RESUMO
Relato de experiência que apresenta parceria entre o Núcleo de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas, o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina e o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, o qual resultou em um projeto de intervenções territoriais e comunitárias em saúde mental em Paraty. O objetivo foi promover intervenções nesse campo considerando aspectos socioeconômicos, ambientais e de saúde, integrando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as metas da Agenda 2030. O projeto desenvolveu atividades de diagnóstico, articulação, intervenção e monitoramento, utilizando metodologias como educação popular, educação permanente, pesquisa-ação e sistematização de experiências. Participaram residentes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Escola de Governo Fiocruz Brasília, além de um supervisor clínico institucional bolsista, fortalecendo a Rede de Atenção Psicossocial do município. Atividades como reconhecimento do território, rodas de conversa, entrevistas e trabalho em equipe multiprofissional foram realizadas para compreender o sofrimento mental valorizando os saberes comunitários e as tradições. A relação com a rede formal de saúde mental foi estabelecida para implementar o matriciamento e ampliar o acesso ao cuidado em saúde mental nas comunidades.
PALAVRAS-CHAVE
Comunidades tradicionais; Saúde mental; Intervenção comunitária; Redes de Atenção à; Saúde; Reconhecimento do território
ABSTRACT
Experience report presenting a partnership between the Mental Health Alcohol and Other Drugs Center, the Observatory of Sustainable and Healthy Territories of Bocaina, and the Forum of Traditional Communities of Angra dos Reis, Paraty, and Ubatuba resulted in a project of territorial and community interventions in mental health in Paraty. The goal was to promote interventions in this field considering socioeconomic, environmental, and health aspects, integrating the Sustainable Development Goals and the targets of the 2030 Agenda. The project developed diagnostic, articulation, intervention and monitoring activities, using methodologies such as popular education, permanent education, action research and systematization of experiences. Residents of the Multiprofessional Residency Program in Mental Health, Alcohol, and other Drugs from the FIOCRUZ Brasília School of Government participated, as well as an institutional clinical supervisor fellow, strengthening the municipality’s Psychosocial Care Network. Activities such as territory recognition, conversation circles, interviews, and multiprofessional teamwork were carried out to understand mental suffering valuing community knowledge and traditions. The relationship with the formal mental health network was established to implement matrix support and expand access to mental health care in communities.
KEYWORDS
Traditional communities; Mental health; Community intervention; Health care networks; Territory recognition
Introdução
O objetivo do presente artigo é apresentar um relato de experiência de projeto desenvolvido por meio da parceria entre o Núcleo de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas (Nusmad), o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) - ambos vinculados à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - e o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), em que se executou o projeto de intervenções territoriais e comunitárias em saúde mental voltado às comunidades tradicionais do município de Paraty.
Comunidades tradicionais muitas vezes enfrentam desafios únicos relacionados com a saúde mental devido a fatores socioeconômicos, culturais, ambientais e estruturais. Ademais, estigma, acesso limitado a serviços de saúde mental, falta de recursos e barreiras linguísticas ou culturais podem dificultar o acesso a cuidados adequados. Além desses fatores, as comunidades tradicionais também estão sujeitas a riscos específicos relacionados com desastres ambientais e tecnológicos, que podem ter impactos significativos no bem-estar psicossocial e no bem-viver. Portanto, a vulnerabilidade dessas comunidades é ampliada, requerendo intervenções específicas que considerem não apenas os aspectos clínicos da saúde mental, mas também os determinantes sociais, culturais e ambientais que influenciam diretamente na saúde mental dessas populações.
O problema abordado no artigo reflete uma lacuna na prestação de serviços de saúde mental que atendam adequadamente às necessidades das comunidades tradicionais de Paraty. A falta de intervenções adaptadas às realidades dessas comunidades pode resultar em altos índices de sofrimento mental não tratado, baixa qualidade de vida e dificuldades adicionais no enfrentamento de desafios sociais e ambientais.
Detalham-se as diferentes intervenções e atividades realizadas no projeto, incluindo diagnóstico das necessidades das comunidades, articulação com os diversos atores envolvidos, intervenções específicas em saúde mental, tecnologias de cuidado e atenção psicossocial, monitoramento dos resultados e integração com a rede formal de saúde mental do município.
O conceito transversal do projeto aqui relatado é o de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (TSS), que se referem a áreas geográficas onde são adotadas práticas e políticas integradas que promovem o desenvolvimento sustentável, equilibrando aspectos socioeconômicos, ambientais e de saúde. Esses territórios visam à promoção da saúde, qualidade de vida, preservação do meio ambiente, assim como buscam garantir a sustentabilidade em longo prazo. Impulsionada por essa ideia, a Fiocruz criou a iniciativa institucional de articulação de saberes e práticas sobre a determinação socioambiental da saúde, considerando a integralidade aspiracional da Agenda 2030, visando assegurar qualidade de vida e sustentabilidade nos territórios, o Programa Institucional de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (Pitss), que, em 2020, abriu edital para projetos, contemplando 13 estratégias territorializadas em TSS, entre elas, a experiência ora apresentada11 Gallo E, Setti AFF. Abordagem ecossistêmica e comunicativa na implantação de agendas territorializadas de desenvolvimento sustentável e promoção da saúde. Ciênc saúde coletiva. 2012;17:1433-1446. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000600008
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,22 Fundação Oswaldo Cruz (BR). Portaria nº 5578, de 14 de agosto de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 14 Ago 2020..
O Projeto visou desenvolver intervenções em saúde mental, tecnologias de cuidado e atenção psicossocial considerando as especificidades culturais e os dispositivos públicos como recurso, partindo da geração de dados sobre o impacto da pandemia na saúde mental das comunidades tradicionais do município de Paraty, mais especificamente, aquelas que se encontram na bacia do rio Carapitanga. Observações empíricas oriundas do diálogo com lideranças do FCT indicaram que problemáticas relacionadas com o uso de substâncias psicoativas e violência foram agravadas pela situação de isolamento social, aumentando a demanda por atenção e promoção à saúde. A isso, agreguem-se fatores do processo de marginalização do território e do modo tradicional de vida causado por leis ambientais que desconsideram a ocupação ancestral dessas áreas.
A atuação do projeto no território se tornou campo de Estágio Eletivo do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Escola de Governo Fiocruz Brasília (especialização latu sensu com enfoque na atenção psicossocial) durante o ano de 2021, que não pôde se estender durante o ano de 2022 devido à ocorrência de catástrofes climáticas na região, direcionando os esforços do projeto ao fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do município por meio de ações de matriciamento e supervisões clínico-institucionais, assim como para a temática dos riscos de desastres ambientais e tecnológicos e das consequências à saúde mental das comunidades tradicionais.
A intervenção buscou produzir compreensões sobre sofrimento mental que dialoguem com o pensamento decolonial, rompendo paradigmas e instaurando práticas embasadas nos saberes comunitários, nas tradicionalidades, historicidade, cosmovisões, sistemas simbólicos e suas múltiplas determinações. Os referenciais da Educação Popular em Saúde permitiram ampliar as possibilidades de promoção de saúde na perspectiva de produção de sentidos e sentimentos, afirmando seus princípios orientadores: o diálogo, a amorosidade, a problematização, a construção compartilhada do conhecimento, a emancipação e o compromisso com o projeto social democrático e popular. Ações de supervisão clínico institucional complementam as iniciativas de produção de subjetividades requeridas para a promoção do bem viver.
Material e métodos
O presente estudo propõe uma análise baseada na vivência dos autores durante a condução do projeto ‘Intervenções territoriais e comunitárias em saúde mental’. A partir das experiências compartilhadas, busca-se não apenas relatar as atividades realizadas, mas também promover reflexões sobre processos, desafios, conquistas e aprendizados obtidos ao implementar o matriciamento em saúde mental e a supervisão clínico-institucional na Raps no município de Paraty. O objetivo central está na prestação de cuidados às comunidades tradicionais, que enfrentam pressões e ameaças sociais, ambientais e econômicas que impactam diretamente seus modos de vida e seu bem-estar.
Este relato de experiência oferece uma oportunidade para explorar os complexos aspectos envolvidos na integração de serviços de saúde mental em contextos comunitários específicos. Ao destacar os sucessos alcançados, bem como os desafios enfrentados ao lidar com as necessidades dessas comunidades, o estudo proporciona insights valiosos para profissionais da área da saúde e formuladores de políticas.
Além disso, o enfoque na supervisão clínico-institucional ressalta a importância de fortalecer a capacidade das redes de atenção psicossocial para oferecer um cuidado mais abrangente e centrado em seus usuários. Ao promover uma cultura de supervisão e aprendizado contínuo, o projeto buscou melhorar a qualidade dos serviços de saúde mental disponíveis, garantindo um atendimento mais eficaz e inclusivo para as comunidades tradicionais e outras populações vulnerabilizadas do território.
O projeto, teve financiamento vinculado ao edital do programa Inova para Territórios Sustentáveis e Saudáveis sob a numeração 64171556725729, e conforme exigido, foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Brasília, sob o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE nº 61032222.6.0000.8027, tendo sido aprovado por meio do parecer consubstanciado de número 5.699.218.
Resultados
A proposta inicial do projeto o organizava em quatro etapas: 1) Diagnóstico; 2) Articulação e pactuação; 3) Intervenção; e 4) Monitoramento e avaliação das atividades. Cada etapa, de forma coerente com os objetivos pretendidos, ancorou-se nos seguintes referenciais metodológicos:
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Educação Popular: inclui os movimentos sociais no campo da saúde, ampliando as possibilidades de promoção de saúde a partir da perspectiva de produção de sentidos e sentimentos, orientados pelo diálogo, a amorosidade, a problematização, a construção compartilhada do conhecimento, a emancipação e o compromisso com a construção do projeto social democrático e popular33 Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012..
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Educação permanente: possibilita a transformação dos processos de trabalho das equipes dos dispositivos de cuidado, por meio da reflexão crítica das práticas, teorização pelo conhecimento científico e valorização do trabalhador e do trabalho na saúde44 Ministério da Saúde (BR). Portaria sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012..
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Pesquisa-Ação: metodologia de investigação-ação que valoriza os participantes como sujeitos, construtores de conhecimentos advindos da vivência real, organizados em um processo de retroalimentação em duas dimensões - ação e investigação - e em quatro etapas - planejar uma melhoria da prática; agir para implementar a melhoria planejada; monitorar e descrever os efeitos da ação; avaliar os resultados da ação; em que a dimensão da ação gera elementos para a dimensão da investigação, que gera elementos para reformular a ação55 Tripp D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educ Pesqui. 2005;31(3):443-66. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022005000300009
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Sistematização de experiências: processo dialógico, político e pedagógico da ‘interpretação crítica dos processos vividos’, que contribui para refletir sobre as experiências, implicando a identificação, a classificação e o reordenamento dos elementos da prática; utiliza a experiência como objeto de estudo e interpretação teórica, possibilitando a formulação de lições e a disseminação. É instrumento para a prática transformadora, realizada por metodologias participativas testadas na América Latina, a sistematização busca reconstruir experiências. Sistematizar implica compreender, registrar, ordenar, de forma compartilhada, a dimensão educativa de uma experiência vivenciada66 Holliday OJ. A Sistematização de Experiências: prática e teoria para outros mundos possíveis. Brasília, DF: Contag; 2006..
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Supervisão clínico-institucional (Portaria GM nº 1.174, de 7 de julho de 2005): dispositivo de formação das equipes de cuidado que visa à gestão compartilhada da clínica psicossocial, nas dimensões clínica e institucional, possibilita a construção de projetos terapêuticos que articulem os conceitos de sujeito, rede, território e autonomia. Sustenta a ação dos profissionais nos serviços, conduzindo a uma produção de conhecimento a partir da própria prática clínica. O supervisor opera como facilitador do trabalho e produção em equipe77 Figueiredo AM, Figueiredo DCMM, Gomes LB, et al. Social determinants of health and COVID-19 infection in Brazil: an analysis of the pandemic. Rev Bras Enferm. 2020;73(supl2):e20200673. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0673
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A experiência agregou também os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as metas da Agenda 2030, visto que a saúde mental é crucial na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada pelas Nações Unidas em 2015. Composta por 17 ODS, a agenda abrange áreas como erradicação da pobreza, igualdade de gênero, energia limpa e saúde. A saúde mental é mencionada explicitamente em dois ODS: o ODS 3, que visa assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, e o ODS 16, que busca sociedades pacíficas e inclusivas, acesso à justiça e instituições responsáveis. No ODS 3, a saúde mental é considerada essencial para o bem-estar geral e a saúde das pessoas. Destaca-se a importância de acesso a serviços de saúde mental de qualidade, prevenção e tratamento de transtornos mentais, bem como a promoção do bem-estar psicológico em todas as idades. No ODS 16, a saúde mental é vista como essencial para a construção de sociedades pacíficas e inclusivas. Reconhece-se a importância do acesso a serviços adequados de saúde mental para promover justiça, igualdade e inclusão social. A participação significativa das pessoas com experiência em sofrimento mental também é valorizada na tomada de decisões e na formulação de políticas.
A proposta, em sua dimensão analítica, ancorou-se nos referenciais teóricos do ‘Bem Viver’. Oriunda da cosmologia indígena, a expressão traduz o modo de vida dos povos originários, uma cosmovisão que integra várias culturas, portanto, o ‘Bem Viver’ pode ser entendido como uma plataforma de pensamento intercultural em construção, que olha para o futuro para construir alternativas de desenvolvimento88 Acosta A. O “Bem Viver” - uma oportunidade de imaginar outros mundos. São Paulo: Editora Elefante; 2015..
As primeiras atividades desenvolvidas foram de alinhamento e articulação entre as unidades da Fiocruz envolvidas, começando com a realização de reunião com a coordenação do FCT para pactuação das atividades nas comunidades, roda de conversa virtual com a equipe do OTSS para apresentação do projeto e podcast com a temática da saúde mental, introduzindo a pauta no circuito do território. Já os residentes, antes da vinda para o território, tinham encontros semanais com a pesquisadora do projeto, em que o tema da saúde mental das comunidades tradicionais e o contexto do território foram estudados e debatidos.
Destes encontros semanais com os residentes, destaca-se a análise das publicações do Projeto Povos, que foi um importante instrumento de reconhecimento do território e especificidades das comunidades onde as intervenções comunitárias são realizadas. O projeto, fruto de uma exigência ambiental para a produção de petróleo e gás pela Petrobras na Bacia de Santos e executado pelo OTSS, utilizou metodologias de cartografia social que possibilitaram a caracterização das comunidades e a dinâmica de seus territórios. No documento, tornam-se evidentes todas as pressões, os conflitos, as humilhações sociais, as violências e as vulnerabilidades às quais essas comunidades estão submetidas e que invariavelmente afetam as condições de saúde mental dessas populações. Igualmente, evidencia-se que práticas tradicionais, valorização da cultura e tecnologias sociais atuam de maneira protetiva à saúde mental, uma vez que trazem vivacidade às interações comunitárias99 Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina, Fórum de Comunidades Tradicionais. Projeto Povos: Território, Identidade e Tradição. Territórios do Carapitanga. Rio de Janeiro: Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina; 2021..
A participação presencial dos residentes foi organizada em trios ou duplas, de maneira que, na vinda deles para atuação no projeto, permitia a colaboração dos profissionais em equipe multiprofissional. Em 2021, entre os meses de agosto e novembro, uma dupla e dois trios de residentes estiveram no território por aproximadamente 25 dias, onde puderam desenvolver atividades de reconhecimento da rede que compõe o Sistema Único de Saúde (SUS) e entrevistas, atividades de reconhecimento e rodas de conversa nas comunidades.
Desde o início da elaboração do projeto, estabeleceu-se interlocução com a rede formal (SUS) de saúde mental do município e com as equipes das unidades de saúde indígena presentes no território de atuação. O município conta com 1 Centro de Atenção Psicossocial (Caps) tipo I localizado na região central da cidade, e com outras 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS) com equipes de Estratégia Saúde da Família, sendo que o cuidado e a atenção dos casos de saúde mental (leves, graves ou moderados) estão hoje sob responsabilidade exclusiva do Caps. Nesse contexto, os esforços do projeto na relação com a rede de saúde se direcionaram à implementação do matriciamento em saúde mental para todo o município, de forma que outras comunidades tradicionais de outros microterritórios também passem a ser beneficiadas pelas ações do projeto, possibilitando que o cuidado dos casos leves e moderados sejam incorporados pela 12 UBS do município. Essa estratégia tem por objetivo facilitar o acesso universal ao cuidado em saúde mental por aqueles que precisam e fortalecer o SUS no município.
A opção pelo matriciamento em saúde mental se deve ao fato de se tratar de uma estratégia que visa integrar equipes de saúde mental especializadas com equipes de atenção básica, promovendo colaboração e melhorando o cuidado em saúde mental. O objetivo é fortalecer a capacidade das equipes de atenção básica por meio de suporte técnico, capacitação e consultoria, aumentando a resolutividade de suas ações de saúde mental. O matriciamento envolve a troca de conhecimentos, a discussão de casos clínicos, as capacitações e a definição conjunta de estratégias de cuidado. Isso amplia o acesso, melhora a qualidade do cuidado, reduz o estigma e promove trabalho em equipe, interdisciplinaridade e continuidade do cuidado. Em suma, o matriciamento busca integrar equipes de saúde mental às de atenção básica, fortalecendo o cuidado em saúde mental na Atenção Primária à Saúde (APS)1010 Ministério da Saúde (BR). Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2011.,1111 Machado DKS, Camatta MW. Apoio matricial como ferramenta de articulação entre a Saúde Mental e a Atenção Primária à Saúde. Cad Saúde Colet [Internet]. 2013 [acesso em 2023 jun 10];21(2):224-232. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/7tBHt6hxRRRxK64d6qSQbVv/
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Tal estratégia foi adotada e pactuada com a Secretaria Municipal de Saúde de Paraty (SMS-Paraty) a partir da análise dos diálogos com as equipes, visitas aos serviços e articulações realizadas, bem como dos diálogos com as comunidades. Chegou-se a um entendimento de que as pessoas das comunidades abrangidas pelo projeto muitas vezes necessitam de atenção em saúde mental e não o fazem por possuírem dificuldade (financeiras e de mobilidade) em seguir o acompanhamento no serviço especializado. Inicialmente, as atividades do matriciamento ocorreram de maneira virtual em decorrência da pandemia da covid-19, bem como pelos impactos das fortes chuvas que assolaram a região e inviabilizaram a locomoção pelo território durante um período. Os encontros virtuais semanais também viabilizaram a criação de um grupo em aplicativo de mensagens, que se tornou um canal de comunicação permanente de troca de informações e demandas entre os profissionais da APS, Caps e hospital.
Os encontros quinzenais com as equipes da rede (divididas em dois grupos) passaram a contar com a participação de um supervisor clínico-institucional. Os encontros buscaram levantar com os trabalhadores da rede as manifestações de sofrimento mental mais relevantes do ponto de vista da saúde coletiva. O uso prejudicial de substâncias psicoativas e as tentativas de suicídio emergiram como temas que mais preocupam a comunidade e os trabalhadores da saúde. Optou-se por centrar a discussão na compreensão das diversas dimensões da vida nos territórios que produzem sofrimento mental, localizando riscos e potencialidades dos recursos que as comunidades e seus sujeitos dispõem. Discutiram-se ainda recursos da prática de cuidado em saúde mental, como projeto terapêutico singular e atividades grupais, e a articulação de rede entre APS, Caps e o hospital geral como estratégias de potencializar e ampliar as ações nesse campo. Essas discussões visaram aprimorar o cuidado oferecido às pessoas que sofrem, garantindo uma abordagem mais abrangente e centrada nas pessoas, suas comunidades no contexto de pressões e conflitos aos quais os povos e comunidades tradicionais estão submetidos em seus territórios.
Durante todos os encontros, tanto com os residentes como nas atividades com a rede do município, nas discussões, foi possível refletir com as equipes sobre o território da Serra da Bocaina, que se encontra entre as duas maiores metrópoles do país - Rio de Janeiro e São Paulo - e estende-se por três municípios: Angra dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP). Nesse território, vivem mais de cem comunidades tradicionais caiçaras, indígenas e quilombolas, ameaçadas por megaempreendimentos, como o Terminal Baía da Ilha Grande (Tebig), o estaleiro Brasfels, as usinas nucleares Angra 1 e 2, a economia do petróleo e gás, a pesca industrial e um grande projeto de turismo, com condomínios e resorts que causam vários impactos socioambientais e à saúde, incluindo a pressão sobre os territórios tradicionais.
OS temas relacionados com riscos, danos e impactos das mudanças climáticas e catástrofes e as consequências psicossociais de tais eventos e pressões também foram abordados durante a execução do projeto, no entanto, não somente com as equipes da Raps do município de Paraty, mas também com equipes de outros projetos desenvolvidos pelo OTSS. Destas discussões, destacam-se dois desdobramentos: a elaboração e implementação de projeto de formação prática de trabalhadores do SUS em elaboração de planos de recuperação e contingência multirriscos em comunidades tradicionais, contemplando discussões e ações de atenção psicossocial; e o apontamento de impactos à saúde mental gerados pela presença da economia do petróleo e gás no território.
Discussão
A execução do projeto possibilitou maior entendimento e compreensão sobre as demandas de saúde mental das comunidades tradicionais da bacia do rio Carapitanga e viabilizou importante articulação com a rede sus local para que as ações de atenção à saúde mental do município, antes centralizadas no Caps, pudessem se capilarizar pelas unidades da atenção primária, ampliando o acesso e a possibilidade de cuidado no território das comunidades tradicionais.
O matriciamento se consolidou como um importante espaço de discussão e cuidado em saúde mental na APS, que seguirá como um legado do projeto no território. Ademais, a presença da pauta no OTSS abriu diversas perspectivas e ampliou o debate sobre saúde mental, além do podcast produzido e das rodas de conversa. O tema foi incorporado a outras discussões em andamento, como no grupo de trabalho que debate os impactos da presença da economia do petróleo no território e nos espaços de discussão sobre planos de recuperação e contingência para catástrofes ambientais, que têm sido cada vez mais recorrentes na região; assim trazidas à tona de forma ainda mais evidente as demandas relacionadas com a saúde mental no território, uma vez que tais eventos geram traumas em comunidades. Destaca-se que os desdobramentos aqui relatados aproximaram o projeto, suas reflexões e as produções da proposta do campus avançado e do plano de trabalho interinstitucional, colocando a saúde mental e o fortalecimento do SUS em definitivo no OTSS.
O projeto contribui para o fortalecimento dos SUS por meio de ofertas para a qualificação das ações de cuidado em saúde mental local com a previsão de desenvolvimento de ações de educação permanente da supervisão clínica dos dispositivos de cuidado em saúde mental. Já a construção de espaços intersetoriais de discussão fortalece a Raps e amplia as possibilidades do cuidado de base comunitária. O desenvolvimento de tecnologias de cuidado psicossocial em liberdade está alinhado aos pressupostos da reforma psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001) e coloca o SUS em ações de sustentabilidade nos territórios articuladas aos ODS, fortalecendo a equidade, a universalidade e a integralidade e as diretrizes da participação social, possibilitando a promoção da saúde integrada à cultura local. O campo de estágio da residência multiprofissional contribui para o SUS pela formação de profissionais de saúde críticos e sensíveis às necessidades e à realidade das comunidades tradicionais
Pode-se afirmar que o projeto mudou a perspectiva de atenção à saúde mental no município de Paraty, em especial, a atenção voltada aos povos e às comunidades tradicionais, uma vez que, durante a etapa diagnóstica, foi percebido que os casos leves e moderados presentes nas comunidades não encontravam seu ponto de atenção nas unidades de atenção primária. As discussões de caso e as supervisões clínico-institucionais tiveram enfoque na pessoa em sofrimento, e em seu contexto de vida, possibilitando o olhar sobre as comunidades tradicionais a partir dos geradores desse sofrimento, como os conflitos e as pressões do modo de vida e produção hegemônico, o racismo ambiental entre outros.
O projeto passou por importante mudança de rota após os 12 primeiros meses devido à catástrofe ambiental ocorrida na região, inviabilizando a circulação de residentes no território por período suficiente para desconectar as ações do projeto ao calendário da residência. As condições de segurança de vidas humanas foram ameaçadas na região em decorrência de fortes chuvas entre os dias 31 de março de 2022 e 3 de abril de 2022 na cidade de Paraty-RJ, onde foram registradas diversas ocorrências de alagamentos, obstruções de vias e rodovias vicinais, deslizamento de terra, desmoronamento de casas e devastação de roçado (meio de alimentação).
Diante disso, a estratégia se voltou ao fortalecimento da Raps por meio da contratação de supervisor, que colaborou de maneira efetiva nas discussões. Diante do cenário dos desastres climáticos, do compromisso da Fiocruz em apoiar a região e dos inevitáveis impactos à saúde mental em ocorrências catastróficas, os esforços do projeto se voltaram também para esse tema e a outros riscos, como a presença da economia do petróleo, usina nuclear e outros. Dessa forma, além do fortalecimento da Raps de Paraty, o projeto passou também a colaborar com o amadurecimento do debate sobre planos de recuperação e contingência, assim como na análise de entrevistas realizadas no âmbito do Projeto Povos para identificação de sinais e sintomas da saúde mental relacionados com as pressões presentes na comunidade, o que resultou em relatório técnico interno para discussão nas comunidades.
Considerações finais
De modo geral, o projeto cumpriu suas metas e objetivos, e pode se debruçar nas consequências psicossociais da pandemia nas comunidades tradicionais da Bacia do rio Carapitanga, bem como pode colaborar com reflexões e compreensões sobre outras pressões presentes no território que impactam negativamente na saúde mental e no modo de vida tradicional. Percebe-se que o tema passou a integrar de maneira mais efetiva as discussões, os projetos e as atividades do OTSS e do FCT e que alguns desdobramentos e espaços de debate criados pelo projeto permanecem presentes independentemente do encerramento do projeto. No entanto, avalia-se que uma possível continuidade possibilitaria intervenções mais efetivas para o cuidado em saúde mental das comunidades tradicionais do território na APS de Paraty.
Devemos destacar também a relação existente entre o OTSS/Fiocruz e o FCT, que nasceu da perspectiva da geografia crítica, em que o território indica suas necessidades e prioridades. Foi a partir do exercício de organizar as prioridades do território por meio da utilização do planejamento estratégico situacional que o OTSS conseguiu contribuir com o FCT na busca das soluções para as necessidades e os problemas do território. Nessa oportunidade, a questão da saúde já era uma necessidade apontada pelas comunidades tradicionais, assim como que o advento da pandemia da covid-19 agudizou as questões relativas à saúde mental.
A iniciativa viabilizada pelo edital Inova/Pitss desempenhou importante papel de articulação das demandas de saúde dos povos e das comunidades tradicionais na SMS-Paraty, promovendo discussões e reflexões acerca das pressões presentes no território como geradoras de sofrimentos diversos, que contribuem para o processo de adoecimento das comunidades tradicionais. Deve-se ressaltar que, para além das severas pressões na saúde mental causadas pela pandemia, essas populações e esse território sofrem as pressões do capital, envolvidas nos grandes empreendimentos e mudanças climáticas.
A busca pelo Bem Viver, como modelo alternativo e que aponta caminhos para o etnodesenvolvimento em detrimento ao ‘desenvolvimento’ clássico para a conquista da autonomia e promoção da saúde, mostra-se como modelo mais sensível às nuances de vida que acabam impactando na saúde mental dessas populações, sendo, portanto, necessário encarar as questões psicossociais de maneira mais holística e integrada ao território.
Nesse percurso, a parceria com a SMS-Paraty mostrou-se fundamental para o melhor atendimento das necessidades de saúde mental das comunidades tradicionais do município e de toda a sua população, uma vez que possibilitou um olhar para sua organização buscando a capilarização e a dinamização para a atenção e cuidado psicossociais.
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Suporte financeiro: financiamento vinculado ao edital do programa Inova para Territórios Sustentáveis e Saudáveis sob a numeração 64171556725729
Referências
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1Gallo E, Setti AFF. Abordagem ecossistêmica e comunicativa na implantação de agendas territorializadas de desenvolvimento sustentável e promoção da saúde. Ciênc saúde coletiva. 2012;17:1433-1446. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000600008
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2Fundação Oswaldo Cruz (BR). Portaria nº 5578, de 14 de agosto de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 14 Ago 2020.
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3Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012.
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4Ministério da Saúde (BR). Portaria sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012.
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5Tripp D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educ Pesqui. 2005;31(3):443-66. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022005000300009
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6Holliday OJ. A Sistematização de Experiências: prática e teoria para outros mundos possíveis. Brasília, DF: Contag; 2006.
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7Figueiredo AM, Figueiredo DCMM, Gomes LB, et al. Social determinants of health and COVID-19 infection in Brazil: an analysis of the pandemic. Rev Bras Enferm. 2020;73(supl2):e20200673. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0673
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8Acosta A. O “Bem Viver” - uma oportunidade de imaginar outros mundos. São Paulo: Editora Elefante; 2015.
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9Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina, Fórum de Comunidades Tradicionais. Projeto Povos: Território, Identidade e Tradição. Territórios do Carapitanga. Rio de Janeiro: Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina; 2021.
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10Ministério da Saúde (BR). Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva; 2011.
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11Machado DKS, Camatta MW. Apoio matricial como ferramenta de articulação entre a Saúde Mental e a Atenção Primária à Saúde. Cad Saúde Colet [Internet]. 2013 [acesso em 2023 jun 10];21(2):224-232. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/7tBHt6hxRRRxK64d6qSQbVv/
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Editores responsáveis:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Set 2024 -
Data do Fascículo
Ago 2024
Histórico
-
Recebido
15 Jun 2023 -
Aceito
12 Abr 2024