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Capacitismo: uma categoria útil para a análise histórica das marginalizações sociais

Ableism: a useful category for the historical analysis of social marginalizations

Resumos

Resumo

Este artigo, caracterizado como uma proposta teórica crítico-reflexiva, objetiva fornecer contributos para a produção de uma epistemologia do capacitismo. Para tanto, escrutina a ideia de norma e desvela a violência contida em seus elementos constitutivos, os quais empurraram a diferença da deficiência ao interdito. Em seguida, historiciza os processos formativos da lógica capacitista e destaca como esta pode servir de ferramenta analítica para a compreensão de marginalizações vivenciadas por grupos minoritários, dado o caráter centrípeto exercido pela ideia de corponormatividade. Finaliza assinalando que a construção de uma epistemologia capacitista pode agregar contribuições aos estudos sobre raça, gênero e outras minorias, se configurando como parte da luta mais ampla por justiça e para a construção de uma nova Geografia Social, uma nova Antropologia.

Palavras-chave:
capacitismo; normalidade; desigualdade social; deficiência; diferença


Abstract

This article, characterized as a critical-reflective theoretical proposal, aims to provide contributions to the production of an epistemology of ableism. To this end, it scrutinizes the idea of a norm and reveals the violence contained in its constituent elements, which pushed the difference between disability and prohibition. It then historicizes the formative processes of ableist logic and highlights how it can serve as an analytical tool for understanding marginalization experienced by minority groups, given the centripetal character exercised by corponormativity idea. It ends by noting that the construction of an ableist epistemology can add contributions to studies on race, gender, and other minorities groups, configuring as part of the broader struggle for justice and the construction of a new Social Geography, a new Anthropology.

Keywords:
ableism; normalcy; social inequality; disability; difference


1. Introdução

Lembro-me ainda hoje do impacto exercido quando da leitura do texto de Scott (1995)SCOTT, Joan. (1995), “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, 20, 2:71-99. – “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” – no início dos anos 2000. Era como se uma nova fronteira intelectual se abrisse quanto às possibilidades de compreensão do mundo pelas vias do gênero. Um texto político radical, ativista e que analisava as opressões enfrentadas pelas mulheres como históricas e relacionadas aos desenhos impostos pelo machismo, pelo patriarcalismo e pela violenta estrutura cultural.

Com a marca de um clássico, que é a de resistir ao tempo, o artigo de Scott (1995)SCOTT, Joan. (1995), “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, 20, 2:71-99. voltou em minha memória quando da leitura dos textos de Wolbring (2008)WOLBRING, George. (2008), “The Politics of Ableism”. Development, 51, 1:252-258. e Campbell (2008CAMPBELL, Fiona Kumari. (2008), “Exploring internalized ableism using critical race theory”. Disability & Society, 23, 2:151-162. DOI: https://doi.org/10.1080/09687590701841190., 2009CAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan.), os quais asseveram a necessidade em se pensar o conceito de capacitismo para além de relações vinculadas a definição do tratamento negativo destinado às pessoas com deficiência, tornando-o útil para a compreensão de processos transversais de exclusão.

Com isso, para que fique claro, não estamos renunciando à importância de possuir uma categoria para discutir o preconceito específico contra pessoas com deficiência, que existe e desempenha um efeito devastador sobre este coletivo populacional. Entretanto, partimos da hipótese de que as lutas das pessoas com deficiência poderão ter maior alcance público se vistas a partir de relações partilhadas por outros grupamentos marginalizados, posto que tal ato auxiliaria no combate à representação da deficiência como experiência clínica de ordem individual.

Convém ressalvar que a própria ideia de capacitismo se forja em um duplo dialético que consente em se pensar no conjunto de toda e qualquer manifestação que se desvia de uma dita norma universal e que é operativa na redução de oportunidades de negros, mulheres, indígenas, gays, idosos e pessoas com deficiência. Neste sentido, a análise escrupulosa deste conceito permite compreensões gerais que desdobram em relações ainda não percebidas, se constituindo em uma plataforma pela qual concebemos a genealogia das desigualdades nas sociedades contemporâneas.

Este entendimento encontra suporte na literatura nominada de “modelo social da deficiência”, uma vez que, para Barnes (1996), aBARNES, Colin. (1996), “Disability and the Myth of the Independent Researcher”. Disability & Society, 11, 1:107-112. DOI: https://doi.org/10.1080/09687599650023362. política da deficiência vai além do tecimento de considerações sobre pessoas com deficiência, uma vez que desafia a opressão em variadas formas e manifestações mediante contestação dos valores culturais que criam e sustentam violentas gramáticas de exclusão social.

Dito isto, a proposição teórica crítico-reflexiva que proponho objetiva destacar o capacitismo como uma categoria fundamental para a análise histórica dos processos excludentes operados hodiernamente e na denúncia de opressões vivenciadas por coletivos tidos como minoritários. O texto está dividido em quatro seções. Além desta introdução, a segunda exibe como o desenvolvimento da noção de norma instituiu processos de subalternização das diferenças a partir da modernidade. Na seção três, apresento, por meio de revisão literária, o conceito de capacitismo. Por último, a quarta seção assevera como a noção de capacitismo pode ser utilizada como categoria analítica com a finalidade de compreender e contestar múltiplas formas de opressões sociais.

2. A modernidade, a norma e a aversão ao diferente

Inegavelmente, o transcurso da Idade Moderna operou importantes transformações as quais impactaram a maneira pela qual nos relacionamos com o mundo. Nesse tempo, ansioso por progresso, pela busca do idêntico e pelo sufocamento da diferença, o corpo humano passa a ser escrutinado por uma racionalidade clínica que delimitou as variações físicas (im)possíveis em termos de incorporação social.

Não por acaso, Bauman (1998)BAUMAN, Zigmunt. (1998), O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. entende a Modernidade como antropoêmica em relação aos estranhos; e Foucault (1978)FOUCAULT, Michel. (1978), História da loucura na idade clássica. São Paulo, Perspectiva. a percebe como uma cultura de exclusão, confinamento e esquecimento. Para ambos, no centro da Modernidade, se encontra um sonho de ordem e pureza que representam a moralidade da época insurgente, um tempo cuja preocupação com a saúde tem se mostrado extremamente durável e que castigou, estigmatizou, patologizou e invalidou corpos que eram vistos como diferentes.

Em tal período histórico, que decidiu pela exclusão da alteridade mediante a proclamação de um discurso que tomou as supostas diferenças de natureza biológica e intelectual entre grupos humanos como distinguíveis e derivadas de propriedades somáticas – raciocínio que fundamentou o aparecimento de doutrinas individualistas que diferenciariam a Idade Moderna do Medievo ou da Antiguidade, como apontam Dumont (1974)DUMONT, Louis. (1974), “Casta, racismo e ‘estratificação’”, in N. Aguiar. (org.), Hierarquias em classes. Rio de Janeiro, Zahar Editores. e Guillaumin (1992)GUILLAUMIN, Colet. (1992), Race et nature, L'idée de Nature. Paris, Côté-femmes Editions. –, as pessoas com deficiência foram entendidas como ameaça ao tecido social. Um corpo não passível de assimilação nas novas gramáticas de reconhecimento.

A percepção das desigualdades entre humanos como fundadas a partir de diferenças biológicas/funcionais circulantes exerceu profundo impacto no imaginário social e teve, por consequência direta, a explicação das percebidas desvantagens como derivadas de distinções biológicas e não de construções históricas intencionais, fato que resultou na busca incessante da institucionalização e correção dessas condições tidas como não incorporáveis e que tinham na deficiência sua imagem dileta. Singular, neste sentido, se mostra a passagem de Braddock e Parish (2001)BRADDOCK, David; PARISH, Susan. (2001), “History of disability”, in G. Albrecht; K. Seelman; M. Bury. (org.), Handbook of disability studies. Thousand Oaks, SAGE Publications., os quais asseveram que a ciência da reabilitação foi a solução burguesa para a imperfeição.

Não causa estranheza, portanto, que Bauman (1989)BAUMAN, Zigmunt. (1989), Modernity and the Holocaust. Oxford, Polity. defina o Holocausto não como aberração histórica, mas sim como um horror consistente ao próprio projeto moderno, que tomou a diferença como atributo a ser eliminado ou separado. A lógica que criou os fenômenos da institucionalização, dos grandes confinamentos e dos campos de concentração surge como resposta aos problemas da higiene política expostos pela modernidade, embora uma solução se mostrasse mais final que outra.

Está evidente que a tendência homogeneizadora operada pelo projeto moderno quando de seu nascedouro se transformou, com o correr dos anos, muito em razão das lutas empenhadas pelos grupos marginalizados – os quais desafiaram paisagens segregacionistas – e da própria modificação das relações público-institucionais. Contudo, permanece viva no tempo presente a vontade de ordenar, regular corpos e patologizar variações existenciais a partir do esquadro clínico definido pelo conceito de norma, tornada bússola moral e comportamental daquele e deste tempo.

A busca pela norma, dado seu caráter imanente, transcende a objetivação do conceito de ideal manifestada no Medievo, se inscrevendo nas artes mundanas de julgar e comparar, portanto, podendo se manifestar em qualquer relação social.

Recobra sentido aqui a afirmação de Foucault (2000)FOUCAULT, Michel. (2000), Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975 - 1976). São Paulo, Editora Martins Fontes. de que nas sociedades modernas a norma possui alcance mais abrangente do que a própria lei, prevalecendo como elemento decisório nas relações de poder, posto estar presente no cotidiano e alcançar o conjunto das manifestações humanas ao se aplicar tanto sobre um corpo que se deseja disciplinar, como sobre uma população que se quer regulamentar. A norma ordena, comunica, produz objetividade e torna cada indivíduo comparável a um outro ou a um padrão representacional anteriormente definido. Assim, a norma também diferencia ao convidar cada pessoa a se reconhecer diferente de um padrão corponormativo, funcionando como um padrão de medida, de comparabilidade.

Para Louro (2008, pLOURO, Guacira Lopes. (2008), “Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas”. Pro-Posições, 19, 2:17-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73072008000200003.. 22), a norma não emana de um único lugar, não “é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em toda parte. Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observadas cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí por que a norma se faz penetrante, daí por que ela é capaz de se naturalizar”.

Este processo de naturalização objetiva universalizar e neutralizar constructos arbitrariamente produzidos, cujo intento final reside em demarcar os limites entre normal e patológico. Para Latour (2013)LATOUR, Bruno. (2013), Jamais fomos modernos. 3a edição. São Paulo, Editora 34., normalizar e patologizar são elementos nucleares utilizados pela modernidade para classificar pessoas, garantindo que populações sejam contadas, mapeadas e ordenadas por matrizes específicas, ainda que estas não reflitam ou até distorçam a realidade.

Com base nestes supostos, a deficiência, desde a consolidação do sistema capitalista de produção, foi caracterizada como condição inerentemente negativa, pois patológica, e os sujeitos que vivenciavam tal experiência foram desabilitados e não reconhecidos como dignos de participação paritária no tecido social. Norma e forma definem, assim, tanto o que conta como um corpo legítimo, como os quadrantes do corpo desvalorizado.

Os processos diagnósticos e classificatórios pelos quais os corpos são lidos e produzidos como normais ou anormais – patológicos – mobilizam tanto capital físico como também capital político, simbólico e social, mediante os quais as pessoas são produzidas e inseridas “dentro de uma hierarquia de características corporais que determina a distribuição de privilégio, status e poder” (Garland-Thomson, 1997, pGARLAND-THOMSON, Rosemarie. (1997), Extraordinary bodies: Figuring physical disability in American culture and literature. Nova Iorque, Columbia University Press.. 6).

Esta forma de organização social – inserida na própria tradição binária do pensamento ocidental (natureza/cultura, eu/outro, razão/emoção etc.) –, funda aquilo que podemos chamar de moral capacitista, cuja razão de ser pretende instalar uma divisão entre corpos capazes/possíveis e corpos incapazes/impossíveis de serem assimilados no regime ordinário das relações sociais, laborais, políticas e culturais. A norma se comporta como uma figura por intermédio da qual determinadas pessoas se representam como seres humanos definitivos, não marcados; enquanto outros são imaginados como incompletos.

Com base nesta classificação, corpos lidos como anormais são vistos como se materializassem atributos estereotipados associados a condições de desvantagens intrínsecas. No caso da pessoa com deficiência, estes atributos capacitistas incluem fragilidade, baixa inteligência, imobilidade, assexualidade ou sexualidade exacerbada, agressividade e dependência. O caráter relacional, contextual e temporal destes estigmas nos auxiliam a compreender a deficiência e seu significado não como fato médico estático, mas sim como construção social vazada, logo, podendo ser transformada pela ação intencional humana.

3. Afinal, o que é capacitismo?

Conforme Albrecht (2006), aALBRECHT, Gary. (2006), Encyclopedia of disability. Chicago, University of Illinois Chicago Publisher. ideia da necessidade da criação de um conceito analítico genérico para descrever comportamentos discriminatórios em relação às pessoas com deficiência remonta ao final da década de 1960 e foi motivada a partir da popularização dos conceitos de racismo e sexismo na explicação de desvantagens experimentadas por negros e mulheres.

Na senda destes lineamentos, Bogdan e Biklen (1977BOGDAN, Robert; BIKLEN, Douglas. (1977), “Handicapism”. Soc. Pol., 7, 14-19., pp. 17-18) cunharam o termo handicapism, tomando este “como o conjunto de pressupostos e práticas que promovem um tratamento diferenciado e desigual das pessoas devido a diferenças físicas, mentais ou comportamentais, quer aparentes ou assumidas”. A definição de Bogdan e Biklen (1977)BOGDAN, Robert; BIKLEN, Douglas. (1977), “Handicapism”. Soc. Pol., 7, 14-19., embora precursora, exerceu rareado impacto político e não se consolidou como categoria analítica. Esta situação, no entender de Campbell (2009)CAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan., se modificaria em maio de 1981, quando da publicação do número temático “Mulheres com Deficiência”1 1 Número temático “women with disabilities”. Disponível em https://www.jstor.org/stable/i25774044, consultado em 14/01/2024. pelo periódico Off Our Backs, em seu volume 11, número 5.

Todavia, discordamos de Campbell (2009)CAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan., pese a importância da publicação mencionada, por considerarmos que ela não era nem originária – já que existiram tentativas similares em períodos anteriores –, tampouco robusta, já que as definições daí derivadas versavam mais sobre o conjunto de discriminações vivenciadas pelas mulheres do que propriamente vinculadas à condição de deficiência.

Em vista disso, entendemos que a sistematização do conceito de capacitismo fora engenhada de maneira inaugural por Rauscher e McClintock (1996)RAUSCHER, Laura; MCCLINTOCK, Mary. (1996), “Ableism curriculum design”, in M. Adams; L.A. Bell; P. Griffin. (org.), Teaching for Diversity And Social Justice. Nova Iorque, Routledge., que o definiram como:

um sistema penetrante de discriminação e exclusão que oprime as pessoas com deficiências mentais, emocionais, sensoriais e físicas. Trata-se de crenças profundamente enraizadas sobre saúde, produtividade, beleza e o valor da vida humana, perpetuadas pelos meios de comunicação público e privados e que se combinam para criar um ambiente muitas vezes hostil [com] aqueles cujas características físicas, mentais, cognitivas e sensoriais ficam fora do escopo do que é atualmente definido como socialmente aceitável (Rauscher e McClintock, 1996, pRAUSCHER, Laura; MCCLINTOCK, Mary. (1996), “Ableism curriculum design”, in M. Adams; L.A. Bell; P. Griffin. (org.), Teaching for Diversity And Social Justice. Nova Iorque, Routledge.. 198).

Entretanto, restava, ainda, a necessária construção de um corpo teórico que versasse sobre o conceito de capacidade, elemento materializado por Campbell (2001, pCAMPBELL, Fiona Kumari. (2001), “Inciting Legal Fictions: Disability's Date with Ontology and the Ableist Body of the Law”. Griffith Law Review, 10, 1:42-62.. 44) quando esta define o capacitismo como “uma rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo particular de Eu e Corpo (o padrão corpóreo) que se projeta como o perfeito, típico da espécie e, portanto, essencial e plenamente humano. A deficiência, então, é apresentada como um estado diminuído do ser humano”.

Sob tal quadro imagético, o olhar métrico do capacitismo produz a deficiência como contraimagem à capacidade corporal desejada, transformando-a em condição inerentemente negativa e que precisa de intervenção clínica individual, fato que resultou na secundarização da explicação das questões de injustiça, inacessibilidade, estigma e negação de direitos como componentes das desvantagens experimentadas pelas pessoas com deficiência (Campbell, 2009CAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan.).

Destacada representação estrutura perspectivas e percepções de forma a entendermos como natural a ideia de que a única resposta apropriada a condição de deficiência reside na busca de instrumentos que transformem comportamentos e corpos, moldando a maneira pela qual concebemos a infraestrutura física e as interações comunicativas, os dispositivos legais e pedagógicos, assim como a imaginação digital e tecnológica que nos rodeia.

A circulação desta narrativa, que sentencia a deficiência como desvio ou diferença indesejada, é fundamental para compreendermos seu desempenho prático na vida destas pessoas, tendo como uma de suas consequências o impacto deste discurso na constituição da própria identidade. Claro que o processo de negação conduzido por práticas capacitistas, tal qual pontua Shapiro (1993)SHAPIRO, Joseph. (1993), No pity: People with disabilities forging a new civil rights movement. Nova Iorque, Times Books., também pode desempenhar o papel de catalisador ao aparecimento de ações político-ativistas de resistência à biologicização e patologicização destes corpos, contudo, em diversos momentos, o que se tem percebido é a internalização de um processo opressivo que carrega o quadro representacional da deficiência de imagens exclusivamente negativas, trágicas e destrutivas.

A apropriação com naturalidade destas imagens se vincula ao fato de nascermos em um mundo que envia contínua e reiteradamente mensagens de que a deficiência pode, quando muito, ser tolerada, mas jamais valorizada como signo de diversidade humana e cultural. Estas mensagens injuriosas se corporificam, dobram a espinha e adentram nos membros, interferem nas ações, moldam gestos, palavras, pensamentos e, adicionalmente, definem os locais aos quais as pessoas com deficiência podem ocupar e ter direito a fala.

O impacto derradeiro deste processo opressivo ocorre quando a pessoa com deficiência rejeita sua própria imagem ao emular espectros capacitistas, defendendo a imposição da corponormatividade dominante e a superioridade desta forma existencial quando comparada à sua condição. Tal composição nos faz rememorar Fanon (2008)FANON, Frantz. (2008), Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA., para quem, no contexto colonial, o colono só termina seu trabalho de invadir o nativo quando este último admite em voz alta e inteligivelmente a supremacia dos valores do homem branco.

A generalização esquemática das pessoas com deficiência como pessoas incapazes se afigura como um dos efeitos mais perversos da lógica capacitista, uma ideologia (não natural, tampouco inevitável) que hierarquiza sujeitos em razão de padrões corporais, comportamentais e funcionais desenhados por setores hegemônicos e que justifica situações de desigualdade como inevitáveis, objetivando esvaziar a arbitrariedade e intencionalidade da norma, mantendo, dessa forma, intactas as relações de poder que colocam esta experiência em situação de liminaridade. Ao se portar assim, o capacitismo atribui as razões do desajuste das pessoas com eficiência exclusivamente à existência de comprometimentos individuais, fazendo deste uma espécie de fato total.

Evidente que outros coletivos marginalizados também sofrem os impactos das gramáticas capacitistas, entretanto, no caso das pessoas com deficiência, é como se estas materializassem de per si o afastamento da capacidade e da aptidão ao trabalho à ineficiência (Davis, 1995DAVIS, Lennard. (1995), Enforcing normalcy: Disability, deafness, and the body. Nova Iorque, Verso.).

Por isso, embora corrobore com Mello (2016)MELLO, Anahi Guedes de. (2016), “Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC”. Ciência & Saúde Coletiva, 21, 10:3265–3276. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.07792016. de que a melhor tradução para o vocábulo ableism, na língua portuguesa, é de fato o termo capacitismo, pois relacionada a negação aventada da capacidade das pessoas com deficiência de participarem da vida coletiva, de fazer tarefas, tomar decisões, enfim, a capacidade de ser; discordo quando a autora (Mello, 2020, pMELLO, Anahi Guedes de. (2020), “Corpos (in)capazes: a crítica marxista da deficiência”. Jacobin, 11 dez, especial. Disponível em https://www.academia.edu/68180073/Corpos_in_capazes_a_cr%C3%ADtica_marxista_da_defici%C3%AAncia, consultado em 14/05/2024.
https://www.academia.edu/68180073/Corpos...
. 1) assevera que o contrário da deficiência “não é eficiência, mas capacidade. O oposto da eficiência é ineficiência. Assim, não faz sentido usarmos (d)eficiência para indicar jogos binários entre ‘deficiência e eficiência’ ou mesmo atenuar uma suposta valoração negativa da categoria deficiência”.

Ora, uma sentença não invalida a outra no jogo de representações sociais ordenadas a partir da modernidade. Não podemos esquecer, como aponta Davis (1995)DAVIS, Lennard. (1995), Enforcing normalcy: Disability, deafness, and the body. Nova Iorque, Verso., que a transformação das relações produtivas conduzidas pelo sistema capitalista teve como uma de suas primeiras consequências a expulsão coletiva das pessoas com deficiência do universo do trabalho, justamente por serem consideradas inadequadas à eficiência desejada no universo produtivo industrial; daí estas serem nominadas como deficientes. Inclusive, a própria origem do termo deficiência para designar o coletivo de pessoas com comprometimentos – quer físicos, sensoriais, psíquicos ou comportamentais – surge em função desta relação, consolidada somente no século XVIII (Davis, 1995DAVIS, Lennard. (1995), Enforcing normalcy: Disability, deafness, and the body. Nova Iorque, Verso.). Existe, portanto, uma estrutura material que sustenta os tentáculos do capacitismo.

Feita esta ponderação, resta evidente que o capacitismo não se materialize somente como um caso de ignorância e atitudes negativas em relação a certos padrões existenciais, pois, como assevera Campbell (2009)CAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan., se assim o fosse bastaria a criação de programas educacionais que combatessem tais práticas que o problema estaria resolvido na cronologia de uma geração. A lógica do pensar capacitista está intrincada na confecção do próprio projeto da modernidade que deu formato às sociedades contemporâneas, assim, trata-se de uma questão estrutural que adentra nos mais distintos recônditos geográficos e penetra nos poros das relações entre humanos, compõe a organização política e econômica da sociedade e exterioriza-se mesmo quando inexiste intenção individual para tanto.

Para Wolbring (2008)WOLBRING, George. (2008), “The Politics of Ableism”. Development, 51, 1:252-258., é esta análise mais abrangente do conceito de capacitismo, dada sua expansividade, que nos permite descrever manifestações opressivas experimentadas por qualquer grupo marginalizado com base na distância percebida em relação a alguma norma social desejada. Este cenário abre fendas para que compreendamos de que forma certas gramáticas têm sido utilizadas para justificar a ocupação de posições privilegiadas por determinados grupos em detrimento a outros.

Por isso, para Campbell (2009), oCAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan. capacitismo é um assunto que diz respeito a totalidade dos seres humanos, não por um imperativo ideológico, mas, sim, pelo fato de sermos todos afetados pelo espectro do corpo normal, fato que impacta diretamente nossas rotinas, interações e imaginação por se relacionar ao processo de se tornar capaz. Evidente que nem todos são afetados da mesma maneira pelas gramáticas do capacitismo, posto que enquanto alguns experimentam discriminações, outros se beneficiam em termos de titularidade destas ações ao se portarem como reflexo do padrão universal de humanidade.

Conceber o capacitismo como vinculado a uma relação produtiva que pode promover processos de titularidade e exclusão permite a consideração e leitura de outros coletivos como também não capazes, criando uma dobra de interseccionalidade que conecta a experiência da deficiência a outras formas de opressões, como aquelas manifestas em práticas racistas, machistas, homofóbicas, entre outras.

Tal fato se desdobra em virtude de o capacitismo materializar uma trajetória de perfeição, semeada pela cultura ocidental e profundamente internalizada nos sistemas epistemológicos de poder e saber. É uma maneira de pensar sobre corpos, integridade e existência que configura fisicalidades como normais e anormais, saudáveis e patológicas, capazes e incapazes, aptas e inaptas, eficientes e deficientes, humanas e não humanas; por conseguinte, sua elucidação auxilia na compreensão de como determinados coletivos de pessoas são habilitadas através de direitos valiosos e outros coletivos – não hegemônicos, mas não necessariamente menos numerosos – veem negadas estas oportunidades e direitos.

Alicerçada na ideia de que a constituição de um sistema capacitista promove a reificação e a classificação das populações e indivíduos mediante um conjunto de métricas de diferenciação, classificação, negação e priorização da vida senciente e de corpos sem impedimentos, Campbell (2009CAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan., 2019CAMPBELL, Fiona Kumari. (2019), “Precision ableism: a studies in ableism approach to developing histories of disability and abledment”. Rethinking History, 23, 2:138-156. DOI: https://doi.org/10.1080/13642529.2019.1607475.) afirma que o capacitismo funciona para inaugurar a norma.

A destacada suposição se mostra polêmica e, ainda que não constitua objeto deste texto, nos leva a rememorar que a ideia de norma, historicamente, surge na Idade Moderna em substituição ao conceito de ideal, que guiava a busca do belo e perfeito até o Medievo. Davis (1995)DAVIS, Lennard. (1995), Enforcing normalcy: Disability, deafness, and the body. Nova Iorque, Verso. assinala que enquanto o conceito de ideal se assemelhava a figura do criador e a outros atributos concebidos no plano religioso ou mágico – portanto, tido como de difícil alcance –, o suposto da norma utiliza como quadro representacional os próprios seres humanos terrenos, se atrelando a uma composição existencial teoricamente possível de assemelhar.

Partindo destes elementos e considerando que o conceito de norma aparece anteriormente aos de capacidade e eficiência, seria mais correto, em termos de genealogia, afirmar que a norma, dado seu caráter prescritivo, inaugurou e conduziu a sua imagem e semelhança à ideia de capacidade, se afigurando como ato originário de representação social, invertendo, assim, o raciocínio de Campbell (2009)CAMPBELL, Fiona Kumari. (2009), Contours of ableism. London, Palgrave Macmillan..

Não podemos esquecer, tal como pontua Canguilhem (2002)CANGUILHEM, Georges. (2002), O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária., que a norma engloba, inclusive, aqueles classificados como desviantes a ela. Aliás, é ela que permite a determinação e identificação dos ditos normais e anormais. Ewald (1993)EWALD, François. (1993), Foucault, a norma e o direito. Lisboa, Vega Editora. assinala que a norma não reconhece espaços exteriores, na medida em que o anormal não possui uma natureza diferente do normal. Em suas palavras, “a norma integra tudo o que pretende ir além dela – nada, ninguém, por mais diferença que possa exibir, nunca pode alegar exterioridade, ou alegar possuir uma alteridade que a torne outra” (Ewald, 1993, pEWALD, François. (1993), Foucault, a norma e o direito. Lisboa, Vega Editora.. 173).

A norma pertence à arte humana de julgar e torna possível a prática incessante da individualização por comparações, operando no interior das relações sociais sob o padrão implícito da normalização. O capacitismo, sob esta lógica, é um derivativo de uma destas formas de julgar.

Dito isto, importa aqui asseverar que o capacitismo se erige mediante ideias socialmente construídas de produtividade, inteligência e beleza, densamente enraizadas em plataformas patriarcais e colonialistas, na antinegritude e na homofobia, no machismo e na xenofobia, no etarismo e na aporofobia, assim como em práticas eugênicas e assimilacionistas. Com base neste universo preditivo, criam-se corpos vistos como valiosos, reprodutíveis e dignos de reconhecimento pleno, enquanto há outros aos quais até a possibilidade de participação nas fruições culturais é obstaculizada. Como duplo dialético, ao valorizar certas capacidades e defenestrar algumas formas existenciais como inválidas, a análise do capacitismo permite investigar a produção da própria ideia de capacidade, de corpo perfeito e saudável.

Tal fato gera novas problemáticas de estudo, posto permitir visualizar proximidades e distanciações nas formas como as pessoas com deficiência e outros coletivos marginalizados são nomeados, desfiliados, enumerados, separados ou incluídos nos regimes culturais ao longo da história e como as expectativas de capacidade interferem de maneira decisória nas probabilidades de participação social dos sujeitos e na ocupação de espaços públicos.

4. O capacitismo como categoria útil na compreensão de opressões vivenciadas por coletivos marginalizados

Versar sobre os contributos fornecidos pela análise do capacitismo no entendimento de opressões vivenciadas por coletivos marginalizados, requer como princípio angular, a consideração do caráter poroso e capilar deste conceito analítico abrangente e transversal.

Como gramática moral erigida no sentido de diferenciar o aceitável do dispensável, o pensar capacitista se arquiteta a partir da definição transcultural de um arquétipo humano tido como normativo e da designação dos limites de variação permitidos no quadro desta representação que é corporal, mas também sensorial, comportamental e funcional, uma vez que, para além de um discurso de origem das coisas e relações, o capacitismo jamais deixa de ser um discurso de destino que tem por função a consolidação de determinadas subjetividades. Logo, embora transcultural, sua lógica não pode ser entendida como universal em razão da variabilidade da interação entre povos e meios.

Neste sentido, é factível visualizar as opressões contra minorias – negros, mulheres, pessoas com deficiência, indígenas, imigrantes, gays, idosos – como derivadas de desvios projetados em relação a este quadro normativo, afastamentos estes em termos de comportamento, funcionamento, aparência, origem, orientação sexual ou papel social esperado. A estrutura capacitista que nos envolve, escorada na figura representacional da norma, afiançou, assim, o recrudescimento de práticas divisionistas às quais passam a circular como divisões de um naturalismo que opera como disciplinador de relações sociais, daí sua função fática.

Por conseguinte, embora o conceito de capacitismo tenha se desenvolvido a partir da luta expressa pelo movimento de pessoas com deficiência no afã de questionar os desígnios da normatividade e a ideia de corpo útil/capaz, sua capilaridade formativa permite abranger a explicação de outras subjetividades que, de diferentes maneiras, na epistemologia e nas práticas sociais, foram constituídas como locais de inferioridade e sub-representação.

O descortinar da lógica capacitista nos permite visualizar o leque de papéis e simbolismos vinculados às expectativas corporais-estéticas-funcionais, de forma a compreender como estes componentes atuaram para inaugurar a ordem moderna e, posteriormente, criar mecanismos que facilitavam sua preservação como fato natural. Uma abertura de perspectiva que nos possibilita transformar tanto os estudos da deficiência como os próprios paradigmas disciplinares, implicando não somente uma nova história das pessoas com deficiência, mas, sim, uma nova história social.

Claro que, para tanto, uma epistemologia deste conceito precisa se desenvolver a fim de se tornar uma literatura mais robusta e referenciada, o que lhe possibilitará dar conta de uma série de explicações ignoradas no que se refere a produção de desigualdades e diferenciação social. Muito possivelmente, a primeira tarefa desta genealogia projetiva seja a de inquirir como os sistemas capacitistas funcionam no sentido de alargarem ou estreitarem as relações humanas e quais efeitos estes promovem na imaginação e configuração dos papéis sociais esperados para cada sujeito afiliado em determinado coletivo.

Contudo, estes questionamentos inaugurais não bastam ao intento anunciado. É fundamental também indagar como o sistema capacitista nos permite conferir sentido à ordenação das práticas sociais e dos conhecimentos historicamente produzidos desde a modernidade. Importa, adicionalmente, indagar se a diferença quanto à norma diferencia somente em desvantagem ou se pode engenhar movimentos contestatórios da normatividade e da própria ordem constituída; mais que isso, de que forma essa segunda relação se configurou ao longo do tempo em coletivos marginalizados e se é possível constatar intersecções as quais nos permitem afirmar que a conquista de uma determinada minoria impulsiona o alcance de direitos sociais, civis e políticos de outras minorias. No caso do movimento das pessoas com deficiência, por exemplo, existe uma clara implicação na conquista de direitos sociais e políticos por mulheres e negros como impulsionadores da luta ativista deste coletivo tão subalternizado.

Para além destas problematizações, outras tão importantes devem ser feitas, quais sejam: como o capacitismo designa o outro? Que características definidoras são estruturais na marcação de um grupo como diferente ou idêntico e quais atribuições são levadas em conta no forjar desta configuração? Como as fronteiras do sistema binário capacitista são formadas, mantidas ou dissipadas e como estes elementos impactam no forjar de relações opressivas?

O escrutínio destas indagações se mostra fundamental para que possamos entender a persistente associação entre brancura, masculinidade, heterossexualidade e ausência de comprometimentos clínicos como condição determinante para ocupações dos espaços de poder na sociedade. Tal desvelamento, complementarmente, nos permitiria criar um conjunto de explicações que analisassem como os padrões corponormativos se constituem elementos decisórios de afiliação cultural e como se comportam tal qual um componente estrutural, ou seja, se manifestando mesmo quando não instado pela vontade individual. Este quadro intelectivo permite que nos apropriemos dos sistemas de significados pelos quais somos atravessados e as próprias formas de representação do eu, do outro, do eu como outro e do outro como eu.

O desdobramento destas questões auxilia na criação de uma literatura radical acerca da categoria capacitismo, que poderia ser útil para a análise da história social como um todo. Uma literatura de vanguarda, que tenha por marca a insubordinação ao idêntico.

Analisado sob esta dimensão, o capacitismo não deixa de ser uma forma medular de atribuir significado às relações de poder e por meio do qual o poder – não como coisa, mas relação – é articulado, legitimado, contestado e reordenado. O capacitismo se trata, portanto, de uma ideologia composta por estruturas mentais, conceitos, imagens e sistemas de representações que grupos hegemônicos implantam no sentido de preencher de sentido os fenômenos que nos rodeiam, dando inteligibilidade aos mesmos. Este entendimento é cardeal para que possamos explicar os arranjos de domínio e organização através do qual as sociedades se estruturam e o poder se estabiliza.

Pensar sob a lógica de um corpo teórico erigido inicialmente a partir de iniciativas de pessoas com deficiência para explicar a totalidade das formas de opressão social não deixa de ser um mecanismo sedutor e rompedor de barreiras. Se nada pode ser denunciado, se a denúncia for feita dentro do sistema a que pertence a coisa denunciada, ninguém melhor que a experiência tida como sinédoque da extranormatividade para expor a própria norma, fato que coloca a categoria deficiência em um lugar de fala absolutamente central na denúncia da coisa em si e na compreensão de como a estrutura capacitista nos governa, modela e marginaliza uma miríade de coletivos identitários. Nestes termos, a interseccionalidade e porosidade expressa pela ideia de deficiência – que cruza todas as outras identidades sociais no exato momento em que alguém pode ingressar nesta categoria a qualquer momento – deve ser encarada como ferramenta para configurar paisagens acessíveis, um instrumento de luta de política.

Cabe ressaltar que o desenvolvimento de uma epistemologia do capacitismo tem o condão de possibilitar aos próprios pesquisadores dos estudos da deficiência que escapem da guetização de seu impacto ao adentrarem em searas interpretativas correlacionadas a outros coletivos. Singular aqui se fazem as palavras de Wolbring (2012, pWOLBRING, George. (2012), “Expanding Ableism: Taking down the Ghettoization of Impact of Disability Studies Scholars.” Societies, 2, 3:75-83. DOI: https://doi.org/10.3390/soc2030075.. 78), para quem “a investigação baseada em estudos sobre deficiência, especialmente o trabalho em torno do conceito de capacidade, tem forte utilidade fora dos estudos sobre deficiência, mas, até agora, raramente é aplicada fora do domínio dos estudos sobre deficiência”.

Parte desta conjuntura se deriva da maneira pela qual a sociedade vê sobejamente a experiência da deficiência como categoria fixa e não marcada pelo prisma da diversidade. Acerca deste aspecto, importa assinalar que muitos ainda não concebem a deficiência como marcador de diversidade e, tampouco, seus sujeitos como membros de um grupo minoritário, raciocínio vinculado ao entendimento desta sob a ótica da medicalização, fato que cria barreiras no estabelecimento de interconexões com outras formas de opressão. Outra parte deste quadro adverso descende do rareado debate sobre os impactos do capacitismo nas relações cotidianas. Sublinhados desafios são acampados por este texto e ao qual apresentaremos, a seguir, algumas contribuições.

O conjunto de discriminações enfrentadas pelo coletivo de pessoas com deficiência, a partir da modernidade, permite analisar, de maneira muito evidente, como a ideologia da normalização opera no sentido da individualização desta experiência ao ressignificar as práticas de reclusão e exclusão pela lógica da inclusão.

Embora este acontecimento possa ser perceptível em outros grupamentos identitários, em nenhum deles sua visualização é tão flagrante como no caso das pessoas com deficiência. Isto se deve ao fato de este coletivo ter sido o último a ser liberto dos espaços de institucionalização, além de tardiamente adentrarem a espaços como escolas regulares e arenas políticas. Não totalmente excluídos, mas jamais incorporados de fato, as margens definem o local das pessoas com deficiência desde a modernidade, para nos valermos de um raciocínio de Murphy (1987)MURPHY, Robert. (1987), The body Silente. Nova Iorque, Holt, Henry and Company..

Por meio da experiência da deficiência, percebemos de maneira concreta como a razão moderna organiza a partilha de relações entre normal e patológico como um quadro clínico objetivo e neutro, desconsiderando que a norma e o normal também possuem função axiológica. O descortinar desta relação nos permite visualizar, tal como pontua Canguilhem (2002)CANGUILHEM, Georges. (2002), O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária., que não há nenhum fato normal ou patológico em si, tampouco continuidade quantitativa entre normal e patológico, mas, sim, descontinuidade qualitativa. Se é verdadeiro que o corpo humano é, em certo sentido, produto da atividade social,

não é absurdo supor que a constância de certos traços, revelados por uma média, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas de vida. Por conseguinte, na espécie humana, a frequência estatística não traduz apenas uma normatividade vital, mas também uma normatividade social (Canguilhem, 2002, pCANGUILHEM, Georges. (2002), O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária.. 113).

Tais ponderações nos permitem deduzir que o estado dito normal, mais que uma realidade empiricamente reconhecível, se configura como uma norma que objetiva a modificação do existente pela correção de corpos, funcionalidades e comportamentos. Com base nestes elementos, Canguilhem (2002)CANGUILHEM, Georges. (2002), O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária. assevera que aquilo definido como patológico pode ser igualmente visto pela perspectiva da produção de originais normas de ajustamentos/comportamentos, prenúncio de uma nova normativa, uma nova forma de desenvolvimento, raciocínio o qual abre largas fendas para a compreensão da deficiência sob a perspectiva de produção cultural.

Pensar na ideia de deficiência como zona de possibilidades e não de restrições, nos retira do lugar do comum, modifica nossos repertórios imaginativos e reordena o sentido e significado que historicamente damos a esta experiência. Com isso, conforme pontua Lopes (2022)LOPES, Pedro. (2022), “Deficiência na cabeça: convite para um debate com diferença”. Horiz Antropol, 28, 64:297-330. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000300011., não estamos induzindo as pessoas a imaginarem a deficiência em seu próprio corpo – ainda que este se mostre como um horizonte corporal bastante factível – ou a se colocar no lugar de outra pessoa com deficiência – o que seria impossível em uma perspectiva antropológica –, mas convidando a todos para que possamos qualificar as sensibilidades analíticas e investigativas para esta categoria que é estruturante de variadas experiências sociais e que transformam as potencialidades humanas em sua relação com o meio.

Este desafio fora trabalhado preliminarmente por Mello et al. (2022, pMELLO, Anahi Guedes de; AYDOS, Valéria; SCHUCH, Patrice. (2022), “Aleijar as antropologias a partir das mediações da deficiência”. Horizontes Antropológicos, 28, 64:7-29. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000300001.. 9), para quem “somos uma sociedade que tem verdadeiro fetiche por adjetivos relacionados à ontologia negativa da deficiência e outras condições de saúde”, pouco refletindo sobre o capacitismo, sobre o que implica ser anticapacitista e como criar uma cultura de acesso a todos as formas corporais. Para as autoras acima citadas, são vários os inventos que partiram dessa ideia de cultura de acesso e transformaram a humanidade, tais como a criação da máquina de escrever e do telefone, aos quais poderíamos acrescentar os audiolivros, o sistema de mensagens via SMS nos celulares, a ideia de desenho universal, dos sistemas alternativos de comunicação, entre tantos outros.

Poderíamos ainda mencionar como a vivência da deficiência ressignifica a forma de se relacionar com o mundo, elemento perceptível nas obras, ações e escritos de personalidades como Frida Kahlo, Chris Downey, Louis Braille, Stephen Hawking, Helen Keller, Franklin D. Roosevelt, Thomas Edison, Ludwig van Beethoven, Christy Brow e John Nash. Um dos casos emblemáticos, neste sentido, é o de Frida Kahlo, aclamada feminista, mas cuja condição de deficiência é muitas vezes silenciada de sua biografia, mesmo sendo esta experiência que a conecta à arte, conforme descrito em sua autobiografia. Um silenciamento que não condiz com a obra do ícone da pintura surrealista, que dentre seus 143 quadros pintou 55 autorretratos, a maioria deles exprimindo seus coletes ortopédicos e sua própria condição física, como presenciado nas telas “A Coluna Partida”, “Autorretrato com o Dr. Juan Farril” e “Árvore da Esperança”, retratos que são, na verdade, autorretratos (Kahlo, 1996KAHLO, Frida. (1996), O diário de Frida Kahlo: um auto-retrato íntimo. 2a edição. Rio de Janeiro, José Olympio.).

Estes elementos nos dão suporte para afirmar que a diferença da deficiência faz diferença ao modificar a maneira pela qual nos relacionamos com o mundo e com as pessoas que nos cercam.

Mello et al. (2022, pMELLO, Anahi Guedes de; AYDOS, Valéria; SCHUCH, Patrice. (2022), “Aleijar as antropologias a partir das mediações da deficiência”. Horizontes Antropológicos, 28, 64:7-29. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000300001.. 12), com base em Kittler, afirmam que “não existe nenhuma técnica midiática ou ferramenta de comunicação decisiva que não seja um desdobramento do reconhecimento da questão da deficiência como determinante para a experiência sensorial humana”. Com base neste suposto, as autoras lançam o desafio de aleijar as antropologias a partir das mediações da deficiência, cuja consecução abriria um vasto campo epistemológico na análise do social, para além de binômios como saúde e doença, indivíduo e sociedade ou natureza e cultura, demarcando o caráter relacional destes termos, que não se opõem, mas atuam em dualidade.

Sem a consecução dessa empreitada, continuaremos a perceber estas sentenças como binárias, das marcas estruturais do capacitismo e cujo caráter operativo “impede a consideração de que é possível andar sem ter pernas, ouvir com os olhos, enxergar com os ouvidos e pensar com cada centímetro de pele que possuímos” (Mello, 2019, pMELLO, Anahi Guedes de. (2019), Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/215355, consultado em 14/05/2024.
https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
. 136). Para Mello et al. (2022, pMELLO, Anahi Guedes de; AYDOS, Valéria; SCHUCH, Patrice. (2022), “Aleijar as antropologias a partir das mediações da deficiência”. Horizontes Antropológicos, 28, 64:7-29. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000300001.. 19) aleijar as antropologias também tem o sentido “de descolonizar, mutilar, deformar e contundir o pensamento hegemônico sobre deficiência, acesso e inclusão, provocando-lhe fissuras”.

O texto de Mello et al. (2022)MELLO, Anahi Guedes de; AYDOS, Valéria; SCHUCH, Patrice. (2022), “Aleijar as antropologias a partir das mediações da deficiência”. Horizontes Antropológicos, 28, 64:7-29. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000300001. nos fornece indicativos sobre como analisar a interferência do capacitismo na produção de uma série de marginalizações enfrentadas pelas pessoas com deficiência, as quais podem ser estendidas para outros coletivos minoritários dado o caráter abrasivo desempenhado pelo espectro normativo, o que seguramente contribui para a empreitada aqui proposta de definir o capacitismo como categoria útil para análise das opressões sociais.

Todavia, embora compreenda a utilização do termo aleijar no sentido de estabelecer uma crítica radical à capacidade corporal compulsória, não o considero como a melhor nomenclatura na crítica ao capacitismo, uma vez que a expressão comporta em sentido figurado a ação de adulteração e deturpação. Ademais, mostra-se essencialmente vinculada ao universo das deficiências físicas, não possuindo adesão em outros coletivos de pessoas com deficiências, as quais, muitas vezes, não manifestam impedimentos de forma visível, mas, nem por isso, estes não se fazem presentes ou são menos importantes. Isto posto, o desenvolvimento de uma epistemologia do capacitismo deve tomar como ponto de partida o fato destacado por Lopes (2022, pLOPES, Pedro. (2022), “Deficiência na cabeça: convite para um debate com diferença”. Horiz Antropol, 28, 64:297-330. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000300011.. 311) de que “a deficiência poderia operar como termo de nomeação do sistema que diz respeito às variadas posicionalidades e experiências de formas e funções que nossos corpos assumem”. Nesta linha de análise, Mello retrata que:

O capacitismo também é essa forma hierarquizada e naturalizada de conceber qualquer corpo humano como algo que deve funcionar, agir e se comportar de acordo com a biologia. Nesse sentido, outros grupos sociais também podem ser lidos como “menos capazes”: a mulher frente ao homem; o negro e o indígena frente ao branco; o gay e a lésbica em relação ao heterossexual; e a pessoa trans em relação à pessoa cis (Mello, 2019, pMELLO, Anahi Guedes de. (2019), Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/215355, consultado em 14/05/2024.
https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
. 139).

A produção destas diferenças a partir de práticas capacitistas se engenha mediante um mecanismo de comparabilidade que pode operar efeitos de superinclusão e subinclusão, de silenciamento e de alta visibilidade. Por isso, não se mostra equivocado interpretar o capacitismo como uma forma de significar as relações de poder.

Analisar destacada categoria sob a ótica da construção de sujeitos se constitui como um convite para pensarmos criticamente na produção de marginalizações históricas, sociais e políticas, que atravessam as mais distintas corporalidades por meio do conceito abstrato de norma, cuja ação se mostra operativa na vida das pessoas. Como salientado, no pensar capacitista não há dualidade, mas binarismos, que veem tudo o que se diferencia do arquétipo da norma como estrato menos humano, por conseguinte, somente ao desfazermos essas relações entre saber e poder poderemos construir um pensamento que se intencione mais abrangente.

Desestabilizar estas noções implica em se pensar a contrapelo da lógica dominante, em outros termos, significa pensar não apenas nos processos de exclusão, mas também questionar os processos de inclusão e como estes operam no sentido de ratificar uma diferença como desviante. Significa pensar o aparecimento do normal e do anormal como recortes de um mesmo tecido, não em intensidade, mas, sim, em qualidade. Por mais não usual que pareça, esta mudança de foco recobra sentido se desejarmos desnaturalizar o caráter neutro e universal da normalidade, assim como frisar a produção histórica da anormalidade. Ao bem da verdade, os surdos já o fizeram isso quando, em vez de problematizar a anormalidade da surdez, contestaram a normalidade do que significa ser ouvinte (Magnani, 2009MAGNANI, José Guilherme. (2009), “Etnografia como prática e experiência”. Horizontes Antropológicos, 15, 32:129-156. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-71832009000200006.).

O processo de normalização tenciona tornar pessoas, atos e gestos uniformes e comparáveis, criando um roteiro inclusivista que tem como uma de suas estratégias discursivas se estender a totalidade do corpo social, inclusive sobre aqueles lidos como normais. Este artifício simbólico objetiva arquitetar uma representação imagética na qual todos se tornem responsáveis pela gestão de suas vidas e das outras vidas que os cercam, da coletividade. Não por acaso, muitas ações contemporâneas no combate à discriminação e ao preconceito vivenciado por grupos minoritários tomam a conscientização como pedra angular de sua intervenção, pouco versando sobre a estreiteza do normativo. Lutar por novas relações e por um novo contexto passa, neste sentido, por desafiarmos a naturalidade da norma e como esta engenha o arco da normalidade.

Desafiar a naturalidade da norma capacitista significa entender que a rotulação e a estigmatização são menos um subproduto da deficiência do que a sua substância, e que quando analisamos as métricas do capacitismo, estas falam mais sobre quem está dentro do escopo da norma e do ambiente que a circula do que daqueles lidos como desviantes. Denota também apreender que a rede de significados e práticas que nos envolve se alicerça a partir de um conjunto de relações materiais e espirituais históricas e contingentes. A forma carrega a história. Por fim, significa perceber que os processos opressivos experimentados por coletivos marginalizados não se justificam por uma convicção por parte da sociedade de que estes sujeitos realmente não possam executar certas atividades ou ocuparem determinados espaços, mas, sim, pela exacerbação de um sentimento que escolheu em seu nascedouro ser impermeável à diferença da norma e a transformou em composto de negação, de rejeição, tendo na deficiência, a marcação angular da condição extranormativa. Daí nosso interesse antropológico por esta categoria, uma forma elementar de alteridade. Corroboramos, neste sentido, com Segato (2012)SEGATO, Rita Laura. (2012), Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos ces, 18, 106-131. DOI: https://doi.org/10.4000/eces.1533., de que nesse universo intelectivo binário:

qualquer elemento, para alcançar plenitude ontológica, plenitude de ser, deverá ser equalizado, ou seja, equiparado a partir de uma grade de referência comum ou equivalente universal. Isto produz o efeito de que qualquer manifestação da alteridade constituirá um problema, e só deixará de fazê-lo quando peneirado pela grade equalizadora, neutralizadora de particularidades, de idiossincrasias. O “outro indígena”, o “outro não branco”, a mulher, (acrescentaríamos, a pessoa com deficiência) a menos que depurados de sua diferença ou exibindo uma diferença equiparada em termos de identidade que seja reconhecível dentro do padrão global, não se adaptam com precisão a este ambiente neutro, asséptico, do equivalente universal, ou seja, do que pode ser generalizado e a que se pode atribuir valor e interesse universal (Segato, 2012SEGATO, Rita Laura. (2012), Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos ces, 18, 106-131. DOI: https://doi.org/10.4000/eces.1533., pp. 122-123).

Por isso, há a necessidade de explicitar o caráter arbitrário, hierárquico e contingente da norma. Talvez, seja o momento de retomar o questionamento de Canguilhem (2002, pCANGUILHEM, Georges. (2002), O normal e o patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária.. 110), qual seja: “na medida em que seres vivos se afastam do tipo específico, serão eles anormais que estão colocando em perigo a forma específica, ou serão inventores a caminho de novas formas?”. Esta é seguramente uma das formas elementares de crítica e contestação ao capacitismo por borrar suas fronteiras de inteligibilidade, abalar os firmamentos de sua estrutura e fissurar as relações de poder por ele colocadas. E, muito possivelmente, nenhuma categoria tem tanto a oferecer neste sentido quanto a de deficiência. De fato, as margens podem ser, mais que um local de privação, uma zona de possibilidade radical, um espaço de resistência (hooks, 2001HOOKS, Bell. (2001), Yearning: Race, Gender and Cultural Politics. Boston, Routledge.).

Apenas quando compreendermos a trajetória do insidioso conceito de norma e suas variantes – normal, normalização, normalidade –, poderemos reformar o senso sobre o que significa ser humano e circular por posições duais e não binárias, se antepondo à estrutura capacitista.

Ao tomar o capacitismo como estrutura, partimos do suposto que ele ordena as relações sociais, a maneira pela qual nos comportamos e as disposições espaciais que nos rodeiam. É estruturante por envolver a todos os sujeitos, por isso sua reflexão desdobra interesses mais amplos, para além do arco das pessoas com deficiência, ao permitir o descortinar de relações gerais de subordinação e subalternidade. Dessa forma, o capacitismo, embora seja um conceito abstrato, se inspira no real e produz resultados práticos, uma vez que emana mediante encarnação que interfere no desempenho de papeis sociais.

Por isso, não é exagerado dizer que o capacitismo compreende parte significativa das relações de poder na sociedade ao saturar a maneira pela qual organizamos o trabalho, os espaços escolares e de saúde, as políticas e instituições públicas, a noção de bem-estar e a vida cotidiana. Sua contestação objetiva a derrubada de todo determinismo que margeie, obstaculize ou subalterne a fala de coletivos cujas vozes e direitos têm sido sistematicamente silenciadas e negligenciados. Intui também que ninguém possa falar pelo outro ou fazer reivindicações em seu lugar. Combater o capacitismo significa possibilitar que o subalterno possa não apenas falar, mas também ser ouvido em várias arenas de poder.

As linhas capacitistas pelas quais somos (de)formados implicam um modo de ser que torna nossos corpos e mentes como que esculturas estéticas para a projeção dos regimes existenciais que desejaríamos espelhar, na tentativa de exercer sensualidade, competência e protagonismo social, engenhados sob a lógica formal. Já a nova maneira aqui proposta, de se encarar os fenômenos e marginalizações sociais, consente em reimaginar, inclusive, a própria maneira pela qual as áreas clínicas veem a experiência da deficiência desde a formação de seus profissionais. Uma prática que, nas palavras de Garland-Thomson (2012)GARLAND-THOMSON, Roemarie. (2012), “The Case for Conserving Disability”. Bioethical Inquiry, 9, 339–355. DOI: https://doi.org/10.1007/s11673-012-9380-0., teria por objetivo construir um afeto de orgulho e identidade positiva em pessoas com deficiência nos espaços de saúde, fazendo com que estas valorizem sua experiência como rica e produtiva. Este tipo de aprendizado permitiria, de acordo com Mitchell (2016, pMITCHELL, David. (2016), “Disability, Diversity, and Diversion: Normalization and Avoidance in Higher Education”, in D. Bolt; C. Penketh. (org.), Disability, Avoidance and the Academy. Oxon, Routledge.. 19), “reimaginar a materialidade da deficiência como variação desejável, em vez de continuar a promover a normalização como única solução possível”.

Este processo imaginativo nos leva a hipotetizar que se fazer mulher, como pontua Louro (2008, pLOURO, Guacira Lopes. (2008), “Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas”. Pro-Posições, 19, 2:17-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73072008000200003.. 17), “dependia das marcas, dos gestos, dos comportamentos, das preferências e dos desgostos que lhes eram ensinados e reiterados, cotidianamente, conforme normas e valores de uma dada cultura”, o mesmo poderia ser pensado em relação ao se fazer pessoa com deficiência. A abrangência destes achados auxilia na compreensão da deficiência como uma categoria relacional que é simultaneamente médica, censitária, sociológica, política, afirmativa, cultural, identitária e jurídica.

A representação simbólica da categoria deficiência não existiria de forma análoga a que presenciamos atualmente sem a anterior divisão entre normal e anormal, posto tal quadro representacional ser construído com base na ideia de natureza imanente, um conceito inexistente até o medievo e que separou os seres humanos a partir de um conjunto arbitrário de qualidades terrenas e os hierarquizou em termos comparativos.

Neste processo de hierarquização, os atributos característicos da condição de deficiência foram interpretados pela modernidade como essencialmente negativos e denotando desvantagem irreversível aos sujeitos que os apresentavam, fato estruturador de um conjunto de práticas separatistas que se configuraram como determinantes primários nas relações de reconhecimento, produção e distribuição destes sujeitos, mas não só deles. Este cenário auxilia no entendimento da razão pela qual as pessoas com deficiência apresentam as piores condições de renda, os mais baixos níveis educacionais, de ocupação laboriosa e de acesso aos serviços de saúde, assim como as menores taxas de representação em cargos eletivos. Todavia, também contribuem extensivamente para a explicação da subalternidade experimentada por outros coletivos marginalizados, afinal, ninguém escapa da norma.

Os elementos aqui apresentados exasperam a formação fática de um círculo cumulativo de desigualdades, que deprime radicalmente as possibilidades de protagonismo social das pessoas com deficiência. Exacerbam, também, de maneira clarividente, que parcela significativa dos prejuízos enfrentados por estes sujeitos se vinculam não aos infortúnios da incapacidade, mas, sim, à maneira pela qual as paisagens sociais e comportamentais se edificaram de forma a tornar estes corpos estranhos, evitáveis e até detestáveis. Tais fatos nos permitem fugir das armadilhas constituídas pelo binarismo do saber clínico ao desnudar como falsa a vinculação da desigualdade social experimentada por coletivos marginalizados, como se fosse derivada naturalmente de condições individuais, biológicas e genéticas. No entender de Bourdieu (2009)BOURDIEU, Pierre. (2009), O senso prático. Petrópolis, Vozes., esta é uma armadilha que opera como a mais fundada das ilusões coletivas modernas e que exerceu impacto na totalidade dos processos de marginalização social.

Nessa perspectiva, as variações nas características pessoais devem ser lidas como contributivas à sociedade ao permitirem que o potencial individual-humano se realize plenamente em variadas formas. Para tanto, a sociedade deve disponibilizar suportes, auxílios e serviços, a fim de permitir a integração econômica, política, cultural, a autodeterminação e o gozo pleno dos direitos legais e sociais de todos. Cabe ressaltar que a quase totalidade destes direitos não se constituíram de maneira natural com o correr do tempo ou como frutos dadivosos do racionalismo iluminista, muito pelo contrário, pois se mostraram vinculadas a intensas e radicais lutas sociais desempenhadas por coletivos minoritários na busca por igualdade.

No caso das pessoas com deficiência, foram lutas que objetivaram tornar visíveis outras formas de existir, outras estéticas, éticas, corpos e experiências. Lutas pelo direito de falar por si, sobre si e para si. Lutas pelo direito de ter e pelo direito de ser. Lutas para denunciar o apego da sociedade a padrões fetichizados de humanidade, transcendidos em processos classificatórios universais, que veem o outro da deficiência como espaço da exclusão e emparedamento. Lutas por uma nova linguagem, que não essencialize a experiência da deficiência. Lutas contra a norma, o normal e a normalização. Lutas pela diferença e pela igualdade.

Neste diapasão, podemos afirmar que teorizar sobre a experiência das pessoas com deficiência é também desbravar os caminhos pelos quais todas as minorias foram marginalizadas desde a modernidade, dada a vinculação deste processo ao desenvolvimento do conceito de norma. E ao fazer esta crítica a partir da experiência da deficiência, nos colocamos nas margens em sua forma mais liminar, nos contornos mais limitadores assumidos desde a modernidade, por isso, a derrubada desta estrutura implica a reconfiguração de todas as marginalizações, pois representa a aurora de uma outra norma.

Para finalizar, a construção destes novos saberes deve denunciar tanto a maneira pela qual os coletivos marginalizados foram isolados, encarcerados, observados, operados, regulados, tratados, controlados, despersonalizados e desumanizados, como a forma pela qual outros grupamentos foram normalizados e naturalizados. Precisa sinalizar também para a construção de um quadro normativo mais alargado, diversificado e representado pela humanidade em suas variadas dimensões e não apenas por uma fração dela. Objetiva-se, com isso, a produção de uma geografia social em que o discurso da inclusão não se manifeste como antídoto jurídico que a modernidade produz para sanar os males que ela mesma introduziu e continua propagando, aliás, que seja desnecessário no exato sentido de todos já participarem e ocuparem paritariamente a totalidade dos espaços sociais. Ontologicamente, trata-se da construção de um novo mundo, de uma nova antropologia, de uma nova vida cotidiana.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2023
  • Aceito
    07 Maio 2024
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