabilidade das aplicações feitas pelos fundos fechados e das entidades abertas, potencializando sua atratividade junto aos segmentos médios de renda (Gentil, 2020GENTIL, Denise Lobato. (2020), “Dominância financeira e o desmonte do sistema público de previdência social no Brasil”, in J.A. de Castro & M. Pochmann (org.), Brasil. Estado social contra a barbárie, São Paulo, Fundação Perseu Abramo.). Assim, gradualmente e através de incentivos governamentais, a previdência complementar foi abrindo “alternativas de saída”, segundo a célebre análise de Hirschman (1970)HIRSCHMAN, Albert Otto. (1970), Exit, voice, and loyalty. Responses to decline in firms, organizations, and states. Cambridge, Harvard University Press., para os trabalhadores com maiores remunerações constituírem seus fundos complementares em detrimento da previdência pública. Cabe ainda destacar que as desonerações fiscais promovidas pelos governos petistas impactaram negativamente os recursos da previdência social, comprometendo as receitas do RGPS. 9 9 As desonerações patronais para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que organiza os recursos do RGPS, passaram de R$ 14 bilhões em 2007 para R$ 66,5 bilhões em 2015 (Gentil, 2020).

Um “acordo ambíguo” (Palier, 2007PALIER, Bruno. (2007), “Tracking the evolution of a single instrument can reveal profound changes: the case of funded pensions in France”. Governance, 20, 1: 85-107.), portanto, incentivou o crescimento da previdência complementar no país. Vale mencionar que esse acordo foi costurado a partir da construção de uma imagem aceitável dos fundos de pensão junto aos interesses organizados, particularmente ligados ao sindicalismo, contemplando uma diversidade de objetivos contraditórios. As propriedades ambíguas dos fundos transpareceram marcadamente durante os governos petistas, revelando a própria incongruência desses governos quanto ao “papel exato a ser representado pelos fundos de pensão”; por um lado, estes eram justificados para fomentar os investimentos produtivos e o emprego, por outro, eram invocados para incentivar o mercado de capitais e, concomitantemente, conter as despesas do sistema previdenciário (Sória e Silva, 2014, pSÓRIA E SILVA, Sidartha. (2014), “As relações entre sindicalismo e fundos de pensão no governo Lula”, in R.V. de Oliveira, M.A. Bridi & M. Ferraz (org.), O sindicalismo na era Lula: paradoxos, perspectivas e olhares. Belo Horizonte, Fino Traço.. 159).

Conforme mencionado, a reforma da previdência do governo Lula (EC nº 41/2003), ao fixar um teto de aposentadoria para o RPPS equivalente ao do RGPS, limitou os valores das aposentadorias e pensões dos servidores públicos. Entretanto, é somente no governo Dilma que a previdência complementar dos servidores federais é regulamentada, através da instituição da Funpresp, conferindo um impulso adicional à expansão dos fundos de pensão. A fixação do teto do RGPS e sua unificação com o regime dos servidores foi, certamente, um veículo de estímulo à previdência complementar, já que a renda de algumas categorias de servidores públicos supera em muito esse limite (Gentil, 2020GENTIL, Denise Lobato. (2020), “Dominância financeira e o desmonte do sistema público de previdência social no Brasil”, in J.A. de Castro & M. Pochmann (org.), Brasil. Estado social contra a barbárie, São Paulo, Fundação Perseu Abramo.).

Como resultado do “acordo ambíguo” costurado para viabilizar os fundos de pensão no país, verificou-se, entre os anos de 1995 e 2019, um notável crescimento das EFPCs. Em dezembro de 2019, o sistema de previdência complementar fechada abrangia 1.153 planos de benefícios, administrados por 299 entidades, cujos ativos se distribuíam em 187 fundos de patrocínio privado, 90 de patrocínio público e 22 de patrocínio instituidor (Previc, 2019PREVIC, (2019). “Relato Integrado”. Disponível em:< https://www.gov.br/economia/pt-br/orgaos/entidades-vinculadas/autarquias/previc/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorio-anual-de-atividades/relato-integrado-previc-2019.pdf/view, consultado em: 06/12/2020.
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). No início de 2019, as EFPCs contavam com uma população protegida superior a 7,6 milhões de pessoas, compreendendo 2,8 milhões de participantes ativos, 677 mil aposentados, 183 mil pensionistas e 4,1 milhões de designados (Previc, 2019PREVIC, (2019). “Relato Integrado”. Disponível em:< https://www.gov.br/economia/pt-br/orgaos/entidades-vinculadas/autarquias/previc/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorio-anual-de-atividades/relato-integrado-previc-2019.pdf/view, consultado em: 06/12/2020.
https://www.gov.br/economia/pt-br/orgaos...
). Quanto aos ativos acumulados pelos fundos de pensão é possível constatar (Gráfico 1) que houve um crescimento substantivo entre 1995 e 2019, visto que a soma dos recursos saltou de R$72 bilhões para R$956 bilhões. Dada a relativa estabilidade dos ativos dos fundos como porcentagem do PIB, optou-se por deflacionar o valor dos ativos dos fundos a partir do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA – 1995). Os valores deflacionados (Gráfico 2) revelam o crescimento dos fundos no período, de R$72 bilhões para R$ 224 bilhões.

Gráfico 1
– Total dos ativos dos fundos de pensão como % do PIB (1995-2019) | Fonte: Abrapp (2019)ABRAPP. (2019), Consolidado Estatístico. Disponível em: <http://www.abrapp.org.br/SitePages/ConsolidadoEstatistico.aspx>, consultado em: 06/12/2020.
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.
Gráfico 2
– Total dos ativos dos fundos de pensão (1995-2019) – valores deflacionados. | Fonte: elaboração própria a partir dos dados da Abrapp de 2019.

No caso das EAPCs, que se expandiram a partir da EC nº 20/1998, verifica-se um grande crescimento de planos privados de previdência ofertados por bancos e seguradoras. Em 2019, os seus planos mais conhecidos, o Plano Gerador de Benefícios Livres (PGBL) e Vida Gerador de Benefícios Livres (VGBL), possuíam um patrimônio líquido de mais de R$ 900 bilhões (Gráfico 3). No início de 2019, os planos VGBL representavam cerca de 90% de todo o mercado de previdência privada do país (Susep, 2020SUSEP. (2020), Sistema de Estatísticas da SUSEP. Disponível em: < https://www2.susep.gov.br/menuestatistica/ses/principal.aspx>, consultado em 06/12/2020.
https://www2.susep.gov.br/menuestatistic...
). O crescimento dos planos PGBL e VGBL é estimulado por alguns fatores: tratamento tributário diferenciado aos seus participantes mediante deduções fiscais, livre escolha do tipo de fundo no qual os recursos serão aplicados (renda fixa ou renda variável) e portabilidade. Como são produtos financeiros destinados a pessoas que querem receber benefícios com valores acima daqueles fixados pelo teto dos subsistemas públicos previdenciários, ambas as modalidades de planos têm atraído indivíduos com maiores rendas.

Gráfico 3
- Evolução da Provisão dos Fundos PGBL e VGBL no Brasil (2001-2019) | Fonte: elaboração própria a partir de dados da Susep de 2020.

Com os governos conservadores de Michel Temer (2016 – 2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) inaugura-se uma nova conjuntura de reformas no sistema previdenciário. Estas foram perseguidas mediante propostas bastante restritivas, trazendo iniciativas mais contundentes no sentido de instrumentalizar as instituições de previdência complementar para incentivar o crescimento dos esquemas de capitalização no país, particularmente ofertados por seguradoras e bancos.

De 2016 a 2021, as políticas previdenciárias permaneceram subordinadas ao Ministério da Economia, demonstrando a intenção desses governos de tornar o setor previdenciário um mero apêndice da área econômica. Vale enfatizar que, durante esse período, à frente da secretaria que trata dos assuntos previdenciários foram colocados políticos e burocratas fortemente comprometidos com a adoção de reformas restritivas no sistema de repartição; além de advogarem mecanismos mais frouxos de regulação financeira como incentivo à expansão da previdência privada (Lanzara e Salgado Silva, 2018LANZARA, Arnaldo Provasi; SALGADO SILVA, Bruno. (2018), “Coalizões, ajuste e reformas: a chilenização da seguridade social brasileira?” Política Hoje, 27, 2: 5-21.).

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 287/2016), enviada ao Congresso Nacional pelo governo Temer, pretendia unificar as regras de acesso às aposentadorias, reduzindo drasticamente o valor dos benefícios (Brasil, 2016a BRASIL. (2016a), Proposta de Emenda à Constituição n. 287 de 2016. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2119881, consultado em 22/06/2023.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
). Em compasso com as reformas anteriores, a PEC nº 287/2017 também abria um considerável espaço de atuação para a previdência complementar: obrigava estados e municípios a criar regimes complementares para os seus servidores, permitindo que fossem contratados planos abertos, oferecidos por entidades do sistema financeiro (Dieese, 2017DIEESE. (2017), “Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira”. Brasília, Dieese/Anfip. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/livro/2017/previdenciaSintese.pdf>, consultado em: 06/12/2020.
https://www.dieese.org.br/livro/2017/pre...
).

Apesar de o governo Temer não ter logrado a aprovação da sua reforma, duas medidas conspiraram abertamente contra o arcabouço de direitos sociais constitucionais, do qual a previdência social é parte integrante. A primeira medida, a Emenda Constitucional nº 95 de 2016 (EC nº 95/2016), fixou por 20 anos um teto para o crescimento das despesas públicas (Brasil, 2016bBRASIL. (2016b), Emenda Constitucional n. 95, de 15 de Dezembro de 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm, consultado em 22/06/2023.
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). A finalidade dessa medida é acirrar o conflito distributivo dentro do orçamento, comprimindo o espaço fiscal para as despesas com seguridade (Rossi, Dweck e Oliveira, 2018ROSSI, Pedro; DWECK, Esther; OLIVEIRA, Ana Luíza (org.). (2018), Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. São Paulo, Autonomia Literária. ). A segunda medida foi a aprovação de uma reforma trabalhista em 2017. Não se deve subestimar o impacto dessa reforma, pois ela visa desestruturar a base sindical que se constituiu em torno do sistema público previdenciário e afetar negativamente as fontes de financiamento da previdência social (Galvão et al., 2019GALVÃO, Andréia; CASTRO, Bárbara; KREIN, José Dari; TEIXEIRA, Marilane Oliveira. (2019), “Reforma trabalhista: precarização do trabalho e os desafios para o sindicalismo”. Caderno CRH, 32, 86: 253-270.).

Sancionada em 12 de novembro de 2019, a Emenda Constitucional nº 103/2019, a reforma da previdência de Jair Bolsonaro, buscou deliberadamente desconstitucionalizar as regras do sistema previdenciário. A reforma estabeleceu regras de idade mínima para as aposentadorias no RGPS (62/65 anos, mulheres e homens, respectivamente) e taxas de substituição bastante reduzidas (o valor das aposentadorias corresponderá a 60% da média dos salários de contribuição, exigindo 40 anos de contribuição para o recebimento integral do benefício). Haverá, nesse sentido, uma diminuição substantiva dos valores das aposentadorias pagas pelo RGPS, o que tende a desestimular a contribuição dos trabalhadores que ganham mais de um salário-mínimo.10 10 Valor de praticamente 2/3 de todas as aposentadorias e pensões pagas pelo RGPS. Para o RPPS, merece destaque o estabelecimento de alíquotas escalonadas de contribuição previdenciária sobre o salário dos servidores públicos, que podem chegar a 22% (Brasil, 2019BRASIL. (2019), Emenda Constitucional n.103, de 12 de Novembro de 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm, consultado em 22/06/2023.
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).

Fortemente apoiada pela mídia e diante de um cenário de prostração do movimento sindical, gerado pelos efeitos deletérios da reforma trabalhista e de um contexto macroeconômico de alto desemprego e desvalorização dos salários, a EC nº 103/2019 encontrou algumas resistências na sociedade, particularmente entre os trabalhadores que recebem até dois salários-mínimos e entidades sindicais vinculadas ao campo. Nesse sentido, cabe ponderar que algumas medidas mais radicais contidas na proposta original, como a adoção de um regime substitutivo de capitalização, a desvinculação dos reajustes dos benefícios previdenciários do valor do salário-mínimo, a redução do valor das aposentadorias rurais e dos benefícios assistenciais (BPC) foram rechaçadas pelo Congresso.

Embora o regime de capitalização tenha sido rejeitado, várias medidas introduzidas no novo sistema previdenciário, como o rebaixamento dos benefícios da previdência pública, a possibilidade de privatização dos benefícios não programados (auxílio-doença, licença-maternidade e auxílio-acidente) e a permissão para que a administração da previdência complementar dos servidores estaduais e municipais seja feita através das EAPCs (sem exigência de licitação) se constituem em medidas explícitas de indução da expansão do mercado privado de previdência (Dieese, 2019DIEESE. (2019), “Os Regimes Próprios de Previdência Social de estados e municípios após a reforma de 2019”. Nota Técnica Especial. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/notatecnica/2019/notaTecEspecialNov2019.pdf>, consultado em: 06/12/2020.
https://www.dieese.org.br/notatecnica/20...
).

Corrobora esse argumento o fato de a EC nº 103/2019 ter instituído a obrigatoriedade da criação de fundos de previdência complementar para os entes estaduais e municipais, representando um forte indício de que a previdência pública de estados e municípios será tolhida para abrir espaço à previdência privada.

Em suma, provavelmente e de um modo gradual, os bancos e as seguradoras privadas se tornarão os principais administradores dos regimes de previdência complementar dos servidores estaduais e municipais, reforçando o movimento de expansão da previdência privada no país.

Conclusão

Apesar dos efeitos path dependence acumulados de políticas pregressas, os sistemas públicos previdenciários de diversos países vêm alterando gradualmente sua fisionomia sem passar por mudanças radicais, graças à introdução de alguns esquemas alternativos, como a previdência complementar privada.

No caso brasileiro, a introdução de medidas restritivas promoveu mudanças marginais, porém significativas no sistema previdenciário do país. Estas, até o momento, dispensaram soluções radicais do ponto de vista ideológico.

Entretanto, a introdução dessas medidas, na sequência dos processos de reforma, afetou diretamente o sistema previdenciário, produzindo uma espiral de transformações incrementais, quais sejam: o reconhecimento explícito da previdência complementar como pilar estruturante do sistema previdenciário; a fixação de um teto para o recebimento das aposentadorias dos servidores públicos; a diminuição das taxas de reposição de renda nos subsistemas públicos RGPS e RPPS; a concessão de incentivos fiscais aos indivíduos que contratarem planos de previdência complementar; e mais recentemente, a obrigatoriedade de estados e municípios adotarem regimes de previdência privada para os seus servidores.

As reformas previdenciárias promovidas no Brasil abriram um precedente para o crescimento dos fundos de pensão e dos planos de previdência privada ao introduzirem medidas restritivas que diminuíram a atratividade da previdência pública. Desde então, a previdência complementar tornou-se uma alternativa real de complementação dos rendimentos de aposentadoria para os trabalhadores que querem receber benefícios superiores aos valores fixados pelo teto do RGPS.

Conforme visto, a legislação que regulamentou a previdência complementar no Brasil possibilitou que os fundos de pensão se transformassem num instrumento multifacetado de intervenção, particularmente durante os governos petistas.

Deve-se ressaltar que o reconhecimento explícito da previdência complementar, como um pilar do sistema previdenciário brasileiro, somente se tornou possível através de “acordos ambíguos”. Nesse sentido, constatou-se que as medidas restritivas adotadas desde o início das reformas, ao lado dos “acordos ambíguos” forjados entre as coalizões de governo e os interesses organizados para instrumentalizar os diferentes usos dos fundos de pensão, influenciaram o processo de expansão da previdência complementar no país.

Vale mencionar que as coalizões conservadoras que governaram o Brasil entre 2016 e 2022 se mostraram cada vez menos dispostas a lançar mão desses acordos, preferindo adotar medidas de reforma mais coercitivas, como a imposição de limites constitucionais ao crescimento das despesas públicas e de mecanismos compulsórios para forçar segmentos da população a se filiar nos esquemas privados de previdência, especialmente num contexto de austeridade permanente e recuo da capacidade de mobilização dos sindicatos.

Cabe ainda destacar, como último comentário, que o processo de expansão da previdência privada complementar tenderá a se acelerar em consequência do pacote de reformas recentemente implementado. Nunca é demais lembrar que a EC nº 95/2016 comprimiu o espaço fiscal para as despesas com seguridade; e que a reforma trabalhista de 2017, ao permitir a proliferação da subcontratação e das formas de trabalho intermitente, tende a afetar negativamente as fontes de financiamento da previdência social.

Essas medidas, somadas aos efeitos nocivos do rebaixamento dos benefícios públicos advindos da última reforma da previdência, podem incentivar seguimentos expressivos da população a se deslocar para os arranjos previdenciários de capitalização, a despeito da preservação do pilar público do sistema.

  • 1
    Na década de 1970, os benefícios da previdência passam a ser estendidos aos trabalhadores rurais, autônomos e empregados domésticos.
  • 2
    No campo da assistência instituiu-se o Benefício de Prestação Continuada (BPC): no valor de um salário-mínimo destinado aos idosos (65 anos) e portadores de deficiências com renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo.
  • 3
    Um exemplo de tais medidas foi o Microempreendedor Individual (MEI).
  • 4
    De acordo com Singer (2018)SINGER, André. (2018), O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo, Companhia das Letras., diante da perda na capacidade de governar o país, a ex-presidente Dilma “se tornou errática”. Prova disso foi a construção de uma campanha eleitoral, em 2014, de caráter desenvolvimentista e a repentina guinada ortodoxa da política econômica após sua vitória nas eleições; tal guinada fez com que a ex-presidente perdesse parte do apoio da esquerda (Singer, 2018SINGER, André. (2018), O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo, Companhia das Letras.).
  • 5
    No modelo CD decide-se o tamanho da contribuição a ser efetuada ao plano e o benefício é definido no momento da aposentadoria, baseado no montante que o segurado acumulou em sua conta individual.
  • 6
    A LC nº 109/2001 também regulamentou as entidades abertas de previdência complementar (Brasil, 2001BRASIL. (2001), Lei Complementar n.109, de 29 de Maio de 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp109.htm, consultado em 22/06/2023.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
    ).
  • 7
    A fiscalização das entidades de previdência complementar foi reforçada através da criação de órgãos como a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc).
  • 8
    Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ), Fundação Petrobras de Seguridade Social (Petros) e Fundação dos Economiários Federais (Funcef), vinculada aos funcionários da Caixa Econômica Federal.
  • 9
    As desonerações patronais para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que organiza os recursos do RGPS, passaram de R$ 14 bilhões em 2007 para R$ 66,5 bilhões em 2015 (Gentil, 2020GENTIL, Denise Lobato. (2020), “Dominância financeira e o desmonte do sistema público de previdência social no Brasil”, in J.A. de Castro & M. Pochmann (org.), Brasil. Estado social contra a barbárie, São Paulo, Fundação Perseu Abramo.).
  • 10
    Valor de praticamente 2/3 de todas as aposentadorias e pensões pagas pelo RGPS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2021
  • Aceito
    13 Jun 2023
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