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O problema da linha de cor e as desigualdades nos Estudos Sociais de Du Bois

The Problem of the Color Line and inequalities in Du Bois’s academic writings

Resumo

Este artigo traz reflexões a respeito do programa de pesquisas empíricas de W.E.B. Du Bois e seus escritos sociológicos sobre as desigualdades. A análise se concentra, principalmente, nos conteúdos dos Estudos Sociais produzidos quando o autor ocupava posições estritamente acadêmicas, na Universidade da Pensilvânia e na Universidade de Atlanta, de onde publicou obras como O Negro da Filadélfia (1899) e Os Relatórios dos Congressos de Atlanta (1897 - 1913). Argumenta-se que as pesquisas de sua primeira fase acadêmica, inicialmente focadas no “Problema Negro” nos Estados Unidos, são contribuições pioneiras para as principais discussões sociológicas acerca das desigualdades sociais, por meio de conceptualizações originais do autor em relação a termos como “classe”, “raça” e “casta”.

Palavras-chave:
Du Bois; Desigualdades; Classe; Raça; Casta

Abstract

This article reflects on W.E.B. Du Bois 's empirical research program and his sociological writings about inequalities. The analysis focuses mainly on the contents of the Social Studies produced when Du Bois held strictly academic positions at the University of Pennsylvania and the University of Atlanta, from where he published works such as The Philadelphia Negro (1899) and the reports of the Atlanta Conferences. (1897 - 1913). It is argued that these research projects of Du Bois' first academic phase, initially focused on the "Negro Problem" in the United States, brought pioneering contributions to the main sociological discussions about social inequalities, through the author's original conceptualizations about terms such as "class", " race” and “caste”.

Key-words:
Du Bois; inequalities; class; race; caste

O problema da linha de cor e as desigualdades nos Estudos Sociais de Du Bois

Eu vi uma terra alegre com o sol (...). E ali, na Estrada Real, prostrava-se, e prostra-se, uma figura curvada e coberta por um véu, ao largo do qual os passos do viajante se apressam ao passar. No ar contaminado paira o medo. Há três séculos pensa-se em erguer e desvelar aquela alma humana curvada; e agora vejam, meus companheiros, um século novo para o dever e a ação! O problema do século XX é o problema da linha de cor. (Du Bois, 1901)

A linha de cor, já dizia W.E.B. Du Bois em tom profético e poético em 1901, seria o maior problema do então nascente século XX. Atualmente, em pleno século XXI, o mundo ainda se encontra permeado pelas desigualdades racializadas do capitalismo global. Apesar do atraso centenário, as pesquisas do sociólogo norte-americano estão em vias de serem elencadas, com justiça, entre os clássicos indispensáveis das Ciências Sociais. O renomado autor de centenas de artigos e mais de vinte livros vem sendo relido e ressignificado para além das tradições dos estudos afro-americanos ou de trabalhos sobre a questão racial. Obras recentes, como os livros de Aldon Morris (2015MORRIS, Aldon. The Scholar Denied. W.E.B. Du Bois and the birth of modern sociology. Berkeley: University of California Press, 2015.), Earl Wright II (2018), Jose Itzigsohn e Karida Brown (2020ITZIGSOHN, José; BROWN, Karida L. The Sociology of W.E.B. Du Bois. Racialized modernity and the global color line. New York: NYU press, 2020.), ressaltam a contribuição pioneira dos trabalhos do Laboratório Sociológico de Atlanta, coordenado por Du Bois desde 1898 e com forte atuação na primeira década do século XX, para a constituição da sociologia como disciplina acadêmica institucionalizada.

Este artigo traz reflexões acerca do programa de pesquisas empíricas de William Edward Burkhardt Du Bois (1868-1963) e seus escritos sociológicos acerca das desigualdades. A análise se concentra, principalmente, nos conteúdos dos chamados Estudos Sociais2 2 Utilizo o termo Estudo Social e seu plural, Estudos Sociais, com letra maiúscula ao longo do texto, no intuito de ressaltar o termo como uma categoria de relevância conceitual e metodológica, com especificidades a serem destacadas a partir da obra de Du Bois. , publicados em diversos volumes quando o autor ocupava posições estritamente acadêmicas, inicialmente na condição de “Instrutor Assistente em Sociologia”, pela Universidade da Pensilvânia (1896-1897), e, posteriormente, em seu primeiro período como professor e pesquisador na Universidade de Atlanta. Nesse primeiro período como professor no estado da Georgia (1897-1910)3 3 No segundo período (1934-1944), ele ocupou o cargo de Chairman do Departamento de Sociologia, de onde fundou o periódico acadêmico Phylon e organizou o primeiro congresso de faculdades negras em 1943. , Du Bois foi contratado como “Professor de Economia e História”, dirigiu o Departamento de Sociologia, fundou e coordenou o Laboratório de Estudos Sociológicos e organizou os congressos anuais para os Estudos dos Problemas Negros.

O “problema do século XX” e os Estudos Sociais de Du Bois

A chamada Escola de Atlanta vem sendo tardiamente reconhecida como a primeira escola de sociologia estadunidense, anterior à Escola de Chicago, aquela celebrada pelos trabalhos de Robert Park e seus colaboradores e imortalizada nos livros da história da disciplina4 4 Os trabalhos coordenados por Du Bois apresentavam um rigor metodológico criterioso e reuniam um grupo de pesquisadores, permitindo-nos considerar, com isso, o Laboratório Sociológico de Atlanta como o lócus de uma escola de pensamento, tal qual apontado por Howard Becker acerca da Escola de Chicago (Becker, 1996). . Mais do que isso, argumenta-se que as análises de Du Bois seriam de extrema relevância para a compreensão dos dilemas contemporâneos em escala global, dada a sua perspectiva racializada acerca da modernidade e da linha de cor (Itzignohn; Brown, 2020). Seus Estudos Sociais acerca de grupos e temas urbanos específicos também são de grande valia para a formação de pesquisadores dedicados à etnografia urbana (Patriota de Moura e Bernardino-Costa, 2023Patriota de Moura e Bernardino-Costa. W.E.B. Du Bois e O Negro da Filadélfia.Apresentação em Du Bois, W.E.B.O Negro da Filadélfia. Um Estudo Social. Belo Horizzonte: Autêntica: 2023.), além de referência obrigatória para todos os interessados em compreender o racismo e suas possibilidades de superação.

Du Bois constrói toda a sua obra tendo como ponto de partida o que era postulado, ao final do século XIX, nos Estados Unidos da América, como “O problema Negro”. Ele redesenha o problema em termos sociológicos, tanto ao pluralizar seu objeto de estudo - que se torna o conjunto de “problemas dos Negros” - quanto ao ampliar o escopo das causas e dos efeitos do referido problema, rebatizando-o de “problema da linha de cor” (Figura 1).

Figura 1:
O Negro na Geórgia: um Estudo Social

Seria um engano, no entanto, pensar que tal problema poderia ser resumido ao estudo de um segmento populacional específico. Não se trata de problema enfrentado exclusivamente por um grupo racial, ou de um conjunto de problemas enfrentados por pessoas de pele negra, ou ainda de um problema da constituição da subjetividade do próprio Du Bois ou mesmo de problema relevante somente para a sociedade estadunidense. O Problema Negro, redefinido como o Problema da Linha de Cor, abrange todas essas dimensões citadas, porém, é alçado em sua obra a fator condicionante de relações sociais em múltiplas escalas e, portanto, fator sem o qual não seria possível conceber a sociedade moderna em larga escala, cuja dinâmica está imbricada a processos coloniais e ao capitalismo como sistema que extrapola limites nacionais.

As reflexões de Du Bois acerca das desigualdades sociais no início do século XX envolveram cuidadosos Estudos Sociais, que conjugavam pesquisa documental histórica com o desenvolvimento inovador de múltiplos métodos de coleta e apresentação de dados quantitativos e qualitativos. Em comentário ao décimo segundo Censo dos Estado Unidos, o autor define e defende a realização de seus Estudos Sociais: “O termo um tanto indefinido ‘estudo social’ vem sendo aplicado a investigações que busquem chegar mais longe e de forma mais profunda do que o Censo e estudar definitivamente e, dentro dos limites, exaustivamente, as condições de vida e ação em certas localidades” (Du Bois, 1900, p. 3).

Veremos que, apesar da relativa “indefinição” do termo, podemos identificar um corpo de estudos que, sob esse rótulo, constitui importante contribuição para as ciências sociais, tanto em termos metodológicos quanto analíticos.

O volumoso livro O Negro da Filadélfia, publicado em 1899, a exposição O Negro da Geórgia, apresentada na Exposição Universal de Paris em 1900, e uma dezena de estudos temáticos publicados por ocasião dos congressos anuais coordenados a partir da Universidade de Atlanta traziam, todos, o subtítulo “Um Estudo Social” e combinavam diferentes métodos qualitativos e quantitativos de coleta de dados, acompanhados de minuciosas análises do “ambiente social” observado em diversas escalas. Além disso, foram apresentados de maneira inovadora, tanto em termos visuais (tabelas e gráficos), quanto em diferentes estilos de escrita.

O papel pioneiro de Du Bois na história das Ciências Sociais está ainda longe do pleno reconhecimento, tanto em termos empíricos quanto teóricos5 5 Ao longo de sua trajetória, o imbricamento entre vivência pessoal, formação e inovação científica, em constante relação com os dilemas e os desafios políticos das nove décadas de sua vida, representa um processo de amadurecimento que nos permite uma visão mais aprofundada do pensamento sociológico. . A fim de contribuir para o registro de uma pequena parcela desse reconhecimento, elenco a seguir alguns aspectos importantes encontrados nos Estudos Sociais publicados ao final do século XIX e na primeira década do século XX, que representam importantes contribuições para a compreensão das desigualdades nas ciências sociais, principalmente a partir de categorias como raça, classe, casta e estratificação social.

O primeiro Estudo Social - Raça e estratificação social em uma cidade industrial

Após concluir seu doutorado na Universidade de Harvard, com período de estudos sociológicos em Berlim, William Edward Buckhardt Du Bois trabalhou como professor na Universidade de Wilberforce, em Ohio6 6 Wilberforce foi instituída em Ohio em 1856 e é uma das três universidades para negros fundadas nos Estados Unidos antes da Guerra Civil. As outras duas são: a Lincoln University, na Pensilvânia, em 1854, e a Berea College, em 1855, em Berea, Kentucky. Wilberforce fora fundada por brancos para a educação de negros e comprada pela Igreja Africana em 1863. O estado de Ohio havia sido um dos estados do Norte com grande atuação de abolicionistas (Du Bois, 1900, p. 12). , lecionando Grego e Latim. Em seguida, em 1896, foi contratado pela Universidade da Pensilvânia para realização de uma pesquisa acerca da população negra da maior cidade daquele estado, a Filadélfia.

Susan Wharton, uma proeminente filantropa, pertencente à família que dava nome à escola de economia da Universidade da Pensilvânia, procurava um profissional capaz de realizar pesquisa diagnóstica no bairro com maior concentração de negros de sua cidade. Tal concentração era vista como problema para a metrópole, que vinha lidando com altos índices de criminalidade, pobreza e doenças, problemas que eram atribuídos à população negra. Juntamente com relações clientelistas nas quais se proliferava a corrupção na esfera política, a existência desses índices preocupantes apresentava entraves para a implementação dos programas assistencialistas patrocinados pelas reformadoras sociais do movimento liderado por Jane Adams7 7 O College Settlement Movement, liderado por Jane Adams, em Chicago, teve papel pioneiro nos estudos urbanos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Du Bois também contou com a assistência de Isabel Eaton, que era associada ao movimento, em pesquisa sobre o trabalho doméstico na Filadélfia. Inclusive, ele residiu com a esposa, Nina Gomer Du Bois, em uma das casas do College Settlement Movement ao realizar sua pesquisa no Seventh Ward (Deegan, 1988; Anderson, 1996; Castro, 2022). , o College Settlement Movement, ao qual Susan Wharton estava associada.

Os centros urbanos do norte dos Estados Unidos cresciam aceleradamente ao final do século XIX, e o “problema negro” era sentido em diferentes cidades industriais. Essas cidades do Norte receberam grandes levas de imigrantes vindos do Sul após a guerra de secessão (1861-1865) e originaram-se de subsequentes experiências de reconstrução emancipatória nos estados agrícolas, de passado escravocrata, abandonadas na década de 1880 em prol de legislações racistas e segregacionistas conhecidas pela alcunha de “Jim crow”8 8 Ver, por exemplo, a análise sobre o “gabinete dos libertos”, no segundo capítulo de As Almas da Gente Negra (Du Bois, 1999). . Os Negros chegavam às cidades do Norte em busca de oportunidades de educação, empregos e tratamento digno, mas nem sempre era o que encontravam, como constataria Du Bois.

Ele era mais qualificado do que a grande maioria do corpo docente da Universidade da Pensilvânia, com PhD concluído em Harvard e estágio prolongado na Alemanha, mas não obteve posição no quadro permanente, seja de professores ou de pesquisadores. Em 1896, foi contratado para realizar pesquisa acerca do “problema negro” na Filadélfia. Tal problema foi percebido como sendo causado pelos negros que se concentravam na sétima região administrativa da cidade, o Seventh Ward. O resultado dessa pesquisa é o seminal The Philadelphia Negro. A social study, publicado originalmente em 1899. O livro conta com mais de 400 páginas que conjugam pesquisa documental histórica e estatística com materiais de entrevistas sistemáticas realizadas individualmente pelo pesquisador com mais de cinco mil pessoas, além de anotações detalhadas de campo, com observações de casos que configuram uma verdadeira etnografia antes que esse termo houvesse sido cunhado oficialmente pela antropologia moderna. Como dito em introdução à versão brasileira da obra publicada originalmente em 1899, “O termo em inglês ‘Negro Problem’ era utilizado para se referir aos negros como um problema, mas Du Bois transforma o sentido da expressão ao longo do livro, utilizando-a para se referir a problemas enfrentados pelos negros, dos quais o principal era a atitude discriminatória por parte dos brancos”. (Patriota de Moura e Bernardino-Costa, 2023Patriota de Moura e Bernardino-Costa. W.E.B. Du Bois e O Negro da Filadélfia.Apresentação em Du Bois, W.E.B.O Negro da Filadélfia. Um Estudo Social. Belo Horizzonte: Autêntica: 2023., p. 23). Nas palavras do autor:

Não há dúvida de que na Filadélfia o centro e semente do problema Negro, no que tange às pessoas brancas, está nas estreitas oportunidades proporcionadas aos Negros para ganhar a vida de forma decente. Tal discriminação é moralmente errada, politicamente perigosa, industrialmente perdulária e socialmente tola (Du Bois, 2023, p. 396).

Du Bois identifica uma série de problemas enfrentados pelos negros residentes na Sétima Região da Filadélfia, como a alta incidência de determinadas doenças, elevadas taxas de criminalidade e encarceramento, baixos níveis educacionais, pouca qualificação profissional e pouca estabilidade de laços familiares, por exemplo. Demonstra, não obstante, que todos esses problemas poderiam ser atribuídos ao ambiente social e não eram exclusivos da população negra, sendo semelhantes, se não ainda mais acentuados, em segmentos de imigrantes brancos de proveniência rural em cidades europeias. Além disso, o autor faz questão de mostrar que a população negra não era toda como a maioria estatística poderia indicar: havia diferentes classes entre os negros da Sétima Região e esses apresentavam uma estratificação onde “a melhor classe” demonstrava grande capacidade de organização política, econômica e familiar, bom desempenho educacional e profissional e aptidão física equiparável aos segmentos semelhantes da população branca. A grande diferença, argumenta o autor, estava nas oportunidades negadas a esse estrato superior, o que dificultava a elevação (uplift) de toda a população classificada como negra.

Ao longo do livro, o autor insiste em demonstrar a heterogeneidade da população negra em termos de escolaridade, renda, atividades profissionais e estilos de vida. Em termos econômicos, ele começa por utilizar as categorias que Charles Booth9 9 Pioneiro das surveys urbanas, Charles Booth chefiou equipe de pesquisa que coletou dados nas décadas de 1870 e 1880 e produziu diversos tomos intitulados Life and Labour of the People of London. Suas pesquisas serviram também como inspiração para os Hull House Maps and Papers, produzido por Jane Adams e suas colaboradoras. estabelecera para a cidade de Londres, com algumas modificações. Du Bois distingue, na seção que trata da renda das famílias negras (cap. XI, seção 28), diferentes classes entre a população negra da Filadélfia, em uma estratificação cujas nomeações são: 1) “muito pobres”, 2) “pobres a razoáveis”, 3) “confortáveis” e 4) “em boas circunstâncias”.10 10 Em inglês: 1) poor, 2) poor to fair, 3) comfortable e 4) good circumstances. As categorias usadas por Du Bois diferem em pouco das de Booth, que eram 1) very poor, 2) poor, 3) comfortable e 4) middle class & above. É interessante notar que Du Bois evita utilizar o termo “classe média e acima” para se referir ao que ele também denomina como “a melhor classe” dos negros. Isso se deve às barreiras estabelecidas pela linha de cor, que limitavam as oportunidades de ascensão social dos negros. Ver tabela na p. 199 em Du Bois (2023).

Já na seção 46 do livro, intitulada “Classes Sociais e Divertimentos”, que integra o capítulo “O Ambiente do Negro” (cap. XV), Du Bois descreve a população negra da Sétima Região em uma escala de quatro graus. Em tom um tanto moralista, coerente com o objetivo de angariar respeito por parte dos segmentos dominantes da cidade que leriam seu trabalho, o autor insiste na heterogeneidade em termos qualitativos dos negros, dizendo que

Nada exaspera mais a melhor classe dos Negros do que essa tendência de ignorar completamente sua existência. Os habitantes trabalhadores e cumpridores da lei da Trigésima Região são incitados a uma justa indignação quando veem que a palavra Negro leva a mente da maioria dos cidadãos da Filadélfia aos becos da Quinta Região ou aos tribunais de polícia (Du Bois, 2023, p. 325).

Ainda nesse momento inicial de sua produção acadêmica, não há grande precisão conceitual na definição de classe, palavra que o autor utiliza no sentido de categoria descritiva para demonstrar a heterogeneidade da população negra. Há, inclusive, alguns momentos do livro em que ele utiliza esse termo para designar a totalidade da população negra da cidade, em contraposição aos brancos. Se, em um primeiro momento, ele apresenta classes sociais para designar estratos que se distinguem uns dos outros por critérios de renda e atividade profissional, no capítulo em que trata do ambiente social de forma mais ampla, utiliza o termo “grau” para diferenciar os estratos ou classes11 11 “Grau 1. Famílias de respeitabilidade indubitável que ganham renda suficiente para viver bem, não se envolvem em qualquer forma de serviço subalterno, a esposa não está envolvida em nenhuma ocupação salvo a de dona de casa, com exceção de alguns casos em que ela tinha emprego especial em casa. As crianças não são compelidas a trabalhar pelo sustento, mas estão na escola; a família vive em um lar bem cuidado. Grau 2. A respeitável classe trabalhadora (...). As crianças menores, na escola. Grau 3. Os pobres; pessoas que não ganham o suficiente para manter-se sempre acima da necessidade; honestas, embora nem sempre enérgicas ou parcimoniosas, e sem nenhum toque de imoralidade grosseira ou crime. Incluindo os muito pobres e os pobres. Grau 4. A classe mais baixa de criminosos, prostitutas e vagabundos; o ‘décimo submerso’” (Du Bois, 2023, p. 325). .

A gradação apresentada por Du Bois no livro publicado em 1899 tinha como meta demonstrar a heterogeneidade de um segmento homogeneizado pela atribuição de identidade a partir de noções socialmente compartilhadas de raça. Longe de naturalizar as capacidades e as circunstâncias daqueles classificados como negros segundo uma concepção essencialista de raça12 12 Para um panorama acerca das concepções de raça nos trabalhos de Du Bois, ver Liss (1998), Jesus (2021), Morris (2015). , o autor demonstra que mesmo com todas as restrições de um ambiente social racista, havia acentuadas diferenças entre aqueles identificados como sendo da mesma raça. Tais diferenças demonstravam a capacidade de aprendizado e organização, cuja prova viva eram os profissionais escolarizados, as lideranças religiosas cristãs e os empresários que formavam a “melhor classe” dos negros da Filadélfia.

O argumento de The Philadelphia Negro é pela integração do Negro ao mercado de trabalho, com apelo ao “bom senso” e à racionalidade democrática e cristã dos cidadãos (brancos) da cidade do “amor fraterno”13 13 Significado em grego da palavra Filadélfia. . Com a gradação apresentada ao final do livro, Du Bois separa a “nata” da população negra e a coloca como principal vítima da linha de cor, pois, estando apta a ocupar posições sociais de maior prestígio e participar mais ativamente das decisões econômicas e políticas da cidade, ela é impedida pelo véu do preconceito. Assim, o principal “problema negro” passa a ser o preconceito que limita as oportunidades e frustra projetos de ascensão social.

A “casta de raça” e os problemas (dos) negros nos Estudos Sociais de Atlanta (1898-1912)

Enquanto concluía a escrita de The Philadelphia Negro, Du Bois foi convidado a compor o quadro docente da Universidade de Atlanta, instituição destinada à formação superior de negros no estado da Georgia, um dos estados mais afluentes do Sul dos EUA, onde vigoravam políticas segregacionistas fundamentadas em critérios raciais baseados em fenótipo e ascendência. A Universidade de Atlanta já promovia, desde 1896, congressos destinados a tratar da vida urbana dos negros do Sul, cuja maioria da população vivia em áreas rurais. A proposta dos encontros de Atlanta era oferecer um contraponto aos congressos destinados ao estudo da população rural descendente de negros escravizados no sistema das grandes plantações, que eram organizados por Booker T. Washington,14 no Tuskegee Institute, situado no estado de Alabama. Quando Du Bois chega em Atlanta, dois encontros já haviam acontecido, com publicações deles decorrentes, a primeira intitulada “The mortality of Negroes” (1896) e a segunda “Social and Physical Conditions of Negroes” (1897).

O programa de pesquisas a ser implementado pelo sociólogo fora delineado em artigo publicado em 1898 nos anais da American Academy of Political and Social Science, intitulado “The Study of the Negro Problems”. Nesse artigo, assinado por Du Bois ainda indicando sua filiação institucional à Universidade da Pensilvânia, o pesquisador delineava a necessidade de estudos sociológicos sistemáticos para o avanço da ciência e do conhecimento acerca dos problemas sociais.

Nesse artigo de 1898, encontramos sua célebre definição de problema social, a saber: “a falência de um grupo organizado em realizar seus ideais de grupo, por meio da inabilidade de adaptar uma certa linha de ação desejada a dadas condições de vida” (Du Bois, 1898, p. 2). A partir de tal definição, o autor argumentava que o “problema negro” nos Estados Unidos, tal qual percebido pelos segmentos dominantes, não era uma questão estável, mas havia tomado diferentes formas ao longo da história.

Ele argumenta que os primeiros estatutos em relação aos negros haviam procurado solucionar questões de força de trabalho e não de raça ou cor; em seguida, as leis referentes a escravos e libertos “de cor” começaram a formar códigos baseados em uma noção de “casta social”15 15 Du Bois usará o termo casta em diversas ocasiões, tanto em publicações acadêmicas quanto em escritos políticos, sem definir explicitamente o conceito. Não obstante, o termo sempre aparece para designar um grupo que, historicamente, foi alvo de codificações restritivas que impuseram barreiras à mobilidade social. Assim, ele, desde seus primeiros escritos, historiciza a formação de uma classificação racial nos Estados Unidos e desnaturaliza o lugar atribuído ao negro na estrutura social estadunidense vigente à época. . Essa “casta de condição” foi eventualmente substituída por uma “casta de raça”, quando os “slave codes” deram lugar aos “black codes” após a guerra civil. Assim, ao longo da história dos Estados Unidos, constituiu-se uma sociedade nacional em torno de ideais de participação democrática que, não obstante, excluiu a população negra dessa participação, daí o “problema Negro” ao final do século XIX:

Sua existência se manifesta simplesmente pelo fato de que uma massa definitivamente segregada de oito milhões de americanos não compartilha plenamente da vida nacional do povo; não é uma parte integral do corpo social. Os pontos onde eles deixam de ser incorporados à vida do grupo constituem os problemas negros particulares (Du Bois, 1898, p. 7).

Assim, longe de naturalizar o “problema negro” como outros autores da época, Du Bois apresenta uma análise sociológica e histórica de um problema social abrangente - a não participação plena dos negros na sociedade estadunidense - que se manifesta de diversas maneiras. Esses diversos pontos nos quais os negros “deixam de ser incorporados” tornam-se os problemas específicos a serem estudados empiricamente.

No artigo de 1898, bem como nas páginas finais de O Negro da Filadélfia, Du Bois apela à ciência como solução para os problemas sociais. Suas páginas são escritas para diagnosticar os problemas, elucidar suas causas e apontar a direção para que as ações sociais sejam mais condizentes com os “ideais do grupo”, tal qual postulado em sua definição de problema social. Ele argumenta que os ideais da sociedade estadunidense, fundada no postulado de que todos têm direito a “vida, liberdade e a procura da felicidade”16 16 Segundo trecho da declaração da independência dos EUA, escrita por Thomas Jefferson em 1776. , bem como o “amor fraterno” de base cristã,17 17 A cidade da Filadélfia fora fundada por membros do grupo cristão Quaker, também chamado “Sociedade dos Amigos”. contido na denominação da cidade da Filadélfia, precisavam de linhas de ação que permitissem a realização plena desses ideais para todos. Sua tarefa, como cientista social, era apontar o caminho a ser trilhado para alcançar esse ideal. O meio de trabalho proposto foi a pesquisa empírica sistemática, cujo objetivo principal seria o de chegar à verdade dos fatos. A realização desse objetivo, segundo o autor, encontrava-se muito distante dos propósitos vigentes nos meios políticos e acadêmicos da época.

Da forma como as coisas estão, nossas opiniões sobre o Negro são mais questões de fé do que de conhecimento. (....) No momento em que qualquer nação permite que o impulso, o capricho ou a conjectura apressada usurpem o lugar da ação consciente, normativa e inteligente, ela está em grande perigo. A única meta de qualquer sociedade é a de resolver seus problemas em acordo com seus mais altos ideais, e o único método racional de cumprir essa meta é estudando esses problemas à luz das melhores pesquisas científicas (Du Bois,1898, p. 10).

Du Bois se dispõe a coordenar o trabalho proposto, mas aponta a necessidade de apoio por parte de instâncias governamentais e das universidades, os dois agentes institucionais que ele julgava capazes de levar adiante tal programa. Em seu projeto de pesquisa, elenca algumas premissas e métodos para se chegar à “descoberta da verdade”, que deveria ser o objetivo de toda ciência. A sociologia, portanto, precisava se distanciar dos preconceitos e das opiniões não testadas.

Seu plano de estudo supunha um postulado principal:

a saber, que o Negro é um membro da raça humana e, sendo um que, à luz da história e da experiência, é capaz de um grau de melhoramento e cultura, tem o direito de ter seus interesses considerados, de acordo com seus números, em todas as conclusões para com o bem comum (Du Bois, 1898, p. 17 grifo nosso).

É importante dizer que aquele postulado não era um ponto pacífico entre cientistas sociais ao final do século XIX, seja nos Estados Unidos ou nos centros europeus. Contudo, é a partir de tal postulado que Du Bois elenca a metodologia a ser aplicada em seu programa de pesquisa, que compreenderia 1) estudos históricos; 2) investigações estatísticas; 3) mensurações antropológicas; e 4) interpretações sociológicas. Ainda segundo o projeto apresentado por ele, seriam necessários dois tipos de estudos: a) os estudos do Negro como grupo social e b) os estudos de seu ambiente social peculiar.

Du Bois tinha ampla formação humanística no mais renomado centro universitário dos Estados Unidos (Harvard) e na nascente disciplina de sociologia na respeitada e pioneira Friedrich-Wilhelms-Universität (hoje, Universidade Humboldt), em Berlim. Tinha também a experiência acumulada de duas pesquisas empíricas aprofundadas, que renderam importantes e robustas obras publicadas18 18 Além de The Philadelphia Negro, Du Bois publicara, em 1896, o livro de 335 páginas intitulado The Suppression of the African Slave Trade to the United States of America, 1638-1870, fruto de sua pesquisa de doutorado, que inaugurava uma série de publicações históricas de Harvard (Du Bois, 1896). . Com sua chegada ao estado sulista da Geórgia, ao assumir o cargo de direção acadêmica na Universidade de Atlanta, foram implementadas importantes mudanças nas atividades já em andamento naquela instituição.

As primeiras pesquisas empreendidas pelo autor em Atlanta renderam material precioso, apresentando dados coletados sistematicamente por meio de questionários enviados a pessoas situadas em diferentes localidades. Já no primeiro relatório (do terceiro congresso), ele inicia com o parágrafo que estará presente em todos os demais subsequentes:

A Universidade de Atlanta é uma instituição para a educação superior da juventude Negra. Ela busca, por meio da manutenção de um alto padrão acadêmico e de compostura, selecionar e treinar plenamente membros talentosos dessa raça para serem líderes de pensamento e missionários de cultura entre as massas (Du Bois, 1898, p. 3).

As publicações preparadas antes de sua chegada (1896 e 1897) eram relatórios de congressos com trabalhos reunidos em torno de temas pertinentes aos negros urbanos do Sul, mas sem uma metodologia padronizada ou um propósito muito explícito. Como ressaltado pelo autor posteriormente, em palestra de 1940, o principal valor dos congressos de Hampton19 19 Os congressos de Tuskegee reuniam, desde 1892, principalmente fazendeiros negros para discutir o progresso da raça. Entre 1898 e 1912, realizaram-se encontros de lideranças negras em Hampton, no estado da Virgínia, seguindo os moldes dos encontros de Tuskegee, no Alabama. , Tuskegee e dos primeiros dois encontros de Atlanta estava nas diversas pessoas que esses encontros conseguiram reunir, porém, as atividades não passavam de “comparações de condições, troca de ideias e reminiscências pessoais” (Du Bois, 1940, p. 2). E complementa:

Eu subordinei o aspecto de congresso ao estudo científico. Juntei a ideia de Hershaw20 20 Lafayette Hershaw, intelectual de ascendência negra, branca e indígena, interessado em pesquisa com negros urbanos, cuja pesquisa acerca da mortalidade excessiva de negros foi importante contribuição para o terceiro congresso de Atlanta. para uma investigação ampla e cuidadosa sobre um assunto específico com o meu próprio estudo intensivo de O Negro da Filadélfia, recém-concluído e publicado em 1899. Minha ideia minimizava a parte de congresso do programa, isto é, as palestras, as reminiscências, o encontro de pessoas, e colocava toda a ênfase sobre a investigação realizada ao longo do ano precedente acerca da condição social. Ademais, em vez de tentar estudar toda a massa das condições sociais e discutir o problema Negro inteiro, eu deliberadamente coloquei um “s” no “problema” e enfatizei o estudo de problemas negros e em seguida peguei um problema ou uma fase de um problema que afetava os Negros para o estudo intensivo de um ano (Du Bois, 1940, p. 2).

Du Bois implementa uma metodologia sistemática de pesquisa, com propósitos bem articulados e uma linha teórica definida. Não se tratava mais de estudar o negro como problema, mas de estudar os problemas enfrentados pelos negros e propor suas possíveis soluções. Ademais, tratar-se-ia de criar oportunidades destinadas a estudantes e pesquisadores negros, para atuarem junto a suas comunidades no sentido de erguerem (uplift) a si e aos seus semelhantes21 21 Os títulos originais dos dois primeiros encontros e das respectivas publicações feitas pela Universidade de Atlanta são: 1) “Mortality Among Negroes in Cities. Proceedings of the Conference for Investigation of City Problems” e 2) “Social and Physical Conditions of Negroes in Cities. Proceedings of the Second Conference for the Study of Problems Concerning Negro City Life”. .

O pesquisador analisa documentos e dados censitários, escreve e envia cartas solicitando informações e depoimentos de pessoas e instituições, elabora questionários e os distribui a colaboradores situados em diversas cidades do Sul, tabulando os dados obtidos para apresentá-los ordenadamente, sustentando seus argumentos com material empírico jamais obtido anteriormente de maneira tão sistemática. Ele combina a objetividade científica com o posicionamento político e o reconhecimento dos limites e das especificidades de diferentes pontos de vista. Os relatórios publicados mesclam citações de documentos oficiais, trechos de respostas a cartas com indagações a respeito de temas cuidadosamente delimitados, relatos de observações de colaboradores de pesquisa e depoimentos de sujeitos sobre suas próprias experiências.

As duas primeiras publicações das Atlanta Conferences traziam como subtítulo, respectivamente, “Anais do Congresso para a Investigação de Problemas da Cidade” e “Anais do Segundo Congresso para o Estudo dos Problemas Referentes à Vida Citadina Negra”22 22 Ele fala em “comunismo das florestas africanas” e da “vida clânica de parentes de sangue” e como essas características sociais foram destruídas pela vida da plantation (Du Bois, 1898a, p. 48). . Na terceira publicação, já organizada por Du Bois, temos no subtítulo “Relatório de uma investigação sob a direção da Universidade de Atlanta; juntamente com os anais do Terceiro Congresso para o estudo dos Problemas Negros”.

Se os dois primeiros congressos reuniam negros proeminentes para debater os problemas vividos pela população urbana do Sul, o terceiro tinha como meta apresentar um levantamento das iniciativas por parte de negros para seu próprio “melhoramento social”. Na mesma linha argumentativa de O Negro da Filadélfia, o relatório do terceiro congresso insistia na heterogeneidade da população negra, agora principalmente nas cidades do Sul dos Estados Unidos, e na capacidade organizativa e empreendedora do extrato superior entre as classes identificadas pelo pesquisador (Du Bois, 1898a).

O levantamento coordenado por Du Bois contara com a colaboração de egressos de quatro universidades e outras instituições lideradas por negros, e apresentava dados pertinentes a nove centros urbanos, situados em seis estados do Sul. O relatório traz extensas tabelas com dados acerca de igrejas negras, por exemplo, com datas de fundação, número de membros, renda e patrimônio, frequência de encontros e atividades desenvolvidas, essas de cunho estritamente religioso, mas também de beneficência e lazer. Há ainda dados quantitativos sobre sociedades secretas, cooperativas de seguro, sociedades beneficentes e empresas lideradas por negros. Ao final, o autor elenca um total de 236 organizações que tinham como finalidade o melhoramento social do negro. A medida desse melhoramento, tal qual apresentada por Du Bois naquele momento, ao final do século XIX, se daria por meio da adesão a uma escala civilizatória que colocava a racionalidade, a especialização de funções, o acúmulo de patrimônio e a família nuclear burguesa como índices de progresso social, ou seja, a participação no projeto da modernidade capitalista. A conclusão é a de que os negros podiam trabalhar por si mesmos para serem cidadãos plenos de uma sociedade urbana moderna, mas era preciso grande esforço nesse sentido devido às condições históricas, tanto da origem africana23 23 O relatório apresenta os resultados tabulados das respostas aos questionários, bem como dados de registros de empresas e depoimentos pessoais de empresários narrando suas trajetórias e desafios. quanto da situação de escravização nas grandes plantações do Sul. A sociedade nacional estadunidense, argumentava o autor, precisava auxiliar no processo de emancipação plena desse segmento de sua população, mas esse auxílio encontrava barreiras na mentalidade que supunha a inferioridade ou mesmo a não-humanidade dos negros (Du Bois, 1898a) .

O levantamento de 1898 deu lugar a pesquisas mais sistemáticas realizadas nos anos seguintes. A pesquisa de 1899, acerca do Negro empreendedor (Negro in Business), dá-se de forma ainda mais sistemática, com a distribuição de formulários a serem preenchidos por correspondentes situados em diferentes estados, principalmente na Georgia e no Alabama24 24 Frase contida na epígrafe do presente artigo. . A iniciativa capitalista é tomada como medida de progresso social, e Du Bois distingue entre o artesão e o homem de negócios (businessman), “por exemplo, um homem com 500 dólares investidos em uma oficina, com vários assistentes contratados, é um capitalista e não um artesão” (Du Bois, 1899b, p. 7).

Os capitalistas inventariados por Du Bois seriam parte da elite negra cuja missão significaria erguer “a figura curvada coberta por um véu”25 25 Du Bois estranharia posteriormente essa crença na meritocracia ao identificar e criticar a noção de “American assumption” em Black Recontruction (Du Bois, 1935). , representada pelo trabalhador escravizado catador de algodão, representação simbólica da chaga da civilização estadunidense. Tais homens de negócios poderiam alavancar a participação social por meio da participação econômica, acumulando patrimônio e gerando empregos cada vez mais qualificados para a massa da população negra que, com maior renda, poderia também investir em maior qualificação intelectual e técnica.

Nos escritos de Du Bois da virada do século XIX para o século XX, o associativismo, o empreendedorismo e a educação figuram como os principais índices da habilidade dos negros para merecer26 26 Ele mesmo coordenaria o The Crisis na década seguinte, publicação periódica da NAACP, que se enquadrava exatamente nessa descrição. participar plenamente do corpo político. Participação econômica e participação política aparecem desde o início da obra de Du Bois como fatores interdependentes. Mas a ligação entre essas duas instâncias não era automática ou facilmente concedida pela sociedade envolvente, que relegara o negro a uma condição de casta definida por noções de base racista. Seria preciso mais do que dinheiro e direito a voto: era necessário constituir uma inteligentsia negra capaz de guiar a “raça” em seu progresso até que essa estivesse apta a participar plenamente das decisões e dos benefícios da vida nacional. A mudança na opinião pública seria essencial, bem como a formação de uma imprensa que defendesse os direitos e constituísse uma força social negra - assim ele concluía o relatório sobre os empreendedores negros: “Um jornal ou revista nacional forte e destemido, que os Negros pudessem sentir como sendo seu, com visões sãs sobre trabalho, riqueza e cultura, poderia se tornar, em alguns anos, um vasto poder entre os Negros27 27 Vejamos os temas de cada um dos congressos organizados por Du Bois: 3º - “Alguns esforços dos Negros Americanos para o Melhoramento Social” (1898) ; 4º - “O Negro nos Negócios” (1899); 5º - “O Negro com formação universitária” (1900); 6º - “A Escola Negra Comum” (1901); 7º - “O Artesão Negro” (1902); 8º - “A Igreja Negra” (1903); 9º - “Algumas notas sobre a criminalidade Negra” (1904); 10º - “Uma bibliografia seleta do Americano Negro” (1905); 11º - “A saúde e o físico do Negro Americano” (1906); 12º - “Cooperação econômica entre Americanos Negros (1907); 13º - “A Família Americana Negra” (1908); 14º - Esforços para o melhoramento social entre Americanos Negros” (1909); 15º - “O Americano Negro com formação universitária” (1910); 16º - “A Escola Comum e o Americano Negro” (1911); 17º - “O Artesão Americano Negro” (1912); 18º - “Morais e Modos entre Americanos Negros” (1913). ” (Du Bois, 1899a, p. 77).

É com esse ímpeto otimista, acreditando nas possibilidades do novo século, que o autor se dedicou às pesquisas em seu Laboratório. A pesquisa empírica ampla e sistemática não tinha precedentes nas instituições de pesquisa social da época.

Afastando meu olhar do infrutífero rebuscamento linguístico e voltando-me para encarar os fatos de minha própria situação social e mundo racial, eu me determinei a inserir a ciência na sociologia por meio de um estudo das condições e problemas do meu próprio grupo. Eu iria estudar os fatos (...) (Du Bois, 1968c, p. 205-6).

Du Bois elenca, no início das publicações anuais, as diferentes ações institucionais vinculadas aos congressos: cursos oferecidos na Universidade de Atlanta, palestras realizadas em diferentes instituições, publicações de membros do Departamento de Sociologia, um Escritório de Informações (Bureau of Information) aberto a consultas por outras instituições, colaborações com correspondentes em outras universidades e instâncias governamentais, além de uma liga de empresários negros formada com a utilização dos dados produzidos no quarto congresso.

Da quarta publicação em diante, o termo “investigação” é substituído por “Estudo Social”, mantendo-se os anais do “Congresso para o estudo dos Problemas Negros”28 28 É importante dizer que Du Bois não faz referência ao sistema de castas indiano - utiliza o termo ao se referir à situação estamental europeia. Não há uma definição explícita do conceito de casta na obra de Du Bois, mas ele utiliza o termo em diversas ocasiões para demonstrar o processo histórico de enrijecimento da classificação racial nos EUA, por meio de legislações como os “black codes” dos estados do Sul (Du Bois, 1903a, 1909, 1935). Assim, o termo “casta”, na obra de Du Bois, faz alusões a posições sociais de sistemas hierarquizados em que se impede a mobilidade social de determinados segmentos por sua condição de nascimento, como no caso dos estamentos medievais europeus. No caso histórico dos EUA, no entanto, há um processo de intensificação de noções atribuídas a cor para classificar determinadas pessoas, que passam a ser alvo de códigos que as impedem de participar plenamente das oportunidades de ascensão social idealizadas, segundo a American Assumption, como disponíveis a todos os indivíduos. . Os trabalhos do Laboratório Sociológico de Atlanta eram o lastro dos escritos reflexivos e propositivos de Du Bois. As pesquisas de 1900 e 1901, especificamente, serviriam de embasamento para os argumentos apresentados em duas publicações importantíssimas, ambas de 1903: o artigo “The Talented Tenth” (1903b), e a obra “The Souls of Black Folk” (1903a).

Os Estudos Sociais de Atlanta adotavam uma perspectiva reformista e um enquadramento baseado em noções de estratificação social para demonstrar a heterogeneidade da população negra e investir em seus “melhores” para “elevar” a raça em sua participação em uma sociedade pautada por ideais de uma democracia liberal. Não obstante, Du Bois se preocupa desde o início com a instituição de uma divisão de status, baseada em critérios fenotípicos, que se cristaliza em uma racialização de casta 29 , dividindo brancos e negros, a despeito de suas posições de classe.

Considerações finais

Du Bois pretendia que os Estudos Sociais empreendidos pelo Laboratório Sociológico de Atlanta se prolongassem por um século, com repetição a cada década dos estudos realizados na década anterior. A escassez de recursos e os verdadeiros boicotes ao seu projeto impediram que seu programa se concretizasse plenamente (Morris, 2015MORRIS, Aldon. The Scholar Denied. W.E.B. Du Bois and the birth of modern sociology. Berkeley: University of California Press, 2015.). Não obstante, esse conjunto de estudos intensivos, com recortes geográficos ou temáticos, constituem um corpo de trabalhos pioneiro em diversos níveis. A combinação de métodos e forma de apresentação de dados se assemelha à etnografia como gênero de pesquisa e escrita, apresentando nuances e complexidades ainda a serem exploradas pela antropologia e pela sociologia, por exemplo. Para além das formas de coleta e exposição de dados, há ainda importante pioneirismo analítico e teórico nos Estudos Sociais coordenados por ele, para além da discussão acerca de relações raciais ou da condição social de um grupo racial em determinado contexto histórico.

As discussões de Du Bois acerca das desigualdades em termos de classe e casta, por exemplo, tiveram profunda influência sobre a obra de Max Weber, considerada uma referência obrigatória para estudos de estratificação social até hoje. Sua influência transformadora sobre o pensamento de Weber está documentada em correspondências e atas de eventos. Como demonstrado por Morris (2015MORRIS, Aldon. The Scholar Denied. W.E.B. Du Bois and the birth of modern sociology. Berkeley: University of California Press, 2015.), o jurista e economista alemão não somente solicitou que Du Bois escrevesse o artigo para os Archiv (Du Bois, 1909), como também encomendou e leu diversas publicações dele em língua inglesa, incluindo The Souls of Black Folk (1903a) e os artigos “The Conservation of Races” (1897) e “The Evolution of the race problem” (1909). Nos trabalhos lidos por Weber, Du Bois apresentava análises empiricamente fundamentadas acerca da constituição de desigualdades codificadas socialmente, que estabelecem processualmente as categorias constituídas para definir pessoas como membros de coletividades concebidas em termos econômicos (classe), atribuídos à hereditariedade física (raça), e que combinam as duas categorias e as codificam na configuração de diferenças de status cristalizadas e internalizadas subjetivamente (casta).

Ao criticar as leis segregacionistas em 1909:

“Estamos de fato, hoje, repetindo em nosso intercurso entre as raças, todos os males anteriores da injustiça de classe, taxação desigual e rigidez de casta. Nações individuais superaram essas fatalidades ao romper as barreiras horizontais entre as classes. Nós as estamos trazendo de volta ao buscar erigir barreiras verticais entre as raças” (Du Bois, 2006 apudMorris, 2015MORRIS, Aldon. The Scholar Denied. W.E.B. Du Bois and the birth of modern sociology. Berkeley: University of California Press, 2015., p. 164. Tradução nossa)

Foi somente na década seguinte que Weber escreveria seus textos acerca de classes, estamentos e partidos, incluindo reflexões acerca da formação de raças e castas. Esses textos seriam publicados na década de 1940, nos volumes de Economia e Sociedade, compilados por sua viúva Marianne Weber. Os textos de Max Weber foram canonizados como clássicos imprescindíveis para a formação de qualquer cientista social até os dias de hoje. Os escritos de Du Bois, no entanto, foram por décadas suprimidos das leituras obrigatórias de disciplinas formativas.

A sociologia (e a antropologia) que se desenvolveram ao longo do século XX se voltaram para análises de estratificações, mas adotaram também vieses funcionalistas que postulavam a estabilidade como norma, com a ideia de estruturas sociais fixas. Como diria Du Bois ao final de sua vida: “na minha própria sociologia, por causa de uma firme crença em um grupo social em mudança, eu facilmente apreendi a idéia de uma sociedade em mudança, em desenvolvimento, em vez de uma estrutura social fixa” (Du Bois, 1968c, p. 205-6).

A existência de diferentes classes entre a população negra, descrita em termos de uma gradação em O Negro da Filadélfia e reforçada nas pesquisas de Atlanta e nos artigos publicados em 1903 (Souls e Talented Tenth), está em constante tensão com o ambiente social hostil, historicamente constituído, que estabelece uma linha de cor e a utiliza para limitar as oportunidades de ascensão social disponíveis aos classificados como negros. As análises na primeira década do século XX se dão em termos de demonstrar a estratificação, mas acreditando na possibilidade de ascensão pelo mérito, o que Du Bois chamará posteriormente de American assumption,29 29 “The American Assumption was that wealth is mainly the result of its owner’s effort and that any average worker can by thrift become a capitalist” (Du Bois, 1935, p. 186). Em tradução livre: “A Premissa Americana era a de que a riqueza é principalmente o resultado do esforço de seu possuidor e que qualquer trabalhador médio pode se tornar um capitalista por meio da parcimônia". no livro Black Reconstruction in America (1935). Desde seus primeiros trabalhos publicados, no entanto, a linha de cor já aparecia como uma excrecência ilógica na “terra das oportunidades”. Daí a aposta nas pesquisas empíricas que conjugavam estatísticas, contextualização histórica, depoimentos e narrativas de experiências vividas para convencer os leitores da insensatez da linha de cor e sua contradição com os valores constitucionais dos EUA, apostando sempre na possibilidade de mudança social.

Em 1910, W.E.B. Du Bois deixou a Universidade de Atlanta para viver em Nova York e se tornar o editor chefe da revista The Crisis, publicação da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), o principal órgão de defesa da população negra e principal agente da incansável luta contra a enorme onda de linchamentos que assolou o país na primeira década do século XX. Os congressos em Atlanta continuaram até 1914, mas já sem a presença de Du Bois no corpo docente da universidade.

O pesquisador e sociólogo retornou à Universidade de Atlanta em 1934, onde permaneceu até 1944 como catedrático do Departamento de Sociologia, até ser aposentado, contra sua vontade, aos 76 anos. Entre a primeira e a segunda fase em que ele manteve posições profissionais estritamente acadêmicas, o ambiente social dele mudou drasticamente e sua profícua produção bibliográfica gerou diversos escritos políticos e artísticos. Sua perspectiva teórica e visão de mundo também se alteraram, especialmente no que tange ao abandono da crença na American Assumption e na adoção de uma perspectiva marxista combinada ao pan-africanismo como proposta de superação do problema da linha de cor. Apesar das profundas transformações vividas ao longo de um século que testemunhou duas guerras mundiais, diversas revoluções e contrarrevoluções bem como intensificações e transmutações do colonialismo e imperialismo em escala mundial, o problema da linha de cor persiste como fator inextricável para compreender as desigualdades no mundo contemporâneo e os Estudos Sociais de Du Bois conservam seu valor como trabalhos pioneiros a serem desvelados na formação acadêmica de novas gerações.

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  • WRIGHT II, Earl. The First American School of Sociology. W.E.B. Du Bois and the Atlanta Sociological Laboratory. London: Routledge, 2018.
  • 2
    Utilizo o termo Estudo Social e seu plural, Estudos Sociais, com letra maiúscula ao longo do texto, no intuito de ressaltar o termo como uma categoria de relevância conceitual e metodológica, com especificidades a serem destacadas a partir da obra de Du Bois.
  • 3
    No segundo período (1934-1944), ele ocupou o cargo de Chairman do Departamento de Sociologia, de onde fundou o periódico acadêmico Phylon e organizou o primeiro congresso de faculdades negras em 1943.
  • 4
    Os trabalhos coordenados por Du Bois apresentavam um rigor metodológico criterioso e reuniam um grupo de pesquisadores, permitindo-nos considerar, com isso, o Laboratório Sociológico de Atlanta como o lócus de uma escola de pensamento, tal qual apontado por Howard Becker acerca da Escola de Chicago (Becker, 1996BECKER, Howard S. “A Escola de Chicago”. Mana. Estudos de Antropologia Social, vol.2, n. 2, outubro de 1996, PP. 177-188. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200008
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
    ).
  • 5
    Ao longo de sua trajetória, o imbricamento entre vivência pessoal, formação e inovação científica, em constante relação com os dilemas e os desafios políticos das nove décadas de sua vida, representa um processo de amadurecimento que nos permite uma visão mais aprofundada do pensamento sociológico.
  • 6
    Wilberforce foi instituída em Ohio em 1856 e é uma das três universidades para negros fundadas nos Estados Unidos antes da Guerra Civil. As outras duas são: a Lincoln University, na Pensilvânia, em 1854, e a Berea College, em 1855, em Berea, Kentucky. Wilberforce fora fundada por brancos para a educação de negros e comprada pela Igreja Africana em 1863. O estado de Ohio havia sido um dos estados do Norte com grande atuação de abolicionistas (Du Bois, 1900, p. 12).
  • 7
    O College Settlement Movement, liderado por Jane Adams, em Chicago, teve papel pioneiro nos estudos urbanos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Du Bois também contou com a assistência de Isabel Eaton, que era associada ao movimento, em pesquisa sobre o trabalho doméstico na Filadélfia. Inclusive, ele residiu com a esposa, Nina Gomer Du Bois, em uma das casas do College Settlement Movement ao realizar sua pesquisa no Seventh Ward (Deegan, 1988DEEGAN, Mary Jo. W.E.B. Du Bois and the Women of Hull House, 1895-1899. American Sociologist, v. 19, n. 4, p. 301-311, 1988.; Anderson, 1996ANDERSON, Elijah. Introduction to the 1996 Edition by Elijah Anderson. The Philadelphia Negro. A Social Study. The University of Pennsylvania Press,1996.; Castro, 2022CASTRO, Celso. Além do Cânone. Para ampliar e diversificar as Ciências Sociais. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.).
  • 8
    Ver, por exemplo, a análise sobre o “gabinete dos libertos”, no segundo capítulo de As Almas da Gente Negra (Du Bois, 1999).
  • 9
    Pioneiro das surveys urbanas, Charles Booth chefiou equipe de pesquisa que coletou dados nas décadas de 1870 e 1880 e produziu diversos tomos intitulados Life and Labour of the People of London. Suas pesquisas serviram também como inspiração para os Hull House Maps and Papers, produzido por Jane Adams e suas colaboradoras.
  • 10
    Em inglês: 1) poor, 2) poor to fair, 3) comfortable e 4) good circumstances. As categorias usadas por Du Bois diferem em pouco das de Booth, que eram 1) very poor, 2) poor, 3) comfortable e 4) middle class & above. É interessante notar que Du Bois evita utilizar o termo “classe média e acima” para se referir ao que ele também denomina como “a melhor classe” dos negros. Isso se deve às barreiras estabelecidas pela linha de cor, que limitavam as oportunidades de ascensão social dos negros. Ver tabela na p. 199 em Du Bois (2023).
  • 11
    “Grau 1. Famílias de respeitabilidade indubitável que ganham renda suficiente para viver bem, não se envolvem em qualquer forma de serviço subalterno, a esposa não está envolvida em nenhuma ocupação salvo a de dona de casa, com exceção de alguns casos em que ela tinha emprego especial em casa. As crianças não são compelidas a trabalhar pelo sustento, mas estão na escola; a família vive em um lar bem cuidado. Grau 2. A respeitável classe trabalhadora (...). As crianças menores, na escola. Grau 3. Os pobres; pessoas que não ganham o suficiente para manter-se sempre acima da necessidade; honestas, embora nem sempre enérgicas ou parcimoniosas, e sem nenhum toque de imoralidade grosseira ou crime. Incluindo os muito pobres e os pobres. Grau 4. A classe mais baixa de criminosos, prostitutas e vagabundos; o ‘décimo submerso’” (Du Bois, 2023, p. 325).
  • 12
    Para um panorama acerca das concepções de raça nos trabalhos de Du Bois, ver Liss (1998LISS, Julia E. “Diasporic Identities: The Science and Politics of Race in the Work of Franz Boas and W. E. B. Du Bois, 1894-1919”. Cultural Anthropology, v. 13, Issue 2, p. 127-166, May 1998.), Jesus (2021JESUS, Matheus Gato. “W. E. B. Du Bois e a sociologia moderna”. Nexo Jornal, Nexo Políticas Públicas, 04 nov. 2021.), Morris (2015MORRIS, Aldon. The Scholar Denied. W.E.B. Du Bois and the birth of modern sociology. Berkeley: University of California Press, 2015.).
  • 13
    Significado em grego da palavra Filadélfia.
  • 14
    A querela entre Du Bois e Booker T. Washington é um importante capítulo da trajetória do autor e explica, em larga medida, seu apagamento acadêmico do Laboratório de Atlanta e de seus trabalhos, conforme bem documentado por ele próprio (Du Bois, 1968c) e por Morris (2015MORRIS, Aldon. The Scholar Denied. W.E.B. Du Bois and the birth of modern sociology. Berkeley: University of California Press, 2015.). Neste artigo, escolhemos lidar com as pesquisas empíricas que Du Bois denominou de Estudos Sociais e suas contribuições pioneiras para as Ciências Sociais.
  • 15
    Du Bois usará o termo casta em diversas ocasiões, tanto em publicações acadêmicas quanto em escritos políticos, sem definir explicitamente o conceito. Não obstante, o termo sempre aparece para designar um grupo que, historicamente, foi alvo de codificações restritivas que impuseram barreiras à mobilidade social. Assim, ele, desde seus primeiros escritos, historiciza a formação de uma classificação racial nos Estados Unidos e desnaturaliza o lugar atribuído ao negro na estrutura social estadunidense vigente à época.
  • 16
    Segundo trecho da declaração da independência dos EUA, escrita por Thomas Jefferson em 1776.
  • 17
    A cidade da Filadélfia fora fundada por membros do grupo cristão Quaker, também chamado “Sociedade dos Amigos”.
  • 18
    Além de The Philadelphia Negro, Du Bois publicara, em 1896, o livro de 335 páginas intitulado The Suppression of the African Slave Trade to the United States of America, 1638-1870, fruto de sua pesquisa de doutorado, que inaugurava uma série de publicações históricas de Harvard (Du Bois, 1896).
  • 19
    Os congressos de Tuskegee reuniam, desde 1892, principalmente fazendeiros negros para discutir o progresso da raça. Entre 1898 e 1912, realizaram-se encontros de lideranças negras em Hampton, no estado da Virgínia, seguindo os moldes dos encontros de Tuskegee, no Alabama.
  • 20
    Lafayette Hershaw, intelectual de ascendência negra, branca e indígena, interessado em pesquisa com negros urbanos, cuja pesquisa acerca da mortalidade excessiva de negros foi importante contribuição para o terceiro congresso de Atlanta.
  • 21
    Os títulos originais dos dois primeiros encontros e das respectivas publicações feitas pela Universidade de Atlanta são: 1) “Mortality Among Negroes in Cities. Proceedings of the Conference for Investigation of City Problems” e 2) “Social and Physical Conditions of Negroes in Cities. Proceedings of the Second Conference for the Study of Problems Concerning Negro City Life”.
  • 22
    Ele fala em “comunismo das florestas africanas” e da “vida clânica de parentes de sangue” e como essas características sociais foram destruídas pela vida da plantation (Du Bois, 1898a, p. 48).
  • 23
    O relatório apresenta os resultados tabulados das respostas aos questionários, bem como dados de registros de empresas e depoimentos pessoais de empresários narrando suas trajetórias e desafios.
  • 24
    Frase contida na epígrafe do presente artigo.
  • 25
    Du Bois estranharia posteriormente essa crença na meritocracia ao identificar e criticar a noção de “American assumption” em Black Recontruction (Du Bois, 1935).
  • 26
    Ele mesmo coordenaria o The Crisis na década seguinte, publicação periódica da NAACP, que se enquadrava exatamente nessa descrição.
  • 27
    Vejamos os temas de cada um dos congressos organizados por Du Bois: 3º - “Alguns esforços dos Negros Americanos para o Melhoramento Social” (1898) ; 4º - “O Negro nos Negócios” (1899); 5º - “O Negro com formação universitária” (1900); 6º - “A Escola Negra Comum” (1901); 7º - “O Artesão Negro” (1902); 8º - “A Igreja Negra” (1903); 9º - “Algumas notas sobre a criminalidade Negra” (1904); 10º - “Uma bibliografia seleta do Americano Negro” (1905); 11º - “A saúde e o físico do Negro Americano” (1906); 12º - “Cooperação econômica entre Americanos Negros (1907); 13º - “A Família Americana Negra” (1908); 14º - Esforços para o melhoramento social entre Americanos Negros” (1909); 15º - “O Americano Negro com formação universitária” (1910); 16º - “A Escola Comum e o Americano Negro” (1911); 17º - “O Artesão Americano Negro” (1912); 18º - “Morais e Modos entre Americanos Negros” (1913).
  • 28
    É importante dizer que Du Bois não faz referência ao sistema de castas indiano - utiliza o termo ao se referir à situação estamental europeia. Não há uma definição explícita do conceito de casta na obra de Du Bois, mas ele utiliza o termo em diversas ocasiões para demonstrar o processo histórico de enrijecimento da classificação racial nos EUA, por meio de legislações como os “black codes” dos estados do Sul (Du Bois, 1903a, 1909, 1935). Assim, o termo “casta”, na obra de Du Bois, faz alusões a posições sociais de sistemas hierarquizados em que se impede a mobilidade social de determinados segmentos por sua condição de nascimento, como no caso dos estamentos medievais europeus. No caso histórico dos EUA, no entanto, há um processo de intensificação de noções atribuídas a cor para classificar determinadas pessoas, que passam a ser alvo de códigos que as impedem de participar plenamente das oportunidades de ascensão social idealizadas, segundo a American Assumption, como disponíveis a todos os indivíduos.
  • 29
    “The American Assumption was that wealth is mainly the result of its owner’s effort and that any average worker can by thrift become a capitalist” (Du Bois, 1935, p. 186). Em tradução livre: “A Premissa Americana era a de que a riqueza é principalmente o resultado do esforço de seu possuidor e que qualquer trabalhador médio pode se tornar um capitalista por meio da parcimônia".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2023
  • Aceito
    24 Maio 2024
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