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A Frente pela Vida e a atualização do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira

RESUMO

Objetivou-se analisar a Frente pela Vida (FpV), um ator da sociedade civil organizado no campo da saúde, que buscou incidir politicamente diante da crise sanitária da pandemia da covid-19 no contexto do governo Bolsonaro. As informações foram obtidas por meio de revisão documental de publicações da FpV, bem como pela observação participante de reuniões, manifestações, lives e eventos nos quais participou ou organizou, além de entrevistas com participantes do seu grupo operativo. A análise considerou as categorias origem, trajetória, atores, gestão, relação entre a FpV e movimento sanitário, sustentabilidade, desafios e perspectivas da FpV. Os resultados evidenciam que a FpV capitaneou uma grande rede de políticas formada por sujeitos individuais e coletivos, entidades científicas e organizações representativas de diversos segmentos da sociedade civil, conformando uma atualização do movimento sanitário com ampliação de sua base de sustentação social. Sua trajetória contemplou, principalmente, a ação técnico-científica e política em múltiplas arenas, tendo nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e na sociedade civil, espaços privilegiados de inserção. Conclui-se que a FpV se revelou importante ator social na conjuntura recente, tensionando o Estado na defesa da vida, do direito universal à saúde e da expansão e fortalecimento do Sistema Único de Saúde.

PALAVRAS-CHAVES
Política; Covid-19; Reforma dos serviços de saúde; Movimento sanitário; Sistema Único de Saúde

ABSTRACT

This paper examined the Front for Life (Frente pela Vida, FpV), a movement of organised civil society in the health field, which sought to achieve political impact in response to the health crisis caused by the COVID-19 pandemic in the context of the Bolsonaro administration. Information was obtained through a document review of FpV publications, participant observation in meetings, demonstrations, livestreams and events in which the front participated or organised, as well as interviews of participants in its operating group. The analytical categories used were origin, trajectory, movements, management, the relationship between the FpV and the health sector reform movement, sustainability, challenges and the FpV’s prospects. The results showed that the FpV has led a large policy network of individual and collective subjects, scientific entities and organisations representing various segments of civil society to update the health sector movement and expand its social support base. Its trajectory has involved mainly technical, scientific and political action in multiple areas, working with the Executive, Judiciary and Legislative branches of government, as well as civil society. In conclusion, the FpV has proved to be an important social movement pressing the State to defend life and the universal right to health and to expand and strengthen Brazil’s Unified Health System, the SUS.

KEYWORDS
Politics; COVID-19; Health care reform; Unified Health System

Introdução

Este estudo teve por objetivo analisar a Frente pela Vida (FpV), um ator da sociedade civil organizada no campo da saúde que buscou incidir politicamente diante de uma grave crise sanitária provocada pela pandemia da covid-19 no contexto do governo Bolsonaro. A criação da FpV foi uma resposta articulada de distintas entidades do campo da saúde coletiva, capaz de mobilizar outras organizações na luta em defesa da vida, da democracia e do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ao atuar em diferentes arenas políticas, a FpV consolidou-se como um importante ator político capaz de influenciar as políticas de saúde, os espaços de participação social no campo da saúde e o debate eleitoral relativo à sucessão presidencial em 2022. Por essas razões, estudar a FpV como manifestação orgânica das entidades do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) – igualmente denominado movimento sanitário – assume relevância na atual conjuntura. Dessa forma, este artigo discorre sobre a origem e a trajetória da FpV, sua composição e suas estratégias de ação, sua gestão e suas características de atualização do MRSB, bem como sua sustentabilidade, suas perspectivas e seus desafios futuros.

Material e métodos

O presente estudo está ancorado na abordagem qualitativa, que trabalha com processos sociais, históricos, políticos e subjetivos. Utilizou como técnicas a coleta e a análise de documentos, projetos e moções elaborados pela FpV, a realização de nove entrevistas semiestruturadas com os membros do grupo que a coordenava (operativo) e de outras entidades a ela vinculadas (quadro 1), a observação participante dos eventos por ela promovidos (como a Marcha pela Vida e a Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde), além dos debates por meio do grupo de WhatsApp da FpV, das lives e plenárias. A coleta de dados foi realizada de outubro a dezembro de 2022. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Delta do Parnaíba conforme Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 72855723.5.0000.0192, parecer nº 6.338.628.

Quadro 1.
Lista de entrevistado(a)s e suas respectivas funções e entidades

Inicialmente, foi realizada uma busca no site da FpV11 Frente pela Vida. Home. [data desconhecida]. [acesso em 2023 jun 8]. Disponível em: https://frentepe-lavida.org.br.
https://frentepe-lavida.org.br....
, a fim de identificar os principais fatos políticos e documentos que registraram sua atuação política. A partir do levantamento desse material, foram construídas três matrizes de análise de dados utilizando o software Microsoft Excel®, a saber:

  • a. Sistematização das notícias publicadas pela FpV, com as categorias ‘data da publicação’, ‘tipo de ocorrência’, ‘atores’, ‘objetivo’, ‘resumo e link da publicação’;

  • b. Sistematização das principais ações desenvolvidas pela FpV por mês/ano;

  • c. Matriz com distribuição das ações desenvolvidas pela FpV a cada ano por tipo e tema.

Como estratégia complementar, foi realizada observação participante de reuniões presenciais e on-line, manifestações, lives e eventos nos quais a Frente participou ou que ela organizou, além de nove entrevistas com participantes do seu grupo operativo e de outras entidades a ela vinculadas. Como critério de inclusão, foram considerados todos os atores que faziam parte do grupo operativo da FpV e que atenderam ao convite, além de outros atores que foram citados nas entrevistas do grupo operativo.

A análise dos dados foi sistematizada por meio das categorias ‘origem’, ‘trajetória’, ‘atores’, ‘gestão’, ‘relação entre a FpV e o MRSB’, ‘sustentabilidade’, ‘desafios’ e ‘perspectivas da FpV’, considerando o processo político em saúde, os sujeitos e a conjuntura política na qual a Frente surgiu e atuou.

Resultados e discussão

Tendo em vista sua melhor compreensão, os resultados serão apresentados em quatro seções que refletem as categorias de análise da FpV identificadas neste estudo, quais sejam: a) Trajetória de ação política; b) Gestão; c) Relação da FpV com o MRSB; e d) Sustentabilidade, perspectivas e desafios.

Trajetória de ação política da FpV

A organização da FpV se inicia pela articulação política e pela produção de dois documentos críticos sobre o governo Bolsonaro e a pandemia da covid-19. O primeiro foi a nota sobre a importância do isolamento social, considerando as recomendações científicas da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e o segundo foi a ‘Carta aberta em defesa da vida, da democracia e do SUS’, publicada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).

A partir da iniciativa da diretoria da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a FpV emergiu da articulação de um grupo constituído por representantes da Abrasco, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), da Associação Brasileira da Rede Unida (Rede Unida) e da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), que atuavam no CNS, no segmento de Entidades Nacionais de Profissionais de Saúde/Comunidade Científica na Área da Saúde. Desde 2018, essas quatro entidades haviam formado um colegiado com o objetivo de compartilhar discussões e posições diante dos temas discutidos no CNS. Depois, essas entidades mobilizaram outros entes nacionais para uma reunião na qual foram debatidas estratégias de ação conjunta diante da pandemia. Participaram, então, de acordo com Lúcia Souto, a SBPC, a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), a Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais do Ensino Superior (Andifes), além da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), citada por Túlio Franco, e da Associação Brasileira de Ciências (ABC) e da Comissão Arns, lembradas por Gulnar Azevedo e Silva. Nas palavras da então presidente da Abrasco, em entrevista a esta pesquisa, os respectivos presidentes decidiram desenvolver uma “ação conjunta geradora de um movimento com maior amplitude”, denominado FpV.

O lançamento oficial da FpV se deu em um ato político virtual em 29 de maio de 2020, o qual contou com a presença de lideranças das entidades fundadoras, parlamentares e representantes de diversas organizações e movimentos sociais, convidando os setores organizados da sociedade a se juntarem à FpV. A partir do diálogo com diversos atores sociais, a FpV potencializou o fortalecimento de uma rede de movimentos sociais no setor saúde.

A estratégia de atuação da FpV se baseou em três dimensões: técnico-científica, política e de mobilização da sociedade civil. A Frente produziu diversos documentos (planos, manifestos, notas, cartas e relatórios) contemplando seus posicionamentos e suas proposições ancorados no conhecimento técnico-científico, propiciando, inclusive, a articulação com entidades científicas de diferentes áreas. Além disso, a FpV interpelou o Poder Executivo (nos níveis federal, estadual e municipal), o Poder Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado Federal) e, por fim, o Poder Judiciário, para o efetivo cumprimento de seus respectivos deveres. Atuou, ainda, na mobilização dos mais diversos setores da sociedade civil observando a conformação de uma consciência sanitária.

De modo geral, em torno do núcleo central que compunha a coordenação da FpV (Abrasco, Cebes, CNS, Rede Unida e SBB), o autointitulado ‘grupo operativo’, verificou-se um conjunto de atores individuais e coletivos que frequentemente se agregou às ações da FpV e, assim, constituiu essa rede. Nas palavras de Fernando Pigatto (presidente do CNS na Gestão 2021-2024) na entrevista, a FpV protagonizou ações diversas, de caráter reativo e propositivo, realizadas tanto de maneira isolada quanto em articulação com outras entidades ao longo de toda a sua trajetória: “desde sua criação até o ano atual [2022], a Frente atuou resistindo, enfrentando epropondo, diante da covid-19, a defesa do SUS e da Democracia”. As ações reativas contemplaram principalmente a crítica à ação/omissão do Estado na condução das políticas de saúde diante da covid-19; já as proposições incluíram a elaboração do Plano Nacional de Enfretamento à Pandemia da Covid-19 e dos manifestos com propostas para o adequado enfrentamento da pandemia e fortalecimento do SUS.

Durante a manutenção das medidas de distanciamento social na pandemia da covid-19, destaca-se que a atuação da FpV recorreu às novas tecnologias e ferramentas de informação e comunicação, intensificando o uso das mídias digitais (sites, blogs, WhatsApp, YouTube etc.). A análise das informações da FpV levantadas permitiu sistematizar sua trajetória em três períodos que demarcam as fases de conformação desse sujeito coletivo, quais sejam: Fase 1 – Organização da FpV no enfrentamento da covid-19; Fase 2 – A consolidação da FpV como ator político no setor saúde; e Fase 3 – A FpV na reconstrução do País. As principais estratégias e ações desenvolvidas pela FpV, em cada uma dessas fases, bem como os atores nelas envolvidos, são descritas a seguir.

FASE 1 – ORGANIZAÇÃO DA FPV NO ENFRENTAMENTO DA COVID-19

A primeira fase da trajetória da FpV compreende o ano de 2020, incluindo seu processo de organização e o desenvolvimento das primeiras atividades diante das ações e omissões do governo Federal no enfrentamento da pandemia. Nesse complexo cenário marcado pelo vácuo da resposta do Estado à pandemia, a FpV realizou a primeira Marcha Virtual pela Vida, em 9 de junho de 2020, que recebeu o apoio de mais de 560 entidades científicas, organizações, movimentos sociais e ativistas de diversos segmentos da sociedade civil.

No mês seguinte, a Frente lançou o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-1922 Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Associação Rede Unida, et al. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19. Versão 3. 2020 dez 1. [acesso em 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_0LJ.2_20.pdf.
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, documento extenso e sustentado pelo conhecimento técnico-científico de diferentes áreas da saúde coletiva. Esse plano apresentou caminhos para o enfrentamento da pandemia, além de enfatizar a centralidade do Estado e do Ministério da Saúde na coordenação dessas ações e na formulação/no direcionamento das políticas públicas33 Souto LRF, Travassos C. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19: construindo uma autoridade sanitária democrática. Saúde debate. 2020 [acesso em 2023 out 4]; 44(126):587-9. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012600.
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. A FpV buscou ampliar a incidência política do documento, que foi apresentado para parlamentares do Congresso Nacional, da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, além de ter sido entregue formalmente ao Ministério da Saúde. Há que se destacar, no processo de construção desse plano, a não adesão da CNBB, na medida em que o documento incluiu, a partir da sua segunda versão (lançada em 3 de julho de 2020), as contribuições da área de gênero e saúde, por meio da reflexão sobre os direitos sexuais e reprodutivos – aborto legal –, ao analisar a saúde das mulheres no contexto da pandemia da covid-1922 Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Associação Rede Unida, et al. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19. Versão 3. 2020 dez 1. [acesso em 2021 jun 21]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_0LJ.2_20.pdf.
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.

A defesa do SUS foi priorizada pela FpV em todas as suas ações, motivando, inclusive, a realização da campanha nacional ‘O Brasil precisa do SUS’, lançada em dezembro de 2020 com o objetivo de “mobilizar a sociedade para a importância da defesa do SUS e dos riscos que ele está correndo”44 Conselho Nacional de Saúde. Frente pela Vida convoca sociedade para campanha nacional pela valorização do SUS. Últimas Notícias CNS. 2020 dez 14. [acesso em 2022 ago 15]. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1486-frente-pela-vida-convoca-sociedade-para-campanha-nacional-pela-valorizacao-do-sus.
http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas...
. Alguns meses depois, a FpV se articulou a diversas entidades da educação para lançar o manifesto ‘Ocupar as escolas, proteger pessoas, recriar a educação’55 Manifesto Ocupar as escolas, proteger pessoas, recriar a educação. [data desconhecida]. [acesso em 2021 jun 21]. Disponível em: https://cnte.org.br/images/stories/2020/2020_10_26_manifesto_ocupar_escolas_proteger_pessoas_recriar_educa.pdf.
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, expressando posicionamento contrário à flexibilização das restrições sanitárias na rede escolar dos estados brasileiros. Posteriormente, foi lançada uma nova versão desse manifesto, revisada e ampliada, com o título ‘Ocupar escolas, proteger pessoas, valorizar a educação’66 Manifesto “Ocupar escolas, proteger pessoas, valorizar a educação”. [data desconhecida]. [acesso em 2021 jun 21]. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2020/11/MANIFESTO-_OCUPAR-ESCOLAS-PROTEGER-PESSOAS-RECRIAR-A-EDUCACAO_2-1-compactado.pdf.
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.

Diante do exposto, nessa primeira fase de sua trajetória, a atuação da FpV se caracterizou pela conformação da rede, priorizando contribuição técnico-científica e política na proposição de caminhos para os principais desafios durante a pandemia da covid-19. Importa destacar a evidência em relação à capacidade de mobilização da FpV de mais 560 entidades, bem como a ampliação da participação para além do setor saúde, tanto na Marcha pela Vida, com grande diversidade de participantes, quanto na coalizão conformada com entidades da área de educação.

FASE 2 – A CONSOLIDAÇÃO DA FPV COMO ATOR POLÍTICO NO CAMPO DA SAÚDE

A segunda fase da trajetória da FpV se deu ao longo de 2021. Caracterizou-se pela sua consolidação, com a ampliação de seu arco de alianças e a ação política enfocada no enfrentamento da pandemia e na defesa do SUS, além da responsabilização do governo Bolsonaro pela grave da crise sanitária, período em que o País bateu recordes de casos e óbitos em meio ao colapso de seu sistema de saúde.

Diante da gravidade da situação sanitária, a FpV articulou diferentes ações nos Poderes Legislativo e Judiciário, defendendo a implementação de medidas adequadas de enfrentamento da pandemia, voltadas às necessidades de saúde da população brasileira. Além dessas ações, a Frente atuou no apoio à Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia (CPI da Pandemia), instaurada no Congresso Nacional para apurar as responsabilidades pelos casos e mortes evitáveis ocorridos no Brasil durante a pandemia.

No âmbito do Poder Judiciário, além dos manifestos, a FpV foi coautora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 82277 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 822 de 8 de abril de 2021. [acesso em 2022 ago 15]. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/Consultar-ProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=6150239.
https://redir.stf.jus.br/estfvisualizado...
, também conhecida como ‘ADPF do Lockdown’, que demandava ao Supremo Tribunal Federal (STF) a imposição aos entes federativos, em especial ao governo Federal, de rigorosas medidas de controle da circulação de pessoas para salvar vidas diante do descontrole da pandemia da covid-19 no País, com vistas a resguardar o SUS.

Além das instâncias nacionais dos poderes democráticos, a FpV denunciou a calamidade no Brasil para instâncias internacionais

Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização da Nações Unidas (ONU). Nesse contexto, a Frente encaminhou ao STF a ‘Carta à humanidade: vida acima de tudo’, na qual reforçou a importância de um lockdown nacional, e realizou a segunda Marcha pela Vida. A partir de maio de 2021, os movimentos sociais retomaram as manifestações de rua, contando com a participação da FpV. Esses atos tinham como mote principal ‘Vacina para todas e todos, auxílio emergencial de 600 reais, em defesa do SUS e fora Bolsonaro’88 Frente pela Vida. Chega de doença, morte e fome – impeachment já! 2021 jul 2. [acesso em 2022 ago 15]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/noticia/chega-de-doenca-morte-e-fome-impeachment-ja/351.
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No que se refere à dimensão técnico-científica, nessa fase, a FpV produziu, com diversas entidades da educação e do serviço social, o manifesto intitulado ‘Saúde, educação e assistência social em defesa da vida e da democracia’99 Associação Brasileira de Alfabetização, Associação Brasileira de Currículo, Associação Brasileira de Educação Médica, et al. Manifesto Saúde, educação e assistência social em defesa da vida e da democracia. Intersetorialidade Saúde-Educação-Assistência Social no enfrentamento da pandemia. [data desconhecida]. [acesso em 2021 jun 21]. Disponível em: https://anped.org.br/sites/default/files/images/manifesto_edu_saude_assist_v0_29_03_21_base.pdf.
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, que analisou o impacto desigual da pandemia sobre a educação, propondo princípios e diretrizes com a participação de 50 organizações para garantir a atenção integral a crianças e adolescentes. Diante dos ataques às áreas da saúde, educação e ciência e tecnologia, a FpV se posicionou contra a proposta de desvinculação dos recursos do orçamento da saúde e educação e contrária ao desmonte do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

A segunda fase da trajetória da FpV priorizou a incidência política sobre o Estado por meio da intensificação das denúncias às omissões e ações negacionistas e anticientíficas do governo federal, bem como da maior aproximação e articulação com os Poderes Legislativo e Judiciário, com vistas à defesa da vacinação universal e da implementação das medidas sanitárias adequadas para a contenção da pandemia e da renda básica para as populações em situação de maior vulnerabilidade social.

A incidência de um ator na arena política depende da capacidade de utilizar seus recursos em uma estratégia que aumente sua visibilidade, reconhecimento da sua legitimidade e interlocução em diferentes arenas, assegurando a difusão, a vocalização, o alcance e os apoios a seu projeto. Nessa fase, a FpV ampliou sua visibilidade e ações no Judiciário e em organismos internacionais, além de fortalecer sua presença no Legislativo em diferentes momentos, inclusive sendo convidada a depor na CPI da Pandemia.

FASE 3 - A FPV NA RECONSTRUÇÃO DO PAÍS

A terceira fase da trajetória da FpV se desenvolveu ao longo de 2022, em um cenário epidemiológico marcado pelo avanço da vacinação contra a covid-19 e a consequente diminuição do número de casos e óbitos causados pelo Sars-CoV-2. Nessa fase, a atuação da FpV se centrou na proposição de um projeto de saúde para o Brasil em face das eleições presidenciais de 2022. Nesse contexto, a agenda estratégica da Frente para 2022 veio a se desdobrar na Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde (CNLDPS), com ampla participação popular em uma agenda de diretrizes para as políticas de saúde do Brasil.

A etapa nacional da CNLDPS ocorreu em agosto de 2022, com a participação presencial de gestores e profissionais da saúde, movimentos sociais, pesquisadores, sanitaristas e acadêmicos de diversas partes do País. A conferência se revelou um importante fato político, tendo em vista que o então candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, firmou compromisso com a agenda FpV, reunindo diretrizes para a formulação das políticas de saúde para os próximos anos.

O documento em questão contemplava os seguintes eixos norteadores:

  • a. SUS 100% público;

  • b. Carreira de Estado no SUS;

  • c. Fortalecimento das redes de atenção à saúde;

  • d. Importância do Complexo Econômico-Industrial da Saúde considerando a soberania nacional e a segurança sanitária;

  • e. Defesa radical da democracia;

  • f. Ampliação do financiamento com a revogação da Emenda Constitucional nº 95/2016;

  • g. Construção de políticas de saúde orientadas por uma perspectiva de gênero, raça/etnia, classe e território, considerando a determinação social da saúde.

Posteriormente, diante da intensa polarização observada com a proximidade das eleições, a FpV se posicionou publicamente em apoio à Chapa Lula-Alckmin, justificando que ela representava um projeto de País pautado na ‘defesa da democracia, associada a políticas sociais de proteção e bem-estar social’, em detrimento do projeto antagônico, representado pela reeleição de Bolsonaro, que ‘significava o aprofundamento do autoritarismo e do fascismo associado a políticas neoliberais e regressivas dos direitos humanos e sociais’1010 Frente pela Vida. Frente pela Vida define apoio à chapa Lula e Alckmin nas eleições de 2022. 2022 ago 25. [acesso em 2022 ago 26]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/noticia/frente-pela-vida-define-apoio-a-chapa-lulae-alckmin-nas-eleicoes-de-2022/573.
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Após a vitória da Chapa Lula-Alckmin nas eleições, a FpV iniciou o diálogo com a equipe de transição do governo federal, demarcando sua contribuição para a definição dos novos rumos das políticas de saúde. Nos primeiros dias de trabalho da equipe de transição, a FpV se reuniu com integrantes do Gabinete de Transição do governo Lula e destacou a importância de fortalecer o diálogo, apontando diversos pontos a serem considerados pelo novo governo. Posteriormente, inclusive, membros da FpV entraram na composição do Gabinete de Transição Presidencial no setor saúde.

Em meio às especulações em torno da definição da equipe do novo governo, a Frente decidiu não incidir politicamente na indicação e na defesa de um nome para o cargo de Ministro da Saúde, defendendo critérios que deveriam ser atendidos pelo ocupante do referido cargo, tais como trajetória profissional e ação política de compromisso com o SUS, além da inexistência de quaisquer conflitos de interesse em relação ao SUS. Esse processo fortaleceu a atuação da FpV em um contexto de ascensão do autoritarismo, ultraliberalismo e neoconservadorismo.

Nessa fase, a FpV fortaleceu a relação entre sociedade civil e classe política na luta pelo direito à saúde. Tal participação política reconheceu a importância da agregação de novos atores e estratégias de atuação política, orientadas por um projeto de saúde nacional construído coletivamente em diversas arenas de debate e ampla autonomia política de partidos e governos. Uma evidência da capacidade de mobilização e organização da Frente foi a realização de mais de 120 pré-conferências locais que antecederam a etapa nacional da CNLDPS, organizadas de forma autônoma, porém coordenada, pelos diferentes atores capitaneados pela FpV. Assim, cada organização participante pôde imprimir uma pauta específica no conjunto da discussão coletiva, como foi o caso das conferências organizadas pelo Grito dos Excluídos. A inovação representada por esse processo teve forte incidência nos arranjos participativos posteriores, tornando-se modelo para dinamizar as Conferências Nacionais de Saúde.

Gestão: a FpV como rede de políticas

As redes de políticas mobilizam atores e organizações para atingir objetivos comuns com poder compartilhado e relações horizontalizadas – o que envolve a construção de consensos e tomadas de decisões coletivas1111 Fleury S. Redes de políticas: novos desafios para a gestão pública. RAD. 2005; 7(1):77-89.. A FpV se configurou como uma rede de políticas que emergiu da articulação entre vários atores sociais, conselhos de direitos, entidades científicas, movimentos sociais, parlamentares, partidos políticos, profissionais e sindicatos durante a pandemia da covid-19.

Compreender a FpV como rede de políticas exigiu a compreensão da dinâmica, da estrutura, dos atores, das relações sociais, das estratégias de coordenação e dos processos de interdependência, além das relações de poder e de gestão entre os diversos atores que compõem a rede – o que será tratado ao longo desta seção.

A FpV não pode ser confundida com uma organização que apresenta uma estrutura e contexto definidos, portanto, deve ser analisada a partir da teoria que trata das redes interorganizacionais, cuja formação e mecanismos de coordenação não são formalizados em um estatuto, mas devem ser construídos de forma cooperativa pelos participantes. Como a participação é voluntária, cada nódulo da rede precisa participar da construção de um objetivo geral compartilhado. O processo de construção de consenso é, pois, permanente e requer horizontalidade das relações, sem o que uma rede, mesmo que mediada por uma instância coordenadora, tende a se desfazer quando os participantes deixam de sentir que seus interesses estão sendo contemplados. Isso não evita a existência de diferenças, que é, aliás, a condição para a existência das redes, nem mesmo de competição e conflitos. Diferentemente das organizações hierárquicas, nas redes, a solução dos conflitos deve ser um objetivo central, negociando soluções coletivas e construindo consensos progressivos1212 Hanf K, O’toole. Revisiting old friends: networks, implementation structures and the management of interorganizational relations. Eur. J. Political Res. 1992; 21(1-2):163-80., 1313 Klijn E-H. Analyzing and managing policy processes in complex networks: a theoretical examination of the concept policy network and its problems. Adm. Soc. 1996; 28(1):90-120., 1414 Mandell MP. Community collaborations: Working through network structures. Policy Stud. Rev. 1999; 16(1):42-65..

A FpV apresenta vantagens em seu processo de organização e desenvolvimento da rede de políticas, quais sejam:

  • a. A pluralidade de atores sociais e/ou entidades técnico-científicas proporcionou maior profundidade na análise da conjuntura e da situação de saúde e na construção das estratégias de enfrentamento coletivo com participação de todos os atores envolvidos – entidades científicas, conselhos de direitos, movimentos sociais, profissionais e sindicatos em áreas como saúde, educação e assistência social – na análise da covid-19;

  • b. O fortalecimento da autonomia política entre todos os atores envolvidos, orientado pela construção de consensos progressivos entre os diversos atores/entidades, proporcionou maior implicação e compromisso político com os objetivos comuns de enfrentamento da covid-19 e do governo Bolsonaro; e

  • c. A gestão compartilhada por parte do grupo operativo e da plenária ampliada da FpV promoveu o processo de participação e protagonismo dos atores sociais e dos sujeitos históricos na rede.

IDENTIDADE COMUM, DINÂMICA GRADUALISTA, RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS E CONSTRUÇÃO DE CONSENSOS

A identidade comum entre os atores da FpV é a defesa da vida, o enfretamento da pandemia, a defesa da democracia e do SUS no contexto do governo Bolsonaro e o reconhecimento de um Estado que não tem exercido seu papel na defesa da vida e da saúde. Processualmente, a dinâmica gradualista da FpV foi amadurecendo e se consolidando, conformando-se em uma rede de políticas que integra um amplo leque de movimentos sociais e entidades, orientado por relações horizontalizadas, dialógicas e processuais com base no respeito à heterogeneidade, à solidariedade e aos objetivos comuns compartilhados no processo de tomada de decisão. Quanto ao processo de geração de consensos e negociação, a FpV tem conseguido construir espaços de tomada de decisão de forma célere diante da grande rede de atores que a compõem, a partir dos consensos progressivos, que constitui um processo político coletivo de mediação das posições para a tomada de decisões. Conforme relatou Túlio Franco, da Rede Unida:

[...] O processo de tomada de decisão é que todas as discussões ocorrem através do dispositivo de construção do consenso progressivo como estratégia de tratar a divergência – não destruir o oponente – e construir unidade de forma coletiva. (Túlio Franco).

Nesse sentido, a Frente desenvolveu uma nova forma de organização no setor saúde, orientada por ‘uma nova estética de política’, nas palavras de Túlio Franco da Rede Unida, que se fundamenta na construção coletiva, na multiplicidade de atores e na defesa da democracia e da diversidade político-ideológica. A construção dos consensos da FpV possibilitou o diálogo entre os atores a partir de objetivos comuns e do respeito às diferenças políticas e institucionais, sem desconsiderar a diversidade e pluralidade política de atores e sujeitos inseridos na rede. Esse processo fortaleceu a democracia interna e a gestão democrática e participativa. Foi possível observar que conflitos que surgiram em relação a questões como indicação ou não de um nome para o Ministério da Saúde ou quanto a propostas de financiamento do setor foram discutidas em várias plenárias, e não tendo alcançado uma posição consensual entre os membros da rede, não foram encaminhadas em manifestações da FpV.

FORTALECIMENTO MÚTUO DO PAPEL DAS LIDERANÇAS

Os múltiplos atores e forças que compõem a FpV têm objetivos comuns, assim como um processo ascendente de construção de vínculos. Rovere1515 Rovere M. Redes en salud: un nuevo paradigma para el abordaje de las organiciones y la comunidad. Rosario: Instituto Lazarte; 1999. define um conjunto de níveis que compreendem ações e valores que se aprofundam. De acordo com esse autor, no primeiro nível, as entidades se reconhecem, aceitando umas às outras como interlocutoras. Em seguida, passam a se conhecer e a dialogar entre si, manifestando interesse mútuo, de modo que chegam, então, ao terceiro nível, no qual passam a trabalhar conjuntamente, colaborando entre si. Por último, é apropriado que se associem e formem uma rede, quando a relação de confiança é alcançada e os vários atores partilham objetivos comuns e ações coletivas1515 Rovere M. Redes en salud: un nuevo paradigma para el abordaje de las organiciones y la comunidad. Rosario: Instituto Lazarte; 1999..

COORDENAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DA REDE

Na primeira fase de sua trajetória de atuação, a FpV não tinha coordenação. Assim, o processo de organização e gestão de interdependências da rede se desenvolvia de maneira autogestionada, capitaneado, notadamente, por 5 das 11 entidades que haviam mobilizado a criação da rede. Considerando a necessidade da comunicação célere e da tomada de decisão entre seus múltiplos membros, de maneira ininterrupta, optou-se pela criação de um grupo da FpV no aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz, WhatsApp. Além desse meio de comunicação e diante das limitações impostas pelas medidas de distanciamento físico em virtude da pandemia, a FpV passou a realizar encontros periódicos via plataformas de reuniões virtuais, denominados ‘plenárias’.

Tendo em vista, em última instância, a definição de consensos e das ações a serem encaminhadas pela FpV, optou-se por priorizar como posição da FpV os pontos que eram consensuais, deixando os demais para discussão posterior e encaminhamento de posicionamentos individuais por parte das entidades. Assim, começou-se a refletir sobre a necessidade da constituição de um núcleo diretivo para a gestão da rede. Essa coordenação recebeu o nome de ‘grupo operativo’ ou ‘operativa’ e norteou-se pelo critério da junção dos representantes das quatro entidades fundadoras e o CNS.

A FpV não dispõe de um estatuto ou de regras formais que determinem sua organização e seu funcionamento. Por isso, norteia-se por um conjunto de regras informais, consen-suadas no processo de interação dos atores que compõem sua rede e, portanto, reconhecido e igualmente interpretado por todos os seus membros. O estabelecimento dessas regras constituiu um importante instrumento de gestão da FpV. Sobre isso, destacou Túlio Franco, da Rede Unida:

[...] Então, é assim, não tem uma estrutura. Qual a instância de decisão... é o plenário que é convocado naquele ‘Zap’. Você vê que não tem nenhum regimento. Qual o quórum da plenária que decide? Qual o quórum qualificado? Não tem isso. E representação por entidade? Não tem isso também. (Túlio Franco).

A ausência de relações de poder hierarquizadas, fortalecendo relações participativas e democráticas, foi estratégia importante da FpV para construir relações mais horizontalizadas entre todos os atores envolvidos. Mesmo considerando que as organizações participantes tinham níveis diferenciados de recursos, o que poderia assegurar, a algumas, maior centralidade na rede, as decisões-chave da Frente eram sempre submetidas à plenária, o que assegurava a horizontalidade necessária ao funcionamento e à manutenção da rede. Ao mesmo tempo, mostrou-se acertada a posição da aceitação de posições divergentes, que não alcançaram o consenso nas plenárias, e que continuariam a ser defendidas em cada entidade.

O fortalecimento das organizações e lideranças participantes mostrou-se efetivo tanto pelo fato de que as mudanças nas direções das entidades não provocaram impacto negativo na rede quanto pela razão de que as lideranças que compõem as entidades do grupo operativo da rede foram convocadas, posteriormente, para assumir diferentes posições na nova arquitetura participativa do governo que se inaugurou em 2023.

Relação da FpV com o MRSB

O MRSB tem sido definido pela sua práxis em defesa de uma concepção ampliada da saúde, pela constitucionalização do direito à saúde como dever do Estado, pela proposição e luta por um sistema público universal de saúde integral, descentralizado e participativo. Sua plasticidade organizativa em diferentes conjunturas políticas, sua multiplicidade em campos como a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica ou o movimento popular em saúde não impedem, no entanto, que tenha construído uma forte identidade compartilhada por indivíduos e organizações.

A FpV, na percepção dos membros da operativa, constitui-se em uma atualização do MRSB ou mesmo uma continuidade dele na conjuntura recente, que conta com novos atores, arenas e projetos em disputa. Para Lúcia Souto, do Cebes, a FpV amplia a base social do MRSB e promove uma atualização da agenda política deste ator:

A minha sensação é que é uma atualização do movimento da Reforma Sanitária, uma atualização com muitas outras entidades envolvidas, o que dá uma base social bem mais ampliada para essa luta política. Eu acho que essa base social de movimentos sociais, ela realmente está interagindo nessa pauta e na atualização dessa agenda do movimento da Reforma Sanitária. (Lucia Souto).

Gulnar Azevedo e Silva, da Abrasco, relatou que a FpV representa a reafirmação dos compromissos do movimento sanitário, ao mesmo tempo que é, também, uma renovação e ampliação dele. Ela ressalta, também, o fato de as entidades terem se fortalecido nessa trajetória, porém, com menor engajamento político e ideológico:

[...] A gente pegou o que foi construído lá atrás, como se costurasse novamente para abrir para um novo mundo [... ] para uma nova perspectiva [... ] a gente tem uma outra situação. Nós temos um SUS que não é aquele que poderia ter sido criado, mas é o que existe. é isso que nós temos hoje. O que é que a gente tem que fazer? E por outro lado as entidades se ampliaram bastante, cresceram muito, cresceram talvez com menos engajamento ideológico e comprometido, mas com maior penetração, entendeu? [...] Então o que é que a gente tem que fazer? Recuperar, trazer essa essência, pensar nessa essência, o que pode ser feito. (Gulnar Azevedo e Silva).

Ao longo das entrevistas desta pesquisa, Túlio Franco, da Rede Unida, destacou que a FpV não só é herdeira do MRSB, mas também o atualiza em sua composição ao envolver outros atores externos ao campo da saúde coletiva, ressaltando a ampliação da base social do movimento sanitário, com a participação do Grito dos Excluídos. Já Rosana Onocko, da Abrasco, destacou que a FpV se consolidou como um ator social, fruto dos consensos construídos, obtendo o reconhecimento de autoridades políticas e de outros atores.

Semelhanças e diferenças com o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira

Identificam-se semelhanças entre a FpV e o MRSB em diversos aspectos, haja vista que vários dos entrevistados referem que a FpV é uma atualização do MRSB. No que tange à composição de seus membros, a maioria de ambos é constituída por profissionais de saúde que têm pouca penetração em movimentos sociais mais amplos. Houve um movimento de ampliação da ação política para além do âmbito setorial com a participação de lideranças da FpV em outras frentes mais amplas, como a Frente Brasil Popular e o Povo Sem Medo, além da inclusão do Grito dos Excluídos na rede. Essa questão foi tratada como uma dificuldade de outrora do MRSB, no sentido de possuir uma base de sustentação popular limitada, alicerçada principalmente no setor acadêmico, com acionamento limitado na via sociocomunitária, mencionado na literatura como o “fantasma da classe ausente”1616 Paim JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: Ed. UFBA; 2008. (310). Entretanto, cumpre salientar que a existência de uma comunidade epistêmica garante à FpV certas vantagens no campo de ação, por ter uma cultura política semelhante, facilitando a unidade da FpV, o diagnóstico comum das problemáticas e a capacidade de formação de consensos em suas proposições.

As estratégias adotadas pelo movimento sanitário, historicamente – e nessa conjuntura pela FpV –, mantêm-se comuns, em diferentes arenas, mobilizando alianças e buscando ampliar a capacidade de incidência política, quais sejam: a) Formulação técnico-científica sobre a Reforma Sanitária Brasileira e o SUS; b) Diálogo com os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; e c) Incidência em meios de comunicação das próprias organizações e de parceiros, que debateram temas cruciais na política sanitária.

A FpV interagiu com o Poder Legislativo, articulando-se com a Frente Parlamentar da Saúde, composta por representantes de partidos progressistas, como anteriormente havia ocorrido com o movimento sanitário1717 Rodriguez Neto E. A via do Parlamento. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos; 1997. p. 63-92., sendo que, na conjuntura atual, também foi possível subsidiar os trabalhos da CPI da Pandemia no Senado Federal.

Em síntese, as principais diferenças entre a FpV e o MRSB identificadas neste estudo se referem a duas categorias principais, quais sejam: a) Características dos sujeitos que os compõem; e b) Estratégias de atuação por eles acionadas. Portanto, a ação política da FpV se centrou no protagonismo dos sujeitos coletivos que compõem a rede que a conforma, como decorrência do próprio processo de fortalecimento das organizações que a compõem. A segunda diferença verificada corresponde ao maior acionamento da via judicial, requeren-do-se a tutela coletiva na defesa do direito à saúde, frequentemente utilizada, inclusive, pela FpV no período recente1818 Paim JS. A COVID-19, a atualidade da reforma sanitária e as possibilidades do SUS. In: Santos A, Lopes LT, organizadores. Reflexões e futuro. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 2021. p. 310-24.. A mobilização do Poder Judiciário não foi uma via muito utilizada na trajetória de atuação do MRSB1919 Fleury S. A judicialização pode salvar o SUS? Saúde debate. 2012; 36(93):159-62., 2020 Paixão ALS. Reflexões sobre a judicialização do direito à saúde e suas implicações no SUS. Ciênc. saúde coletiva. 2019; 24(6):2167-72..

Sustentabilidade, perspectivas e desafios da FpV

Ao considerar as perspectivas para a FpV em 2023, os participantes da pesquisa relatam a importância da continuidade da atuação da Frente na nova conjuntura política. A organização de áreas de atuação que permitirão aprofundar o processo de formulação e organização da rede dependem de sua organização política, fortalecimento da produção técnico-científica, relação institucional, diálogos com os movimentos sociais, e, finalmente, da preservação da autonomia e independência política da FpV. Outro desafio importante para a sustentabilidade da rede é uma formulação política que possibilite aprofundar os debates no setor saúde, em outras áreas de conhecimento e nos cenários de atuação.

Dessa maneira, com o processo eleitoral de 2022 e a eleição da Coligação Brasil da Esperança – a Chapa Lula-Alckmin –, a FpV contribuiu para o Gabinete de Transição Presidencial com apoio à equipe da saúde na compreensão dos principais desafios no contexto das políticas de saúde e no debate sobre um projeto de saúde para o Brasil2121 Frente pela Vida. Frente Pela Vida se reúne com integrantes da saúde da equipe de transição do novo governo. 2022 nov 10. [acesso em 2023 ago 26]. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/noticia/frente-pela-vida-se-reune-com-integrantes-da-saude-da-equipe-de-transicao-do-novo-governo/588.
https://frentepelavida.org.br/noticia/fr...
. Sobre isso, Lúcia Souto, do Cebes, reflete que:

Eu particularmente acho que devemos continuar ousando na agenda mesmo que a gente não ganhe [...] vai ser a disputa deste campo popular como o ministro da saúde que defendemos, que expresse um compromisso em defesa do direito universal e sem conflito de interesse [...] a disputa é que a gente amplie a consciência crítica da sociedade brasileira. (Lúcia Souto).

Nesse contexto, a FpV, a partir do novo governo, definiu como atividades estratégicas a participação institucional, o fortalecimento da participação política e a luta pelo direito à saúde. Além disso, a defesa da vida, da democracia e do SUS permanece como central em uma nova conjuntura política e sanitária.

Considerações finais

Este artigo indica que a FpV tem na sua origem o MRSB. Dessa maneira, a FpV foi caracterizada como uma atualização do movimento sanitário com ampliação de sua base de sustentação social. Nesse sentido, compreende-se a FpV como uma continuidade do MRSB em uma conjuntura que conta com novos atores, arenas e projetos em disputa. Trata-se, portanto, de um sujeito político, na acepção de sujeito como um ator político em movimento2222 Fleury S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: Fleury S, Lobato L, organizadores. Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 24-46.. As arenas de atuação da FpV foram múltiplas, compreendendo os Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, embora tenha sido a sociedade civil seu espaço privilegiado de inserção e atuação. Contemplam-se como principais estratégias a ação técnico-científica e a atuação política da FpV nessa conjuntura.

A existência de uma comunidade epistêmica comum entre diversos atores sociais inseridos e a atuação centrada em determinada conjuntura política fortaleceram a construção de uma rede de políticas orientada por objetivos comuns de defesa da vida, da democracia e do SUS. Assim, emergem como perspectivas da FpV a importância do fortalecimento da participação social em saúde e a disputa dos principais projetos de poder no Estado, considerando o governo Lula no período 2023-2026. Nesse contexto, nos primeiros meses de 2023, pode-se destacar a divulgação do relatório final da CNLDPS, que objetiva discutir uma resposta aos desafios impostos ao SUS e fortalecer o processo de mobilização e articulação política para a 17ª Conferência Nacional de Saúde.

O desafio de manter uma posição de autonomia crítica em relação ao governo, no qual vários membros da operativa estão participando de Conselhos, torna-se crucial para sobrevivência da rede.

  • Suporte financeiro: não houve

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Editado por

Editora responsável: Lenaura de Vasconcelos da Costa Lobato

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2023
  • Aceito
    26 Mar 2024
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