Resumo
Este artigo objetiva problematizar a ausência majoritária de homens negros nos Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). Analisamos um discurso acerca dos usuários do serviço, proveniente de entrevistas realizadas para uma pesquisa mais ampla produzida com trabalhadoras/es do serviço em uma cidade do sul do país. O olhar aqui se pautou na análise do discurso de Laclau e Mouffe (2015), localizando articulações discursivas que inscrevem identidades sociais e produzem a relação sensível do sujeito com o mundo, disputando espaço no campo conflitivo do social. Como resultados da pesquisa, percebemos o racismo como produtor de uma fronteira sensível na relação da equipe com homens da comunidade, de forma que estes corpos são assumidos como perigosos e ameaçadores, afastando-os da leitura que os assume como sujeitos em vulnerabilidade social e como corpo ao qual a política pública de assistência social se destina.
Palavras-chave:
Racismo; Política de Assistência Social; CRAS; Relações Raciais; Redes comunitárias
Resumen
Este artículo tiene como objetivo problematizar la ausencia mayoritaria de hombres negros en Centro de Referencia de Asistencia Social - CRAS. Analizamos un discurso sobre los usuarios del servicio, a partir de entrevistas realizadas para una investigación más amplia realizada a trabajadores del servicio en una ciudad del sur del país. La mirada se basó en el análisis del discurso de Laclau y Mouffe, ubicando articulaciones discursivas que inscriben identidades sociales y producen la relación sensible del sujeto con el mundo, disputando espacios en el campo conflictivo de lo social. Como resultado, percibimos el racismo como una frontera sensible en la relación del equipo con los hombres de la comunidad, en la que se asume que estos cuerpos son peligrosos y amenazantes, alejándolos de la lectura que los asume como sujetos en vulnerabilidad social y como el cuerpo a que se dirige la política pública de asistencia social.
Palabras-clave:
Racismo; Política de asistencia social; CRAS; Relaciones raciales; Redes Comunitarias
Abstract
This article aims to problematize the majority absence of Black men in the Centro de Referência da Assistência Social - CRAS [Reference Center for Social Assistance]. We analyze a discourse about service users from interviews conducted for a broader research produced with service workers in a city in the south of Brazil. The perspective was based on Laclau and Mouffe's discourse analysis, locating discursive articulations that inscribe social identities and produce the subject's sensitive relationship with the world, disputing space in the conflictive social field. As a result, we perceive racism as a producer of a sensitive frontier in the team's relationship with men in the community, in a way that these bodies are assumed to be dangerous and threatening, moving them away from the reading that assumes them as subjects in social vulnerability and as a person for whom the public policy of social assistance is intended.
Keywords:
Racism; Social Assistance Policy; CRAS; Racial Relations; Community Networks
Introdução
O artigo1 1 O artigo é um desdobramento de uma pesquisa mais ampla iniciada em 2014, no Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política (NUPRA), contando com bolsistas de iniciação científica, mestrandas/os e doutorandas/os e pesquisadores de outras universidades, sendo coordenada pela Prof. Dr. Kátia Maheirie. Entrevistou-se equipes de CRAS de diversas cidades do Brasil, a fim de investigar as potências dos processos grupais e os processos de subjetivação política inscritos nestes serviços. versa sobre a política de assistência social e objetiva problematizar a ausência majoritária de homens negros nos Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) desde a ótica das relações raciais. Analisamos um discurso acerca dos usuários do serviço, a partir de entrevistas realizadas para uma pesquisa mais ampla, produzida com trabalhadoras/es do CRAS, em uma cidade do sul do país. O olhar se pautou na análise do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (2015). Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. Intermeios.), localizando articulações discursivas que inscrevem identidades sociais e produzem a relação sensível do sujeito com o mundo, disputando espaço no campo conflitivo do social.
Discutem-se as inscrições raciais envolvidas na relação do serviço com os usuários, propondo questões que podem estar relacionadas com o acesso minoritário de homens negros no serviço. O CRAS é parte do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), criado em 2005, sendo organizado de forma unificada e compondo-se por unidades de referência distribuídas em dois níveis de atenção. O Sistema faz parte da proteção social básica e têm o objetivo de promover direitos e fortalecer vínculos familiares e comunitários, em especial a partir do acompanhamento de famílias em condição de vulnerabilidade (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2005). Política nacional de assistência social: PNAS/2004: norma operacional básica NOB/SUAS. Secretaria Nacional de Assistência Social. Autor. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf
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).
A população que mais acessa o serviço é a população negra, no entanto, os homens estão majoritariamente ausentes deste serviço, ainda que estejam no campo de abrangência que o Plano Nacional de Assistência Social (PNAS) demarca enquanto “usuários” do CRAS e esta seja a população que mais morre no Brasil, segundo dados do Atlas da Violência produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2019).
Nesta via, é importante situar que entendemos racismo tal como proposto por Lia Schucman, ou seja,
como uma construção ideológica, que começa a se esboçar partir do século XVI com a sistematização de ideias e valores construídos pela civilização europeia, quando estes entram em contato com a diversidade humana nos diferentes continentes, e se consolida com as ideias científicas em torno do conceito de raça no século XIX. (Schucman, 2012Schucman, Lia Vainer (2012). Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo [Tese de Doutorado em Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP]., p. 33)
Para desenvolver nossa investigação, localizaremos algumas dinâmicas que estão envolvidas na configuração dos acessos ao CRAS e sobre modos de aparecimento, trazendo as relações raciais como o fio condutor da análise e pensando a relação do serviço com a população negra e seu território de abrangência, sobretudo, os usuários majoritariamente ausentes do CRAS: os homens negros.
Usaremos “usuários” no masculino, como uma maneira de dialogar com o sujeito ao qual nossa pesquisa se refere e “trabalhadoras/es” no feminino e em seguida no masculino, considerando que as equipes dos serviços que entrevistamos eram formadas, majoritariamente, por mulheres.
Biopoder e Racismo de Estado
Segundo Michel Foucault (1978-1979/2008Foucault, Michel (1978-1979/2008). Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Martins Fontes.), os mecanismos de seguridade social - dentre eles as Políticas Públicas - são um efeito da constituição do Estado Moderno, emergentes no processo de passagem da Idade Média para a Modernidade, marcando a transição de uma sociedade centrada no poder soberano para a formação de um Estado-nação, que implica a constituição de outras formas de exercício do poder.
Foucault percebe que, a partir dos séculos XVII e XVIII, houve uma transformação do caráter do exercício do controle da população, inscrevendo-se na ordem do biopoder, ou seja, poder que incidia sobre a vida como elemento político passível de administração e gestão. Segundo Foucault (1988Foucault, Michel (1988). História da Sexualidade, 3: O Cuidado de Si. Graal., p. 131):
este bio-poder ... foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.
O poder soberano, que operava a partir do “fazer morrer, deixar viver”, deu lugar a um tipo de poder que tinha a vida como objeto de controle, ao mesmo tempo em que incidia na morte de determinadas populações. Isto porque, para manter o direito de causar a morte, é necessário que se invoque a grandeza de um crime, a monstruosidade do criminoso e sua relação com a defesa da sociedade.
Tem-se, assim, que as justificativas para a morte de parcela da população passam por um discurso de risco biológico, em que a morte se fundamenta na defesa e proteção da vida e da espécie, produzindo-se uma justificativa para o exercício do poder de morte em um sistema político centrado no controle da vida.
Diante desse aspecto que se sustenta a partir de um discurso biológico, que passa pela proteção e ameaça à espécie, Foucault (1978-1979/2018) trata de um ponto central que define o biopoder e produz esse corte entre aquele que deve viver e o que deve morrer: o Racismo de Estado. Segundo o autor, a emergência do biopoder inseriu o racismo nos mecanismos estatais, fazendo com que seu funcionamento, em certa dimensão, passe necessariamente pelo racismo.
O racismo é, portanto, um meio de introduzir no domínio da vida um corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Dessa forma, quando tratamos de biopoder temos que tratar deste corte, que é precisamente um corte de tipo racial, diferenciando aqueles que vivem e que morrem. Essa distinção e hierarquização entre as raças será uma maneira de fragmentar, no interior da população, uns grupos em relação a outros, estabelecendo essa cesura num domínio que será considerado como sendo do campo biológico. Esta é, portanto, a primeira função do racismo: “fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder” (Foucault, 2018Foucault, Michel (2018). Em defesa da Sociedade. Curso no Collège de France, 1975-1976. Martins Fontes., p. 214).
Ao mesmo tempo, o racismo terá uma outra função, que é a de permitir uma relação positiva/produtiva, a qual se inscreve a partir do pressuposto de que quanto mais você deixar ou fazer morrer, mais há de viver, funcionando como a própria relação guerreira. Toma-se, assim, o outro como inimigo, alguém que necessariamente deve morrer para que você possa viver. Essa relação, de uma parte, não é assumida como algo do tipo militar ou guerreira, mas a partir de um discurso de proteção da espécie.
A morte do outro, que é designado enquanto parte da “raça ruim”, da “raça inferior”, é o que vai deixar a vida mais saudável e pura, uma vez que esses “perigos”, sejam externos ou internos, atuam em relação a um risco em torno da população. Numa sociedade em que o biopoder está inscrito, portanto, a raça ou o racismo é a condição de aceitabilidade para que uma vida seja tirada, a condição para que se exerça o direito de matar. O direito soberano, para atuar, precisa passar pelo racismo, produzindo um assassinato que abrange várias dimensões: tanto pelo assassínio direto, quanto por tudo que pode ser considerado um assassinato indireto, ou seja, a exposição à morte, a morte política, a rejeição etc. (Foucault, 2018Foucault, Michel (2018). Em defesa da Sociedade. Curso no Collège de France, 1975-1976. Martins Fontes.)
As elaborações de Foucault sobre biopoder e o conceito de Racismo de Estado evidenciam que o racismo é intrínseco à constituição dos Estados Modernos, visto que uma guerra antes traçada fora do Estado se tornou interna, elencando determinados corpos como inimigos, ameaças à vida social. É nesse sentido que Foucault (2018, p. 15) afirma que “a política é a guerra continuada por outros meios” e, ainda, que “sob a aparente ‘paz’, a guerra continua, ainda que silenciosa” valendo-se, portanto, como aponta Felipe Luiz (2010Luiz, Felipe (2010). Foucault genealogista: a guerra como modelo analítico das relações de poder. Cadernos de Graduação, 1(2), 145-152., p. 146), da guerra “enquanto modelo de análise do poder e de análise histórica”. Em certa dimensão, os Estados são sempre, portanto, racistas, haja vista que o Racismo de Estado é uma das expressões desta guerra, a qual é reiterada através das relações de poder, ao mesmo tempo que se inscreve na produção destas relações. “A racionalidade do poder advém de sua objetividade, do fato de que ele está a ocorrer nas relações humanas ... pulverizada nas instituições, nos indivíduos, etc. [e podendo] ser encontrado nos meandros da história” (Luiz, 2010, pp. 148-151).
No contexto brasileiro, a criminalização do corpo e dos territórios negros está presente na história, em especial pelos arranjos étnico-raciais que se inscreveram diante da ausência de políticas de reparação histórica em relação ao sistema escravocrata. Este processo delineou as relações a partir dos mais diversos campos (geográficos, institucionais) inscrevendo os próprios discursos constituidores do Estado-nação. Pensamos que esta é uma via de fazer morrer, ou seja, uma das formas pelas quais o Racismo de Estado opera, sendo reiterados a partir de normas raciais no contemporâneo, haja vista os dados sobre a população negra já citados.
Assim, na medida em que certos corpos são enquadrados como parte da “raça ruim” e como um perigo para a espécie, sendo, portanto, uma morte necessária para a proteção da vida no regime do biopoder, esses corpos perdem também sua condição de serem reconhecidos enquanto sujeitos, passando por um processo justificado e naturalizado de exclusão e discriminação. Os corpos negros, nesse cenário, são considerados um perigo para a vida e não, propriamente, uma vida. Assim, antes de serem consideradas como tais, certas populações, como a população negra, são a própria ameaça à vida.
Judith Butler (2015Butler, Judith (2015). Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Civilização Brasileira., p. 12) afirma que “uma vida específica não pode ser considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada viva”. Há certas condições de aparecimento que delimitam o que é ou não considerado uma vida e o que é ou não considerado uma perda. Têm-se aí os marcos do reconhecimento, referindo-se ao que define quais corpos são considerados vidas, dignos de fala e de proteção; separando-os daqueles considerados perigosos, ameaças e, consequentemente, desumanizados, relegados à condição de objetos. As condições de aparecimento são em si mesmas, operações de poder, que, por sua vez, delimitam tais esferas de aparição. Uma série de normativas que produzem enquadramentos circunscrevem o que pode ou não pode ser considerado uma vida e, da mesma forma, o que pode ou não ser considerado uma perda, digna de lamento e comoção (Butler, 2015).
Podemos pensar, a partir dos autores citados, que esse corte entre aqueles que devem viver e os que serão relegados à morte é um corte racial, de modo que o racismo é intrínseco às normas que produzem os marcos do reconhecimento. Butler (2015Butler, Judith (2015). Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Civilização Brasileira.) traz, ainda, que essas normas produzem enquadramentos, que operam como molduras ou figuras que direcionam afetos e interpretações: “se alguém é incriminado, enquadrado, em torno da sua ação é construído um ‘enquadramento’, de modo que o seu estatuto de culpado se torna a conclusão inevitável do espectador” (Butler, 2015, p. 23).
No contexto brasileiro, a normas raciais são importantes produtoras de enquadramentos, reiterando o lugar no qual o corpo negro é historicamente assumido pelo Estado. Nesse ponto, diversos autores têm discutido a “guerra às drogas” como um dos marcadores da criminalização do corpo negro contemporaneamente. Yanaê Meinhardt (2020Meinhardt, Yanaê Maiara (2020). Nas trincheiras do proibicionismo: a fabricação de masculinidades criminalizáveis [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC].) aponta que há uma produção de esferas de aparecimento que enquadram jovens negros em categoria desumanizantes, tal como a de “traficantes”, configurando a produção de “masculinidades criminalizáveis”, ou seja, corpos que, a priori, são assumidos a partir de uma determinada produção discursiva, a partir de relações raciais e de gênero.
O fato de estas mortes estarem nas mãos do Estado é expressivo da gramática do “fazer viver, deixar morrer”, que, no Brasil, possui um corte racial entre aqueles que são relegados à morte pelas maquinarias estatais e que se afastam do que é assumido enquanto vida e aqueles cujo corpo é lido enquanto tal, e, consequentemente, destinados à condição de sujeito. Os relatórios do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2019Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2019), Atlas da Violência 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública.) demarcam essa diferença quando evidenciam que a população que mais morre no Brasil é a de homens negros, de modo que enquanto a morte dos homens negros aumenta, a morte dos homens brancos diminui. A experiência e a vivência da masculinidade de homens brancos e homens negros no Brasil se dá de formas distintas, de modo que a morte destinada ao homem negro, em geral, está nas mãos do próprio Estado, em especial, das políticas de segurança pública.
Antônio Carlos Ribeiro (2016Ribeiro, Antônio Carlos (2016). As drogas, os inimigos e a necropolítica. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades, 238, 595-610. https://cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/251
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) ilustra esta distinção a partir das categorias “usuários” e “traficantes”, diante do campo de estudos que dissertam sobre a relação entre o genocídio das populações negras e a política proibicionista de drogas, que, segundo Maurício Fiore (2012Fiore, Maurício (2012). O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estudos CEBRAP, 92, 9-21. https://doi.org/10.1590/S0101-33002012000100002
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), é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em relação a determinado conjunto de substâncias consideradas ilícitas.
O autor demarca que a Lei n° 11.343/2006, que alterou a anterior, tornou a seletividade racial do sistema penal ainda mais evidente. Enquanto a lei anterior tipificava como crime tanto o uso como o tráfico de drogas, esta aumentou a pena direcionada ao traficante e descriminalizou o usuário. Não há, no entanto, critérios objetivos de distinção entre usuários e traficantes, assim como não há determinações quanto a quais critérios estão envolvidos no caráter da pena (penas alternativas ou privação de liberdades por uma quantidade determinada de anos). O artigo 28, § 2º, da lei afirma que essa distinção será feita atendendo “à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (Lei n° 11.343/2006Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. (2006). Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas... e dá outras providências. Presidência da República. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm
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). O autor aponta que
não há ... nada que garanta uma separação clara entre um porte de drogas ser considerado tráfico ou uso pessoal, nem mesmo a quantidade de drogas encontrada. Esta situação levou a um aumento considerável do encarceramento da juventude negra e periférica. O tráfico de drogas é o segundo ato infracional mais recorrente no país, superado apenas pelo roubo. (Ribeiro, 2016Ribeiro, Antônio Carlos (2016). As drogas, os inimigos e a necropolítica. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades, 238, 595-610. https://cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/251
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O critério é racial e territorial. A distinção feita entre traficante/usuário demarca esta seletividade, haja vista que a norma é enquadrar brancos como usuários e pessoas negras como traficantes, o que, novamente, evidencia o corte racial do Racismo de Estado que produz distintos modos de aparecimento a partir de critérios raciais. Não iremos nos aprofundar nesta discussão, mas a utilizamos para demarcar a produção de enquadramentos baseados em normas raciais. Aqui, o usuário é aquele cuja vida é reconhecida, o tornando também sujeito de direitos, haja vista que a regulação da vida se dá a partir das entidades estatais e da gestão da vida da população. Ao ser enquadrado como traficante, o sujeito negro possui a sua cidadania suspensa, se tornando ameaça à maquinaria produtora de vida e morte e tendo seu corpo relegado às instituições punitivas. Traficantes e usuários aqui aparecem enquanto enquadramentos que evidenciam a regulação dos corpos no crivo do biopoder, regulando aqueles que são designados à vida e os que não são.
Trazemos essa discussão com a intenção de implicar o CRAS nesse cenário, considerando as observações de Loïc Wacquant (2001Wacquant, Loïc (2001). As prisões da miséria. Zahar.) e Angela Davis (2009Davis, Angela (2009). A democracia da abolição: para além do império das prisões e da tortura. DIFEL.) de que o aumento das políticas de proteção social são fundamentais para a diminuição do encarceramento e ampliação do Estado penal. Apostamos que, ao darmos lugar a estes aspectos, a ampliação da discussão sobre a ausência dos homens do CRAS possa se desdobrar na produção de maiores condições de acesso desses homens a essa política social.
Método
A análise deste artigo foi feita a partir de uma fala derivada de uma pesquisa que realizamos durante os anos de 2014 a 2017, com um objetivo distinto. Para a realização desta pesquisa, entramos em contato com a Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura e solicitamos a autorização necessária. Em seguida, os trabalhadores foram contatados e convidados a participar, de modo que nos utilizamos do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pelos participantes.
Entrevistamos os 10 CRAS do município, contando com 24 psicólogas/os e 18 assistentes sociais. Os nomes das/os participantes foram substituídos para preservar a identidade das/os trabalhadoras/es. Um roteiro norteador foi utilizado para realizar as entrevistas de forma aberta e coletiva, as quais foram realizadas nos próprios CRAS. Após esse momento, as entrevistas foram gravadas através de áudio e vídeo, transcritas e categorizadas a partir dos objetivos estabelecidos anteriormente e analisadas a partir de uma perspectiva dialógica e discursiva (Laclau & Mouffe, 1985/2015), em que sujeitos em relações constroem discursos nos contextos de investigação.
Após a transcrição e leitura das entrevistas, sete categorias de análise foram criadas, de modo que essa pesquisa se ateve à categoria “Olhar sobre os usuários”, que se refere às percepções das equipes em relação aos usuários do CRAS. Utilizamos essa categoria e descartamos as demais por conta de nosso interesse em pensar questões raciais na relação entre Serviço e usuário.
A análise trabalhou a partir dos conteúdos produzidos na pesquisa mais ampla, a fim de pensá-los desde o objetivo do presente artigo. Assim, consideramos nosso trabalho como articulação discursiva. Articulação refere-se à “qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal modo que a sua identidade seja modificada como um resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante desta prática articulatória, chamaremos discurso.” (Laclau & Mouffe, 2015Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (2015). Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. Intermeios., p. 178).
Por sua vez, discurso é assumido como algo composto por palavras e ações e de natureza material; sendo, portanto, prática, uma vez que, como assinala Daniel de Mendonça (2009Mendonça, Daniel (2009). Como olhar “o político” a partir da teoria do discurso. Revista Brasileira de Ciência Política, 1(1), 153-169.), uma ação significativa tange a qualquer ação exercida por grupos sociais, identidades ou sujeitos, reconhecendo, ainda, as contradições postas em um discurso, sem a intenção de encontrar linearidade. Há o entendimento de que a precariedade, a contingência e o paradoxo são dimensões ontológicas do social, que, por sua vez, devem ser percebidos a partir da lógica do discurso. Partimos, portanto, do pressuposto de Laclau & Mouffe (2015Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (2015). Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. Intermeios.), de que o discurso produz realidades e de que nada existe fora de um campo discursivo.
Assumimos nosso trabalho enquanto possibilidade de fissuras de certas identidades sociais, a fim de interrogar modos de percepção da realidade e de relação com o comum. O campo das políticas públicas, entre eles os SUAS, é visto como um campo em disputa, onde distintos significados disputam espaço no social num terreno permanentemente indecidível (Laclau, 1996Laclau, Ernesto (1996). Emancipation. Verso.; Leite, 2014Leite, Jocileide Bidô Carvalho (2014). Sentidos da política de currículo da educação profissional técnica integrada ao ensino médio do IFPB - Campus João Pessoa [Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB].)
As falas analisadas nos permitem estabelecer uma espécie de identidade social (Laclau & Mouffe, 2015Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (2015). Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. Intermeios.). Esta identidade é discursiva e não se refere à/ao trabalhadora/r enquanto indivíduo, ao passo que as interpelam, sendo uma espécie de imaginário constitutivo das experiências. Estamos, portanto, pondo em análise estas identidades que encontramos, a fim de destrinchá-las, nomeá-las e dar lugar às constituições racializadas que nos subjetivam e que reiteram o racismo através de nossas práticas, produzindo efeitos e modos de aparecimento.
Onde estão os usuários do CRAS? Racismo de Estado, condições de aparecimento e seus efeitos no acesso ao serviço
A gente já entrou em áreas bem complicadas de gente traficando na esquina ... tem áreas em Mar Calmo que são muito parecidas com o Rio de Janeiro, o traficante na rua e tocando pagodinho, bem complicado. (Jairo, Psicólogo do CRAS 3)
Essa ideia de ‘colocar o CRAS dentro da comunidade’ é possível na nossa? ‘Não é’, ‘por quê?’ porque vai ter comunidades, partes da comunidade que não vão estar atendidas pelo conflito do tráfico, do tráfico de drogas, tem fronteiras às vezes você não pode atravessar. ... Pela segurança da equipe. (Jairo, psicólogo do CRAS 3)
No discurso em cena temos uma relação entre - traficante de drogas - na rua - tocando pagodinho, associado a áreas bem complicadas, que estão separadas da equipe por uma fronteira, visto que põem em risco a segurança da equipe.
A questão do tráfico de drogas é um dos mais complexos conflitos brasileiros. Passa, em grande parte, por uma negação do problema por parte do Estado, que se posiciona frente às substâncias ilícitas - as “drogas” - a partir de uma política proibicionista, ancorada à ideia de proteção da saúde das pessoas e da vida (Fiore, 2012Fiore, Maurício (2012). O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estudos CEBRAP, 92, 9-21. https://doi.org/10.1590/S0101-33002012000100002
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). Ainda que não tenhamos a perspectiva de aprofundar este aspecto, iremos pensar o lugar que esta categoria ocupa neste discurso, trazendo questionamentos enlaçados a elementos que compõem o discurso em análise.
Em uma linguagem normativa, traficante de drogas é a pessoa que produz uma negociação ou a venda de substâncias ilícitas, ou, ainda, “pessoa que pratica negócios ilegais ou clandestinos”2
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Dicio (2009). Traficante. https://www.dicio.com.br/traficante/
. Se, com Laclau e Mouffe (2015Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (2015). Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. Intermeios., p. 180), pensamos que “todo objeto é constituído como objeto de discurso”, entendemos que não há um traficante de drogas em si, mas uma produção discursiva em torno de determinado objeto (ou corpo), o que nos possibilita pensar “traficante” como uma categoria discursiva. Esta categoria, por sua vez, é racializada, como nos mostra os trabalhos de Priscila Vianna e Cláudia Neves (2011Vianna, Priscila Cravo & Neves, Claudia Elizabeth Abbês Baêta (2011). Dispositivos de repressão e varejo do tráfico de drogas: reflexões acerca do Racismo de Estado. Estudos de Psicologia, 16(1), 31-38. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2011000100005
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) e Benício et al. (2018Benício, Luis Fernando de Souza; Barros, João Paulo Pereira; Rodrigues, Jéssica Silva; Silva, Dagualberto Barboza da; Leonardo, Camila dos Santos; & Costa, Aldemar Ferreira (2018). Necropolítica e Pesquisa-Intervenção sobre Homicídios de Adolescentes e Jovens em Fortaleza, CE. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(nspe.2), 192-207. https://doi.org/10.1590/1982-3703000212908
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), sendo, também, generificada, haja vista que é direcionada a homens negros (Meinhard, 2020). Com Butler (2015Butler, Judith (2015). Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Civilização Brasileira.), podemos pensar, ainda, traficante enquanto um enquadramento produzido por normativas de gênero e raciais e que inscreve certos corpos em modos de aparecimento, produzindo o que Meinhard (2020) chama de masculinidades criminalizáveis.
Por sua vez, pagode aparece compondo uma identidade social atualizada no discurso em análise. Este, segundo Felipe Trotta e Luciana Oliveira (2015Trotta, Felipe da Costa & Oliveira, Luciana Xavier (2015). O subúrbio feliz do pagode carioca. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 38(2), 99-118. https://doi.org/10.1590/1809-5844201526
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), se trata de um gênero musical derivado do samba e criado em subúrbios do Rio de Janeiro, inscrito nas produções da cultura negra. Nesse sentido, Vera Lúcia Benedito (2013Benedito, Vera Lúcia (2013). Cor e territórios na cartografia das desigualdades urbanas. In Reinaldo José de Oliveira (Org.), A cidade e o negro no Brasil: Cidadania e território (pp. 95-127). Alameda.) e Azânia Nogueira (2018aNogueira, Azânia Mahin Romão (2018a). Territórios negros em Florianópolis [Dissertação de Mestrado em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC]., 2018bNogueira, Azânia Mahin Romão (2018b). A construção conceitual e espacial dos territórios negros no Brasil. Revista de Geografia, 35(1), 204-218. https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistageografia/article/view/234423
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) definem que os espaços urbanos onde estão presentes marcadores simbólicos e culturais referente à cultura negra são chamados de territórios negros.
Esses marcadores podem ser organizações sociais, como ONGs do Movimento Negro; culturais, como escolas de samba, grupos de capoeira, clubes negros, bailes de música negra, rodas de samba e pagode; religiosas, como irmandades negras e terreiros de religiões de matriz Negra, africana; políticas, que vão desde atuação de partidos ... até a posição de poder dentro desses territórios ocupados por negros, como líderes religiosos, políticos, moradores antigos ou de maior prestígio social, comerciantes, professoras, benzedeiras e parteiras. (Nogueira, 2018aNogueira, Azânia Mahin Romão (2018a). Territórios negros em Florianópolis [Dissertação de Mestrado em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC]., p. 38)
Entendemos, portanto, que estamos tratando de um território negro, ou seja, um campo geográfico, estético e sensível constituído por elementos da cultura negra, tal como o pagode. Ao mesmo tempo, os sujeitos que estão relacionados ao pagode aparecem como traficantes, categoria cujas pesquisas mostram ter sido majoritariamente relacionada ao corpo negro. Pensamos que o discurso em torno do traficante interpela esse corpo que ouve música, a partir de uma lógica que o relaciona à periculosidade e à invulnerabilidade. Nesse sentido, podemos questionar: o que configura um sujeito como traficante? E, caso esteja envolvido com o tráfico - uma questão com a qual o Estado tem que lidar -, não é, ainda assim, um usuário que necessita de proteção, justamente por estar envolvido com o tráfico? Ao nos depararmos com o pagode, não poderíamos considerá-los como sujeitos ouvindo música e pensar, ainda, a música como um local de encontro e de afirmação dos laços comunitários? Quais as possibilidades de construção de vínculos comunitários mediados pelo pagode são possíveis de serem construídos? Quais as possibilidades de criação de espaços que tragam a cultura negra como dispositivo de construção de acesso às políticas públicas de assistência? Quais as possibilidades de promoção de direitos mediados pela música e pelos marcadores culturais do território?
A lógica, discutida por Ribeiro (2016Ribeiro, Antônio Carlos (2016). As drogas, os inimigos e a necropolítica. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades, 238, 595-610. https://cadernosdoceas.ucsal.br/index.php/cadernosdoceas/article/view/251
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), que está envolvida com a seletividade penal que distingue usuários de traficantes, atua regulando visibilidades e é reiterada em diversos cenários, tal como nas políticas públicas. Na relação desse corpo com o Estado, nos questionamos se não há uma inversão discursiva própria do biopoder: a população em maior condição de vulnerabilidade (a que mais morre no Brasil) é assumida enquanto ameaçadora, quando aparece a partir de categorias tais como a de “traficantes”, sendo esta a categoria que torna tais mortes justificáveis e não lamentadas (Meinhard, 2020). As esferas de aparição são criadas na produção do enquadramento (Butler, 2015Butler, Judith (2015). Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Civilização Brasileira.), interrompendo as condições de reconhecimento que fazem um corpo ser apreendido como vulnerável e digno de comoção; o assumindo, portanto, enquanto invulnerável. Em outras palavras, estas produções discursivas operam produzindo modos de percepção que assumem como invulnerável o corpo que está em maior condição de vulnerabilidade no Brasil, segundo os dados do IPEA (2019).
Assim, quando o imaginário d”O traficante”, produz uma condição de aparecimento que posiciona os corpos em uma condição de invulneráveis retira, também, sua condição precária, a qual lhe confere o sentido de humanização. Ao ser lido como ameaça, a constituição de um vínculo ético-moral a partir da alteridade é dificultado (Butler, 2011Butler, Judith (2011). Vida Precária. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, 1, 13-33. http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18
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). Isto nos leva a crer que “usuários” e “traficantes” podem ser categorias direcionadas aos mesmo corpos, variando a partir de contextos e se inscrevendo, ainda, enquanto racionalidades em embate, que reservam lugares distintos a estes a partir de normas raciais.
O discurso que tange a periculosidades no território em que o CRAS está localizado nos remete ainda a outras questões. Alguns dados indicam que em cidades como Rio de Janeiro - também citada no discurso analisado - o número de mortes se assemelha aos números de locais que estão em guerra declarada. Da mesma forma, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), referente ao ano de 2018, indica que de cada 100 Mortes Violentas Intencionais (MVI), 11 foram praticadas por policiais (Meinhardt, 2020Meinhardt, Yanaê Maiara (2020). Nas trincheiras do proibicionismo: a fabricação de masculinidades criminalizáveis [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC].). Segundo a autora (2020, p. 23),
destas mortes, no que tange ao cenário nacional da letalidade policial, o perfil das vítimas ... [refere-se a] majoritariamente homens (99,3%) negros (75,4%) jovens, na faixa etária entre 15-29 anos (77,9%), com acesso dificultado à educação (81,5% possuem no máximo o ensino fundamental completo ou incompleto) e moradores de favelas e periferias. As mortes ocorridas entre as polícias e o ‘mundo do crime’ (ou em nome do ‘combate ao crime’) totalizam 11,45% do total das MVI no Brasil em 2018, cuja proporção é uma morte policial para cada 18 mortes cometidas pela polícia.
Ou seja, a população, que habita territórios em que a invasão da polícia é constante, experiencia sentimento de insegurança, medo e pânico partilhadas pelas trabalhadoras dos serviços, assim como de diversas doenças da ordem psíquico-física derivadas de um estado de ameaça iminente de si, de seus familiares e de sua comunidade. O CRAS, portanto, enquanto serviço estatal, se situa em um lugar ambíguo, sentindo os efeitos da criminalização que as políticas de segurança pública exercem sobre as comunidades e de questões sociais que o Estado, num sentido amplo, não se propõe a resolver.
No que tange à ideia de fronteira3
3
Michaelis (2021). Fronteira. Melhoramentos. https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/Fronteira/
, entendemos que esta remete a um limite, geralmente geográfico ou territorial dispostos entre regiões, países, estados, municípios etc. Essas fronteiras, no entanto, estabelecidas através de acordos estatais, produzem outras fronteiras, tornadas invisíveis, operando em uma distribuição que define lugares específicos para corpos específicos, sendo movidas por regulações diversas e que especificam como determinados corpos são traduzidos e sentidos. Nesse sentido, há discussões em torno da ideia de “fronteiras raciais”, tal como o trabalho de Leonardo Silveira (2020Silveira, Leonardo Souza (2020). As fronteiras da classificação racial no Brasil em perspectiva regional. Ciências Sociais Unisinos, 56(1), 341-352. https://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/article/view/csu.2020.56.3.08
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). Esse tema atravessa toda a discussão feita aqui e aparece em diversos campos sensíveis, perpassando o que é do âmbito singular e coletivo.
Nessa via, Grada Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano. Orfeu Negro.) aponta que a categoria “raça” pode ser usada como orientação geográfica ou até mesmo como um marco territorial, na medida em que delimita territórios a partir de marcadores raciais:
a ideia de uma membrana que contenha ou restrinja a negritude torna-se real em bairros negros segregados, onde pessoas negras são alocadas em áreas marginalizadas, à margem, impedidas de terem contato com recursos e bens brancos. A guetificação foi criada para promover o controle político e a exploração econômica de pessoas negras. (Kilomba, 2019Kilomba, Grada (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano. Orfeu Negro., p. 168)
Têm-se, assim, uma fronteira que restringe certas experiências e acessos aos corpos racializados, o que nos leva a crer que as fronteiras que aparecem no discurso são também raciais, haja vista a sua articulação a outros elementos do discurso.
A ideia de fronteiras se relaciona, ainda, a um modo de perceber a comunidade, que aparece na fala que denota que parte dela fica desassistida, haja vista a impossibilidade de certas atuações acontecerem, tal como o “CRAS na comunidade”, evento comunitário que tem como objetivo a divulgação do CRAS e a aproximação com o território.
A ideia de comunidade colocada aqui remete a uma concepção que a toma como um campo de relações harmônicas e consensuais, em vez de um campo de “antagonismos onde diferentes linhas de força disputarão espaço, poder e legitimidade”, como pontuado por Marcela Gomes (2020Gomes, Marcela de Andrade (2020). CRAS e intervenção psicopolítica: Os terreiros como lugar de pertença, acolhimento e resistência política. Psicologia Política, 20(47), 87-101., p. 94). Segundo Jacques Rancière (1996Rancière, Jacques (1996). O desentendimento: política e filosofia. Editora 34.), um campo consensual se subsidia em um princípio organizador do social, que, da mesma forma, é definidor de fronteiras, uma vez que atribui a cada parcela social uma parte específica, naturalizando esta relação a partir de certas características atribuídas aos corpos. Rancière (1996) argumenta que é mediante essa parcela sem parcela - ou, essa parte desassistida da comunidade - que há a evidência de que a comunidade existe enquanto comunidade política, ou seja, enquanto campo conflitivo. De alguma forma, isso evidencia que o CRAS já está na comunidade atuando de maneira específica e fazendo parte de um modo de partilhar as sensibilidades que se inscrevem no território.
Ao mesmo tempo, é possível que a comunidade seja assumida enquanto um campo conflitivo, na medida em que concepções que assumem a comunidade desde um lugar harmônico e passivo sejam fissuradas, avançando nas possibilidades de rachaduras dessas fronteiras, considerando as possibilidades de aberturas para outros campos de relação quando os enquadramentos são desordenados. No que tange às relações raciais e seus efeitos na produção da vulnerabilidade, o lugar do CRAS passaria fundamentalmente pelo reconhecimento do conflito racial e de seus efeitos; assim como pela sustentação dos movimentos comunitários já existentes, que dão teor material para as cenas conflitivas.
Diante dessa breve análise, pensamos que uma concepção tradicional de comunidade se alia a fronteiras que invisibilizam a experiência de grupos ausentes do CRAS. Essa ausência passa pela produção de vulnerabilidade no Brasil, que tem a norma racial como inscrição fundamental e as políticas de segurança pública como dispositivo de morte. A partir de certos enquadramentos, portanto, essas normas podem ser reiteradas no espaço do CRAS.
Por sua vez, o serviço se situa em um lugar ambíguo, já que lida com os efeitos das políticas de criminalização do corpo negro, ao mesmo tempo que disputa com elas, almejando, a partir da promoção de direitos e de vínculos comunitários, possibilitar um destino diferente às populações vulnerabilizadas.
Ao dar lugar às relações raciais e seus efeitos no serviço, os objetivos da política pública se aproximam de seu alcance, assim como as equipes encontram mais possibilidades de inserção comunitária, tanto no que tange àquelas que efetivamente acessam o serviço, como na produção de estratégias de alcance àqueles que as políticas de assistência almejam acessar. Ao trazer a discussão das relações raciais para os serviços e inscrevê-las em sua prática, a equipe encontra formas de fissuras desses enquadramentos, o que se desdobra em uma inserção comunitária que acontece desde outras percepções e lugares sensíveis - mais atentos, talvez, à reiteração das normativas raciais e de seus efeitos na relação comunitária.
Considerações finais
Procuramos problematizar os modos de significação dos corpos que circulam em territórios de abrangência do CRAS, dando lugar às relações raciais que se ensejam ali, a partir de questionamentos advindos da constatação de que corpos em grande exposição à violência no país não têm acesso considerável ao CRAS, nos levando à percepção de que a ausência dessa população do CRAS é também produto do racismo.
Entende-se, com isso, que os modos de aparecimento de sujeitos e territórios racializados são produzidos pela norma racial, ensejando um modo específico de relação com estes corpos/territórios, da ordem da produção de sujeitos e do campo do sensível, porém, resulta disso uma certa configuração social excludente e desumanizante que visa reiterar a norma e manter a ordenação social. Ao colocar corpos/territórios no lugar de quem deve ser combatido e não protegido, retiram-se também os sujeitos do lugar de usuário e de corpo vulnerável, e, consequentemente, de sujeito de direitos. Esse ponto evidencia como o racismo necessita ser debatido e combatido, a fim de não ser impeditivo da ampliação do trabalho do CRAS e do acesso aos sujeitos em vulnerabilidade.
É importante pontuar que apostamos nesta discussão a fim de chamar a atenção às capilaridades do racismo e à ampliação de campos de discussão dessa temática no campo do SUAS, criando condições de promoção do acesso à comunidade e do fortalecimento de vínculo com o serviço; assim como de visibilizar uma população que está desassistida pela proteção social básica. Da mesma forma, o discurso do informante evidencia que estes processos se dão de forma naturalizada, uma vez que que não há a percepção, por parte das/os trabalhadoras/es, de que a ausência deste sujeito do CRAS é efeito do racismo.
Identificar essa problemática nos implica frente à necessidade de ampliação de discussões, capacitações e formações nos serviços que tragam a temática racial, aliada à criminalização histórica dos homens negros por parte do Estado, a fim de que as equipes possam criar estratégias de intervenção, dentro do escopo do CRAS, para fazer frente a essa realidade e ampliar o acesso dessas populações nos espaços de proteção social e garantia de direitos.
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Notas
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1
O artigo é um desdobramento de uma pesquisa mais ampla iniciada em 2014, no Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Estética e Política (NUPRA), contando com bolsistas de iniciação científica, mestrandas/os e doutorandas/os e pesquisadores de outras universidades, sendo coordenada pela Prof. Dr. Kátia Maheirie. Entrevistou-se equipes de CRAS de diversas cidades do Brasil, a fim de investigar as potências dos processos grupais e os processos de subjetivação política inscritos nestes serviços.
-
2
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3
Michaelis (2021). Fronteira. Melhoramentos. https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/Fronteira/
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Financiamento
Agradecemos ao CNPq pelo financiamento da pesquisa n. 471250/2014-7, por meio do Apoio a Projetos de Pesquisa / CHAMADA MCTI/CNPQ/MEC/CAPES Nº 22/2014 - Ciências Humanas, Sociais E Sociais Aplicadas. Ainda, destacamos o apoio do CNPq, mediante a Bolsa Produtividade para o desenvolvimento da pesquisa pela segunda autora desse artigo. -
Aprovação, ética e consentimento
Aprovação, ética e consentimento: Pesquisa submetida e aprovada na Plataforma Brasil, pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o n. 90168318.9.0000.0121.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
29 Jul 2023 -
Revisado
02 Out 2023 -
Aceito
02 Out 2023