Resumos
O presente estudo parte do crescente processo de judicialização do cuidado em saúde mental de jovens usuários de drogas e tem por objetivo problematizar a forma como, na relação entre os campos da Saúde Mental e da Justiça, vai se desenvolvendo uma biopolítica voltada para o governo da população de "adolescentes drogaditos". Para tanto, realizamos a análise de processos judiciais de internação compulsória de jovens por uso de drogas. Fundamentamo-nos nas ferramentas teóricas e metodológicas da Psicologia Social, dentro de uma perspectiva pós-estruturalista, especialmente no que se refere ao pensamento de Michel Foucault, na forma como o autor desenvolveu uma análise dos discursos e da emergência dos saberes na sua articulação com mecanismos e tecnologias de poder. A partir dessa perspectiva, evidenciamos a forma como essa biopolítica, embora aja em nome da garantia de direitos, opera produzindo vulnerabilidades.
internação compulsória; judicialização da saúde; jovens usuários de drogas; políticas públicas; Direitos Humanos
The present study addresses the increasing process of judicialization of mental health care of young drug users, and aims at problematizing the way in which a biopolitics directed towards the government of the population of 'addicted teenagers' has been developed in the relationship between the fields of Mental Health and Justice. The development of this research is based on the analysis of lawsuits of adolescents that had been ordered the protective measure of psychiatric hospitalization for treatment for drug addiction. We have based our study on the theoretical and methodological tools of Social Psychology, especially with regard to the work of Michel Foucault, in the way that this author developed an analysis of both discourses and the emergence of knowledges in their articulation with power mechanisms and technologies. By analyzing these documents, we have attempted to identify that this biopolitics, in spite of guaranteeing rights, operates by producing vulnerabilities.
compulsory hospitalization; health right; young drug users; public policy; Human Rights
El presente estudio parte del creciente proceso de judicialización del cuidado en salud mental de jóvenes usuarios de drogas y tiene por objeto problematizar la forma como, en la relación entre los campos de la Salud Mental y la Justicia, se va desarrollando una biopolítica orientada al gobierno de la población de "adolescentes drogadictos". Se ha llevado a cabo el análisis de procesos judiciales de internamiento forzoso de jóvenes por uso de drogas. El estudio está fundamentado en las herramientas teóricas y metodológicas de la Psicología Social, dentro de una perspectiva postestructuralista, especialmente en lo que atañe al pensamiento de Michel Foucault y la forma como desarrolló el análisis de los discursos y la emergencia de los saberes en su articulación con mecanismos y tecnologías de poder. A partir de éstos, se evidencia cómo dicha biopolítica, aunque actúe a nombre de la garantía de los derechos, opera produciendo vulnerabilidad.
internamiento forzoso; judicialización de la salud; jóvenes usuarios de drogas; políticas públicas; Derechos Humanos
PRÊMIO ABRAPSO
About young drug users: the stories of no one
Carolina dos Reis; Neuza Maria de Fátima Guareschi; Salo de Carvalho
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil
RESUMO
O presente estudo parte do crescente processo de judicialização do cuidado em saúde mental de jovens usuários de drogas e tem por objetivo problematizar a forma como, na relação entre os campos da Saúde Mental e da Justiça, vai se desenvolvendo uma biopolítica voltada para o governo da população de "adolescentes drogaditos". Para tanto, realizamos a análise de processos judiciais de internação compulsória de jovens por uso de drogas. Fundamentamo-nos nas ferramentas teóricas e metodológicas da Psicologia Social, dentro de uma perspectiva pós-estruturalista, especialmente no que se refere ao pensamento de Michel Foucault, na forma como o autor desenvolveu uma análise dos discursos e da emergência dos saberes na sua articulação com mecanismos e tecnologias de poder. A partir dessa perspectiva, evidenciamos a forma como essa biopolítica, embora aja em nome da garantia de direitos, opera produzindo vulnerabilidades.
Palavras-chave: internação compulsória; judicialização da saúde; jovens usuários de drogas; políticas públicas; Direitos Humanos.
RESUMEN
El presente estudio parte del creciente proceso de judicialización del cuidado en salud mental de jóvenes usuarios de drogas y tiene por objeto problematizar la forma como, en la relación entre los campos de la Salud Mental y la Justicia, se va desarrollando una biopolítica orientada al gobierno de la población de "adolescentes drogadictos". Se ha llevado a cabo el análisis de procesos judiciales de internamiento forzoso de jóvenes por uso de drogas. El estudio está fundamentado en las herramientas teóricas y metodológicas de la Psicología Social, dentro de una perspectiva postestructuralista, especialmente en lo que atañe al pensamiento de Michel Foucault y la forma como desarrolló el análisis de los discursos y la emergencia de los saberes en su articulación con mecanismos y tecnologías de poder. A partir de éstos, se evidencia cómo dicha biopolítica, aunque actúe a nombre de la garantía de los derechos, opera produciendo vulnerabilidad.
Palabras clave: internamiento forzoso; judicialización de la salud; jóvenes usuarios de drogas; políticas públicas; Derechos Humanos.
ABSTRACT
The present study addresses the increasing process of judicialization of mental health care of young drug users, and aims at problematizing the way in which a biopolitics directed towards the government of the population of 'addicted teenagers' has been developed in the relationship between the fields of Mental Health and Justice. The development of this research is based on the analysis of lawsuits of adolescents that had been ordered the protective measure of psychiatric hospitalization for treatment for drug addiction. We have based our study on the theoretical and methodological tools of Social Psychology, especially with regard to the work of Michel Foucault, in the way that this author developed an analysis of both discourses and the emergence of knowledges in their articulation with power mechanisms and technologies. By analyzing these documents, we have attempted to identify that this biopolitics, in spite of guaranteeing rights, operates by producing vulnerabilities.
Keywords: compulsory hospitalization; health right; young drug users; public policy; Human Rights.
Por um direito à saúde
O presente artigo tem por objetivo colocar em análise o crescente processo de judicialização do cuidado em saúde mental de jovens usuários de drogas, em especial, a forma como a internação compulsória tem sido utilizada como ferramenta de segurança pública e prevenção à violência. Nesse sentido, buscamos colocar em discussão o uso dos direitos humanos, mais especificamente do direito à saúde como uma ferramenta de construção de políticas públicas, tais como a internação compulsória, evidenciando sua utilização como mecanismo de controle, punição e aumento da vulnerabilidade social dos adolescentes, os quais afirmam proteger.
A intervenção do Judiciário junto aos serviços do Sistema Único de Saúde justifica-se na necessidade de garantir a efetivação dos direitos fundamentais, dentre eles o direito à saúde. A criança e o adolescente reconhecidos como sujeitos de direito têm assegurada, através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8069/90, art. 4º, a prioridade de atendimento em saúde - incluído nesse o tratamento em saúde mental - , garantido entre os direitos fundamentais à pessoa humana. O mesmo estatuto prevê ainda que, diante de um quadro de desequilíbrio entre os fatores que constituem a saúde da população infanto-juvenil, tal situação pode caracterizar risco pessoal e/ou social, para o qual o ECA, art. 98, prevê a utilização de medidas protetivas. Essas são previstas no intuito de assegurar o bom desenvolvimento físico e mental dos adolescentes, bem como bom desenvolvimento psicológico, funcionamento familiar, desempenho escolar, participação social e habilitação para o exercício profissional. O uso abusivo de drogas por crianças e adolescentes vem sendo compreendido dentro dessa perspectiva como um comportamento que os coloca em situação de risco pessoal e social.
Frente à constatação da ameaça ou violação dos direitos desses adolescentes, a problemática do atendimento em saúde mental dessa população adquire relevância jurídica, passando a ser tomada como responsabilidade dos integrantes do sistema de garantias1 1 Composto pelo Conselho Tutelar, Ministério Público, Juizados da Criança e do Adolescente, Advocacia e Defensoria Pública e os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. a aplicação das medidas pertinentes de proteção a essas crianças e adolescentes (Resende, 2008). Dentre elas, o ECA, art. 101, prevê a possibilidade de inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos e requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em regime hospitalar ou ambulatorial.
É nessa premissa legal que se sustentam as intervenções do Judiciário de envio de crianças e adolescentes para a internação psiquiátrica como uma medida de proteção para si e para sua família. O que questionamos, portanto, é a construção dessa necessidade de proteção e a quem se objetiva proteger através de uma estratégia como a internação psiquiátrica forçada.
Não nos cabe negar a importância da internação como alternativa terapêutica2 2 Embora o objetivo principal desta pesquisa não seja debater as melhores formas de tratamento dos usuários de drogas, cabe considerar que a Rede de Saúde possui alternativas ao modelo da internação psiquiátrica que deveriam ser efetivamente implementadas enquanto rede de serviços e acessadas pelos usuários antes da busca pela internação, que são as Estratégias de Saúde da Família, os Centros de Atenção Psicossocial - infantil e álcool e drogas, os Consultórios de Rua e o Programa de Redução de Danos. Já no âmbito da Rede de Assistência Social, temos os programas de abordagem de rua, os Centros de Referência em Assistência Social, os Centros de Referência Especializados em Assistência Social e as diversas modalidades de serviços de abrigamento, que também podem oferecer suporte para uma complexidade de demandas dos usuários de drogas e suas famílias, auxiliando na diminuição da vulnerabilidade a que estão expostos esses sujeitos. ; não se questiona a internação de forma isolada, mas os usos que se fazem dessa ferramenta de tratamento que estão para além de situações de saúde. Cabe, sim, evidenciar a forma como a internação acontece, na maioria das vezes, isolada frente à inexistência ou desarticulação de uma rede de apoio. Ainda, cabe apontar a manutenção de uma lógica normatizadora, pautada pelo imperativo da abstinência, que coloca a recaída como um fracasso no tratamento. A internação toma o sujeito como foco de intervenção; é um cuidado que se dá no nível do corpo biológico e psíquico daquele indivíduo e pode proporcionar melhoras nessa esfera, fortalecendo o sujeito que se encontra extremamente deteriorado pela exposição intensa e prolongada ao uso de drogas. Serve para dar condições mínimas de esse indivíduo investir em outras formas de cuidado posteriores ao período da internação. Se tomarmos esse tratamento como única resposta possível e necessária a um problema que é multifacetado, corre-se o risco de inibir as demais faces e localizar na associação entre o sujeito e a droga o problema da drogadição. Nesse caso, a internação promoveria uma limpeza nesse sujeito, que, após ter seu corpo "desintoxicado", estaria biologicamente livre dos efeitos que provocam o vício; estando liberto da substância, estaria ele pronto para realizar novas escolhas. No entanto, esse sujeito é devolvido para as mesmas condições de onde havia sido removido, para as quais oferece o mesmo padrão de resposta, e permanece como sendo o único responsável por seu fracasso.
Para que a utilização de um tratamento que se dá sobre o indivíduo faça sentido, é preciso que se entenda que ele sofre de uma patologia também individual. É voltado para o indivíduo que se dá o saber sobre a delinquência e sobre a drogadição, e é no indivíduo que se situa a necessidade de intervenção. Essa lógica é o que o torna um sujeito governamentalizável e é o que invisibiliza os problemas sociais (Scisleski, 2010).
A criação do ECA constrange o Estado a agir em prol da proteção dessas crianças e adolescentes - nesse caso, em nome de crianças e adolescentes que não dispõem de proteção ou de acesso a serviços de saúde por meios próprios, através de suas famílias. Ao mesmo tempo em que o ECA se constitui como uma ferramenta de garantia de direitos, é por meio dele que se articulam mecanismos de governo que operam politicamente sobre essa parcela de adolescentes pobres, economicamente desassistidos.
Enquanto medida protetiva, a internação psiquiátrica não assegura o bom desenvolvimento físico e mental desses adolescentes, nem o bom funcionamento familiar, a inserção escolar, a possibilidade de participação social ou a abertura de um campo profissional. Por outro lado, como mecanismo privilegiado de exercício de um poder de normalização, ela se constitui como lugar de destino e de manutenção desta "adolescência drogadita"3 3 Ao utilizamos esse termo entre aspas, estamos fazendo referência e produzindo um tensionamento sobre os discursos que circunscrevem os jovens que fazem uso de drogas em uma determinada categoria populacional que os reconhecerá como esses sujeitos drogaditos, supostamente delinquentes, perigosos e/ou doentes. , forjando a existência e naturalização dessa ordem social e a estabilidade de um sistema de Governo.
Fala-se aqui sobre a produção de uma necessidade de internar determinada parcela da população. Fala-se aqui na segregação de adolescentes travestida de garantia de direitos. Fala-se, retomando os estudos de Scisleski (2006, 2010), Petuco (2011), Oliveira e Dias (2010), Silva, Hartmann, Scisleski e Pires (2008), Vicentin, Gramkow e Matsumoto (2010), na internação psiquiátrica como ferramenta de inserção desses adolescentes em mecanismos de desproteção, vulnerabilização e produção de morte social.
O que procuramos interrogar, portanto, é que saúde é essa que se afirma em nome do direito à saúde na vida desses adolescentes. Buscamos, justamente, questionar o que está sendo garantido quando o Estado age em nome da garantia de direitos, isto é, o que mais se produz através de um poder que se quer exercer sobre a vida, ou o que mais se produz através de políticas públicas de proteção à vida.
Para responder a essas questões partimos das discussões desenvolvidas em uma pesquisa que colocou em análise os processos judiciais de adolescentes que tiveram decretada a medida protetiva de internação psiquiátrica para tratamento por drogadição, oriundos de diferentes municípios do Rio Grande do Sul. Foram analisados 14 processos judiciais de sujeitos maiores de 12 anos e menores de 18, tanto de meninos quanto de meninas, durante os meses de março a julho de 2011, em dois grandes municípios do Rio Grande do Sul. Os processos judiciais foram acessados nos Juizados da Infância e da Juventude de ambos os municípios. Foram selecionados os processos que envolvessem jovens dentro da faixa etária referida, nos quais já houvesse sido determinada a internação compulsória e nos quais não houvesse registro formal de envolvimento com ato infracional. Esse critério relaciona-se com o fato de que buscamos enfocar práticas que operam em nome do cuidado, na tentativa de nos afastarmos daqueles que estão diretamente vinculados às práticas punitivas do sistema socioeducativo. A escolha dos documentos foi feita de forma aleatória a partir dos processos que apresentavam as características descritas e que estavam disponíveis nos Juizados durante o período da pesquisa (março a julho de 2011). O critério que balizou a quantidade de processos analisados foi a saturação dos dados4 4 Esse é um interessante analisador, pois apesar de cada jovem possuir uma história de vida singular, ao olhar para os Processos Judiciais, essa singularidade se perde, e a sensação é de que estamos sempre diante do mesmo adolescente. .
A consulta aos documentos foi realizada nos próprios Juizados, não tendo sido autorizada a retirada dos documentos do local ou mesmo a reprodução de cópias dos materiais. Os trechos dos processos que serão apresentados ao longo do estudo sofreram modificações para evitar a identificação dos casos, preservar a identidade dos adolescentes e familiares e respeitar o segredo de justiça. Da mesma forma, buscamos preservar a identidade dos profissionais, omitindo as especificidades das instituições envolvidas e dos municípios em que os materiais foram coletados.
Nos processos foram analisados todos os documentos que os compunham5 5 De maneira geral os processos são compostos por documentos tais como: petição inicial, declaração de carência financeira, pareceres e laudos de psicólogos, médicos, assistentes sociais, enfermeiros, pedagogos, conselheiros tutelares, professores, atestados de matrícula e relatórios escolares, ofícios de serviços da saúde, assistência social, educação, justiça, guias de acolhimento institucional, comunicados de evasão dessas diferentes instituições de cuidado, ocorrências e consultas policiais, relatos de audiências, reuniões de rede, oitiva de familiares, decisões judiciais, mandados de busca e apreensão e certidões de oficiais de justiça. , nos quais buscamos identificar as relações que se estabelecem entre os campos de saber e os mecanismos de poder que incidem sobre a manutenção de certas verdades ditas sobre a "adolescência drogadita", as quais vão servir de suporte para a legitimação e atualização da estratégia de internação compulsória. Em especial, buscamos destacar as articulações estabelecidas entre os campos da Saúde e da Justiça que dão fundamento e aceitabilidade à prática de internação compulsória. Ao aprofundarmos nosso olhar sobre os conteúdos dos autos processuais e dos documentos que os compõem, observamos a existência de uma relação estratégica entre os campos jurídico, psiquiátrico e pedagógico, que se somam na constituição da "rede de proteção"6 6 Ao usarmos essa expressão entre aspas, não estamos fazendo referência a nenhuma rede formalmente constituída, mas sim ao conjunto de atores do campo da saúde, assistência social, educação, justiça, segurança pública e outros que se reúnem em torno da insígnia da proteção, do cuidado e da ressocialização de crianças e adolescentes. que circunscreve os diversos aspectos da vida dos adolescentes. Acompanhando as escritas dos documentos, buscamos problematizar essa oferta de proteção e cuidado a partir das contradições que permeiam a manutenção dos discursos sobre a proteção no interior dos materiais de pesquisa.
As alianças entre Saúde e Justiça na produção de modos de governar jovens usuários de drogas
Foucault (1973/2003), no conjunto de conferências proferidas no Brasil compiladas no livro A verdade e as formas jurídicas, analisa como o inquérito utilizado no âmbito judiciário se constituía não simplesmente em uma forma de obtenção da verdade, mas ainda em uma forma política de gestão da verdade. Da mesma maneira, buscamos pensar o processo judicial e as ferramentas que se aliam a ele como "uma forma de exercício de poder, que vem a ser, na cultura contemporânea, uma maneira de autenticar a verdade, de adquirir verdade e de adquirir coisas que vão ser consideradas verdadeiras e as transmitir" (Foucault, 1973/2003, p. 78).
Diante disso, entendemos o processo judicial e as articulações que se estabelecem a partir deste com outros campos de saber não como um simples meio de identificar a verdade, mas muito mais como um instrumento de produção de verdades. Fazemos essa referência ao processo de produção de verdades porque buscaremos destacar como o discurso da Psicologia e do Direito em torno da proteção permanece legitimado, ainda que os processos judiciais sejam permeados de contradições e arbitrariedades.
Nesse sentido, trazemos para o debate trechos dos documentos que são produzidos por Psicólogos, Médicos, Assistentes Sociais, Educadores Sociais, Pedagogos, entre outros técnicos, para os processos judiciais, demandados pelos operadores de Direito para fundamentar as decisões judiciais, para, através desses materiais, visibilizarmos os modos como os discursos produzidos por esses profissionais vêm circunscrever os adolescentes em torno da noção de periculosidade e vão legitimar as diversas formas de intervenção do Estado sobre a vida dos adolescentes usuários de drogas.
Retrato falado: da dependência química aos desvios de todos os gêneros
Ao analisarmos os documentos produzidos por psicólogos, psiquiatras e psicopedagogos, pedagogos, assistentes sociais e educadores sociais inseridos nos processos judiciais de internação compulsória de adolescentes usuários de drogas, vemos ser construída uma biografia dos jovens em questão. Essa biografia tem como foco inicial as relações que o sujeito tem estabelecido com o uso de drogas e os efeitos que este tem provocado na sua vida e na de seus familiares, sustentando com isso a necessidade de internação. Entretanto, ao longo dos processos, essa biografia vai adquirindo outros contornos e passa a evidenciar, além do uso de drogas, um conjunto de ações e vivências consideradas desviantes por esses campos de saber.
Podemos acompanhar esses deslocamentos nos trechos dos autos processuais destacados abaixo:
O adolescente está em situação de risco pela própria conduta7 7 As frases colocadas entre colchetes são observações nossas, já as expressões sublinhadas que aparecem durante as citações são destaques presentes nos textos originais dos autos processuais. . Encontra-se em processo psíquico autodestrutivo pelo uso de drogas, o que lhe impede de perceber a gravidade de seu quadro de saúde. A genitora é incapaz de tomar conta da situação sozinha. (Solicitação do Ministério Público de encaminhamento para avaliação médica e internação psiquiátrica)
A mãe teme que o menino a machuque, diz ser refém do filho. A genitora afirma que, antes de se envolver com más companhias e fazer uso de drogas, o filho não era mau, era um filho que lhe dava beijos e pedia desculpas. Enquanto estiver envolvido com drogas, não se vinculará aos tratamentos. (Relatório assinado por Assistente Social)
Nos trechos acima, vemos a questão do uso de drogas como principal fundamento utilizado para justificar a necessidade de intervenção do Estado. Posteriormente, nesses mesmos processos, o foco recai nas demais condutas que são relacionadas a supostas faltas morais praticadas pelos jovens:
Genitora relata que o adolescente é muito rebelde e que não frequenta a escola. O jovem alegava que queria trocar de escola, mas na outra não havia mais vaga. A mãe acredita que o seu maior problema é a preguiça. (Entrevista realizada com a genitora pela equipe técnica do MP)
Outro trecho, retirado de uma Ficha de Identificação de Aluno Infrequente - FICAI -, as educadoras afirmam que: "Os responsáveis foram convocados à escola, mas não compareceram para entrega da avaliação. A avó compareceu, falando que o menino vive solto, sem o controle de ninguém". Já em uma entrevista realizada com a genitora pela equipe técnica do Ministério Público: "Jovem [menor de 16 anos] não trabalha, só faz biscates. Genitora disse que o jovem não quis mais estudar e 'fica ao redor de casa o dia todo como um bocó'".
A primeira contradição8 8 Ao utilizarmos a palavra contradição, referimo-nos à presença de afirmações que se contradizem dentro dos próprios discursos da Psicologia e do Direito em torno da proteção. Isto é, ao mesmo tempo em que esses campos de saber produzem determinadas verdades que os legitimam para intervir sobre a vida dos jovens, eles vão fundamentar suas intervenções a partir de outras questões que não aquelas que afirmavam ser seu sustentáculo. que emerge na análise dos materiais é, portanto, esse deslocamento que vai ocorrendo nas descrições a respeito dos jovens, diminuindo o foco sobre as relações do sujeito com o uso de drogas e direcionando-se para uma descrição geral das suas condutas. Essas narrativas somam-se na construção de uma biografia do adolescente em questão, que vai ser organizada justamente a partir das faltas praticadas pelo jovem. O movimento de construção de uma biografia desses adolescentes está relacionado à existência da noção de que, através da biografia do sujeito, é possível realizar uma prognose do seu envolvimento com atos criminalizados. Essa noção teve sua consolidação através dos exames médicos legais, que destacavam a importância do registro da vida pregressa do delinquente (Ferla, 2009). Dá-se aí a constante presença de consulta aos "antecedentes criminais", a reconstrução da história de vida e a identificação dos antecedentes mentais mórbidos nos documentos que instruem os processos dos adolescentes.
As biografias narradas nos autos processuais produzem um discurso de patologização e criminalização que recai sobre o indivíduo e seu comportamento, estando para além do uso de drogas ou de qualquer ato criminalizado efetivamente cometido. Trata-se de reconstruir aquilo que Foucault, em seu curso de 1974-1975, chamou de:
faltas sem infração, ou também de defeitos sem ilegalidade. Em outras palavras, mostrar como o indivíduo já se parecia com seu crime antes mesmo de o ter cometido [aqui, cabe verificar como as histórias dos adolescentes se parecem com as biografias daqueles sujeitos que já cometeram atos criminalizados]. ... Porque, no fim das contas, essa série é a prova de um comportamento, de uma atitude, de um caráter, que são moralmente defeitos, sem ser nem patologicamente doenças, nem legalmente infrações (Foucault, 1974-1975/2001, pp. 24-25)
A partir dos fundamentos oferecidos pelos saberes psi, presenciamos a proliferação de discursos que recaem: ora sobre o psiquismo - e podem supostamente ser aferidos pela estrutura das relações familiares e por traços de personalidade - , ora sobre a constituição genética e neurológica - aferidos nos autos processuais pelos históricos familiares de doença mental e, mais recentemente, pelas vivências dos primeiros anos de vida9 9 Aqui, fazemos uma alusão à pesquisa desenvolvida pelo então Secretário Estadual de Saúde do RS, Osmar Terra, e seus colegas pesquisadores sobre a possibilidade de identificação do gene da violência e do mapeamento cerebral das áreas ligadas à expressão do comportamento violento. Um dos argumentos que compõem o estudo é o de que é de zero a dois anos de idade que a criança desenvolve a propensão a esse tipo de comportamento. http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/pucrs/Capa/Noticias?p_itemid=1903474 - e ora sobre o social - relacionados à exposição à pobreza e a demais aspectos das condições de vida. Dessa forma, práticas legitimadas como científicas e, portanto, supostamente neutras, acabam por psicologizar o político e naturalizar formas de ser e estar no mundo como desviantes e necessitadas de tratamento.
Iniciou o uso de drogas aos 10 anos de idade, passou a ter conduta agressiva na escola e a incitar os demais colegas ao uso. Por fim, saiu de casa e deixou de frequentar as aulas. Na residência da família, moram a mãe, o padrasto e mais 8 filhos. A menina responde bem a um ambiente continente e estruturador, tal qual oferecido na internação psiquiátrica. Em avaliação neuropediátrica, foi constatado que suas funções corticais são compatíveis com a idade, concluindo que as deficiências se devem a falta de estímulo e a condições socioculturais precárias. (Parecer Assinado por Psiquiatra e Assistente Social, fornecido após internação psiquiátrica)
O adolescente possui histórico de vivência de rua e acolhimento institucional desde os 07 (sete) anos de idade, bem como envolvimento com atos infracionais e uso de substâncias psicoativas desde os 08 (oito) anos. Solicita-se internação provisória na FASE para afastamento das ruas e tratamento contra drogadição. (Petição inicial do MP)
Destaca-se, também, que é esse mesmo discurso em torno da prognose da criminalidade que legitima a necessidade de intervenção do Estado e dos especialistas quando a criança ou o adolescente ainda estão em fase de desenvolvimento, posto que seria nesta fase que supostamente se daria a formação das bases da delinquência. Caberia aos especialistas, através de exame criterioso, diagnosticar a existência de um estado pré-deliquencial nesses jovens (Ferla, 2009).
Jovem faz uso de drogas, está sem estudar e volta para a casa da mãe somente para comer e dormir um pouco. Tem um irmão que também faz uso de drogas e está morando na rua; este tem comprometimento com ato infracional. A genitora afirma que o jovem está seguindo o mesmo caminho do irmão. O jovem se encontra em situação de risco. (Petição Inicial do MP)
Os jovens estão há 3 anos sem ir na escola e recusam tratamento de saúde. A genitora não tem mais controle sobre os filhos. Um deles já cometeu ato infracional contra o patrimônio. Permanecem nas ruas e voltam eventualmente para casa para comer e dormir. (Petição Inicial do MP)
Reishoffer e Bicalho (2009) destacam que a presença dessa "natureza" nos adolescentes é o que vem justificar a adoção de medidas extremadas de controle social e repressão dos entendidos como aqueles que compõem uma "classe perigosa". Ao acompanharmos as biografias construídas por especialistas psi e outros técnicos sociais e da saúde, é possível visibilizar o quanto elas se organizam de maneira a revelar como se manifesta o comportamento patológico no sujeito e as razões pelas quais é correto interná-lo, reinterná-lo e mantê-lo recluso pelo maior tempo possível (Goffman, 1974).
Isso pode ser observado em um relatório de um serviço da Assistência Social, assinado por psicólogo, educador e assistente social: "O menino está em situação de rua e mendicância, fazendo malabares, utilizando o dinheiro para uso de drogas, crack. Tem ameaçado e apedrejado os técnicos sociais. Sugere-se internação compulsória por uso de crack". Da mesma forma, na certidão do Oficial de Justiça afirma-se: "No cumprimento do mandado de encaminhamento para avaliação psiquiátrica, cheguei ao local acompanhado pela Polícia Militar, que conseguiu apreender o jovem, este reagiu violentamente. Foi avaliado e encaminhado para internação compulsória em clínica psiquiátrica".
As ciências psi, que dão sustentação à elaboração desses documentos, ao mesmo tempo em que produzem uma prática individualizada sobre os adolescentes, operam também na construção de um perfil através da padronização dos modelos explicativos. Por um lado, temos a patologização dos comportamentos, vivências e condutas, o que permite a individualização das ações sobre um determinado jovem; por outro lado, temos a construção de um perfil que permite identificar esses sujeitos em meio à população.
Da vida de alguém à biografia de ninguém
A segunda contradição que identificamos ao aproximarmo-nos dos materiais de pesquisa e que entendemos como fundamental na compreensão dos mecanismos que auxiliam na promoção de uma inversão das práticas protetivas em práticas punitivas é o quanto esses processos judiciais, e as decisões tomadas a partir deles, dialogam com um conjunto de documentos que não falam de uma criança ou de um adolescente concreto, mas sim de um sujeito abstrato. Com isso, não queremos dizer que existiria um adolescente aquém dos discursos que se produzem sobre ele, pois entendemos que o indivíduo não pode ser considerado como um elemento externo às práticas de poder, mas evidenciar o quanto os laudos, pareceres e outros relatórios presentes nos autos processuais vão traçando menos uma história singular de vida e muito mais a caracterização desta categoria populacional "adolescentes usuários de drogas".
Através dos laudos, pareceres e relatórios, vemos a tradução da vida dos jovens para uma linguagem médico-psico-jurídico-social. Essa linguagem técnica caracteriza-se pela padronização da escrita e utilização repetida de determinados modelos explicativos nos processos, o que nos dá a sensação de estarmos sempre diante do mesmo sujeito. A essas narrativas uniformes são oferecidas respostas também uniformes, dentre as quais a internação psiquiátrica é a escolha privilegiada10 10 Sobre esse fator, deter-nos-emos logo adiante. .
Gize-se [Frise-se] que o integrante do polo passivo [réu] possui o abominável hábito de passar o dia ao largo da residência, retornando no turno da noite, de todo em todo entorpecido; se admoestado, o jovem torna-se truculento, ofendendo a requerente com palavras torpes e vis, sequer passíveis de transcrição. Obtempere-se [Pondere-se] que o requerido, em estado deplorável, abandonou o tratamento contra a drogadição, realizado junto a uma clínica psiquiátrica. Donde se impõe a salvaguarda da higidez mental do adolescente, sua condução coercitiva ao serviço de saúde, cumprindo submetê-lo a avaliação médica, aferindo-se a patologia de que é portador para realizar-se internação em nosocômio apropriado, às expensas do poder público municipal. (Petição Inicial da Defensoria Pública)
A crença do juiz é a de que, com o apoio dos técnicos, esse sujeito que lhe é apresentado é o sujeito mais científico possível (Ferla, 2009). As ciências psi ganham destaque, nesse sentido, porque são aquelas que supostamente possuem técnicas científicas de acesso à interioridade do sujeito, ao funcionamento da sua mente, aos segredos de sua personalidade e à essência da sua índole. Entretanto, no intuito de extrair as verdades ocultas desse sujeito, os discursos científicos que o envolvem acabam protagonizando a fabricação de determinados modos de ser adolescente usuário de droga que contribuem para a ilusão de que sejam homogêneos.
Aos 11 anos de idade já havia passado por 5 internações. ... As internações tiveram resultados pífios. Se o jovem tivesse ficado em uma internação sem interrupção, em leito hospitalar com continência e tratamento intensivo, talvez seu futuro pudesse ter sido outro. O menino desafia o lugar de autoridade dos adultos, apresenta certa indiferença pelos sentimentos alheios, desrespeito por normas e obrigações sociais, além de baixa tolerância a frustrações. (Oitiva da Psicóloga do abrigo)
A presença dessa padronização descritiva alia-se a outro mecanismo muito eficaz, que é o da seletividade dos registros; ambas as estratégias buscam dar sustentação e coerência à escrita dos documentos (Goffman, 1974). Os registros seletivos vão ter como foco as ações reconhecidas como inconvenientes no comportamento dos indivíduos. Nos processos judiciais dos jovens, essas ações correspondem a períodos anteriores às internações, durante o seu curso e após a alta e são utilizadas para justificar a necessidade de novas e repetidas internações. Ferla (2009) atenta para o fato de que a arbitrariedade embutida nessa operação é que, por mais complexa que seja a vida dos sujeitos e repleta de impulsos e reviravoltas, os fatos apresentados nas biografias não podem ser contraditórios ou desarticulados. Para o autor, o mascaramento das contradições acaba por esvaziar o seu conteúdo tecnicamente eficiente. Abre espaço para a ilusão de que cada sujeito possuiria somente uma biografia, que nela estaria narrada a realidade dos fatos de sua vida e que essa realidade seria igual para todos.
A exemplo disso, em parecer de um hospital assinado por assistente social, diante do pedido do juiz de avaliação para verificar se deveria duplicar o período de dias destinados à internação compulsória, afirma-se: "Durante a internação houve fugas. O menino depredou a estrutura física do hospital, possui baixa tolerância, falta de respeito para com os profissionais. Paciente referiu não querer parar de usar drogas".
A demanda de produção de documentos para instrução de um processo judicial potencializa a tendência do registro de informações que enfoquem os desvalores e os desvios do adolescente. Essa é uma escrita que busca manter as conexões lógicas e lineares nas atitudes e comportamentos; a cada nova ação do sujeito, há um movimento de resgate, como se aquela fosse a continuidade de uma ação precedente. Essa linearização dos fatos busca produzir um efeito causal que inter-relaciona as faltas cometidas e as soma para produzir fundamento para as medidas interventivas da "rede de proteção".
Proteção como controle e normatização: as justificativas para internação
Em consonância com essa lógica de patologização e criminalização dos jovens, vemos articularem-se, em torno da oferta de proteção social, ações que têm como foco principal o controle do comportamento do indivíduo no momento em que se esboça. Apontamos essa característica como a terceira grande contradição presente nos processos judiciais, pois se aproxima menos da lógica de cuidado e mais das estratégias centrais utilizadas na ação penal.
Para compreendermos como instituições de proteção promovem ações punitivas, trazemos Foucault (1973/2003), que destaca:
O controle dos indivíduos, essa espécie de controle penal punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e correção - a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas para a correção. É assim que, no começo do século XIX, desenvolve-se, em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência. (p. 86)
Essas instituições são compostas hoje por Escolas, Abrigos, Empresas, Conselhos Tutelares, Unidades de Saúde da Família, Centros de Referência em Assistência Social - criados para estar próximos daquelas populações mais carenciadas que estavam sem ou com pouco acesso aos serviços oferecidos pelo Estado e, por consequência, fora das redes de vigilância - , entre outras.
Foucault (1973/2003) destaca que essas instituições, apesar de estarem para além do âmbito judiciário, se encarregam do controle do tempo, do controle dos corpos e do exercício de um tipo de poder que chama de "poder judiciário", que consiste no direito de punir, julgar e recompensar. Além disso, elas exercitam um poder que Foucault (1973/2003) intitulou de "poder epistemológico", que seria o poder de extrair um saber sobre os indivíduos que nasce de sua observação, classificação e registro e da análise de seus comportamentos. Essa forma de poder, diferente do formato do inquérito, que consiste em buscar uma reatualização dos fatos, é um saber que parte da vigilância, do exame organizado em torno do indivíduo durante toda a sua existência. Quanto mais se multiplicam as instituições de cuidado, tanto mais aumentam as possibilidades de produção de registros e de saberes sobre os sujeitos e tanto mais se pulveriza e amplia a possibilidade de se exercer sobre a população esse poder judicial.
Quando olhamos para os processos judiciais e analisamos as justificativas explicitadas como aquelas que justificariam a necessidade de internação, observamos o quanto essa é uma ação que se fundamenta muito mais na lógica do controle dos comportamentos do que de tratamento em saúde. Algumas justificativas para internação para tratamento por drogadição presentes nos processos analisados evidenciam sobremaneira essa questão:
- "Solicita-se internação hospitalar no intuito de afastá-lo das ruas" (Solicitação do MP de ação de busca e apreensão).
- "O adolescente foi internado devido ao uso de drogas e conduta agressiva" (Comunicação de internação involuntária assinada por psiquiatra).
- "A internação pode servir como forma de proteção frente à exploração sexual infantil" (Parecer Médico - Serviço de Emergência).
- "O tempo da internação auxiliaria a família se reorganizar" (Relatório da Assistência Social assinado por Psicólogo, Assistente Social e Educador).
- "Solicita-se internação psiquiátrica de urgência, pois teme-se pela vida do jovem, que está ameaçado de morte por traficantes" (Petição Inicial do MP).
- "Garante-se, com a internação, o desenvolvimento e a formação saudáveis do feto, frente ao comportamento destrutivo da mãe" (Petição Inicial do MP).
- "A internação psiquiátrica é apontada como uma alternativa mais eficaz que o tratamento ambulatorial porque evita o acesso às drogas e a recaída" (Petição Inicial do MP).
- "A internação é o primeiro passo para retirar o jovem do caminho da criminalidade" (Petição Inicial da Defensoria Pública).
Ainda, em documento produzido pelo Judiciário em que o juiz enuncia suas conclusões sobre o processo, esse afirma que:
A internação compulsória é aplicada aos casos de toxicomania por entorpecentes ou inebriantes quando provocada necessidade de tratamento ou quando for conveniente à ordem pública. Diante disso, defere-se a medida de cautela enquanto durar os sintomas; encaminhamento para avaliação médica; mandado de condução coercitiva com urgência com auxílio da força pública; o laudo médico deve ser submetido ao juiz para avaliar internação.
Frases como essas aparecem escritas por operadores do Direito, mas aparecem, majoritariamente, escritas pelo conjunto dos especialistas psi e demais técnicos sociais. Nesse sentido, destacamos a função que vai sendo assumida por esses profissionais, que não é somente de oferecer um saber técnico, mas de promover um julgamento moral. Na grande maioria dos casos, cabe ao juiz reiterar as indicações desses profissionais através do "cumpra-se", mas quem está afirmando como o Estado deve proteger, cuidar, abrigar, punir, internar, em última instância, são os psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais que redigem as pilhas de documentos que recheiam as capas dos autos processuais.
E não venham me dizer que agora são os juízes que julgam e que os psiquiatras apenas analisam a mentalidade, a personalidade psicótica ou não dos sujeitos em questão. O psiquiatra [e aqui os demais profissionais, da mesma forma] se torna efetivamente um juiz; ele instrui efetivamente o processo, e não no nível da responsabilidade jurídica dos indivíduos, mas no de sua culpa real. E, inversamente, o juiz vai se desdobrar diante do médico. Porque, a partir do momento que ele vai efetivamente pronunciar seu julgamento, isto é, sua decisão de punição, não tanto relativa ao sujeito jurídico de uma infração definida como tal pela lei, mas relativa a esse indivíduo que é portador de todos esses traços de caráter assim definidos, a partir do momento em que vai lidar com esse duplo ético-moral do sujeito jurídico, o juiz, ao punir, não punirá a infração. Ele poderá permitir-se o luxo, a elegância, a desculpa, como vocês preferirem de impor uma série de medidas corretivas, de medidas de readaptação, de medidas de reinserção. O duro ofício de punir vê-se assim alterado para o belo ofício de curar. É a essa alteração que serve, entre outras coisas, o exame psiquiátrico (Foucault, 1974-1975/2001, pp. 28-29).
Embora Foucault (1974-1975/2001) esteja se referindo aos exames psiquiátricos realizados para atestar a imputabilidade ou não dos sujeitos que cometeram crimes, acreditamos que esse trecho nos auxilia a pensar sobre os modos como vão se articulando os saberes psi aos ofícios da Justiça. Ele visibiliza o quanto, na relação entre ambos, vai se potencializar a ação de um poder de normalização que se ocupará desse sujeito supostamente potencialmente delinquente.
O obscurecimento das contradições e a manutenção da legitimidade da "rede de proteção"
"Questionaram o próprio sobre o irmão, mas este não quis entregá-lo, mesmo para sua proteção através da avaliação médica. Disse que se localizassem o irmão, seriam recebidos à bala." (Certidão do Oficial de Justiça)
O serviço havia pactuado com ele que após a alta da internação, iria para uma Comunidade Terapêutica, mas o menino evadiu e foi encontrado na rua fazendo malabares. Justificou que o irmão havia lhe alertado que a permanência em instituições como aquela eram muito negativas. (Relatório da Assistência Social)
É interessante que, mesmo povoadas de ambiguidades e controvérsias, as ciências duvidosas que instruem os processos judiciais conseguem manter a legitimidade das justificativas oferecidas para internação dos adolescentes, isso porque se aliam a outros interesses sociais de manutenção de certos estatutos de verdade. No cenário atual, para compreendermos alguns dos interesses que se aliam à necessidade de internar certa parcela da população, podemos citar exemplos como: a necessidade de diminuição dos índices de criminalidade, que denunciam os níveis de desigualdade de um país subdesenvolvido que emerge no cenário mundial como uma das novas superpotências econômicas. Poderíamos citar, também, o movimento de limpeza das ruas, que se espalha pelo país à medida que nos aproximamos das datas dos grandes eventos esportivos internacionais que acontecerão no Brasil. Além disso, podemos referir a existência dessa sociedade cercada pelo discurso do medo e assombrada pelo mito das classes perigosas (Coimbra, 2001). Essas e outras tantas questões contribuem para a emergência de um terreno fértil para a sustentação de saberes que produzam uma desigualdade naturalizável como verdade, ainda que haja outras produções bastante expressivas que colocam as contradições do discurso científico em questão.
Reishoffer e Bicalho (2009), ao analisarem a produção de subjetividades a partir da proliferação da insegurança no Brasil, vão mostrar como, com o processo de redemocratização do país, os principais veículos de comunicação passam a denunciar o aumento da violência urbana e auxiliam na promoção de um sentimento de insegurança na população e de um recrudescimento das políticas de segurança pública. Posteriormente, com o fortalecimento da lógica neoliberal e diminuição da intervenção do Estado nas questões econômicas e sociais, a ordem pública passa a confundir-se com o controle da criminalidade e neutralização daqueles que colocam em risco o sossego dos "cidadãos de bem". Em detrimento da ausência do Estado no controle da desigualdade social, temos o aumento de suas ações no controle penal. O Estado Penal, apoiado por uma criminologia de cunho positivista, buscou identificar de forma objetiva e asséptica o inimigo interno, em nome da defesa da ordem pública, diante da guerra civil contra o crime organizado e contra as drogas. A figura do jovem negro e pobre como sujeito potencialmente delinquente que representa ameaça caracteriza de forma expressiva a presença desse discurso, supostamente científico e claramente moralista, que criminaliza a desigualdade e a pobreza.
Baratta (1999) utiliza o conceito de metarregras para explicar essa seletividade presente no campo do controle do crime. Segundo o autor, existiram critérios, fundados em certos valores socialmente aceitos, que funcionariam como metarregras que conduzem a aplicação das regras formalmente constituídas. No âmbito do Direito Penal essas metarregras refletiriam em um maior ou menor rigor na aplicação da lei relacionados ao tipo de crime cometido ou a quem o cometeu. O procedimento afirma a presença de certos crimes eleitos como aqueles que devem ser fortemente combatidos (como o tráfico de drogas) e aqueles que podem ser tolerados (como o compartilhamento de filmes pela internet). No que se refere aos sujeitos considerados delinquentes, da mesma forma, existe um recrudescimento da força punitiva sobre certos grupos populacionais em detrimento de outros. Para constatar isso, bastaria olharmos para a população carcerária e verificar que ela não é representativa do montante de pessoas que praticam atos delituosos. Nesse sentido, evidencia-se que o que está em questão na aplicação da lei penal não é somente a tutela dos direitos, mas um recorte político no interior da população, constitutivo de categorias populacionais para quem será destinada com maior severidade a força punitiva da lei.
Reishoffer e Bicalho (2009) ressaltam que a (in)segurança pública se constitui como um dos vetores na produção de subjetividades no contemporâneo. Isso significa que esse é um vetor que contribui na construção de modos de pensar, sentir e atuar no mundo. Nesse sentido, constitui-se como um elemento importante na compreensão daquilo que nos leva a aceitar determinados enunciados como verdade. Assim, evidenciamos que a produção de sentidos atrelada ao campo da segurança pública vai produzir efeitos tanto no nível micropolítico relacionado à produção de subjetividades quanto no nível macropolítico no delineamento de políticas de segurança pública.
Muito recentemente, vimos a aprovação na Câmara dos Deputados do projeto de lei nº 7663 de 2010, proposto pelo deputado gaúcho Osmar Terra, que objetiva, dentre outras ações, dar aos médicos o poder de internar compulsoriamente usuários de drogas, dispensando a intervenção dos juízes. O fundamento do deputado é o de que o médico possui condições de estabelecer tecnicamente a necessidade ou não de internação dos usuários de drogas. Diante disso, o processo judicial seria um dispêndio de tempo frente à urgência dos tratamentos. Entretanto, se de fato reconhecermos que a internação psiquiátrica de usuários de drogas tem servido, não unicamente, mas expressivamente, como um mecanismo de punição e segregação social, a aprovação desse projeto representaria delegar aos médicos o poder de punir e segregar em nome da manutenção da vida. Seria afirmar que os médicos, para promover saúde, podem suspender a autonomia e a liberdade dos sujeitos. Ainda, representaria abrirmos espaço para a legitimação de novas técnicas higienistas que têm como objetivo último a manutenção da ordem social.
Embora permeados de contradições, poucos são os espaços democráticos de discussão sobre esse tema, e grande é a urgência social por medidas que ponham fim à famigerada "epidemia das drogas". Pelo imperativo do medo e pelo disfarce da proteção, aceitam-se o recolhimento dos jovens das ruas, as intervenções sobre as famílias, as internações compulsórias em massa e a aprovação de leis sem debate.
Por quanto tempo ainda seguiremos cegos, silenciados, negligentes e aliados à violência institucional a que estão submetidos esses jovens? Por quanto tempo ainda seguiremos produzindo desproteção em nome da garantia de direitos? Passamos muito tempo investindo em um poder que tem por objetivo potencializar a vida e, com isso, produzimos múltiplas formas de controle, normatizações e medicalizações. Talvez esteja na hora de apostarmos em práticas de liberdade - não no sentido romântico ou utópico do termo, mas sim na construção de práticas que promovam aberturas e linhas de fuga para outros modos de ser e viver na contemporaneidade.
Notas
Lei 8.069, de 13 julho de 1990 (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF. Acesso em 15 de março, 2012, em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
Submissão em: 07/11/2013
Revisões requeridas 30/03/2014
Aceite em: 20/04/2014
Carolina dos Reis é Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente na Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: carolinadosreis@gmail.com
Neuza Maria de Fátima Guareschi é Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação. Endereço: Rua Ramiro Barcelos, 2.600 .Sala 300C. Porto Alegre/RS, Brasil CEP: 90035-003 E-mail: nmguares@gmail.com
Salo de Carvalho é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. - UFPR. E-mail: salo.carvalho@uol.com.br
- Baratta, A. (1999). Criminologia crítica e crítica do Direito Penal (2ª ed.). Rio de Janeiro: Revan.
- Coimbra, C. (2001). Operação Rio: o mito das classes perigosas - um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor.
- Ferla, L. (2009). Feios sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo São Paulo: Alameda.
- Foucault, M. (2001). Os anormais. Curso no Collège de France (E. Brandão, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1974-1975)
- Foucault, M. (2003). A verdade e as formas jurídicas (3ª ed., R. C. M. Machado & E. J. Morais, Trads.). Rio de Janeiro: NAU Editora. (Obra originalmente publicada em 1973)
- Goffman, E. (1974). Manicômios, prisões e conventos São Paulo: Perspectiva.
- Oliveira, D. C. & Dias, M. H. (2010). Os adolescentes usuários de crack e a rede de cuidados: problematizações a partir de uma experiência (pp. 27-42). In L. Santos (Org.), Outras palavras e diferentes olhares sobre o cuidado às pessoas que usam drogas. Porto Alegre: Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul.
- Petuco, D. (2011). Entre imagens e palavras: o discurso em uma campanha de prevenção ao crack Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
- Reishoffer, J. C. & Bicalho, P. P. G. (2009). Insegurança e produção de subjetividade no Brasil contemporâneo. Fractal Revista de Psicologia, 21(2), 425-444.
- Resende, C. C. F. (2008). Aspectos legais da internação psiquiátrica de crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais. Revista Igualdade Edição Temática Drogadição, 41, 98-152. Acesso em 4 de novembro, 2013, em http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_37_7.php
- Scisleski, A. (2010). Governando vidas matáveis: as relações entre a saúde e a justiça dirigidas a adolescentes em conflito com a lei Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
- Scisleski, A. (2006). "Entre se quiser; saia se puder": o percurso dos adolescentes pelas redes sociais e a internação psiquiátrica Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
- Silva, R. N., Hartmann, S., Scisleski, A. C. C., & Pires, M. L. (2008). As patologias nos modos de ser criança e adolescente análise das internações no Hospital Psiquiátrico São Pedro entre 1884 e 1937. Revista Psico, 39(4), 448-455.
- Vicentin, M. C. G., Gramkow, G., & Matsumoto, A. E. (2010). Patologização da adolescência e alianças psi-jurídicas: algumas considerações sobre a internação psiquiátrica involuntária. BIS, Boletim do Instituto de Saúde, 12(3), 268-272.
Sobre jovens drogaditos: as histórias de ninguém
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Ago 2014 -
Data do Fascículo
2014
Histórico
-
Aceito
20 Abr 2014 -
Revisado
30 Mar 2014 -
Recebido
07 Nov 2013