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ENTRE HOMENS: NOÇÕES DE MASCULINIDADES PARA USUÁRIOS DE APPS DE ENCONTROS ERÓTICOS

ENTRE HOMBRES: CONCEPTOS DE MASCULINIDADES PARA USUARIOS DE APLICACIONES DE CITAS ERÓTICAS

BETWEEN MEN: CONCEPTS OF MASCULINITIES FOR USERS OF EROTIC DATING APPS

Resumo:

Este artigo tem como objetivo geral compreender a produção de masculinidades para homens que se denominam “machos” em aplicativo de encontros eróticos. Partimos de referenciais teóricos que questionam o regime de poder que estrutura as compreensões de masculinidades e sexualidade, tendo por via a matriz reguladora da heteronormatividade. Quanto ao método, utilizamos a pesquisa social qualitativa na internet a partir de um aplicativo destinado a encontros eróticos entre homens para localizar e construir conhecimentos no contexto de pandemia e em região periférica/universitária da cidade de Recife/PE. Para análise, utilizamos mapas de associação de ideias, considerando a dialogia e os atravessamentos de produção de sentidos. Nossos resultados e discussões caminharam para pensar no imperativo da performance masculina normativa quanto ao corpo e ao nível relacional, bem como aos conflitos pessoais em face dos pressupostos sociais sobre masculinidades nas práticas de pegação.

Palavras-chave:
Masculinidades; Gênero; Pegação; Grindr; Covid-19

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo general comprender la producción de masculinidades de los hombres que se autodenominan “machos” en una aplicación de citas eróticas. Partimos de referentes teóricos que cuestionan el régimen de poder que estructura la comprensión de las masculinidades y la sexualidad, con base en la matriz normativa de la heteronormatividad. Metodológicamente utilizamos una investigación social cualitativa en internet a partir de una aplicación diseñada para encuentros eróticos entre hombres para ubicar y construir conocimiento en el contexto de una pandemia y en una región periférica/universitaria de la ciudad de Recife/PE. Para el análisis, utilizamos mapas de asociación de ideas, considerando el diálogo y los cruces de producción de sentidos. Nuestros resultados y discusiones reflexionan sobre el imperativo del desempeño masculino normativo en términos del cuerpo y el nivel relacional, así como en los conflictos personales frente a los supuestos sociales sobre las masculinidades en el cruising.

Palabras clave:
Masculinidades; Género; Cruising; Grindr; Covid-19

Abstract:

This article has the general aim to understand the production of masculinities for men who call themselves “macho” on erotic dating apps. We start from a theoretical framework that question the power regime that structures the understanding of masculinities and sexuality, using the regulatory matrix of heteronormativity as a basis. As for the method, we use qualitative social research on the internet from an application designed for erotic encounters between men to locate and build knowledge in the pandemic context and at a peripheral/university region of the city of Recife/PE. For analysis, we used maps of association of ideas, considering the dialogue and the crossings of meaning production. Our results and discussions led us to think about the imperative of normative masculine performance regarding the body and the relational level, as well as personal conflicts in the face of social assumptions about masculinities in practices of cruising.

Keywords:
Masculinities; Gender; Cruising, Grindr, Covid-19

Introdução

Neste artigo, apresenta-se um produto/recorte de pesquisa que se propôs pensar sobre o regime de poder que, ao operar dentro do contexto de gênero e da sexualidade, segmenta hierarquicamente as masculinidades a partir das práticas sexuais entre homens. Inspirados pelo debate de Richard Parker (1998)Parker, Richard (1998). Hacia una economía política del cuerpo: construcción de la masculinidad y la homosexualidad masculina en Brasil. In Teresa Valdés & José Olavarría (Eds.), Masculinidades y equidad de género en América Latina (pp. 106-127). FLACSO-Chile., bem como pelo de Benedito Medrado e Jorge Lyra (2016)Medrado, Benedito & Lyra, Jorge (2016). Entrevistas e outros textos: compartilhando estratégias de análise qualitativa. In Charles Lang, Jefferson Bernardes, Maria Auxiliadora Ribeiro, & Susane Zanotti (Orgs.), Metodologias: Pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas (pp. 85-118). EDUFAL. , entendemos um processo de subalternização à medida que homens homo-orientados se distanciam dos pressupostos socialmente atribuídos e idealizados a partir do modelo heterossexual.

Inspirados no que discute Benedito Medrado e Jorge Lyra (2008)Medrado, Benedito & Lyra, Jorge (2008). Por uma matriz feminista de gênero para os estudos sobre homens e masculinidades. Revista Estudos Feministas, 16(3), 809-840. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/download/S0104-026X2008000300005/9130
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
, entendemos que as “masculinidades” estão imbricadas em um processo de construção que sofre direta influência da conjuntura histórico-política-social-cultural, além dos marcadores entre os grupos, como os aspectos étnicos, de raça, de classe, de idade e de sexualidade a que pertencem. De modo que se rompe com a ideia de uma única masculinidade, pois os sentidos a ela atribuídos dependem de uma contínua produção, reguladas por pressupostos hegemônicos. Ademais, supera-se a noção de ser homem dentro de uma generalização universal, já que essa é uma experiência que se desenrola a partir dos códigos sociais-culturais-históricos, sobretudo, na incorporação e/ou fissuras do padrão hegemônico vigente (Silva & Silva, 2014)Silva, Fabiane Aguiar & Silva, Iolete Ribeiro (2014). Sentidos de saúde e modos de cuidar de si elaborados por homens usuários de Unidade Básica de Saúde-UBS. Ciência & Saúde Coletiva, 19(2), 417-428..

Segundo Victor Seidler (2006)Seidler, Victor (2006). Masculinidades: culturas globales y vidas íntimas. Montesinos Ensayos., nesse processo pedagógico, as masculinidades são modeladas a partir de um distanciamento da feminilidade; assim, é em espaços sectaristas que se consolida a lógica binária. Nesse sentido, nos deparamos com sentidos sociais misóginos que desvalorizam a mulher em detrimento do homem, frente a uma realidade construída sobre uma suposta superioridade de gênero((Cazés & Huerta, 2005)Cazés, Daniel & Huerta, Fernando (Coords.). (2005). Hombres ante la misoginia: miradas críticas. Plaza y Valdés.. Dito de outra forma, aquilo que se caracteriza como masculino é, por excludência, não feminino, engendrando, então, o “temor homofóbico de que a vulnerabilidade emotiva era um indício de inclinações homossexuais” (Seidler, 2006, p. 40)Seidler, Victor (2006). Masculinidades: culturas globales y vidas íntimas. Montesinos Ensayos..

Judith Butler (2013)Butler, Judith (2013). Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Civilização Brasileira. discute que essas questões se atravessam contingencialmente no modo como as pessoas se relacionam consigo e com os outros, a partir da supremacia dos modelos heterossexuais compreendidos como único norte. Considerando isso, entendemos existir uma divisão em espectros de reconhecimento e visibilidade sexual, em que algumas pessoas (heterossexuais) têm uma maior aceitação (Miskolci, 2015)Miskolci, Richard (2015). “Discreto e fora do meio”: Notas sobre a visibilidade sexual contemporânea. Cadernos Pagu, 44, 61-90..

Igualmente, Gayle Rubin (2018)Rubin, Gayle (2018). Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade. In Políticas do Sexo (pp. 63-128). Ubu. chama a atenção que os heterossexuais maritais e reprodutivos ocupam o topo da sua pirâmide erótica, o que os garante “saúde mental certificada, respeitabilidade, legalidade, mobilidade social e física, suporte institucional e benefícios materiais” (Rubin, 2018, p. 16)Rubin, Gayle (2018). Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade. In Políticas do Sexo (pp. 63-128). Ubu.. Tais privilégios se constituem em detrimento daqueles cujas práticas sexuais transgridam as normas, constituindo a base da hierarquia e lidando com “presunções de doença mental, má reputação, criminalidade, mobilidade social e física restrita, perda de suporte institucional e sanções econômicas” (Rubin, 2018, p. 16)Rubin, Gayle (2018). Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade. In Políticas do Sexo (pp. 63-128). Ubu..

Desse modo, discutiremos as masculinidades como a junção das normas e práticas sexuais/sociais associadas ao homem (cisgênero) como construções reguladas pela heteronormatividade, ou seja, exigências que tendem a apontar o modelo heterossexual como norte (Butler, 2013Butler, Judith (2013). Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Civilização Brasileira.; Rubin, 1986Rubin, Gayle (1986). El tráfico de mujeres: notas sobre la economía política del sexo. Nueva Antropología, 8(30), 157-209.). Richard Miskolci (2009)Miskolci, Richard (2009). A Teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, 11(21), 150-182. parte da concepção da heterossexualidade compulsória para identificar a heteronormatividade como um dispositivo histórico que recorta os sujeitos a partir do que se entende como um padrão coerente, superior e natural, conduzindo todos à heterossexualidade. Em paralelo, Lisa Duggan (2012)Duggan, Lisa (2012). O crepúsculo da igualdade? Neoliberalismo, política cultural e o ataque à democracia. Beacon Press. traz a homonormatividade liberal como o não contestamento da heteronormatividade enquanto instituição e norma, trazendo identidade/cultura gay politicamente desarticulada e privatizada, calcada na domesticidade, no consumo. Em outras palavras, a sofisticação de algo não consumível moralmente, mas que vai além de dar uma nova roupagem ou trato normativo, invisibiliza socialmente (Serri, Ibba, & Manuel de Oliveira, 2019)Serri, Diego Lasio, Ibba, Isabella, & Oliveira, João (2019). Hegemony and heteronormativity: Homonormative discourses of LGBTQ activists about lesbian and gay parenting. Journal of Homosexuality, 66(8), 1058-1081.. Assim, a homonormatividade seria um protótipo da heteronormatividade, que intenta apaziguar os sujeitos homossexuais com o seu gênero, legitimando e estando a favor da heteronorma (Oliveira, Costa, & Nogueira, 2013)Oliveira, João, Costa, Carlos, & Nogueira, Conceição (2013). The workings of homonormativity: Discourses of lesbian, gay, bisexual and queer people on discrimination and public display of affections in Portugal. Journal of Homosexuality, 60(10), 1475-1493.. Não à toa, a heteronormatividade e o sexismos se constituem, muitas vezes, como pressupostos idealizadores das tecnologias educativas em saúde, nas práticas profissionais e nas políticas de saúde (Nascimento, Neves, Rodrigues, & Teixeira, 2020)Nascimento, Israel Ribeiro, Neves, André Luiz Machado, Rodrigues, Priscila Freire, & Teixeira, Elizabeth (2020). Representações sociais de masculinidades no curta-metragem “Aids, escolha sua forma de prevenção”. Ciência & Saúde Coletiva, 25(3), 879-890..

Luís Augusto Silva (2009)Silva, Luís Augusto Vasconcelos (2009). Masculinidades transgressivas em práticas de barebacking. Revista Estudos Feministas, 17(3), 675-699. discute os princípios da hierarquização masculina nas relações sexuais entre homens e aponta uma maior requisição e valorização de perfis que rechaçam a feminilidade. Por esse prisma, Richard Parker (1998)Parker, Richard (1998). Hacia una economía política del cuerpo: construcción de la masculinidad y la homosexualidad masculina en Brasil. In Teresa Valdés & José Olavarría (Eds.), Masculinidades y equidad de género en América Latina (pp. 106-127). FLACSO-Chile. direciona que o machismo seria o grande viés norteador desse sistema tradicional de significados sexuais. Além disso, que os atravessamentos das práticas homoeróticas nas masculinidades no Brasil apontam que a interação sexual com outro homem não descaracteriza sua masculinidade, desde que sexualmente e socialmente se distancie de signos atribuídos ao feminino.

Posto isso, os aplicativos (apps) de pegação surgem como uma estratégia tecnológica, diante de espaços de sociabilidade predominantemente hétero, para reconhecer parceiros disponíveis a práticas homo-orientadas; como possibilidade de burlar sigilosamente as exigências normativas do ser homem. Indiretamente, percebemos a denúncia de um regime heterocentrado que historicamente territorializou os desejos não heterossexuais em lugares como saunas, bares, cinemas, boates, entre outros; e que agora traz fluidez territorial e intensidade nos apps(Morelli & Souza, 2016)Morelli, Fábio & Souza, Leonardo (2016). Entre regimes de (in) visibilidade: mídias rizomáticas e ciberativismos. Verso e Reverso, 30(74), 135-146.. Nesse sentido, entendemos a pegação como as práticas que rompem com a vinculação entre ato sexual e a monogamia romântica-cristã, bem como com as preliminares morais e as obrigatoriedades de responsabilizações/cuidados para com o companheiro - por isso também nomeada como ‘fast foda’ por autores como José Rocha e Marcos Coelho (2019)Rocha, José Damião & Coelho, Marcos (2019). Manda Nudes: Os “crushes” gays nos aplicativos fast foda de relacionamentos. REBEH, 1(4), 5-17..

Fábio Morelli (2017)Morelli, Fábio (2017). Não existe amor em APP? Pistas sobre o processo de subjetivação entre homens por meio de aplicativos voltados ao público gay [ Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis/SP]. indica que os apps aparecem como estratégia frente à vulnerabilidade das relações não heterossexuais, de modo que possibilita um sentimento de sigilo e segurança para homens que procuram tais práticas, principalmente, os que se identificam como heterossexuais ou bissexuais (Queiroz, Matos, Araújo, Reis, & Sousa, 2019)Queiroz, Artur, Matos, Matheus, Araújo, Telma, Reis, Renata, & Sousa, Álvaro (2019). Infecções sexualmente transmissíveis e fatores associados ao uso do preservativo em usuários de aplicativos de encontro no Brasil. Acta Paulista de Enfermagem, 32(5), 546-553.. Porém, os apps também são “dispositivos tão reguladores e disciplinadores, quanto ao gênero e ao sexo, como o são instituições bem consolidadas como a igreja, a família, a escola, entre outras” (Morelli, 2017, p. 106)Morelli, Fábio (2017). Não existe amor em APP? Pistas sobre o processo de subjetivação entre homens por meio de aplicativos voltados ao público gay [ Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis/SP].. O que implica que nos aplicativos há uma predominância entre os usuários de uma perspectiva de subalternização da figura assumidamente gay, além do afeminado - assim, o perfil sigiloso surge como ocultamento frente às normativas de sexo e gênero (Oliveira Neto, Brandão, Lyra & Medrado, 2019)Oliveira Neto, José Gomes de, Brandão, Daniel, Lyra, Jorge & Medrado, Benedito (2019). Aplicativos de encontros homoeróticos e masculinidades normativas. In DESFAZENDO GÊNERO, 4., Recife. Anais... Campina Grande: Realize..

Marcos Cruz (2020)Cruz, Marcos (2020). Masculinidade e discrição em aplicativo de relacionamento. Revista Interdisciplinar em Estudos de Linguagem, 2(2), 1-19. , ao discutir os perfis discretos no Grindr, aponta três camadas do tangenciamento da heteronormatividade na identidade gay masculina: a masculinidade heterossexual como única identificação dos corpos com pênis, a virilidade (na modelação do corpo e corporeidade) como condição de cidadania aos homens homo-orientados e, por fim, a suplantação dos traços femininos através da discrição e hipervirilização nos espaços sociais.

Daneil Cazéas e Fernando Huerta (2005)Cazés, Daniel & Huerta, Fernando (Coords.). (2005). Hombres ante la misoginia: miradas críticas. Plaza y Valdés. apontam que a construção histórica e social da hegemonia masculina persiste como um modelo de identificação nas sociedades ocidentais - apesar das fissuras (re)existentes - a partir da manutenção de relações de poder assimétricas entre os gêneros. Essas noções são calcadas na discriminação de quem não cumpre o estereótipo traçado pelo patriarcado - mulheres e pessoas não-cis-hétero (Cazés & Huerta, 2005)Cazés, Daniel & Huerta, Fernando (Coords.). (2005). Hombres ante la misoginia: miradas críticas. Plaza y Valdés..

Ettore Medeiros (2018)Medeiros, Ettore (2018). Textos verbo-visuais de homens que se relacionam afetivo-sexualmente com homens: te(n)sões entre masculinidades no aplicativo GRINDR [Dissertação de Mestrado em Comunicação Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG]. enfatiza que a noção de masculinidades para os usuários dos apps transgride a orientação/prática sexual para a expressão de gênero legitimada na noção do macho. A masculinidade hegemônica seria definida por algumas características como: acúmulo de parceiros e aventuras que trariam o sentimento de sentir-se vivo; o pênis e seu tamanho que, quanto maior for, mais valor estará agregado ao homem; a vida fitness conotando saúde e distanciamento da imagem do gay com HIV/AIDS; e, por fim, a posição sexual, a partir da ideia de impenetrabilidade que, socialmente, é resguardada ao homem (Cardoso, Paz, Rocha & Pizzinato, 2019Cardoso, João Gabriel, Paz, Bernadi, Rocha, Kátia, & Pizzinato, Adolfo (2019). Imagem, corpo e linguagem em usos do aplicativo Grindr. Psicologia, USP, 30, 1-11. https://doi.org/10.1590/0103-6564e180160
https://doi.org/10.1590/0103-6564e180160...
; Morelli, 2017Morelli, Fábio (2017). Não existe amor em APP? Pistas sobre o processo de subjetivação entre homens por meio de aplicativos voltados ao público gay [ Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis/SP]. ). José Oliveira Neto (2021)Oliveira, José Gomes (2021). “Onde há viado não há sossego, prefiro os machos”: construindo sentidos sobre masculinidades e hetero(homo)normatividade junto a usuários de app de pegação [Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife]. complementa que hierarquização da masculinidade se forja em signos como: a branquitude, a heterossexualidade, a cisgeneridade e o corpo magro/sarado.

Outrossim, Thiago Melo e Maria Santos (2020)Melo, Thiago & Santos, Maria Elena (2020). “Discreto, sigiloso, não afeminado”. CSOnline, 31, 249-269. https://doi.org/10.34019/1981-2140.2020.30461
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discutem que a autonomeação no perfil como “macho”, “discreto”, “não curto afeminados”, surge por um posicionamento de rechaço às identidades gays e sobrelevância das masculinidades hegemônicas como característica ideal (mesmo para as não heterossexuais). Dessa forma, a hetero(homo)normatividade faria do usuário opressor/oprimido ao fazer suplência a uma masculinidade hegemônica no campo digital via violência simbólica (a homofobia) calcada na misoginia. Portanto, para tornar inteligível as construções culturais sobre as masculinidades, debruçando-se também sobre as fissuras nos padrões normativos, destacamos uma inspiração na pedagogia feminista: (Medrado & Lyra, 2014)Medrado, Benedito & Lyra, Jorge (2014). Princípios ou simplesmente pontos de partida fundamentais para uma leitura feminista de gênero sobre os homens e as masculinidades. In Eva Blay (Org.), Feminismos e masculinidades (pp. 55-74). Cultura Acadêmica. para refletir sobre os resultados deste estudo e amplificar a discussão que se segue.

Metodologia

A perspectiva da orientação construcionista nos impactou no entendimento de que o conhecimento é construído coletivamente, valendo-nos o esforço de rever e problematizar noções culturais consolidadas e arraigadas (Medrado & Lyra, 2016Medrado, Benedito & Lyra, Jorge (2016). Entrevistas e outros textos: compartilhando estratégias de análise qualitativa. In Charles Lang, Jefferson Bernardes, Maria Auxiliadora Ribeiro, & Susane Zanotti (Orgs.), Metodologias: Pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas (pp. 85-118). EDUFAL. ; Spink & Frezza, 2013Spink, Mary Jane & Frezza, Rose (2013). Práticas Discursivas e Produção de Sentido. In Mary Jane Spink (Org.), Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas (pp. 1-21). Centro Edelstein.). À vista disso, desenvolvemos uma pesquisa de campo qualitativa, que partiu do pressuposto de “uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade” (Prodanov & Freitas, 2013, p. 70)Prodanov, Cleber & Freitas, Ernani (2013). Metodologia do Trabalho Científico: Métodos e Técnicas da Pesquisa e do Trabalho Acadêmico. Editora Feevale..

Conforme os objetivos propostos, nos propusemos a construir uma pesquisa social no campo digital, em app de pegação entre homens, entendendo a web não como uma realidade paralela, mas como complementar das relações face a face (Deslandes & Coutinho, 2020)Deslandes, Sueli & Coutinho, Tiago (2020). Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de Covid-19: notas teórico-metodológicas. Cadernos de Saúde Pública, 36(11), 1-11.. Assim, nos orientamos a pensar um caminho metodológico que reflita sobre os atravessamentos de práticas sexuais subalternas nas (des)contruções das masculinidades.

Desse modo, a internet torna-se inteligível ao ampliar práticas que já existem, mas que nas relações face a face são moralmente proibidas (Lévy, 2005)Lévy, Pierre (2005) Cibercultura. Editora 34.. Nesse sentido, entendemos que os apps de pegação, sob a ideia de anonimato que a web transmite, seriam uma forma de localizar usuários dispostos a falar.

Sueli Deslandes e Tiago Coutinho (2020)Deslandes, Sueli & Coutinho, Tiago (2020). Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de Covid-19: notas teórico-metodológicas. Cadernos de Saúde Pública, 36(11), 1-11. chamam a atenção para as orientações socioantropológicas na ambiência digital quanto aos modos de interação, fluxos/trânsitos, conservação dos dados (vide a volatilidade do digital) e da compreensão das coproduções textuais (destacando a interatividade). Além disso, discute a importância de observar os recortes do aplicativo escolhido, já que seu contexto (lema e papel diante de outros apps) produz uma coerência entre: temáticas, comportamentos e práticas discursivas. Portanto, no processo de imersão no app, contato e troca com os usuários, fomos nos familiarizando com as possibilidades, dificuldades, mas sobretudo com as expectativas criadas nas conversas.

Estar online no app implica disposição/disponibilidade ao contato, sobretudo quando o perfil é novo - percebemos haver entre os usuários uma discussão sobre saturação, na medida que dizem encontrar sempre as mesmas pessoas. Entretanto, para alguns, o fato de estar disposto apenas à conversa impactou na abertura criada inicialmente, se negando a ficar apenas nas trocas de mensagem. Para fechar nosso ‘Quadro de participantes’, nos inspiramos na proposta de amostra não probabilística do tipo “por conveniência”, composta por 5 homens - nos referimos ao quantitativo de homens selecionados no app, porém, o autor principal também se reconhece como participante, dada a dialogia da proposta, perfazendo um total de seis interlocutores.

Utilizamos como critérios de inclusão: serem usuários do aplicativo selecionado; encontrarem-se na cidade de Recife/PE, conforme localização dos apps; que expressem (na descrição do perfil ou no diálogo), como condicionantes ao contato, elementos de uma cultura masculina normativa - que, segundo Richard Miskolci (2013)Miskolci, Richard (2013). Machos e “Brothers”: uma etnografia sobre o armário em relações homoeróticas masculinas criadas on-line. Revista Estudos Feministas, 21(1), 301-324., se apresenta dentro de algumas palavras como “macho”, “brother”, “no sigilo”, entre outras. Descartamos aqueles que não se compreendiam como homem (identidade de gênero) - a cisgeneridade não foi um recorte para a compreensão do nosso grupo de interlocutores, apesar de só ter localizado homens cisgêneros para conversar; de idade inferior a 18 anos; que não se encaixavam nos critérios de inclusão; não se voluntariaram a participar da pesquisa. Todavia, também destacamos que todas as trocas, ainda que interditadas de algum modo (seja pela não correspondência do tesão ou até mesmo pela volatilidade/liquidez dos contatos digitais), também fazem parte do repertório criado para dialogar e construir saber com nosso grupo de interlocutores.

Quadro 1
Grupo de interlocutores

O instrumento selecionado para a localização dos interlocutores para a pesquisa foi o Grindr, uma rede social que propõe troca de mensagens que visa a pegação entre pessoas não heterossexuais, mas, sobretudo, homens homodesejantes. É de fácil uso intuitivo, gratuito (embora exista versão por assinatura), propõe espaços de troca de mensagens privadas e utiliza a tecnologia de geolocalização - possibilitando lista personalizada de contatos a partir do GPS (Sistema de Posicionamento Global).

Os procedimentos de levantamento de informação em aplicativos só aconteceram após aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Pernambuco e da banca de qualificação. Destacamos ainda que estivemos afinados com o que preza a Resolução n° 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que orienta sobre as implicações éticas das pesquisas com seres humanos nas ciências humanas e sociais.

As conversas com os interlocutores no app foram norteadas pela proposta de entrevista, que segundo Benedito Medrado e Jorge Lyra (2016, p. 10)Medrado, Benedito & Lyra, Jorge (2016). Entrevistas e outros textos: compartilhando estratégias de análise qualitativa. In Charles Lang, Jefferson Bernardes, Maria Auxiliadora Ribeiro, & Susane Zanotti (Orgs.), Metodologias: Pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas (pp. 85-118). EDUFAL. , seria uma “produção dialógica negociada, sujeita a acordos, mas também a tensões e conflitos, não necessariamente intensos ou explícitos”. O roteiro de entrevista semiestruturada possibilitou flexibilidade nas perguntas, assim como permitiu interação participativa e cooperativa, confirmando George Gaskell (2002)Gaskell, George (2002). Entrevistas individuais e grupais. In Martin Bauer & G. Gaskell, (Orgs.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. (pp. 90-111). Vozes..

A imersão no Grindr se deu em contexto pandêmico de Covid-19, o que impactou na forma como as pessoas se relacionavam, uma vez que uma das medidas de prevenção adotada foi o isolamento social. É importante colocar, a partir de Jefferson Bernardes (2021)Bernardes, Jefferson (2021). Cuidados e descuidados em tempos da Covid-19. In Charles Lang & J. Bernardes (Orgs.), Psicologias em tempos de pandemia [recurso eletrônico]: reflexões políticas e práticas clínicas. EDUFAL. https://www.repositorio.ufal.br/bitstream/123456789/7929/3/Psicologias%20em%20tempos%20de%20pandemia%3A%20reflex%C3%B5es%20pol%C3%ADticas%20e%20pr%C3%A1ticas%20cl%C3%ADnicas.pdf
https://www.repositorio.ufal.br/bitstrea...
, que no Brasil a administração a respeito dessas orientações aconteceu de modo contraditório pelo governo federal. A gestão do ministro da saúde Luiz Mandetta e depois Nelson Tesch seguiam as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre distanciamento social, uso de máscara, entre outros. Enquanto isso, na via contrária, o chefe da nação, Jair Bolsonaro, era visto em aglomerações, não usando máscaras e, em pronunciamentos públicos, chegou a referir que o Brasil precisa “deixar de ser um país de maricas” e enfrentar a pandemia de “peito aberto” (Gomes, 2020, p. 1)Gomes, Pedro (2020, 10 de novembro). Brasil tem de deixar de ser ‘país de maricas’ e enfrentar pandemia ‘de peito aberto’, diz Bolsonaro. G1. https://g1.globo.com/google/amp/politica/noticia/2020/11/10/bolsonaro-diz-que-brasil-tem-de-deixar-de-ser-pais-de-maricas-e-enfrentar-pandemia-de-peito-aberto.ghtml
https://g1.globo.com/google/amp/politica...
. Nesse contexto, apesar do espaço digital ter sido reafirmado como plataforma para as relações de afeto, sexuais e eróticas, os encontros eróticos também não deixaram de acontecer pele a pele.

Sobre o processo de análise do conhecimento construído, destacamos o posicionamento de se compreender também como alguém que constrói o saber junto aos interlocutores, em um movimento dialógico. Por conseguinte, as entrevistas/conversas foram analisadas visando à construção de mapas de associação de ideias que, segundo Mary Jane Spink (2010)Spink, Mary Jane (2010). Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Centro Edelstein., são formados por uma tabela que traz nas colunas os conteúdos específicos da interação discursiva da entrevista. Destacamos que esses procedimentos foram realizados a partir do entendimento de que os sentidos são concebidos por uma construção coletiva (histórica e culturalmente perpassada) como forma de compreender, lidar com a realidade e os fenômenos à sua volta (Spink & Medrado, 2013)Spink, Mary Jane & Medrado, Benedito (2013). Produção de sentido no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In Mary Jane Spink(Org.), Práticas discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: Aproximações teóricas e metodológicas (pp. 22-41). Centro Edelstein..

Resultados e discussões

Iniciamos essa sessão a partir da análise proposta por uma pedagogia feminista (Medrado & Lyra, 2014)Medrado, Benedito & Lyra, Jorge (2014). Princípios ou simplesmente pontos de partida fundamentais para uma leitura feminista de gênero sobre os homens e as masculinidades. In Eva Blay (Org.), Feminismos e masculinidades (pp. 55-74). Cultura Acadêmica., indicando que a manutenção das expectativas socioculturais sobre a masculinidade - neste momento não usamos plural porque nos referimos a uma força que busca padronizá-las - encontra nas práticas de pegação uma suposta incoerência que se traduz desde o tesão para outro homem ao prazer advindo. O controle/repressão disso é sinalizado por Bruce no trecho abaixo, fazendo-nos pensar não apenas nos sentidos gerados sobre as masculinidades, mas, também, sobre as práticas de pegação.

L 128 Pesquisador: O que você pensa sobre práticas sexuais entre homens?

L 129-132 Bruce: Hoje normal! Fisiologicamente o ânus não foi feito para ser penetrado, mas a gente se adapta as necessidades e desejos neh... Heheh Mas também dá pra ter prazer com o outro sem penetração.

Embora as práticas sexuais entre homens estejam sob a ordem social da moralidade, percebemos uma espécie de exceção para pensar o homem penetrador, de modo que lhe é conferido um status superior em relação aos outros. Acreditamos que essa hierarquização, a partir da posição sexual, está associada aos sentidos prescritos da macheza no ato sexual, como o papel de dominador que mais se aproxima da tradicional figura do homem que penetra uma mulher. Por esse viés, alguns perfis reafirmam essa posição ao indicar que estão em uma relação marital com mulher, mas também fazem sexo com homens. Compreendemos como uma espécie de barganha em torno desse lugar social do macho, em que o homem aponta cumprir sua “funcionalidade” heterossexual - conseguir ser um homem para uma mulher -, de modo que as práticas de pegação aparecem, então, como desvios temporários.

Nesse sentido, pensamos que: (a) há o temor de se relacionar com um homem “assumidamente” dissidente sexual, aquele que é reconhecido socialmente por ter práticas não heterossexuais e tem sociabilidade entre iguais. Assim, percebemos um regime que (supostamente) confere inteligibilidade desde que esteja no armário, o que nos parece ser muito conveniente à norma, pois, uma vez que se barram as fissuras ao padrão, ele continua se hegemonizando; (b) a questão de ser “penetrador” nos leva para a problematização do falocentrismo que gesta as negociações no app, colocando o falo ereto como produto de excitação e objeto de desejo/prazer. Nesse aspecto, o que vemos é uma fusão do homem-cisgênero-heterossexual como figura representativa da masculinidade ideal, de modo que, ainda que não seja, necessariamente deve se aproximar desse modelo para usufruir das possibilidades do app.

A visão de Bruce, calcada na proposta fisiológica, aponta para posicionamentos criados nos jogos de poder que determinam o sexo apenas como reprodutor. Para Beatriz Preciado (2000)Preciado, Beatriz (2000). Terror Anal: apuntes sobre los primeros días de la revolución sexual. In Hocquenghem, Guy. El deseo homosexual. Editorial Melusina., o sexo anal proveria uma revolução na lógica biologicista de sexo hétero-reprodutor, entendendo que o cu é comum aos gêneros. Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010)Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Editora 34. compreendem o ato sexual para além da relação entre os genitais, já que transamos com o corpo inteiro, então ele, em sua completude, é uma zona erógena.

Não obstante, a passabilidade do macho para os homens não heterossexuais é atravessada não como estratégia, mas como regência do corpo adestrado à norma, que vira “normal”; assim, constitui-se em hetero(homo)normatividade. Portanto, haveria um imperativo nas relações de pegação que normatizam a corporalidade a partir dos sentidos sobre masculinidade hegemônica, compreendendo, inspirados em Adauto Novaes (2003)Novaes, Adauto (2003). O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. Companhia das Letras., o corpo como produto da rede de discurso em que se está inserido.

L 302 Pesquisador: Quais práticas um homem precisa ter na sua opinião?

L 308-311 Hallysson: Um homem de estereótipo de macho assim, que seja o ativo, que bote pra chupar, que domine na cama, que beije bem, que chupe o cu, que deixe eu lamber o suvaco. . . isso na cama, né?! E esse porte físico dele, desse jeito, me parece que ele tem uma probabilidade maior de me satisfazer do que afeminados.

No diálogo com a produção de Sharif Mowlabocus (2015)Mowlabocus, Sharif (2015). Cultura do Gaydar: torcendo a história da mídia digital na Grã-Bretanha do Século XX. In Larissa Pelúcio, Heloísa Pait, & Thiago Sabtine (Orgs.), No emaranhado da rede (pp. 49-80). Annablume., compreendemos o quanto o recorte da pornografia está arraigado desde a organização do aplicativo à formulação dos perfis, implicando diretamente nas relações estabelecidas. Sendo assim, gera um tipo de fetiche de como seria a foda entre homens, pornificando as trocas no app, não no sentido de obter lucro financeiro, mas sim do capital erótico - aquele capaz de atrair parceiros.

Nesse entendimento, é válido lembrar da discussão que Victor Hugo Barreto (2017)Barreto, Victor Hugo Souza (2017). Festas de orgia para homens: territórios de intensidade e socialidade masculina. Devires. constrói a partir de uma premissa usual no meio de pegação, de que é preciso “ser macho” para foder com outro macho. Isso posto, nos permite compreender a fala de Hallysson, identificando os sentidos atribuídos ao jogo de dominação no ato sexual, além de questões específicas, como chupar o cu e lamber o sovaco. Para nós, esse desejo demarca-se como um jeito específico de fazer sexo com homens, já que estaria ligado a sentir o cheiro do macho. A propósito, a forma como o interlocutor se refere às práticas (utilizando termos “que deixe”, “que chupe”) nos remete à ideia de que não é algo que corriqueiramente acontece. Mas o que chamamos a atenção nesse momento é que as práticas também se realizam a partir de partes do corpo demarcadamente masculinas e hipervirilizadas, assim, ganhando característica erógena.

L 422-423 Pesquisador: O que acontece quando vc encontra caras que não correspondem ao que está descrito no perfil do app?

L 459-468 Victor: eu converso com a pessoa e tal, para não fazer aquela desfeita de “não curti, tchau” porque eu acho péssimo, mas invento uma desculpa de que preciso sair mais cedo e tal. . . Ou, quando eu bato o olho na pessoa e vejo que ela já não é aquilo que parecia no aplicativo e ela não me viu, eu também passo reto e finjo que não vi a pessoa, a gente não chega nem a se encontrar, já aconteceu mais de uma vez mas eu espero não acontecer de novo porque eu acho péssimo isso.

Nos parece haver, no app, uma necessidade de correspondência perfeita entre o que se deseja e o outro. O imperativo do tesão é o que mobiliza os usuários gerando padrões, perfis com maior prioridade, requisitos para a pegação que, em seus termos, se configuram como uma questão de gosto. Desse modo, ratifica-se não somente o que é masculino, mas o que é capaz de fazer gozar.

Sendo assim, se insere nas relações um descompromisso com o outro que vai desde a fugacidade da relação (típico da pegação, como já dito), mas que pode chegar a uma questão de desrespeito, como no trecho da conversa com Victor. Entre o desejo e o outro, a escolha é pelo desejo, sobretudo se o outro pode, de algum modo, tentar contra um modelo de homem e prática sexual ideal (tudo isso ao ver o usuário/ ou o perfil do usuário). Todas essas questões arregimentam-se na hierarquização das masculinidades.

L 199 Pesquisador: algo te impede (em ser passivo)?

L 200-202 Júnior: As pessoas só se aproximam de mim porque sou negro e associam a pauzão e virilidade. Negro tem por obrigação de ser ativo para muitos gays, eu não posso ser passivo, que falam “tão macho, um negão desse dando o cu.”

É interessante constatar o quanto o regime pedagógico do macho é racista e se presentifica não somente na expressão dos perfis do Grindr, mas na história de vida dos nossos interlocutores. Com efeito, essas questões não são atravessadas apenas pela hetero(homo)normatividade; o racismo conduz as masculinidades negras para caminhos distintos da branquitude nas práticas de pegação. Então, mais uma vez, demarcamos o quanto a discussão em torno das práticas sexuais não pode ser tecida sem considerar os sentidos culturais e organizações sociais implicadas. Assim, a leitura racial para estudos sobre sexualidades e relações de gênero não é uma opção; se ela não é feita, o posicionamento é a favor do racismo. A propósito, os marcadores de raça e transgeneridade ocupam importante papel nesse debate. Durante nosso processo não localizamos interlocutores declaradamente homem trans, em contrapartida encontramos mulheres trans, apesar de o app ter um grande apelo à masculinidade. Desse modo, entendemos o quanto a cultura cis-hetero é falocêntrica, pois nos é bem representativo que a exceção à transgeneridade no app se configure apenas em corpos com pênis.

No trecho acima, Júnior nos assinala para o conflito no encontro com as normas que incidem sobre seu corpo nas práticas de pegação no contexto digital, impelindo os homens negros a um lugar bem específico, seja quanto ao desejo, seja quanto às suas práticas. Buscando articular as teorias queer com os estudos raciais, Osmundo Pinho (2015)Pinho, Osmundo (2015). “Putaria”: masculinidade, negritude e desejo no pagode baiano. Maguaré, 29(2), 209-238. indica que a colonização ocidental, ainda persistentemente atual no Brasil, caminha na direção de associar os corpos como fonte da própria identidade negra.

Então, por meio da figura do “negão”, espera-se a reunião das características do padrão macho, como músculos volumosos, jeito viril, dotado e penetrador como condição para ser notado/requisitado entre os usuários do Grindr. Nesse debate, Luís Lopes (2020)Lopes, Luiz Paulo (2020). Desejo na biopolítica do agora: performatividades escalares em um aplicativo de encontros homoafetivos. DELTA, 36(3), 1-37. http://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2020360306
https://doi.org/10.1590/1678-460X2020360...
direciona que tal sectarismo resume esses homens como figuras exclusivas para pegação, não para relacionamentos estáveis. Dito de outro modo, as masculinidades negras são objetificadas como fetiche sexual quando essas interações são anônimas e sem compromisso, legitimando um regime de privilégios brancos quando se perspectivam relações explicitamente sociais. A solidão do homem negro não é da ordem sexual, é afetiva.

Nesse sentido, negocia-se visibilidade a partir da adequação às normativas, enquanto as possíveis fissuras ao padrão são lidas como não atraentes. Os traços do corpo, da raça e da sua identidade social servem como predição de prazer/desejo. Nesse ponto, identificamos a figura do cafuçu como alguém que de algum modo traduz essa representação de grande poder atrativo/sexual, inteligível à prática discreta, mas não para relacionamento fixo e social. Segundo Osmundo Pinho (2015)Pinho, Osmundo (2015). “Putaria”: masculinidade, negritude e desejo no pagode baiano. Maguaré, 29(2), 209-238., socialmente, se constrói a ideia de que “o poder do jovem homem negro sexualizado está em sua superioridade erótica e em seu pênis, como subtendido na iconografia do ... corpo ‘genitalizado” (p. 232)Pinho, Osmundo (2015). “Putaria”: masculinidade, negritude e desejo no pagode baiano. Maguaré, 29(2), 209-238..

Os homens negros têm sobre si um sistema de sentidos regidos pela objetificação, animalização, hipererotização dos seus corpos, que partem não apenas da questão hetero(homo)normativa e machista debatida neste trabalho, mas da lógica escravagista. Essa compreensão se reafirma em nossa análise por entender o lugar de servidão sexual em que os homens negros são alocados, esvaziando os sujeitos de quaisquer outras características para vinculá-lo à única posição do macho-dotado-penetrador.

Na discussão aqui construída, pensamos não apenas sobre um conjunto de conflitos vivenciado pelos homens que fazem pegação, como também conseguimos tangenciar os pressupostos dessas interações digitais. Com efeito, é importante também perceber como a pandemia do novo coronavírus, sob a orientação de distanciamento social, reformula e impacta nas práticas sexuais casuais dos nossos interlocutores. A propósito, nessa ocasião, o Ministério da Saúde da Argentina chega a apontar o “sexo virtual” (por chamadas de vídeo e/ou envio de fotos) como saída à não exposição ao vírus da Covid-19 (Colombo, 2020)Colombo, Sylvia (2020, 17 de abril). Argentina recomenda sexo virtual e masturbação para solteiros durante pandemia. Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/argentina-recomenda-sexo-virtual-e-masturbacao-para-solteiros-durante-pandemia.shtml
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.

L 411-412 Pesquisador: Você acha que esses encontros te deixaram disponível a ser infectado pelo Covid-19?

L 415-420 Paulo: Na semana que tive, dias antes ocorreu um encontro. E então iniciaram os sintomas de falta de paladar e falta de olfato e dores de cabeça e tontura. A minha foi fraca, sem febre e sem tosse, sem dor de garganta ou demais problemas.

Paulo nos fala, de uma forma muito direta, sobre os riscos aos quais os usuários do app estão expostos, seja em pandemia ou não. Luís Felipe Rios (2021)Rios, Luís Felipe (2021). Sexualidade e prevenção entre homens que fazem sexo com homens nos contextos das pandemias de AIDS e da Covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, 26(5), 1853-1862., ao discutir sobre as práticas de pegação entre homens no contexto pandêmico de AIDS e Covid-19 na região metropolitana do Recife, aponta a necessidade de trazer a reflexão sobre os efeitos do não cuidado, em vez de esperar que essa consciência aconteça a partir do próprio adoecimento. “Imagens corporais e vinculações afetivas são capazes de fazer emergir emoções que interferem na disposição para utilização das medidas de proteção para o HIV e para o Sars-CoV-2 nas cenas sexuais”: (Rios, 2021, p. 1861)Rios, Luís Felipe (2021). Sexualidade e prevenção entre homens que fazem sexo com homens nos contextos das pandemias de AIDS e da Covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, 26(5), 1853-1862..

A quarentena trouxe diversas questões às pessoas de modo geral, mas o que mais saltou nas notícias e conversas cotidianas foi sobre o impacto de estar isolado socialmente (que em alguma medida nos parece ter sido maior que o medo da doença em si, diante da literal invisibilidade do vírus e da possibilidade de ser assintomático).

O que refletimos aqui, quanto a esse período, é que o isolamento social, de algum modo, já é bem familiar à comunidade LGBTQIA+. Esse isolamento acontece desde os impasses sobre seu desejo marginal até o processo de distanciamento/negação de quem se é. Nessa direção, há comorbidades sociais a essa população, sobretudo no que compete a um enclausuramento junto à família nuclear e distanciamento da rede de suporte (amigos e/ou companheiros), impactando na sua livre expressão identitária e a volta a um padrão cis-heteronormativo; além disso, é importante pensar que os profissionais/equipamentos de saúde também reforçam essa lógica, distanciando assim esse público (Cerqueira-Santos, Ramos, & Gato, 2020Cerqueira-Santos, Elder, Ramos, Mozer de M., & Gato, Jorge (2020). Redes de apoio social e saúde psicológica em jovens LGBT+ durante a pandemia de Covid-19: relatório de divulgação de dados preliminares. Universidade do Porto.; Corrêa, Medrado, & Lyra, 2021Corrêa, Tiago, Medrado, Benedito, & Lyra, Jorge (2021). Plantão psicológico online para jovens LGBTI+: leituras psicossociais a partir de uma proposta emergencial de promoção à saúde mental no contexto da pandemia de Covid-19. In Charles Lang & Jefferson Bernardes (Orgs.), Psicologias em tempos de pandemia [recurso eletrônico]: reflexões políticas e práticas clínicas (pp. 89-103). EDUFAL.). Logo, estar em isolamento não é novidade, porém a quarentena da pandemia evoca ainda menos possibilidade de fuga dos padrões reafirmados por diversas instituições, mas, sobretudo, pela família, dada a relação afetiva pressuposta. Essas questões se intensificam àqueles que, mesmo não se reconhecendo na sigla, têm desejos/práticas não heterossexuais e se camuflam na figura do macho.

Portanto, o que compreendemos é que a pegação surge também como válvula de escape das tensões hetero(homo)normativas do meio, ao passo que as reproduz, de modo que esse padrão é tão enraizado nos sentidos sobre masculinidade, sobre si, sobre sexualidade, que também se expressa nesses momentos de ruptura, inclusive ocasionando tensões aos envolvidos. Assim, o que sentimos é que as consequências de testar positivo para Covid-19 parece ser menos adoecedor que os lugares impostos pelo padrão hiperviril do macho, mas sobretudo pelos conflitos gerados.

Considerações finais

Os saberes aqui construídos se dispõem ao deslocamento de concepções historicamente consideradas inquestionáveis e pautadas em percepções moralistas. Entretanto, aqui buscamos construir redes interpretativo-dialógicas diante da experiência dos nossos interlocutores, articulando os sentidos produzidos nesse percurso de imersão, interação e pegação, com as discussões feministas e queer.

Observamos que a relação com o sexo (e aqui nos referimos à prática/ato) é bastante presentificada nas interações no aplicativo -, facilmente observada nos nicknames, nas descrições dos perfis, nas fotos e nas interações entre usuários. Em contrapartida, parece-nos que viver a sexualidade de modo intenso no contexto digital permite poucos avanços políticos quanto a quebrar/ romper alguns tabus das sexualidades. A expectativa sobre a hetero(homo)normatividade nos fala de um movimento de não revolução dos paradigmas impostos sobre seus corpos, práticas e identidades.

No decorrer das conversas, ficou evidente o quanto nosso grupo de interlocutores consegue nomear essas normas como algo limitante e até mesmo adoecedor. Entretanto, há também um grande conformismo frente ao lugar marginal que alocaram os homens homo-orientados, diante da naturalização do perfil macho hétero. Em outras palavras, a hetero(homo)normatividade (re)produz o direcionamento para a compressão das relações e do desejo, que, de tão ratificado, eleva-se a uma posição quase inquestionável: aquilo que é mais particular do tesão. Desse modo, a expressão êmica “nada contra, só não curto”, apesar de buscar justificar seu desejo (ao passo que também se desculpa por ele), indica-nos o oposto da ingenuidade ou autenticidade, e sim trata-se de mais uma corroboração com a reprodução das normas.

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  • Financiamento:

    Bolsa de pós-graduação (mestrado) CAPES
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica.
  • Aprovação, ética e consentimento:

    Aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Pernambuco (CEP/UFPE), número do CAAE 18206719.9.0000.5208.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2022
  • Revisado
    01 Set 2023
  • Aceito
    21 Set 2023
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