Resumo
Planejada para ser a representação da modernidade brasileira, Brasília - a “cidade mais moderna do Brasil” - foi construída com base em um modelo específico de controle populacional e de segregação sociorracial. Neste artigo, produto de pesquisa realizada entre 2017-2019, buscamos traçar relações entre dados produzidos pela Polícia Civil do DF, referentes às prisões em flagrante e mortes em decorrência de intervenção policial, e dados obtidos mediante a realização de entrevistas com oficiais negros da Polícia Militar do DF. Por um lado, questionamos a “supressão de conhecimento” estatístico acerca da raça/cor das pessoas presas em flagrante por parte das instituições de segurança pública; por outro, refletimos sobre as narrativas de policiais negros acerca do racismo em suas experiências dentro e fora da PM. Por fim, buscamos entender o papel da polícia na produção e na manutenção de fronteiras invisíveis que colaboram com a permanência das dinâmicas de segregação sociorracial no DF.
Palavras-chave:
Policiamento; Segurança Pública; Racismo; Distrito Federal; Segregação
Abstract
Planned to be the representation of Brazilian modernity, Brasília - the “most modern city in Brazil” - was built based on a specific model of population control and social-racial segregation. In this article, a product of research conducted between 2017-2019, we seek to trace relationships between data produced by PCDF, related to arrests and deaths resulting from police intervention, with data obtained through interviews with black officers of PMDF. On one hand, we question the statistical “knowledge suppression” regarding the race/color of those arrested in the act by public security institutions in DF; on the other hand, we reflect on the narratives of black police officers about racism in their practices and experiences inside and outside of PMDF. Finally, we seek to understand the role of the police in the production and maintenance of invisible borders that collaborate with the perpetuation of socio-racial segregation dynamics in DF.
Keywords:
policing; public security; racism; Distrito Federal; segregation
Introdução: A “cidade mais moderna do Brasil”
deste império cerratense, desta solidão, deste
palácio que em breve se transformará em
ruínas, lanço meu olhar cansado mais uma
vez sobre os escombros do meu país e
antevejo uma alvorada que não chega nunca,
com uma raiva danada e uma desconfiança
enorme no eterno país do futuro
Nicolas Behr
Brasília, a “cidade mais moderna do Brasil5 5 Até janeiro de 2019, a viajante que chegasse a Brasília, pelo aeroporto, era saudada por um outdoor que informava “Bem vindos à cidade mais moderna do Brasil”. A placa foi trocada no início do governo de Jair Bolsonaro por outra com conteúdo ufanista. ”, é um marco importante do desenvolvimento urbano brasileiro. Planejada para ser edificada no Planalto Central desde a virada do século XIX para o século XX, construída em apenas três anos no final da década de 1950, e inaugurada em 21 de abril de 1960, Brasília foi desenhada para simbolizar a “ordem e o progresso” brasileiros. Desejada enquanto monumento da modernidade brasileira e destinada a sediar os poderes da República, a cidade assombra tanto pela arquitetura e pelo urbanismo singulares, reconhecidos como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1987, quanto pela maneira como o progresso sonhado concretizou, no Distrito Federal, desigualdades fundacionais da sociedade brasileira.
Neste artigo, partimos da constatação de que o policiamento, dispositivo de gestão de territórios e de populações6 6 Neste caso, o conceito foucaultiano de governamentalidade nos parece fundamental, na medida em que, nas palavras do autor, pode ser definido como “conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros -soberania, disciplina - e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes” (2008, p. 143). (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.), do Distrito Federal constitui um caso interessante para refletirmos sobre o Brasil, na medida em que nos permite observar dinâmicas que territorializam a segregação sociorracial na cidade planejada para representar a modernidade brasileira. Partindo do conhecimento produzido por agentes de segurança pública, buscamos identificar as representações, os sentidos e os significados atribuídos a essa segregação.
Os dados que subsidiaram nossas reflexões foram coletados e sistematizados no contexto de realização da etapa do Distrito Federal da pesquisa “Policiamento Ostensivo e Relações Raciais”7 7 Os resultados da pesquisa podem ser acessados no livro “Policiamento ostensivo e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime". 1. ed. Rio de Janeiro: Autografia/INCT-InEAC, 2021. v. 1. 420p.”, organizado por Jacqueline Sinhoretto. , coordenada pela professora Jacqueline Sinhoretto (UFSCAR), com o apoio do CNPq, entre 2017 e 2019, da qual as (os) autoras (es) deste artigo participaram8 8 Agradecemos especialmente às colegas Marina Carvalho Paz (2022) e Andresa Sena (2021), pela disponibilização do material empírico de suas dissertações de mestrado; aos pesquisadores-policiais Gilvan Gomes da Silva e Cyntia Cristina Carvalho e Silva, que facilitaram o diálogo e o acesso aos dados da PMDF e da PCDF, respectivamente; e a leitura atenta da(o) parecerista responsável pela revisão do artigo para a revista Sociedade e Estado, cujas observações e sugestões generosas foram fundamentais para o amadurecimento das reflexões que apresentamos neste artigo. .
O texto se divide em quatro partes. Na primeira, apresentamos conceitos e reflexões relacionados ao debate sobre a modernidade brasileira, caracterizada pelo mito da democracia racial, e a maneira como essa ideologia produz sentidos e significados para a atividade de policiamento, dissimulando a segregação sociorracial em segurança pública. Na segunda parte, abordamos as dinâmicas de visibilidade e invisibilidade da questão racial no policiamento e na gestão de territórios e populações no Distrito Federal a partir dos dados estatísticos, produzidos e disponibilizados pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), que informam uma década de dados (2008 a 2017) a respeito de flagrantes registrados pela autoridade policial e de “mortes em decorrência de intervenção policial”. Na terceira parte, apresentamos o conteúdo de entrevistas realizadas com cinco policiais negros, três homens e duas mulheres, membros do corpo de oficiais da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), que nos ajudam a entender um pouco melhor os fenômenos evidenciados pelos dados quantitativos. Por fim, na última parte, sistematizamos nossas conclusões acerca do papel do policiamento público na produção e na reprodução de uma cidade (e de uma modernidade) modelada pela segregação racial.
1. A cidade sem muros: a democracia racial e uma modernidade de desejos dissimulados
Segundo Bruno Latour, “quando as palavras ‘moderno’, ‘modernização’ e ‘modernidade’ aparecem, definimos, por contraste, um passado arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada em meio a uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e perdedores, os Antigos e os Modernos” (Latour, 1994, p. 15). Quando abordamos Brasília enquanto “a cidade mais moderna do Brasil”, o que estamos assinalando é a maneira como a construção da cidade demonstra esforços orientados para o estabelecimento de um marco monumental que simbolizaria a superação do subdesenvolvimento e, também, das representações atreladas ao passado colonial e escravocrata, inscrevendo, na cidade, os valores que conduziriam o país em direção a um futuro desejado. Nesse sentido, é interessante observar que a ideia de deslocar a capital do país para o Planalto Central já estava inscrita na primeira constituição republicana do Brasil, a de 1891.
No que se refere à construção de cidades em territórios coloniais, ou seja, as cidades “antigas” do Brasil, Angel Rama (1998RAMA, Angel. La Ciudad Letrada. Montevideo: Arca, 1998.), em Ciudades Letradas, observa que as cidades latino-americanas foram uma espécie de transplante da experiência social europeia. Isso significa que, muito diferente do resultado orgânico de uma cultura nativa, as nossas cidades foram implantadas como fortalezas dedicadas à proteção de uma elite estrangeira contra povos e culturas cuja pretensa “selvageria” legitimava um regime de dominação, exploração e violação. Segundo o autor:
Más que fabulosa conquista, quedó certificado el triunfo de las ciudades sobre un inmenso y desconocido territorio, reiterando la concepción griega que oponía la polis civilizada a la barbarie de los no urbanizados.
[...] Las ciudades de la desenfrenada conquista no fueron meras factorías. Eran ciudades para quedarse y por lo tanto focos de progresiva colonización. Por largo tiempo, sin embargo, no pudieron ser otra cosa que fuertes, más defensivos que ofensivos, recintos amurallados dentro de los cuales se destilaba el espíritu de la polis y se ideologizaba sin tasa el superior destino civilizador que le había sido asignado (Rama, 1998RAMA, Angel. La Ciudad Letrada. Montevideo: Arca, 1998., p. 25-27).9 9 Mais do que uma conquista fabulosa, certificou-se o triunfo das cidades sobre um território imenso e desconhecido, reiterando a concepção grega que opunha a pólis civilizada à barbárie da desurbanizada. [...] As cidades da conquista desenfreada não eram meras fábricas. Eram cidades para ficar e, portanto, centros de colonização progressiva. Por muito tempo, no entanto, elas não podiam ser outra coisa senão fortalezas, mais defensivas do que ofensivas, recintos murados dentro dos quais o espírito da pólis era destilado e o destino civilizatório superior que lhe havia sido atribuído era ideologizado sem reservas (Rama, 1998, p. 25-27, tradução nossa).
Tendo como objetivo demarcar a modernidade brasileira, Brasília é construída como uma espécie de antítese dessas cidades antigas, tidas como arremedos da metrópole, sobretudo, de nossas antigas capitais, Salvador e Rio de Janeiro, cidades litorâneas profundamente vinculadas à colonização e ao tráfico de pessoas escravizadas.
A construção de uma nova capital, cravada no centro do país, que refletiria, segundo o slogan de Juscelino Kubitschek, presidente responsável por sua construção, “50 anos de progresso em 5”, estava vinculada ao imaginário do nacional desenvolvimentismo brasileiro da primeira metade do século XX, mais especificamente, a construção de Brasília integrou um projeto de engenharia nacional que se dedicou a organizar desigualdades, fabricando uma identidade nacional, ou seja, produzindo imagens e sentidos “genuinamente” brasileiros sobre a construção social e histórica da sociedade brasileira.
Ainda que esse projeto de engenharia nacional tenha tomado corpo de maneira mais sistemática e evidente ao longo do século XX, o pensamento social brasileiro, na virada do século XIX para o século XX, já se dedicava à produção de interpretações capazes de transformar a incômoda representação do Brasil enquanto uma nação condenada pela miscigenação. Segundo Lilia Schwarcz:
Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativos à substituição da mão de obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania.
É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenças sociais. Mas a adoção dessas teorias não podia ser tão imediata nesse contexto. De um lado, esses modelos pareciam justificar cientificamente organizações e hierarquias tradicionais que pela primeira vez - com o final da escravidão - começavam a ser publicamente colocadas em questão. De outro lado, porém, devido à sua interpretação pessimista de mestiçagem, tais teorias acabavam por inviabilizar um projeto nacional que mal começara a se montar (Schwarcz, 2017SCHWARCZ, Lilian. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870 - 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 24).
Por sua vez, durante todo o século XX, essa identidade nacional que buscava reescrever a história brasileira, colonial e escravocrata, esteve ancorada na ideia de democracia racial. Tendo como marco a interpretação proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, publicado pela primeira vez em 1933, o mito da democracia racial é uma narrativa que foi amplamente difundida e que representa a mestiçagem enquanto triunfo civilizacional brasileiro. Segundo Munanga:
Em outras palavras, ao transformar a mestiçagem num valor positivo e não negativo sob o aspecto da degenerescência, o autor de Casa Grande e Senzala permitiu completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Freyre consolida o mito originário da sociedade brasileira configurada num triângulo cujos vértices são as raças negra, branca e índia. Foi assim que surgiram as misturas. As três raças trouxeram também suas heranças culturais paralelamente aos cruzamentos raciais, o que deu origem a uma outra mestiçagem no campo cultural. Da ideia dessa dupla mistura, brotou, lentamente, o mito da democracia racial: “somos uma democracia porque a mistura gerou um povo sem barreira, sem preconceito” (Munanga, 2019MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo A Mestiçagem no Brasil. Identidade Nacional Versus Identidade Negra. 5ª ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 77).
Ainda de acordo com Munanga, ao exaltar a mestiçagem como evidência de uma tolerância inerente à cultura brasileira, o mito da democracia racial permitia às elites dominantes dissimularem desigualdades fundacionais (2019, p. 77):
Ou seja, encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são “expropriadas”, “dominadas” e “convertidas” em símbolos nacionais pelas elites dirigentes. Parafraseando Renato Ortiz, os elementos da mestiçagem contêm justamente os traços que naturalmente definem a identidade brasileira: unidade na diversidade. [...] A ideologia do sincretismo exprime um universo isento de contradições, uma vez que a síntese oriunda do contato cultural transcende as divergências reais que porventura possam existir (Munanga, 2019MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo A Mestiçagem no Brasil. Identidade Nacional Versus Identidade Negra. 5ª ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 77-78).
Vale sublinhar que o mito da democracia racial apresenta a mestiçagem10 10 A miscigenação é um fenômeno recorrente de variação biológica, produzido pela reprodução de indivíduos de origens étnicas diferentes; por sua vez, a ideia de mestiçagem referencia uma estratificação social em que a miscigenação se encontra acompanhada de dinâmicas de aculturação de indivíduos miscigenados. brasileira, isto é, as estratificações sociorraciais que estruturam nossa sociedade, como conquista civilizacional, mistificando, dessa forma, as desigualdades e a violência colonial escravocrata.
Assim como Teresa Caldeira (2000CALDEIRA, Teresa. Cidade de Muros: crime, segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.), em Cidade de Muros, tomamos como referência a ideia de que a modernidade não é fenômeno composto por instituições, práticas e sentidos rígidos ou homogêneos. Ainda que possamos observar semelhanças e um repertório compartilhado que caracteriza o mundo moderno como, por exemplo, o que chamamos de cidadania, estado-nação, população ou democracia, cada sociedade emprega tais noções de maneira distinta, produzindo, assim, diferentes versões do que significa o “moderno”. Como observamos acima, a modernidade brasileira se caracteriza, sobretudo, pelo esforço de manutenção das hierarquias herdadas da colonização e da escravização a partir de representações nacionais capazes de dissimular a dominação e a exploração racial, ou seja, a partir dos sentidos oriundos do mito da democracia racial.
No que se relaciona à Brasília, o plano urbanístico original é o “Plano Piloto”, de Lucio Costa com o traçado arquitetônico de Oscar Niemeyer. Além de ser o local em que se encontram as sedes dos três poderes, é também a residência da elite da burocracia estatal; ao seu redor e concomitantemente, foram sendo construídas “cidades-satélites”, as quais abrigavam trabalhadoras, trabalhadores e suas famílias que se deslocaram para o Planalto Central para a construção da nova capital. Mais recentemente, em 1998, um decreto distrital11 11 11 Decreto n. 19.040/1998. proibiu a utilização do termo “cidade-satélite” para se referir aos territórios do Distrito Federal, adotando, oficialmente, a nomenclatura “Regiões Administrativas”.
Atualmente, o Distrito Federal encontra-se dividido em 35 Regiões Administrativas e conta com uma população de 2.817.381 pessoas (IBGE, 2022). Vale destacar que, para além das fronteiras do quadrilátero, 12 municípios goianos limítrofes ou próximos compõem a Periferia Metropolitana de Brasília (PMB). Esses municípios contam com população estimada de 1.271.641 milhão de habitantes (IBGE, 2022) e possuem relações relevantes de natureza socioeconômica com o DF, em termos de fluxo migratório, acesso ao trabalho, utilização dos serviços públicos de saúde e de educação, entre tantos outros aspectos. Das 27 Unidades da Federação (UFs), o Distrito Federal possui o maior IDH; ao mesmo tempo em que aparece, em pesquisa realizada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE (2018), como “a cidade mais segregada” dentre as cidades de diversos países que foram analisadas12 12 O relatório analisa o fenômeno de “income segregation”, vinculado ao desenvolvimento urbano, em que as pessoas escolhem um lugar para viver de acordo com seus recursos, mas também considerando similaridades culturais, socioeconômicas e raciais com as pessoas que habitam determinado território. Dentre todas as cidades analisadas, Brasília se destacou como a cidade mais segregada. . Outra singularidade do DF é o fato de ser ao mesmo tempo estado e município (Szklarowskt, 2001), trazendo uma complexidade a mais para a administração pública, incluindo sua forma de administrar suas polícias.
No Distrito Federal, a gestão da desigualdade socioeconômica materializou uma segregação territorial racial evidente. Segundo dados do Censo, negros e negras compõem 55,5% da população brasileira e 59,4% da população do DF (IBGE, 2022); já no que se refere à população da PMB, 83% dela é negra (CODEPLAN, 2021). O Mapa 1, a seguir, reflete a distribuição de brancos, pardos e pretos no Distrito Federal, segundo dados do censo de 2010, associando raça e renda.
Como o mapa nos permite observar, a “cidade mais moderna do Brasil” encontra-se dividida entre regiões centrais, que concentram renda e população branca, e regiões periféricas, ocupadas pela população negra e com uma faixa salarial menor. Uma vez que a população da PMB é majoritariamente negra e possui uma renda domiciliar média de 2,48 salários mínimos (CODEPLAN, 2021), é possível aventar a hipótese de que a lógica de segregação sociorracial, evidenciada pelo mapa acima, mantém-se quando agregamos os municípios da PMB ao DF.
Ao observar as transformações urbanas que ocorreram em São Paulo durante o século XX, sobretudo o que Caldeira denomina como enclaves fortificados, os condomínios fechados, a autora afirma que “o novo padrão de segregação espacial mina os valores de acessibilidade, liberdade de circulação e igualdade que inspiraram o tipo moderno de espaço público urbano e o substitui por um novo tipo de público que tem a desigualdade, a separação e o controle de fronteiras como valores estruturantes” (Caldeira, 2000, p. 13).
Ao tomarmos Brasília como objeto de análise, observamos aspectos contraditórios. Diferente de São Paulo, uma “cidade de muros”, o projeto urbanístico do Plano Piloto investe, justamente, na ausência de muros, no que poderíamos denominar aqui como cidade sem muros. Mais regra do que exceção, o Plano Piloto é descrito, por visitantes, por meio da analogia “uma cidade-condomínio”13 13 Aqui usamos “Cidade-Condomínio” no sentido das percepções dos/as visitantes e/ou moradores que veem na organização e homogeneização do que estamos chamando de cidade sem muros algo que remeteria a um condomínio de classes médias altas. Sobre o debate acerca dos chamados condomínios horizontais, como estratégia de expansão de Brasília para além de sua cidade tombada, vale conferir as contribuições de Moura (2010) para o tema. . Brasília é repleta de árvores, sem esquinas e com ruas cujos nomes lembram coordenadas geográficas; no Plano Piloto, os olhos podem, a todo tempo, encontrar a linha do horizonte. Porém, como o mapa de distribuição racial e de renda demonstra, isto não significa que o espaço público tenha abandonado a desigualdade, a separação e o controle de fronteiras como valores estruturantes.
Há, no Distrito Federal, todo um conjunto de outras tecnologias e ferramentas que possibilitaram que a segregação fosse territorializada de maneira eficiente. Assim como o mito da democracia racial assume a mestiçagem como elemento dissimulador das desigualdades e da segregação, o Plano Piloto parece investir na ausência de muros, símbolo máximo do controle de fronteiras, como elemento capaz de dissimular a segregação e a desigualdade. No DF, são muitas as tecnologias e ferramentas acionadas para efetivar a segregação sociorracial, como, por exemplo, um transporte público caro e precarizado14, os valores exorbitantes cobrados para habitar o Plano Piloto e suas adjacências centrais e, o que nos interessa neste artigo, as atividades de policiamento público.
Assim sendo, entendemos que uma das formas de olhar para a realidade brasiliense é através das “lentes da polícia” (Caruso, 2016CARUSO, Haydée. Entre ruas, becos e esquinas: a construção da ordem na Lapa Carioca. Brasília: Ed. UnB, 2016.), a partir de sua ação cotidiana de manutenção da ordem em diferentes territórios, com distintos públicos que vivem, circulam e/ou trabalham no DF. Nesse caso, a polícia, entendida aqui como um corpo especializado de funcionários, faz-se presente diuturnamente em quadras, entrequadras, eixos, blocos, setores habitacionais e comerciais, “condomínios” e “invasões” que formam - em termos geográficos e simbólicos - o tecido urbano desta que é uma cidade sui generis. Compreender o que a polícia faz e diz que faz no exercício do seu modo de policiar a cidade foi tomado como o fio condutor para pensar “lógicas que norteiam a definição e aplicação do policiamento público em contextos urbanos, marcados por disputas políticas e simbólicas que ora reiteram princípios igualitários, ora hierárquicos e produtores de desigualdades entre os indivíduos” (Caruso, 2016, p. 270).
2. Visibilidade e invisibilidade da questão racial no policiamento
Entre os diversos marcadores que estruturam as relações sociais, a raça/cor dos indivíduos é um dos aspectos mais relevantes para entender a sociedade brasileira. Durante quatro séculos, a escravização modelou a sociedade brasileira a partir de argumentos raciais que negavam a humanidade de pessoas escravizadas e seus descendentes. Conforme já observamos, a modernização das instituições e da sociedade brasileira implicou o desenvolvimento de estratégias de preservação de privilégios raciais da população branca e de mestiços embranquecidos que dissimulassem a centralidade da dominação racial, cuja síntese mais sofisticada encontra-se representada no mito da democracia racial. As instituições de segurança pública fazem parte dessas estratégias, sobretudo, pela função delegada a esses profissionais na prática do uso da força.
Nesta seção, procuramos evidenciar como esse jogo complexo ganha forma no cotidiano policial dos diversos territórios que compõem o DF, a partir da análise de tensões observadas entre as funções preventivas e repressivas do policiamento; da produção de um tipo ideal de suspeito no Distrito Federal; e, por fim, das tensões produzidas pela presença de corpos negros na cadeia de comando da PMDF.
2.1 Cotidiano e atuação policial
Apesar de Brasília ter sido construída na década de 1950, a PMDF reconhece sua origem histórica desde a chegada da Guarda Real no Rio de Janeiro em 1809. No entanto, sua estrutura originária remete à criação da Guarda Especial de Brasília (GEB)15 15 A GEB era reconhecida por sua truculência. Corre, no Distrito Federal, a história do “Massacre da GEB”, quando, no carnaval de 1959, operários que construíam a cidade reclamaram da distribuição de comida estragada servida pela empresa Pacheco Dantas Fernandes. Ao ser acionada, a GEB invadiu o acampamento. Registros oficiais contam apenas uma morte, porém, testemunhas relatam que saíram, do acampamento, caminhões repletos de cadáveres. , que se constituiu durante a construção de Brasília, formada pelos operários com maior estatura física e pelo efetivo da Polícia Militar da Guanabara. Até 1996, os oficiais da PMDF eram formados pelo Exército Brasileiro.
Em termos orçamentários, o DF tem um benefício em relação às demais Unidades Federativas (UFs), uma vez que conta com o Fundo Constitucional Federal, determinado pela Constituição Federal em seu Artigo 21, que apoia os serviços públicos locais e que alcançou, em 2022, o montante de mais de R$ 15 bilhões, sendo executados, apenas, para as polícias Civil e Militar do DF, o que correspondeu a 38% do total desse fundo. Assim, é possível afirmar que a “polícia mais moderna” do Brasil tem estrutura e condições objetivas de trabalho superiores à realidade de outras UFs.
Durante a pesquisa, o policiamento ostensivo foi descrito pelos oficiais entrevistados de maneira muito semelhante, o que parece apontar para uma coesão de valores desse grupo profissional na reprodução de um “dever ser” acerca das funções sociais do policiamento ostensivo. Segundo os/as entrevistados/as, o principal objetivo é “a sensação de segurança produzida pela circulação de policiais fardados e suas viaturas nos territórios”. A ostensividade que marca o policiamento realizado pela Polícia Militar significa, para as pessoas entrevistadas, ser visto. Ou seja, nessa teoria nativa, o objetivo do policiamento ostensivo diz mais respeito à prevenção do que à dissuasão e repressão de crimes. A circulação de policiais e viaturas pelos territórios demonstraria a presença de agentes de segurança pública e, consequentemente, inibiria a prática de crimes. Portanto, o discurso institucional presente na fala dos/as entrevistados/as coaduna com o ideal de polícia ostensiva voltada à prevenção dos atos criminosos, estando, assim, restrita a seu papel constitucional.
Outro fator importante relacionado ao policiamento ostensivo apontado pelas pessoas entrevistadas diz respeito às métricas de avaliação de suas atividades. Uma observação reiterada nas entrevistas refere-se à incapacidade das métricas de avaliação, usualmente empregadas, de enquadrar os resultados do policiamento ostensivo bem realizado. Dito isso, uma vez que o objetivo do policiamento ostensivo é a prevenção, num modelo de tipo ideal, quando o policiamento ostensivo é bem realizado, não implica, necessariamente, na apreensão de armas, drogas, nem tampouco na abordagem de suspeitos e/ou na diminuição das taxas de homicídio e de crimes contra o patrimônio. Dizia-nos uma das oficiais entrevistadas: “Se eu não tenho nenhuma ocorrência na área, é produtividade ou não?”. Desse modo, as métricas de avaliação empregadas privilegiam atividades de repressão em prejuízo das de prevenção. Nossos/as interlocutores/as tinham clareza dessa ambiguidade.
Nas entrevistas, encontramos uma primeira tensão entre objetivo e resultados do policiamento ostensivo; ao mesmo tempo em que o objetivo do policiamento ostensivo é dar visibilidade à presença estatal, ao serem traduzidos em métricas estatísticas, os resultados do policiamento ostensivo são, muitas vezes, invisibilizados e/ou falseados, uma vez que os indicadores de desempenho policial não traduzem todas as atividades desses profissionais e criam uma pressão para um determinado tipo de atuação, mais focada na produção de prisões em flagrante e de apreensões. Tal tensão se manifesta em avaliações que privilegiam atividades de repressão em prejuízo das de prevenção e ganha outra camada de profundidade dado que, de acordo com um dos oficiais entrevistados, como o efetivo da Polícia Militar é insuficiente, são, justamente, os dados estatísticos que determinam onde o policiamento ostensivo deverá ser empregado. Em resumo, apesar de ser caracterizado por sua capacidade de prevenção, o policiamento ostensivo é avaliado e empregado em função de suas atividades de repressão.
As ambiguidades apontadas pelos interlocutores da pesquisa em relação ao objetivo do policiamento ostensivo e a chamada “produtividade policial” têm sido tratadas nos estudos empreendidos por Albernaz (2015aALBERNAZ, Elizabete. “Sobre legitimidade, produtividade e imprevisibilidade: seletividade policial e a reprodução da ordem social no plano de uma certa ‘política do cotidiano’”. Confluências, Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, v. 17, n. 2, p. 86-99, 2015a.; 2015b; 2020) quando a autora analisa como se constroem as prioridades para a ação da polícia e as lógicas em torno da produtividade policial. Ela chama atenção que, no caso das polícias militares, é muito comum ver suas ações voltadas às periferias, locais de baixa visibilidade social e contra sujeitos sociais lidos como dotados de direitos precários, cujas violações, porventura cometidas, não trariam grandes consequências disciplinares, tampouco exposição pública para os seus agentes. Albernaz aponta em seus estudos, portanto, que há, nesses contextos socioespaciais, alto rendimento produtivo para a polícia, visto que a prisão de pessoas e a apreensão de drogas, armas e munições podem ser convertidas em condições de trabalho, traduzidas em melhores escalas e privilégios de várias ordens, além de prestígio junto aos superiores hierárquicos e seus pares, bem como uma forma “rápida” de prestação de contas baseada em estatísticas produzidas pela própria polícia do que ela diz que faz.
Quando passamos a explorar os dados dos flagrantes apresentados à autoridade policial, fornecidos pela PCDF, vemos primeiramente que, em 62,5% dos casos, eles são conduzidos pela PMDF e, em 12,7% dos casos, pela própria PCDF. Portanto, a dinâmica dos fatos criminais apurados pela polícia judiciária é oriunda, em uma quantidade expressiva, do trabalho da polícia ostensiva, e, consequentemente, esse é um dos principais fluxos de tramitação dos procedimentos que poderão gerar algum tipo de punição pelo Estado, que dará ou não prosseguimento àquela ocorrência em relação aos fatos apresentados.
No que diz respeito à natureza dos flagrantes registrados, a Tabela 1 abaixo traduz os dez tipos mais recorrentes, que representam quase 80% do total registrado pela PCDF no período analisado, entre os anos de 2008 e 2017.
O item com maior incidência, “Crimes diversos”, chama atenção por ser uma categoria que abarca outras tipificações. Isso pode revelar a diversidade de flagrantes que chegam à polícia judiciária e a dificuldade de estabelecer uma categorização das informações que traduzam o universo diverso da realidade policial.
Ao observarmos a distribuição territorial dos flagrantes, verifica-se que quase a metade dos registros (49%) estão concentrados em cinco Regiões Administrativas, como demonstra o mapa abaixo (Mapa 2):
As tabelas seguintes (Tabelas 2, 3, 4, 5 e 6) apresentam os cinco tipos criminais mais registrados em flagrante, justamente nessas cinco localidades:
Ao analisar de forma comparada as cinco principais tipificações criminais registradas em flagrante por localidade, notamos que três delas - “crimes diversos (outros)”, “ameaça ou injúria” e “uso e porte de drogas” - aparecem nas cincos regiões administrativas observadas (Tabelas 2, 3, 4, 5 e 6), assim como em todo o DF (Tabela 1). Para além desses pontos de convergência estatística, notam-se diferenças passíveis de uma análise mais minuciosa.
No que tange a categoria “crimes diversos (outros)”, observa-se que essa ocupa a primeira colocação no DF como um todo e em quatro das RAs observadas, excetuando Brasília (em segunda posição), indicando que Brasília (Plano Piloto) focaliza suas ações na repressão ao uso ou porte de drogas, totalizando mais de 20% das ocorrências, isto é, 1/5 da sua “produção”; e que nas demais RAs, lidas como periféricas, aquilo que não tem uma categoria própria e entra no mundo dos crimes diversos ganha proeminência e aparece em primeiro lugar nos registros em flagrante.
Em relação aos demais tipos, observamos que a tipificação criminal “roubo” se encontra entre as cinco primeiras em todo o DF e em quatro das cinco RAs observadas, excetuando em Brasília, onde a categoria “furto” aparece 4,4 pontos percentuais acima da média do DF (6%). Podemos inferir disto que o registro de subtração do patrimônio com ameaça ou uso de violência (roubo) tende a ocorrer mais nas RAs consideradas periféricas, enquanto os de subtração do patrimônio sem ameaça ou uso de violência (furto) informa a maior parte da atividade policial no Plano Piloto.
A categoria “porte e posse de arma” merece destaque por aparecer em três das cinco RAs analisadas - Ceilândia, Planaltina e Samambaia - com índices entre 6,3% e 8,9% dos flagrantes registrados. Embora ausente das principais tipificações criminais em nível distrital, identificamos que ocorrem mais flagrantes de “roubo” nas mesmas RAs em que se registra mais casos de “porte e posse de armas”.
É possível inferir que, chegando mais ao centro e, especialmente em Brasília, o policiamento resulta com maior frequência no registro de flagrantes de crimes relacionados às drogas (seja o uso/porte ou tráfico), pois: (1) embora o registro em flagrante de uso ou porte de drogas também apareça entre os cinco principais nas RAs Ceilândia, Planaltina, Samambaia e Taguatinga, com percentuais variando entre 7% e 12%, em Brasília, esse percentual é mais que o dobro de algumas regiões, totalizando 21%; além disso, (2) há um alto índice de registro em flagrante por crimes relativos às drogas especificamente em Brasília (29,1% contra 17,4% em todo o DF); e, ainda, (3) somente em Brasília a tipificação “tráfico de drogas” aparece entre as cinco primeiras categorias de flagrantes (e superior à média do DF).
A diferença normativa entre “uso ou porte de drogas” e “tráfico de drogas” é uma questão de relevância, que fundamentou uma série de pesquisas e estudos que apontam os possíveis efeitos nocivos da Lei de Drogas (11.343/2006) para o aumento da população carcerária brasileira, sobretudo, no que diz respeito ao encarceramento de negros/as e mulheres. A Lei de Drogas, ao deixar para que a autoridade policial e/ou judicial decida sobre a finalidade da droga apreendida, se uso ou se tráfico, acaba por reiterar estigmas raciais em que brancos são considerados usuários e negros traficantes (Azevedo; Cifali, 2017AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIFALI, Ana Cláudia. “Public Security, Criminal Policy and Sentencing in Brazil during the Lula and Dilma Governments, 2003-2014: Changes and Continuities”. International Journal for Crime, Justice and Social Democracy, v. 6, p. 146-163, 2017.). No Distrito Federal, a seletividade racial da abordagem policial, sobretudo nas partes mais “ricas” do território, reforça representações do perfil de pessoa que pertence ou não àquele espaço, uma vez que o crime de tráfico de drogas é registrado com maior incidência no Plano Piloto (8%) do que no DF como um todo (5,4%).
2.2 Suspeição
A abordagem de pessoas em atitude suspeita é parte do rol das atividades de policiamento. Nas entrevistas, no primeiro momento, a suspeição foi definida em termos gerais e abstratos, relacionados ao contexto e à finalidade da ação planejada. Nossos interlocutores argumentam que a suspeição seria definida pelas características do território em que o policiamento está sendo realizado. De acordo com os/as oficiais entrevistados/as:
“Na Ceilândia você vai se deparar com mais negros, porque, como eu falei, estamos nos substratos. Na Ceilândia, nas periferias, Sol Nascente, Estrutural, você vai ter mais negros, então, o policial, ele não vai ter muito aquilo, não, aquele ali é mais perigoso que esse, ele vai abordar o negro em geral, ele não vai perceber o preconceito que ele tem. Agora, se você vai para o Lago Sul, onde eu trabalhei primeiro, eu percebia muito isso no pessoal, aí a gente tava andando, tava rodando, se passar um branquinho, ainda que ele esteja meio largado, beleza, mas se passar um neguinho, se tiver de terno, o que for, aquele cara é suspeito. Então, assim, tem sim ainda muito preconceito na abordagem, sim”.
“Olha, a impressão de senso comum, eu creio que sim, até porque as áreas mais pobres têm mais incidência de crimes e tudo mais, o que a gente mais vê são pessoas negras. Na rua e tudo mais, então, eu acho que no dia a dia, se você for olhar, eu acho que sim. [...] Assim, ‘olha, vocês vão abordar as pessoas negras’, não existe. Não existe. Eu acho que isso é mais um fato social que acaba sendo, se eu tirar um dia de serviço e tudo mais, aí eu vou ver os envolvimentos nas ocorrências, eu consigo enxergar que são as pessoas negras que estão aparecendo mais, mas isso eu acho que é uma questão mais social do que algo específico da corporação”.
Podemos observar nas respostas citadas que, ao serem considerados os parâmetros de suspeição, em territórios “ricos” e em territórios “pobres”, as pessoas negras estão em evidência como representação da suspeição. Nos territórios empobrecidos, negros são maioria, logo, serão mais abordados. Nos territórios “ricos” e embranquecidos, por serem minoria, a presença de pessoas negras é considerada suspeita e determina a abordagem independente de outros elementos contextuais.
Apesar de reconhecerem o padrão racista das abordagens, esse reconhecimento não implica necessariamente admissão da seletividade racial adotada pela corporação. O que emerge nessa explicação para a recorrência de abordagens de pessoas negras é uma espécie de função estrutural do “social”. Os argumentos apresentados expõem a naturalização da abordagem de pessoas negras, vinculando-a à bagagem cultural dos policiais, individualmente, o que, de certa forma, ameniza a responsabilidade da corporação na reprodução do padrão racista:
“Institucionalmente não é ensinado nada disso, talvez até porque quando a gente vai para a corporação, a gente não vai uma folha lisa, a gente vai com todos os nossos valores, todos nossos aprendizados, todos os nossos preconceitos e nós sabemos que tem preconceito mesmo, tanto em relação racial, quanto gênero e tudo mais. Quando você vai para a corporação, talvez aquela pessoa que já tem um preconceito, aí ela vai usar mecanismo para colocar aquilo ali em prática dentro das normas da instituição, mas a instituição não diz para você abordar pessoas negras, nem pessoas pobres, nem pessoa malvestida, não diz. Ela diz lá alguns exemplos de suspeição. Mas aí, talvez, quando a gente está na instituição a gente traz com a gente o preconceito, aquilo ali a gente consegue encaixar dentro das normas”.
É interessante notar que a problematização dos valores orientadores da sociedade brasileira são, para os/as oficiais entrevistados, uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo em que reconhecem que policiais “encaixam” seus preconceitos dentro das normas, há uma espécie de moralização da tensão produzida pela autoridade policial nas abordagens: alguns comportamentos que, de certa forma, desafiam a autoridade do policial, são compreendidos como “falta de educação”, falta de valores “morais e “civismo” e associados à figura de Bolsonaro que remeteria à ideia de “Nação” e “saber usar a cidadania”. Dizia o interlocutor:
“[...] para mim, o que falta não é na polícia, o que falta é na sociedade. Falta educação. Então, assim, você chega no Paranoá16 16 Região Administrativa situada na periferia do Distrito Federal. , você tem pessoas que você sabe que são imprudentes, que tão na rua, porque tão desempregadas, eu sei que, mas eles não tiveram a educação para chegar, pô, tô vendo a polícia, deixa eu sair da frente, ou não tiveram a educação para, de repente, cidadão, para eu chegar nele e falar: ‘cidadão, mão na cabeça’, e ele olhar para você e rir, porque você tá sendo educado. Então, assim, às vezes, você chega: ‘bora, mão na cabeça’, aí o cara, com medo, ele faz, né? Então, assim, eu acho que o que falta mesmo é uma educação, e aí eu vou voltar no discurso do meu pai e da minha mãe, moral e cívica, Bolsonaro, sei lá, vou juntar um monte de coisa, que assim, essas coisas de nação, de saber usar a cidadania, de saber buscar seus direitos, isso a gente não aprende na escola e nem em casa, a gente tá perdendo isso, e aí isso também atrapalha o nosso trabalho, porque aí você tá treinado para fazer uma coisa e as pessoas não te respondem da forma que você acha que deveriam te responder” (grifo nosso).
Personagem clássico do Distrito Federal, o “peba” sintetiza os parâmetros da suspeição no DF. “O ‘peba’ é a figura de um homem, pobre, jovem, com tatuagem/brincos e negro que traja roupas folgadas (bermudão e camisa com número nas costas e, geralmente, do grupo musical RACIONAIS MC’s) com boné” (Silva, 2009SILVA, Gilvan Gomes da. A Lógica da Polícia Militar do Distrito Federal na Construção do Suspeito. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2009., p. 98). Segundo o autor, “é por meio do currículo oculto que o(a) aluno(a) em formação ouve, pela primeira vez, no meio policial, a categoria kit peba. Em algumas aulas, há até a caracterização do gestual do peba. O tipo de andar, o tipo de roupa, a linguagem, entre outros” (Silva, 2009, p. 75). O que ele chama de “currículo oculto” faz referência ao conteúdo ministrado por policiais militares mais experientes ou com especialização técnica ou acadêmica nos cursos de formação de novos/as policiais ou de especialização: “é um conhecimento empírico subjetivo em debate com a legislação brasileira, com as técnicas policiais estudadas e com as normas de conduta internas. Normalmente, após ser ministrado o currículo oficial, o currículo oculto é revelado” (Silva, 2009, p. 74). Ao abordarem o “kit-peba”, as pessoas que entrevistamos reiteram os achados de Silva:
“É, era a bermuda da ‘cyclone’, o boné de aba reta e uma camiseta larga, não precisa ser de marca, mas uma camiseta larga. E, aí, hoje, tem as inovações, um colarzão de prata, um tênis da Vans falsificado… um negócio a mais é que o cara, geralmente, anda meio esquisito, meio largado e tal. Então o kit peba é isso e, às vezes, isso se confunde com o social. Por quê? Paranoá, por exemplo, é um lugar que você vai ver mil kit pebas, mil, e eu tive experiências de conhecer filhos de amigas que moram lá, que gostam de usar o kit peba e não são bandidos, são meninos inteligentes, gostam de jogar videogames, gostam de estudar, gostam de ler, então, assim, o preconceito do policial, às vezes com esse negócio do kit peba, às vezes, na formação, a gente acaba até recebendo, porque eu mesma quando entrei, eu não conhecia o kit peba, que aí na formação você acaba ouvindo, é da sociedade, é mais social, não é porque, ah, porque é pobre que usa o kit peba”.
“O kit peba é a bermuda, né, bermuda da cyclone, boné e tênis, né? A bermuda meio caindo... então é aquela coisa que, se você procurar, você acha. Se você for ver, depois, todos os presos que você prendeu na noite e for olhar ali, os trajes são bem parecidos. [...] O que você procura, você acha. Mas isso a gente também fala nas instruções, a gente recebe instrução sobre isso. Por exemplo, a pessoa pode estar com terno, gravata e tudo e ser uma pessoa suspeita. Você não pode descartar quando você está procurando um suspeito, ‘ah, não, aquele ali está bem-vestido’, não. Ela pode ser suspeita”.
Em resumo, entre os/as entrevistados/as, reitera-se a existência de um tipo ideal de suspeição no DF - denominado como o “peba”.17 17 Para mais informações, a categoria nativa “peba” foi objeto de análise na supramencionada dissertação de mestrado em sociologia de Gilvan Gomes da Silva (2009) e, mais recentemente, no artigo de Claudio Dantas Monteiro (2020). Há, também, um esforço de dissimulação do racismo enquanto lógica orientadora de condutas da PMDF. Essa dissimulação encontra-se evidente na maneira como formas de se vestir e de se comportar ou, ainda, de questionar a autoridade, relacionadas à cultura juvenil negra (mais especificamente ao Hip Hop), são representadas enquanto traços “sociais” que determinam a suspeição; e, também, na “informalidade” do “currículo oculto”, momento em que os preconceitos estruturais são “encaixados” na corporação e transmitidos para os policiais em formação, o que, ao fim e ao cabo, obstaculiza a responsabilização da corporação pela reprodução de lógicas racistas de abordagem. Por sua vez, nas estatísticas relacionadas aos crimes que resultaram em prisão em flagrante no DF, verifica-se que a maioria das pessoas detidas são homens. Com base nos dados da PCDF para o período de 2007 a 2018, 87,6% eram do sexo masculino.
Do universo de 103 mil registros analisados, as informações relativas à raça/cor das pessoas, em 99,2% dos casos, aparecem preenchidos com a categoria “Não informado”. A informação de que em apenas 0,8% dos casos de flagrante foi informada a raça/cor dos indivíduos abordados é inquietante e nos permite algumas reflexões. Primeiro, consideramos uma conquista importante a existência do campo raça/cor nos registros oficiais da polícia judiciária. Dados estatísticos periodicamente sistematizados contribuem para a compreensão dos fenômenos sociais, sobretudo fenômenos populacionais, e são, também, subsídio para a formulação de políticas públicas. Entretanto, apesar do campo existir formalmente, ele não foi, no período investigado, devidamente preenchido. Eis algumas questões-chave: O que significa não preencher? Por que deliberadamente desconsiderar esse campo? Será que é visto como importante para os atores institucionais em questão? A (in)visibilidade dos números relacionados à identidade racial interessa a quem?
No que se relaciona ao quesito raça/cor, há uma espécie de política de supressão da informação. Mais do que necessariamente a opacidade dos números, nos termos propostos por Lima (2008LIMA, Renato Sérgio de. A produção da opacidade: estatísticas criminais segurança pública no Brasil. Novos estudos, CEBRAP, n. 80, p. 65-69, mar. 2008.), vimos que a modernização tecnológica dos registros e o consequente aumento da quantidade de dados produzidos a partir dos registros oficiais da polícia não é capaz - ainda - de enfrentar o desafio de dar visibilidade à questão racial como questão estrutural para pensar políticas de segurança pública. Portanto, o que o não preenchimento nos revelou, até o momento, foi a urgência de se tratar o tema, não como questão meramente técnica e de responsabilidade individual do agente policial que (não) preenche o Registro de Ocorrência nesse campo, mas sim como necessidade política de assumir que o adequado preenchimento é uma responsabilidade institucional e, mais que isso, um direito da sociedade brasiliense em conhecer sua realidade.
Mesmo diante do silêncio dos dados, optamos por olhar para a informação residual, referente a 0,8% do que foi efetivamente registrado (Tabela 7), no intuito qualitativo de dar a conhecer, nesse universo, qual foi o cenário das pessoas presas em flagrante em termos de raça/cor:
Ao agregar as categorias “pardo” e “preto” na categoria “negro”, e excluindo “indígena” e “amarelo”, chegamos ao número de 72,70% das pessoas presas em flagrante serem negras, no universo de dados que tiveram esse campo preenchido.
Outra característica que chama atenção é o fato de que as principais delegacias de polícia que realizam flagrantes são as Delegacias da Criança e do Adolescente, conhecidas pela sigla de DCA, localizadas em Taguatinga e Brasília (Asa Norte), ambas registrando 8,8% dos casos, ou seja, 17,6% de todos os registros se referem a pessoas adolescentes. Esse fato parece refletir nas informações das pessoas presas/apreendidas que, no caso de menores de 18 anos, na legislação brasileira, são apreendidos e podem responder por ato infracional análogo ao crime. Nos dados analisados, 24,4% das pessoas detidas em flagrante possuíam menos de 17 anos.
Uma hipótese relevante para explicar o volume expressivo de adolescentes apreendidos, que se traduz em quase um quarto das prisões em flagrante realizadas, seria considerar as apreensões como materialização da representação do “peba” enquanto tipo ideal da suspeição na cultura policial do Distrito Federal (Silva, 2009SILVA, Gilvan Gomes da. A Lógica da Polícia Militar do Distrito Federal na Construção do Suspeito. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2009.; Monteiro, 2022).
Com relação ao registro de ocorrências de pessoas mortas em decorrência da atuação policial, houve 60 casos entre os anos de 2008 e 2017, com concentração de 65% dos casos entre 2014 e 2017. A maior parte das mortes (11 no total) estavam concentradas neste último ano da série que tivemos acesso (2017). Em 63% dos casos, as mortes aconteceram no período noturno (noite e madrugada).
Embora Brasília seja uma das regiões em que mais ocorrem prisões em flagrante, ela aparece entre aquelas com menor número de mortes em decorrência da atuação policial, com dois casos nesta série histórica, o que representa 3% do total. As regiões com mais mortes são, respectivamente, Ceilândia (13%), Santa Maria (12%), Taguatinga (10%), Planaltina (10%) e Itapoã (8%). Com relação às informações quanto à instituição de segurança pública responsável pela morte, verifica-se que em 63% dos casos essa informação não foi registrada. Contudo, a atuação é relacionada à PMDF em 26% das ocorrências e a PCDF em 10%. Novamente, temos o que denominamos neste artigo como política de supressão da informação como a tônica. Se não nos é dado a conhecer qual a cor da pele dos que são detidos em flagrante, tampouco sabe-se, em sua maioria, a que instituição pertence quem mata no “exercício da função”.
A respeito das características das pessoas mortas, embora haja 60 ocorrências, a base de dados faz referência a 69 pessoas mortas, das quais 87% foram registradas como sendo do sexo masculino, e o restante não apresentando registro sobre o sexo. Sobre a raça das pessoas mortas, verifica-se a mesma lógica dos registros das pessoas presas em flagrante, ou seja, a não produção de informações sobre esta característica, em 84% dos casos.
Do universo preenchido (15,9% ou 11 casos registrados), vimos que 72,7% eram pretos e pardos e 27,3% brancos. Sobre a idade das pessoas mortas em decorrência da atuação policial, verifica-se que a média de idade era 22 anos, variando como idade mínima 15 e máxima 38 anos.
Por diferentes categorias do banco de dados que tivemos acesso, deparamo-nos com o que podemos chamar de “não informação”. A alta taxa de não registro foi parte do desafio da pesquisa em analisar o que a PCDF registra e como registra. Ainda que se possa argumentar sobre dificuldades inerentes à hetero identificação racial pelos agentes de segurança pública, é interessante notar que essa política não se restringe apenas às categorias raciais; chama atenção, sobretudo, a ausência de informações relativas às instituições responsáveis pelas mortes, o que nos leva a refletir sobre a transparência e a produção da informação sobre os “Homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial” e as "Resistências seguidas de morte”.
Dessa forma, podemos pensar que a lógica que se desenvolve a partir do mito da democracia racial impõe uma interpretação acerca dos conflitos sociais capaz de, ao mesmo tempo, tornar a raça uma determinante subentendida e hiper evidente. A identidade racial das pessoas abordadas como “peba”, por exemplo, é tida como pressuposto não enunciado. A dissimulação da seletividade racial é evidente na política de supressão de informações estatísticas, mas também toma forma em parte dos discursos dos oficiais da PMDF, quando enfatizam a desigualdade econômica como fator determinante da seletividade racial nas abordagens policiais ou, ainda, em “saberes encaixados” em um “currículo oculto” na formação dos policiais. Quando convidados a refletirem sobre suas experiências enquanto negros e negras oficiais da PMDF, como veremos no último tópico deste artigo, o enquadramento da desigualdade social é tensionado.
2.3 A pele e a farda
Neste tópico, dedicado ao diálogo que tivemos com os/as policiais oficiais negros, apresentamos suas visões de mundo quanto à (não) seletividade racial das abordagens a partir de suas próprias vivências pessoais e institucionais.
Ao serem perguntados sobre experiências em que eles/as próprios foram abordados pela Polícia ao longo da vida, deparamo-nos com opiniões que seguiram do polo do reconhecimento imediato de práticas racistas e respostas que negaram categoricamente essa possibilidade. Dizia-nos um deles: “Sinceramente? Eu não costumo ver e essa política de vitimização me incomoda muito”. Mas, também, algumas das respostas sublinharam que tudo passava por uma “questão social”.
Chama atenção que a forma de se vestir, de falar e de se comportar apareceu como estratégia empregada, por exemplo, por uma das pessoas entrevistadas, uma oficial mulher, para comunicar uma espécie de não-suspeição:
“Meu irmão que é capoeirista, ele tem um estilo, ele é muito parecido comigo, mas ele tem um estilo diferente. Já usou dreads, às vezes usou black powerzão, ele é usuário de maconha e anda com pessoas que usam maconha, mais diferente. Assim, eu acho, a minha opinião social, que eu nunca fui abordada porque unha bem feitinha, não gosto de ficar, não ando largada, assim, de chinelo e tal, não sou maltrapilha e nem ando em qualquer lugar, né? O cabelo sempre arrumadinho, às vezes as unhas estão feitas, não sou de muita maquiagem, e eu tenho uma certa imposição no jeito de andar, de falar, na forma de falar, não falo muito palavrão, é diferente, eu acho que é por isso que eu nunca fui abordada, e eu sempre estive em um ambiente escolar, o que não quer dizer que você não seja abordada, na UnB acontece muito, mas assim, é difícil você me ver em grandes aglomerações, de repente em uma micarecandanga eu estaria, posso até ser abordada, mas nunca fui abordada nesses grandes eventos. Assim, eu atribuo mais a essa questão social, não por ser negra, é mais uma postura minha”.
O cuidado meticuloso acerca da forma de se apresentar e se comportar foi observado, sobretudo nas entrevistas com oficiais mulheres, como determinante da não-suspeição policial. Nessas entrevistas, tais cuidados não foram relacionados à racialização, mas ao status social. Porém, em alguns momentos, a diferença racial emerge nos discursos, demonstrando o racismo existente por trás da “questão social” - seja em relação ao cabelo do irmão, tido como um estilo, seja em relação à experiência dessa mesma oficial, trabalhando no Lago Sul, local em que, “se passar um branquinho, ainda que ele esteja meio largado, beleza, mas se passar um neguinho, se tiver de terno, o que for, aquele cara é suspeito”.
Essas sobreposições entre raça e status social, bem como negativas categóricas acerca do racismo na corporação, referendam o argumento de Neusa Santos Souza (1983SOUZA, Neusa. Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do negro Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1983.) em Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do negro Brasileiro em Ascensão Social acerca da ascensão social de pessoas negras em uma sociedade pautada por valores brancos. Segundo a autora:
Numa sociedade de classes onde os lugares de poder e tomada de decisão são ocupados por brancos, o negro que pretende ascender lança mão de uma identidade calcada em emblemas brancos, na tentativa de ultrapassar os obstáculos advindos do fato de ter nascido negro. Essa identidade é contraditória; ao mesmo tempo em que serve de aval para o ingresso nos lugares de prestígio e poder, o coloca em conflito com sua historicidade, dado que se vê obrigado a negar o passado e o presente: o passado, no que concerne à tradição e cultura negras e o presente, no que tange à experiência da discriminação racial (SOUZA, 1983SOUZA, Neusa. Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do negro Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1983., p.73).
Além disso, podemos encontrar nesse primeiro relato diferenças significativas relacionadas ao gênero. Apesar das diferenças do trato e do imaginário simbólico construído sobre mulheres brancas e mulheres negras em nossa sociedade, a dominação masculina se constrói por cima de todo um conjunto de representações sociais que atrelam a masculinidade ao exercício da violência. Nesse sentido e conforme demonstram os dados estatísticos, é sobre o homem negro que pesa o imaginário simbólico da periculosidade e da suspeição. Um coronel relatou uma de suas experiências de abordagem da seguinte forma:
“Olha, eu sinceramente acredito que sim, vou dizer até um exemplo que aconteceu comigo. Estava eu dirigindo uma viatura descaracterizada, placa descaracterizada e eu indo para casa. Indo para casa, estavam minhas filhas e estava uma amiga delas dentro do carro, estava indo para casa. E aí a viatura nos viu e aí já bateu na placa e a placa deu como não cadastrada. Já ‘encosta’. Aí no que encosta ‘Bora, desce, desce, desce’. Aí eu falei ‘gente, presta atenção, ninguém faz nada, ninguém sai do carro, ninguém mexe em nada, só eu falo, só eu desço’, aí minha filha já pegou o celular e começou a filmar. Aí eu desci e falei assim, ‘olha, eu estou descendo, não é assim, não é assim que se faz, não é assim que se faz’, ‘Ah, não sei o que’, um novinho que não me conhecia. Nisso saiu o antigo da viatura e me reconhece, ‘Não, calma, não sei o que’. Aí eu ‘não é assim, não é assim que se aborda, sou policial’, ‘Que eu quero ver’, aí ‘não, não, não, major, não!’. Aí eu falei assim ‘Olha, não é assim’, ‘não, mas o senhor tem que entender...’, ‘Não, eu estou falando o quê? Não é assim, cara. Não é assim. Não é assim. Abordagem não é dessa forma, minhas filhas estão dentro do carro. Não precisava ser assim, era só encostar e pedir documento, só isso. É uma situação de trânsito, se no transcurso você percebesse, aí o uso progressivo da força’. Aí que entra a questão do ethos militar e do ethos policial militar. A questão do ethos militar é o seguinte, é você resolver a situação no máximo de força, no menor tempo possível. E o ethos policial militar é inversamente proporcional, é a menor força gradativamente até chegar na maior. Então já chegou [barulho das mãos batendo uma contra a outra]... enfim, aí o cara, ‘não, não, major, foi mal e tal’. Aí eu falei assim, ‘olha, se pareceu alguma coisa vocês me desculpem, mas eu tenho que dizer que não é assim, a abordagem é assim’ e tal tal tal, e fui embora. Então, eu vivo isso”.
Esse mesmo oficial afirma que, em outra oportunidade, outro policial o havia parado, mas como desta vez ele estava fardado, mandou passar. Ainda segundo ele,
“é aquela história, isso aí, essa percepção, essa sensação, como o embranquecimento, a gente tem a questão da subcultura do negro sujo, do negro que tem que ser abordado. E isso ainda é uma subcultura da atividade policial. É, e lamentavelmente isso é um fato”.
Quando abordados sobre o racismo dentro da corporação, os oficiais entrevistados nos ofereceram respostas diversas. O que é interessante notar é que, entre os que afirmam terem experimentado ou testemunhado situações de racismo entre seus pares e os que o negam, ambos os grupos sublinham a disciplina e a hierarquia militar enquanto instrumentos de mediação da diferença racial.
O grupo que nega a existência de racismo afirma que as disciplinas militares igualam todos em relação ao pagamento que recebem e desenvolve a progressão da carreira a partir de critérios de mérito e competência e que os obstáculos seriam mais relativos à inexistência de vagas para a progressão. O grupo que afirma ter testemunhado ou experimentado situações de racismo dentro da corporação chama atenção, justamente, para obstáculos na progressão de carreira; para a impressão de que precisam sistematicamente provar que são competentes para exercer comando; e para a capacidade da “estética militar” de dissimular o racismo.
“É muito difícil, porque assim, o que que acontece? A estética militar, ela nivela muito a situação. Você consegue camuflar um racismo dentro da estética militar tranquilo. Tranquilo. É só, ‘Tá bom, já deu a hora de você dar a sua cota’, aí eu, ‘pô, meu coronel, vou ser transferido para o [...] batalhão, eu moro em outro extremo’. ‘Não, chegou sua hora de você dar sua cota para a polícia’. E eu, ‘Sim, senhor!’, até hoje eu pergunto que tipo de cota que eu tenho que dar, né? Porque eu trabalhei em [cita diversos lugares]. E inclusive assim, trabalhei no centro de comunicação e é onde isso veio à tona, porque o chefe do centro de comunicação, que depois foi subcomandante geral, falou assim: ‘eu vou colocar você como oficial de imprensa’. Me colocou e tal e comecei a desenrolar e enfim, eu sempre fiz com prazer tudo que eu fiz. Aí deu certo. Aí depois ele falou assim: ‘Senta aí.’. Aí conversa vai e conversa vem: ‘Você sabe que eu fiz um teste com você, né?’. Eu falei assim: ‘Como assim?’. ‘Eu coloquei você como oficial de imprensa, porque você era negro e eu queria ver se você dava conta assim, aí você desempenhou bem o papel de ser o porta voz, de você trazer a questão do negro’. Então na verdade era um teste para saber se eu ia dar conta da missão. [...] Não dá. Na caixinha dos vencedores ele [o negro] não pode estar, cara. Não pode. Aí fica assim. E isso impacta profissionalmente quando você tem um comando inseguro. Porque o comando inseguro, o que que ele vai fazer com você? Ele vai te pisar, ele vai te esconder. Então, como Deus me dá para fazer onde quer que eu faça, toda vez que tentaram me esconder foi pior, porque onde eu estou, Deus me dá umas ideias muito loucas e a coisa rola. Aparece e vai, vai. Mas essa coisa acontece. E a estética militar facilmente acomoda o racismo. Acomoda. [...] Por exemplo, eu sou um tenente coronel e eu tenho que designar um negro que chegou, ‘onde é que eu vou colocar esse negão? Põe lá na Ceilândia’. Entende? É onde a estética militar acomoda o racismo” (grifo nosso).
Entre experiências de terem sido ou de terem testemunhado colegas negros serem preteridos em promoções, serem alocados para trabalhar em territórios muito distantes de suas casas, e de racismo explícito, também foram recorrentes os relatos sobre dificuldades de reconhecerem ou afirmarem o racismo nas interações com seus pares.
“Pois é, aí eu fiquei uma semana sem ter espaço definido, ah, você não vai, você vai, sei lá, volta para casa, vai, não vai, volta para casa, então eu fiquei uma semana sem lotação por causa disso e isso sim, aí eu comecei, pô, só pode ser preconceito, porque eu? [...] Então, na época, dentro de mim houve uma revolta e pensei, muitas vezes, por ser a questão racial mesmo, mas eu não tenho como afirmar isso com certeza, né?”
“Então eu vejo que, eu sei que eu sofri discriminação. Você sabe, por exemplo, isso aí aconteceu e eu só fui metabolizar isso anos depois. Eu era Capitão, eu era primeiro tenente, capitão e o comandante da unidade, um major, na época, ele virou para mim e disse assim, conversa vai de oficial e ‘oficial sangue azul e tal’. ‘Não, todo oficial é sangue azul’. Ele virou para mim e disse assim, ‘Fulano’, aí ele passou a mão no cabelo liso assim, ‘eu sou sangue azul’. E eu confesso que eu não tive maturidade para entender essa conversa a não ser anos depois, muitos anos depois. Eu nem tenho mais contato com ele, não tinha mais contato com ele e aí a ficha caiu. Cara! ‘Eu que sou branco’. Então isso é um fato, isso aconteceu dez anos atrás” (grifo nosso).
Essas experiências, difíceis de serem comunicadas, acabam, muitas vezes, conformando uma situação que Andresa Sena chamou de “solidão racial”. Segundo a autora:
É preciso pontuar que não existe um movimento de solidariedade ou um espaço entre os policiais negros onde eles possam expor e dividir essas experiências uns com os outros, dando lugar ao que muitas vezes denomino de solidão racial. Esse compartilhamento ocorre apenas com um amigo ou outro colega que também é negro, ou com a família. O que também é importante, pois se resume no ponto de apoio deles. É interessante refletir sobre isso, pois sendo a instituição policial majoritariamente negra, não existe uma coletividade que os faça questionar ou mesmo compartilhar essas experiências pessoais (SENA, 2021SENA, Andresa Pereira de. A questão racial na Polícia Militar do DF: retratos sociológicos de policiais militares negra/os. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2021., p. 99).
Tal “solidão racial” é produto de uma espécie de fragmentação da identidade e de interdição do reconhecimento. A “estética militar” é, ao mesmo tempo, um aparato eficaz de dissimulação do racismo e um “emblema branco”, uma espécie de instrumento de embranquecimento. Os diversos elementos que compõem a disciplina militar objetivam a homogeneização dos policiais, obstaculizando o reconhecimento de diferenças individuais e a reorganização de sua identidade a partir dos valores orientadores da corporação que, no caso brasileiro, apoiam-se em uma moralidade e estética brancas.
Considerações finais
O estudo Policiamento e relações Raciais, que embasou o artigo apresentado, buscou investigar o modelo de policiamento ostensivo a partir dos efeitos de sua atuação na produção de desigualdades raciais e as representações dos policiais militares sobre estes efeitos. No caso específico da pesquisa de campo realizada no Distrito Federal, entre 2017-2019, investimos em problematizar o ideal de representação da modernidade brasileira que Brasília encarna, considerando, pelas evidências sócio-históricas e os dados atuais disponíveis, que a “cidade mais moderna do Brasil” foi construída com base em um modelo específico de controle populacional e de segregação sociorracial, em muito vinculados aos efeitos dissimuladores do mito da democracia racial.
A partir da análise detalhada dos dados produzidos pela Polícia Civil do DF, referentes às prisões em flagrante e às mortes em decorrência de intervenção policial, pudemos refletir sobre o que se quer dizer quando se opta por não produzir dados como raça/cor das pessoas apreendidas ou detidas em flagrante ou mesmo quando não se preenche, em sua maioria, qual instituição policial foi responsável pelas mortes em serviço. Argumentamos, então, que há uma política de supressão de informação que informa e orienta a política de segurança pública local, visto que o que não se sabe, não existe, sendo, portanto, difícil, como é próprio dos mecanismos de perpetuação do racismo, a sua evidenciação e comprovação.
É interessante notar que os significados de coesão e segregação social tensionam sistematicamente o modelo de dissimulação da desigualdade racial proposto pela ideologia da democracia racial. Nesse sentido, alguns aspectos ao longo deste artigo foram por nós trabalhados como: a) a tentativa de se dar um sentido coeso ao DF como forma de suavizar os efeitos de uma desigualdade planejada quando se estabelece, através da força de um decreto distrital, a alteração do uso de “cidades satélites” por “Regiões Administrativas”; b) constatamos também que a supressão de informação acerca da identidade étnico-racial dos indivíduos abordados, mesmo existindo o campo a ser preenchido, não se traduz em nenhuma cobrança política para que assim se faça; c) a despeito de não se dar a conhecer oficialmente o perfil étnico-racial dos abordados, os interlocutores apontaram claramente que há, todavia, um perfil a ser vigiado/controlado, traduzido na figura do “peba” que alimenta o imaginário dos policiais como objeto central de sua ação e que é apreendido através dos rituais de socialização profissional - assim, constatamos que a representação desproporcional de adolescentes entre as pessoas presas em flagrante é um indicativo preocupante da eficácia deste saber compartilhado através de um currículo oculto que, por sua informalidade, permanece invisível aos mecanismos de controle social; e d) as entrevistas realizadas com oficiais negros da Polícia Militar do DF apontou para as ambiguidades próprias do racismo à brasileira quando se percebe, na fala desses importantes interlocutores, a oscilação em descrever suas próprias histórias e a angústia em analisar (e verbalizar) que muitas das situações vividas poderiam ser traduzidas como racismo, mas permanecem “acomodadas” como “questão social”, “estética militar”, zelo à “hierarquia e disciplina” ou mesmo falta de “mérito profissional” em (não) ocupar determinados postos e posições.
É inegável que Brasília é uma cidade ambígua, assim como a mestiçagem brasileira. À primeira vista, pode parecer surpreendente que uma cidade sem muros esteja entre as cidades mais segregadas do mundo. Nosso modelo de igualdade jurídica não se traduz, como sabemos, num modelo de cidadania plena para todos/as. Por sua vez, a ideologia da democracia racial, ainda persistente e resistente, faz com que diferenças evidentes de tratamento e acesso à direitos passem subentendidas ou, como vimos nos dados estatísticos da PCDF, “não informadas”. Essa é uma das grandes chaves interpretativas da modernização brasileira: a invenção do Brasil moderno atualiza as hierarquias raciais produzidas pela escravização em estratégias muito eficazes de dissimulação e justificação da dominação racial.
Produto das lutas seculares das populações negras e indígenas no Brasil nas últimas décadas, testemunhamos uma espécie de desencantamento do mito da democracia racial. Ao reconhecer que o racismo é “o elemento organizador da desigualdade” (Teodoro, 2022TEODORO, Mário. A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.) que estrutura a sociedade e as instituições brasileiras, inclusive e sobremaneira, orienta a performance das instituições de segurança pública, o Estado Brasileiro se comprometeu, ao menos no plano discursivo, com a promoção da igualdade racial e com o combate ao racismo. Ainda que insuficientes, um conjunto de políticas públicas vem se desenvolvendo e pretendem fomentar a produção de outras interpretações sobre a nacionalidade brasileira, reconhecendo os traumas e as violações raciais como elementos estruturantes de nossa história e abrindo a possibilidade para que, em diversos territórios e de diversas formas, outros projetos de sociedade possam ser imaginados. Nesse sentido, o artigo objetivou informar e subsidiar o reconhecimento de estratégias institucionais que seguem, no Distrito Federal, efetivando a segregação racial em nome da manutenção de um projeto “moderno” e de sua segurança “pública”.
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Até janeiro de 2019, a viajante que chegasse a Brasília, pelo aeroporto, era saudada por um outdoor que informava “Bem vindos à cidade mais moderna do Brasil”. A placa foi trocada no início do governo de Jair Bolsonaro por outra com conteúdo ufanista.
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Neste caso, o conceito foucaultiano de governamentalidade nos parece fundamental, na medida em que, nas palavras do autor, pode ser definido como “conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por ‘governamentalidade’ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de ‘governo’ sobre todos os outros -soberania, disciplina - e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes” (2008, p. 143).
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Os resultados da pesquisa podem ser acessados no livro “Policiamento ostensivo e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime". 1. ed. Rio de Janeiro: Autografia/INCT-InEAC, 2021. v. 1. 420p.”, organizado por Jacqueline Sinhoretto.
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Agradecemos especialmente às colegas Marina Carvalho Paz (2022PAZ, Marina. A farda que pesa: percepções sobre o cotidiano e o trabalho no Grupo Tático Operacional da PMDF. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2022.) e Andresa Sena (2021SENA, Andresa Pereira de. A questão racial na Polícia Militar do DF: retratos sociológicos de policiais militares negra/os. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2021.), pela disponibilização do material empírico de suas dissertações de mestrado; aos pesquisadores-policiais Gilvan Gomes da Silva e Cyntia Cristina Carvalho e Silva, que facilitaram o diálogo e o acesso aos dados da PMDF e da PCDF, respectivamente; e a leitura atenta da(o) parecerista responsável pela revisão do artigo para a revista Sociedade e Estado, cujas observações e sugestões generosas foram fundamentais para o amadurecimento das reflexões que apresentamos neste artigo.
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Mais do que uma conquista fabulosa, certificou-se o triunfo das cidades sobre um território imenso e desconhecido, reiterando a concepção grega que opunha a pólis civilizada à barbárie da desurbanizada. [...] As cidades da conquista desenfreada não eram meras fábricas. Eram cidades para ficar e, portanto, centros de colonização progressiva. Por muito tempo, no entanto, elas não podiam ser outra coisa senão fortalezas, mais defensivas do que ofensivas, recintos murados dentro dos quais o espírito da pólis era destilado e o destino civilizatório superior que lhe havia sido atribuído era ideologizado sem reservas (Rama, 1998RAMA, Angel. La Ciudad Letrada. Montevideo: Arca, 1998., p. 25-27, tradução nossa).
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A miscigenação é um fenômeno recorrente de variação biológica, produzido pela reprodução de indivíduos de origens étnicas diferentes; por sua vez, a ideia de mestiçagem referencia uma estratificação social em que a miscigenação se encontra acompanhada de dinâmicas de aculturação de indivíduos miscigenados.
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11 Decreto n. 19.040/1998.
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O relatório analisa o fenômeno de “income segregation”, vinculado ao desenvolvimento urbano, em que as pessoas escolhem um lugar para viver de acordo com seus recursos, mas também considerando similaridades culturais, socioeconômicas e raciais com as pessoas que habitam determinado território. Dentre todas as cidades analisadas, Brasília se destacou como a cidade mais segregada.
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Aqui usamos “Cidade-Condomínio” no sentido das percepções dos/as visitantes e/ou moradores que veem na organização e homogeneização do que estamos chamando de cidade sem muros algo que remeteria a um condomínio de classes médias altas. Sobre o debate acerca dos chamados condomínios horizontais, como estratégia de expansão de Brasília para além de sua cidade tombada, vale conferir as contribuições de Moura (2010MOURA, Cristina Patriota de. Condomínios Horizontais em Brasília: Elementos e Composições. Antropolítica (UFF), v. 1, p. 47-68, 2010.) para o tema.
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Além disso, a escassez do serviço em determinados horários (Santarém, 2013) faz com que o acesso ao Plano Piloto crie uma dinâmica de “hora de entrada e saída” dessa região, além do fato das longas distâncias entre periferia e centro tornarem mais difíceis outras formas de deslocamento.
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A GEB era reconhecida por sua truculência. Corre, no Distrito Federal, a história do “Massacre da GEB”, quando, no carnaval de 1959, operários que construíam a cidade reclamaram da distribuição de comida estragada servida pela empresa Pacheco Dantas Fernandes. Ao ser acionada, a GEB invadiu o acampamento. Registros oficiais contam apenas uma morte, porém, testemunhas relatam que saíram, do acampamento, caminhões repletos de cadáveres.
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Região Administrativa situada na periferia do Distrito Federal.
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Para mais informações, a categoria nativa “peba” foi objeto de análise na supramencionada dissertação de mestrado em sociologia de Gilvan Gomes da Silva (2009SILVA, Gilvan Gomes da. A Lógica da Polícia Militar do Distrito Federal na Construção do Suspeito. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2009.) e, mais recentemente, no artigo de Claudio Dantas Monteiro (2020MONTEIRO, Claudio Dantas. “‘Pebas’ e ‘vagabundos’: A representação midiática de criminosos no programa DF Alerta”. Dilemas, v. 13, n. 3, Rio de Janeiro, p. 827-848, 2020.).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
10 Jan 2024 -
Aceito
21 Abr 2024