Resumos
Resumo
O artigo tem como objetivo verificar se há hiperconcentração de gastos no final do ano fiscal no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e discutir quais impactos potenciais desse fenômeno para a qualidade do gasto no campo das políticas públicas de agricultura. No primeiro momento, calculou-se o gasto médio mensal de todos os convênios celebrados pelo MAPA entre 2010-2023, dividindo-os pelo nível de gasto mensal médio anual, e, no segundo, conduziu-se entrevistas com gestores públicos federais. Os resultados apontam que, embora não haja uma hiperconcentração generalizada de gastos no final do ano fiscal, há uma concentração significativa de convênios celebrados. A análise qualitativa destacou obstáculos processuais como contingenciamento de gastos, influência política partidária no processo de celebração dos convênios, além de pressões institucionais para celebração em dezembro, com vistas a não perder o recurso no final do ano fiscal. Conclui-se que os incentivos oferecidos aos gestores públicos federais são voltados à execução do orçamento a qualquer custo, visando não penalizar o órgão no ano seguinte, e que esse tipo de arranjo não contribui para um ambiente que privilegia decisões baseadas em evidências e, por conseguinte, à melhoria na qualidade do gasto público.
Palavras-chaves:
picos de gastos no final do ano; políticas públicas de agricultura; transferências voluntárias da União; qualidade do gasto público
Abstract
The article aims to verify whether there is hyper-concentration of spending at the end of the fiscal year in the Ministry of Agriculture, Livestock and Supply (MAPA) and to discuss the potential impacts of this phenomenon on the quality of spending in the field of public agricultural policies. In the first instance, the average monthly spending of all the agreements signed by MAPA between 2010-2023 was calculated and divided by the average annual monthly spending level, and in the second, interviews were conducted with federal public managers. The results show that although there is no generalized hyper-concentration of spending at the end of the fiscal year, there is a significant concentration of agreements signed. The qualitative analysis highlighted procedural obstacles such as spending contingencies, party political influence in the process of signing agreements, as well as institutional pressure to sign in December, so as not to lose the resource at the end of the fiscal year. The conclusion is that the incentives offered to federal public managers are aimed at executing the budget at any cost, so as not to penalize the body the following year, and that this type of arrangement does not contribute to an environment that favors evidence-based decisions and, consequently, an improvement in the quality of public spending.
Keywords:
year-end spending spikes; public agricultural policies; voluntary transfers from the Union; quality of public spending
Introdução
À medida que se aproxima o final do ano fiscal, as agências governamentais, tal o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), geralmente aderem ao mantra “use-a ou perca-a” no que diz respeito às receitas orçamentárias. A premissa por trás desse fenômeno é a de que se uma agência terminar o ano fiscal com um superávit devido à simples poupança (Liebman & Mahoney, 2017Liebman, J. B., & Mahoney, N. (2017). Do expiring budgets lead to wasteful year-end spending? Evidence from federal procurement. The American Economic Review, 107(11), 3510-3549. http://doi.org/10.1257/aer.20131296
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) ou à procrastinação de gastos (Baumann, 2019Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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), o superávit pode não ser transportado em anos fiscais subsequentes e, em alguns cenários piores, os futuros orçamentos para esse órgão serão reduzidos porque ele será entendido como ineficiente. Trata-se de um fenômeno conhecido e estudado mundialmente e que, no Brasil, é endossado por regramentos jurídicos como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Consequentemente, um campo da literatura internacional vem identificando que esse tipo de arranjo institucional cria hiperconcentração de gastos no final do ano (chamado, pela literatura, de YESS – year ending spending spikes) e leva os gestores públicos à urgência de gastar os recursos no final do ano fiscal com prejuízos à dimensão da qualidade do gasto público (Baumann, 2019Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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; Hartanto et al., 2020Hartanto, S., Sunarto, H., & Supramono, S. (2020). The determinants of the end-of-year spending behavior of local governments’ financial managers: a lesson learn from Indonesia. Montenegrin Journal of Economics, 16(1), 193-206. http://doi.org/10.14254/1800-5845/2020.16-1.13
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; Korac et al., 2019Korac, S., Moser, B., Rondo-Brovetto, P., & Saliterer, I. (2019). Carry-overs or leftovers? Tackling year-end spend-downs at the central government level. Public Money & Management, 39(6), 393-400. http://doi.org/10.1080/09540962.2019.1583909
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; Liebman & Mahoney, 2017Liebman, J. B., & Mahoney, N. (2017). Do expiring budgets lead to wasteful year-end spending? Evidence from federal procurement. The American Economic Review, 107(11), 3510-3549. http://doi.org/10.1257/aer.20131296
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; McCue et al., 2021McCue, C. P., Prier, E., & Lofaro, R. J. (2021). Examining year-end spending spikes in the European Economic Area: a comparative study of procurement contracts. Journal of Public Budgeting, Accounting & Financial Management, 33(5), 513-532. http://doi.org/10.1108/JPBAFM-11-2020-0186
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).
No Brasil, existem poucos esforços que visam compreender esse fenômeno em geral, muito menos aplicado ao campo de políticas públicas voltadas para a área de agricultura. Partimos da premissa de que o MAPA possui uma importância estratégica dentro do campo das políticas públicas de agricultura no Brasil por ser o órgão federal de maior proeminência no setor. Um dos principais instrumentos usados pelo órgão é a celebração de transferências voluntárias na forma de convênios1 1 A terminologia correta inclui convênios, contratos de repasse, termos de fomento e outros tipos de transferências voluntárias aos entes subnacionais. Neste artigo, para facilitar o entendimento e para fins de taxonomia, chamaremos todos esses tipos de transferências voluntárias de “convênios”. com estados, municípios e terceiro setor que visam desenvolver alguma política pública. Por isso, a partir de uma análise dos mais de trinta e oito mil convênios celebrados pelo MAPA, entre 2010-2023, com os entes subnacionais, o objetivo deste artigo é identificar se ocorre a hiperconcentração de gastos no final do ano fiscal e discutir como isso afeta a qualidade do gasto público no campo das políticas públicas de agricultura. Além disso, o estudo vai buscar evidências a fim de compreender o processo administrativo de celebração de convênios ocorrido no MAPA.
Para isso, o artigo lança mão de duas metodologias que se complementam. Primeiramente, adotamos a proposta metodológica de Baumann (2019)Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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para verificar se há maior concentração de recursos no final do ano fiscal, seja de convênios cujos recursos são oriundos do próprios MAPA ou de emendas parlamentares; no segundo momento, conduziu-se entrevistas com gestores responsáveis pela celebração de convênios na administração pública federal brasileira a fim de compreender a origem e explicação do fenômeno e suas consequências para a qualidade do gasto em política pública.
O artigo avança e contribui para o campo de estudos voltados às políticas de agricultura de duas formas. Primeiro, ao compreender um fenômeno que tem atraído a atenção de pesquisadores internacionais de orçamento público, mas que no Brasil pouco foi estudado, que é o orçamento público sob a perspectiva da distribuição temporal dos gastos dentro do ano fiscal (Alves, 2011Alves, D. P. (2011). Carry-over: a flexibilização do princípio da anualidade orçamentária como indutora da qualidade do gasto público e da transparência fiscal (pp. 1-16). Brasília. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://premios.tesouro.gov.br/stn2011/assets/pdf/tema2/Tema%202%20-%20MH%20-%20Diego%20Prandino%20Alves.pdf
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; Aquino & Azevedo, 2017Aquino, A. C. B. D., & Azevedo, R. R. D. (2017). Restos a pagar e a perda da credibilidade orçamentária. Revista de Administração Pública, 51(4), 580-595. http://doi.org/10.1590/0034-7612163584
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; Araújo et al., 2022Araújo, J. G. R., Lins, T. S. M., & Diniz, J. A. (2022). O fenômeno use it or lose it na execução orçamentária das universidades federais e a inscrição em restos a pagar. Advances in Scientific and Applied Accounting, 5(1), 109-124. http://doi.org/10.14392/asaa.2022150105
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) e de como isso afeta a qualidade do gasto público na área das políticas de agricultura. Segundo, ao entender a estrutura gestora, analisou-se a rotina burocrática dos agentes estatais da burocracia federal, as pressões existentes e as racionalidades subjacentes a esse processo de celebração dos convênios com entes subnacionais.
Os resultados indicam que, embora não haja uma hiperconcentração geral de gastos no final do ano fiscal, há um volume significativo de convênios celebrados em dezembro, ou seja, ao longo do ano se celebram convênios robustos em termos financeiros e, em dezembro, se tem uma maior pulverização de recursos. A análise qualitativa revelou obstáculos processuais como o contingenciamento de gastos oriundos de regras do orçamento federal e a influência política partidária na estrutura do MAPA, além de pressões institucionais sobre a burocracia executora para celebração em dezembro para que não haja perda de recursos. Conclui-se que os incentivos para os gestores públicos federais estão voltados à execução do orçamento a qualquer custo, visando evitar penalizações no ano seguinte por parte do Tesouro Nacional e de estruturas burocráticas superiores. Embora haja esforços explícitos por parte dos servidores para qualificar os projetos e as políticas públicas ao longo do ano, estabelecendo um diálogo com os entes subnacionais para uma melhor alocação de recursos, essa atividade fica impossibilitada em dezembro dado o ritmo de trabalho imposto. Por fim, o arranjo institucional não favorece um ambiente que priorize decisões baseadas em evidências, a busca por equidade e efetividade, nem melhorias na qualidade do gasto público no campo da agricultura.
Fundamentação teórica
No Brasil, um amplo conjunto de instrumentos e políticas de financiamento da agricultura foi sendo desenvolvido nas últimas décadas. Estudos têm se preocupado em identificar a evolução e os efeitos do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), criado na década de 1990, na agricultura familiar, enquanto outros esforços buscam compreender o impacto de programas regionalizados, como o Agroamigo, coordenado pelo Banco do Nordeste, desde 2005 (Capellesso et al., 2018Capellesso, A. J., Cazella, A. A., & Búrigo, F. L. (2018). Evolução do Pronaf Crédito no Período 1996-2013: redimensionando o acesso pelos cadastros de pessoa física. Revista de Economia e Sociologia Rural, 56(3), 437-450. http://doi.org/10.1590/1234-56781806-94790560305
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; Gazolla & Schneider, 2013Gazolla, M., & Schneider, S. (2013). Qual “fortalecimento” da agricultura familiar?: uma análise do Pronaf crédito de custeio e investimento no Rio Grande do Sul. Revista de Economia e Sociologia Rural, 51(1), 45-68. http://doi.org/10.1590/S0103-20032013000100003
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; Grisa & Schneider, 2014Grisa, C., & Schneider, S. (2014). Três gerações de políticas públicas para a agricultura familiar e formas de interação entre sociedade e estado no Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52(Supl. 1), 125-146. http://doi.org/10.1590/S0103-20032014000600007
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; Guedes et al., 2021Guedes, I. A., Almeida, A. T. C., & Siqueira, L. B. O. D. (2021). Efeitos do microcrédito rural sobre a produção agropecuária na região Nordeste: evidências do Programa Agroamigo. Revista de Economia e Sociologia Rural, 59(1), e210774. http://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.210774
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). Paralelamente, outros esforços, como de Amaral & Bacha (2023)Amaral, F. J. G., & Bacha, C. J. C. (2023). Subvenções federais dadas à agropecuária brasileira no período de 2003 a 2019. Revista de Economia e Sociologia Rural, 61(1), e251646. http://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.251646
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, têm se empenhado em compreender as subvenções federais e os instrumentos de crédito rural, sobre os quais identificam redução na importância para a agropecuária, caindo de 9% para 1,8% no período de 2003-2019. Os autores identificam que a maioria das subvenções foi direcionada para crédito rural, enquanto a equalização de taxas de juros favorece a agropecuária familiar e a equalização de preços tende a beneficiar a não familiar. De forma mais abrangente, a literatura identifica que esse setor de política pública, no Brasil, sempre teve uma estrutura dual, ou seja, procurou investir na agricultura familiar, através de programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e Pronaf, a partir dos anos 1990, sem, contudo, deixar de privilegiar setores da elite do agronegócio (Grisa et al., 2017Grisa, C., Kato, K. Y. M., Flexor, G. G., & Zimmermann, S. A. (2017). Capacidades estatais para o desenvolvimento rural no Brasil: análise das políticas públicas para a agricultura familiar. Society and Culture, 20(1), 13-38. http://doi.org/10.5216/sec.v20i1.50853
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; Pompeia, 2020Pompeia, C. (2020). Concertação e Poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 35(104), e3510410. http://doi.org/10.1590/3510410/2020
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). Ainda sobre o tema, Corcioli & Medina (2023)Corcioli, G., & Medina, G. D. S. (2023). Política agrícola para o agronegócio: uso de recursos públicos em benefício indireto de multinacionais estrangeiras. Estudos Avançados, 37(108), 89-106. http://doi.org/10.1590/s0103-4014.2023.37108.006
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indicam que a política agrícola brasileira prioriza o crédito rural para insumos agrícolas, muitos dos quais são controlados por multinacionais estrangeiras. Os autores destacam uma alocação desproporcional de crédito para a cadeia produtiva da soja em detrimento da bovinocultura, apesar desta última ser amplamente representada entre os produtores rurais brasileiros. Isso sugere um financiamento indireto às empresas internacionais em detrimento do fortalecimento do agronegócio nacional. Essa dinâmica revela as prioridades alocativas (Pinto, 2019Pinto, É. G. (2019). Erosão orçamentário-financeira dos direitos sociais na Constituição de 1988. Ciencia & Saude Coletiva, 24(12), 4473-4478. http://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25092019
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) do governo federal no que tange ao financiamento da política voltada ao meio rural ao longo do tempo no Brasil. Em outra frente, Xavier (2020)Xavier, L. F. (2020). Recursos do orçamento público federal destinados ao meio rural: dinâmica das contas brasileiras entre 2000 e 2017. Revista de Economia e Sociologia Rural, 59(2), e217682. http://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.217682
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analisa que, com a Emenda Constitucional nº 95/2016, a concorrência por recursos públicos aumentou, e que os gastos federais no meio rural diminuíram, exceto para a Previdência Social dos agricultores. A análise do autor revela que esses gastos, já limitados, estão perdendo espaço no orçamento.
Para além dos programas já estudados no campo da agricultura, como o Pronaf, existem outros tipos de investimentos públicos feitos no setor da agricultura. Um deles é o caso das transferências voluntárias do MAPA aos entes subnacionais. Ao invés de um programa estruturado sobre um eixo mais coeso, trata-se de transferências de recursos feitas diretamente do órgão federal para municípios, estados ou organizações civis através de editais (cujas temáticas são escolhidas pelo próprio Ministério), que são promulgados ao longo do ano por cada ministério. A fonte desses recursos, por sua vez, pode ser do próprio MAPA ou de emendas destinadas pelos parlamentares aos seus redutos eleitorais. A forma como esse tipo de investimento é realizada no Brasil, no campo da agricultura, ainda é pouco estudada. Embora Lui & Miquelino (2023)Lui, L., & Miquelino, W. (2023). Evolução dos convênios celebrados pelo Ministério da Agricultura com os entes subnacionais no Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural, 61(4), e266689. http://doi.org/10.1590/1806-9479.2022.266689
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tenham analisado a evolução dos convênios ao longo do tempo, em que se descobriu que a maioria desses recursos destinou-se à compra de maquinários, equipamentos e infraestrutura, e que o Poder Legislativo passou a ser um importante agente de financiamento para esse setor, pouco se sabe ainda sobre o processo de formulação desses convênios destinados aos entes subnacionais.
A literatura que trata sobre o tema das transferências voluntárias de recursos da União aos entes subnacionais vem avançando no Brasil e demonstra que o processo de alocação de recursos é permeado por muitos elementos. De acordo com Baião et al. (2018)Baião, A. L., Couto, C. G., & Jucá, I. C. (2018). A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Revista Brasileira de Ciência Política, 25(25), 47-86. http://doi.org/10.1590/0103-335220182502
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, os(as) deputados(as) tendem a concentrar suas emendas nos ministérios controlados pelo seu próprio partido, enquanto os(as) ministros(as) tendem a priorizar, dentre as emendas sob responsabilidade de seu órgão, aquelas enviadas por seus correligionários. Os autores também verificam que os líderes partidários, os membros de comissões parlamentares importantes e os parlamentares que gozam de maior força e reputação usufruem de maior grau de execução de suas emendas individuais. Os resultados alcançados pelos autores mostram que deputados privilegiam as prefeituras comandadas por políticos de seu próprio partido no momento de destinar emendas. Esse resultado vai ao encontro do estudo de Meireles (2024)Meireles, F. (2024). Política Distributiva em Coalizão. Dados, 67(1), e20210135. http://doi.org/10.1590/dados.2024.67.1.308
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, no qual o autor verifica que prefeitos tanto demandam quanto recebem até um terço a mais de transferências vindas de ministérios comandados por correligionários, ou seja, colegas de partido. Do ponto de vista temporal, o autor identifica que o efeito é maior em anos eleitorais. Por fim, pode-se afirmar que a divisão entre convênios cujos recursos são oriundos de emendas e convênios dos ministérios se confunde, dado que os ministérios são comandados por partidos que, por sua vez, compõem a base do governo. Assim, a influência política dos partidos na alocação de recursos pode ser sentida nas duas instâncias, tanto nas transferências voluntárias feitas com recursos do próprio ministério, quanto em relação às emendas parlamentares. A explicação desse fenômeno é fortemente institucional dentro dos campos da ciência política e da administração pública, mas também pode ser entendida através do conceito de rent-seeking. Esse conceito descreve a relação em que uma parte obtém do Estado ganhos econômicos, prestígio e poder político sem necessariamente gerar um benefício equivalente à sociedade (Almeida-Santos et al., 2024Almeida-Santos, P. S., Mendes, N. C. F., & Matias-Pereira, J. (2024). Impactos de ações rent-seeking sobre o orçamento público: o efeito do caso “Máfia das Ambulâncias” nos municípios mato-grossenses. Revista Brasileira de Ciência Política, 43, e275921. http://doi.org/10.1590/0103-3352.2024.43.275921
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). Dessa forma, as transferências voluntárias de recursos e a execução de emendas parlamentares também podem ser vistas como exemplos desse comportamento.
No que tange às normas fiscais que afetam o recebimento de recursos, é preciso ressaltar que, por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal, promulgada no ano 2000, a União estabeleceu requisitos mínimos para os municípios receberem transferências voluntárias da União. Um desses requisitos é justamente a obediência a regras de sanidade fiscal, controle e transparência das contas públicas. Caso a prefeitura não cumprisse as regras, o município era registrado no Sistema de Informações sobre Requisitos Fi scais (Cauc) e ficava impossibilitado de receber recursos discricionários. A Emenda Constitucional nº 86/2015 flexibilizou essa regra, dado que prevê o orçamento impositivo, ou seja, a emenda parlamentar, uma vez destinada, não ficaria constrangida caso o município estivesse comprometido no Cauc.
Baião et al. (2018)Baião, A. L., Couto, C. G., & Jucá, I. C. (2018). A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Revista Brasileira de Ciência Política, 25(25), 47-86. http://doi.org/10.1590/0103-335220182502
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identificam, numa análise feita no momento anterior à EC 85/2015, que as normas fiscais exerciam efeitos no processo de transferência de recursos, haja vista que as emendas destinadas a municípios com dificuldades em atender às normas do Cauc tinham sua execução prejudicada. Apesar da referida regra não estar mais em vigor no Brasil, a LRF e outros normativos legais ainda indicam que as despesas governamentais (gasto ou empenho) precisam ocorrer dentro do ano fiscal, ou seja, até 31 de dezembro (Brasil, 2024aBrasil. (2024a). Comunicados e cronogramas. Recuperado em 20 de maio de 2024, de https://www.gov.br/transferegov/pt-br/comunicados/comunicados-gerais/2024.
https://www.gov.br/transferegov/pt-br/co...
, 2000Brasil. (2000, maio 5). Lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm
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). Sobre a temática, há um debate intenso no Brasil sobre a função “restos a pagar” e de como ela vem comprometendo a transparência e a credibilidade do orçamento público nos três níveis de governo (Aquino & Azevedo, 2017Aquino, A. C. B. D., & Azevedo, R. R. D. (2017). Restos a pagar e a perda da credibilidade orçamentária. Revista de Administração Pública, 51(4), 580-595. http://doi.org/10.1590/0034-7612163584
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).
Outro aspecto importante desse processo é que esses convênios não são construídos num vácuo institucional, mas por uma burocracia instalada na administração pública federal. Nos casos dos convênios celebrados pelo próprio MAPA, existem, por parte do próprio ministério, programas e agendas de financiamento que passam a ser prioridade para a burocracia federal, e a seleção de projetos passa a ser feita dentro desses marcos. Ainda não há esforços na literatura brasileira que tenham se preocupado em compreender como essa burocracia opera, quais desafios ela enfrenta e como o espaço de formulação das políticas públicas feitas pelo MAPA influencia a qualidade do gasto público. Conforme indica Abrucio (2007), aAbrucio, F. L. (2007). Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas. Revista de Administração Pública, 41(spe), 67-86. http://doi.org/10.1590/S0034-76122007000700005
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profissionalização do alto escalão governamental, tal como a concentrada no MAPA, é condição determinante para o bom desempenho das políticas públicas. Entende-se, nesse caso, que o uso do conhecimento especializado, baseado em evidências, é um componente crucial nos processos de formulação de políticas públicas de modo geral, e que, na área da agricultura, esta necessidade se reflete sobremaneira, dado que contribui para a efetividade de suas políticas públicas (Lima et al., 2021Lima, L. L., Aguiar, R. B., & Lui, L. (2021). Conectando problemas, soluções e expectativas: mapeando a literatura sobre análise do desenho de políticas públicas. Revista Brasileira de Ciência Política, (36), e246779. http://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.36.246779
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; Newman et al., 2017Newman, J., Cherney, A., & Head, B. W. (2017). Policy capacity and evidence-based policy in the public service. Public Management Review, 19(2), 157-174. http://doi.org/10.1080/14719037.2016.1148191
http://doi.org/10.1080/14719037.2016.114...
). Essas dimensões podem ser provenientes da ciência, da ancestralidade, da experiência do gestor, oriunda de sucessos e fracassos passados e de boas práticas vividas pela própria burocracia. Além disso, também pode advir da investigação criteriosa dos problemas e dos impactos dos instrumentos no comportamento dos agentes. Lima et al. (2021)Lima, L. L., Aguiar, R. B., & Lui, L. (2021). Conectando problemas, soluções e expectativas: mapeando a literatura sobre análise do desenho de políticas públicas. Revista Brasileira de Ciência Política, (36), e246779. http://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.36.246779
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argumentam que a aplicação de conhecimento e análise dos processos das políticas conduz a opções mais capazes de lidar com problemas sociais do que aquelas que emergem de processos orientados por outros fundamentos, como clientelismo, barganha política e incompetência. Por fim, assume-se a proposição de Howlett et al. (2015)Howlett, M., Mukherjee, I., & Woo, J. J. (2015). From tools to toolkits in policy design studies: the new design orientation towards policy formulation research. Policy and Politics, 43(2), 291-311. http://doi.org/10.1332/147084414X13992869118596
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, de que os cidadãos esperam que as decisões sobre as políticas públicas se baseiem em critérios lógicos e transparentes, em conhecimento e experiência, em vez de motivações puramente individuais, barganhas e preconceitos.
Um conjunto de estudos internacionais vem se atentando para uma dimensão do orçamento púbico: a hiperconcentração de gastos públicos no final do ano fiscal (Baumann, 2019Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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; Hartanto et al., 2020Hartanto, S., Sunarto, H., & Supramono, S. (2020). The determinants of the end-of-year spending behavior of local governments’ financial managers: a lesson learn from Indonesia. Montenegrin Journal of Economics, 16(1), 193-206. http://doi.org/10.14254/1800-5845/2020.16-1.13
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; Korac et al., 2019Korac, S., Moser, B., Rondo-Brovetto, P., & Saliterer, I. (2019). Carry-overs or leftovers? Tackling year-end spend-downs at the central government level. Public Money & Management, 39(6), 393-400. http://doi.org/10.1080/09540962.2019.1583909
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; Liebman & Mahoney, 2017Liebman, J. B., & Mahoney, N. (2017). Do expiring budgets lead to wasteful year-end spending? Evidence from federal procurement. The American Economic Review, 107(11), 3510-3549. http://doi.org/10.1257/aer.20131296
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; McCue et al., 2021McCue, C. P., Prier, E., & Lofaro, R. J. (2021). Examining year-end spending spikes in the European Economic Area: a comparative study of procurement contracts. Journal of Public Budgeting, Accounting & Financial Management, 33(5), 513-532. http://doi.org/10.1108/JPBAFM-11-2020-0186
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). A literatura parte da constatação de que os governos, em todo o mundo, normalmente operam com orçamentos que expiram anualmente, e tendem a alocar despesas significativamente mais elevadas no final do ano fiscal, em comparação a outros períodos. Essa tendência foi identificada em vários países, incluindo os Estados Unidos (Liebman & Mahoney, 2017Liebman, J. B., & Mahoney, N. (2017). Do expiring budgets lead to wasteful year-end spending? Evidence from federal procurement. The American Economic Review, 107(11), 3510-3549. http://doi.org/10.1257/aer.20131296
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), o Reino Unido (Baumann, 2019Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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), a Áustria (Korac et al., 2019Korac, S., Moser, B., Rondo-Brovetto, P., & Saliterer, I. (2019). Carry-overs or leftovers? Tackling year-end spend-downs at the central government level. Public Money & Management, 39(6), 393-400. http://doi.org/10.1080/09540962.2019.1583909
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), bem como em 27 países da OCDE (Eichenauer, 2020Eichenauer, V. (2020). December fever in public finance. KOF Working Paper, 470, 60. http://doi.org/10.3929/ETHZ-B-000393827.
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). A magnitude desse fenômeno é notável. Para ilustrar, conforme relatado por Baumann (2019)Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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, os gastos de capital no Reino Unido durante o último mês do ano fiscal são aproximadamente o dobro do montante gasto durante um mês médio. Da mesma forma, as despesas de uma agência do governo dos Estados Unidos são 4,9 vezes mais elevadas na última semana do ano fiscal, quando comparadas com uma semana média (Liebman & Mahoney, 2017Liebman, J. B., & Mahoney, N. (2017). Do expiring budgets lead to wasteful year-end spending? Evidence from federal procurement. The American Economic Review, 107(11), 3510-3549. http://doi.org/10.1257/aer.20131296
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). Os autores questionam, portanto, quais efeitos essa hiperconcentração de recursos no final do ano fiscal provoca sobre a qualidade das políticas públicas, dado que, em tese, haveria menos tempo para tomar decisões bem-informadas. A literatura não explora a fundo o motivo desse fenômeno, restringindo-se a dizer que se trata de procrastinação, falta de planejamento ou desejo de economia por parte do órgão. Ainda não foram realizados esforços para compreender esse fenômeno de forma abrangente no Brasil, embora algumas iniciativas tenham buscado mobilizar esse debate (Alves, 2011Alves, D. P. (2011). Carry-over: a flexibilização do princípio da anualidade orçamentária como indutora da qualidade do gasto público e da transparência fiscal (pp. 1-16). Brasília. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://premios.tesouro.gov.br/stn2011/assets/pdf/tema2/Tema%202%20-%20MH%20-%20Diego%20Prandino%20Alves.pdf
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; Araújo et al., 2022Araújo, J. G. R., Lins, T. S. M., & Diniz, J. A. (2022). O fenômeno use it or lose it na execução orçamentária das universidades federais e a inscrição em restos a pagar. Advances in Scientific and Applied Accounting, 5(1), 109-124. http://doi.org/10.14392/asaa.2022150105
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).
É importante salientar que, no Brasil, o Ministério da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos (função anteriormente exercida pelo Ministério da Economia ou pelo Ministério do Planejamento e Orçamento) edita anualmente cronogramas de execução orçamentária que buscam orientar e organizar temporalmente, dentro de cada ano fiscal, o envio de recursos da União aos entes subnacionais, seja através de emendas parlamentares, seja através de recursos próprios dos ministérios (Brasil, 2024bBrasil. (2024b). Portal sobre transferências e parcerias da União. Recuperado em 20 de maio de 2024, de https://www.gov.br/transferegov/pt-br
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). Nesse sentido, a ocorrência de hiperconcentração de gastos no final do ano contrariaria, em tese, a própria organização formal da administração pública federal brasileira. Além disso, a Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF) institui um amplo conjunto de regramentos que organizam o gasto de recursos públicos ao longo do ano fiscal. Em relação à qualidade do gasto público realizado no final do ano fiscal, o trabalho de Alves (2011, pAlves, D. P. (2011). Carry-over: a flexibilização do princípio da anualidade orçamentária como indutora da qualidade do gasto público e da transparência fiscal (pp. 1-16). Brasília. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://premios.tesouro.gov.br/stn2011/assets/pdf/tema2/Tema%202%20-%20MH%20-%20Diego%20Prandino%20Alves.pdf
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. 13), publicado pelo Tesouro Nacional, reitera que “ao final do exercício financeiro, observa-se uma corrida dos órgãos governamentais em geral para executar as dotações ainda não comprometidas. Esses gastos são de qualidade questionável”. Contudo, o próprio autor destaca a dificuldade em aferir objetivamente a qualidade do gasto público, dado que “a qualidade do gasto público não é algo trivialmente mensurável via indicadores consensualmente aceitos, e a medida de sua eficiência pode depender, em alguns casos, de considerações subjetivas” (Alves, 2011, pAlves, D. P. (2011). Carry-over: a flexibilização do princípio da anualidade orçamentária como indutora da qualidade do gasto público e da transparência fiscal (pp. 1-16). Brasília. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://premios.tesouro.gov.br/stn2011/assets/pdf/tema2/Tema%202%20-%20MH%20-%20Diego%20Prandino%20Alves.pdf
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.14). No presente estudo, procuramos abordar a temática da qualidade do gasto público, principalmente aquele realizado no final do ano fiscal, a partir da percepção dos gestores envolvidos. Embora não seja uma medida objetiva, a estratégia consegue oferecer indícios importantes para a gestão pública e para futuras investigações acadêmicas.
Dessas constatações emergem duas questões pertinentes à esta pesquisa: a primeira é se há, por parte do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, uma hiperconcentração de gastos no final do ano fiscal (seja através de convênios do MAPA ou oriundos de emenda parlamentar); e, a segunda, se esse fenômeno afeta a qualidade dos gastos públicos realizados nesse campo das políticas públicas e como os convênios são operados administrativamente dentro da burocracia federal.
Metodologia
Os dados foram extraídos do Transferegov.br, portal público sobre transferências e parcerias da União (Brasil, 2024bBrasil. (2024b). Portal sobre transferências e parcerias da União. Recuperado em 20 de maio de 2024, de https://www.gov.br/transferegov/pt-br
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). A extração foi realizada em janeiro de 2024. Conforme argumentado, trata-se de todas as transferências voluntárias celebradas pelo MAPA com entes subnacionais entre 2010 até o ano de 2023. Para a análise quantitativa, as principais variáveis analisadas neste estudo são: data de início do convênio; identificação da origem (se proveniente de emenda parlamentar); valor empenhado; objeto do convênio; município e estado onde o convênio será executado.
A fim de realizar uma análise comparativa ao longo de diferentes anos, foi realizada a deflação dos valores de cada convênio, ajustando-os para compensar as variações na taxa de inflação, conforme proposta metodológica de Pires & Borges (2019)Pires, M., & Borges, B. (2019). A despesa primária do Governo Central: estimativas e determinantes no período 1986-2016. Estudos Econômicos, 49(2), 209-234. http://doi.org/10.1590/0101-41614921mpb
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. A análise a respeito da hiperconcentração de gastos no final do ano baseia-se no método proposto por Baumann (2019), oBaumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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qual calcula o gasto médio mensal dividindo-o pelo nível de gasto mensal médio anual. O resultado, denominado “índice de gasto”, indica o quanto o gasto mensal se aproxima do gasto médio anual. Valores do índice superiores a 1 indicam gastos acima da média mensal anual e os abaixo de 1 indicam gastos abaixo da média. Além disso, também são analisados a quantidade de convênios por mês e o valor total destes, do Poder Executivo e do Legislativo, fornecendo insights adicionais acerca dos padrões de gastos ao longo do tempo. A metodologia de Baumann (2019)Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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pode ser expressa na seguinte fórmula:
O Índice de Hiperconcentração Mensal (IHM) é calculado com base em três componentes principais. Primeiro, IHMm representa o índice de hiperconcentração de gasto no mês específico 𝑚. Segundo, Gm refere-se ao gasto total no mês m. Por último, Ga é o gasto total anual, o qual é realizado uma divisão por 12, a fim de obter a média mensal de gastos ao longo do ano. Dessa forma, o índice IHMm permite avaliar o quanto o gasto mensal se aproxima do gasto médio anual. Valores do índice superiores a 1 indicam gastos acima da média mensal anual e os abaixo de 1 indicam gastos abaixo da média.
O artigo traça algumas perguntas: a primeira é relativa à própria existência do fenômeno de hiperconcentração de gastos no final do ano fiscal pelo MAPA. Além dessa, pretende-se realizar análises dividindo os dados por ente financiador da transferência voluntária (se Executivo ou Legislativo). A segunda questão é se há mais hiperconcentração de gastos no final de ano quando o convênio é pago com recursos do próprio Poder Executivo. Nesse sentido, observar-se-á, no caso do Poder Executivo, se o número de convênios aumentou acima da média no último mês do ano fiscal e se os valores financeiros dos convênios aumentaram no mesmo período. Como se trata de transferências voluntárias, tanto o número de convênios quanto seus valores podem variar. A terceira questão é se há mais hiperconcentração de gastos no final de ano quando o convênio é pago com recursos do próprio Poder Legislativo. Assim, será observado se os convênios oriundos de emendas parlamentares aumentam no final do ano (por número de convênios e valor repassado).
O Congresso Nacional ganhou maior poder nos últimos anos, principalmente após 2015, ano da Emenda Constitucional nº 85, que instalou, entre outros pontos, o que se convém chamar de “orçamento impositivo”, ou seja, a obrigatoriedade do Poder Executivo executar, não mais represar, as emendas parlamentares (Silva & Teixeira, 2022Silva, M. F. G., & Teixeira, M. A. C. (2022). A política e a economia do governo Bolsonaro: uma análise sobre a captura do orçamento. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 27(86), 86. http://doi.org/10.12660/cgpc.v27n86.85574
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). Nesse ponto, acreditamos que o fenômeno da hiperconcentração no final do ano fiscal seja mais forte quando se trata dos convênios do Executivo, em comparação aos do Legislativo, dado que desde 2015 o Congresso pode, a qualquer tempo, destinar uma emenda, e ela deve ser aplicada imediatamente pelo Executivo, via ministérios. Em relação aos recursos e ao número de convênios celebrados, espera-se que haja uma maior concentração no final do ano fiscal, adotando a premissa da literatura.
Após a análise quantitativa, buscou-se entrevistar gestores da administração pública federal, no caso em tela representantes do MAPA, para compreender o processo de celebração dos convênios. Selecionou-se, dessa forma, atores governamentais que fazem parte da “burocracia orçamentária”, conforme conceitua Peres (2024)Peres, U. D. (2024). Governança do orçamento de São Paulo revisitada pós 2014. Da escassez à sobra de recursos. Estudos Avançados, 38(111), 7-29. http://doi.org/10.1590/s0103-4014.202438111.002
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. Para esta pesquisa de caráter qualitativo, sistematizaremos duas categorias analíticas principais: (i) processo administrativo de celebração dos convênios, subdividido em compreensão do arranjo institucional e relação do MAPA com os entes subnacionais, e; (ii) percepção sobre a qualidade do gasto público no momento da celebração dos convênios. Ao todo, entrevistou-se 6 gestores que atuavam diretamente no processo de celebração dos convênios no mês de maio de 2024. Além disso, analisou-se o conteúdo do Webinar, realizado pelo Governo Federal, voltado a instruir os gestores públicos federais à execução do processo de celebração de convênios (Youtube, 2023Youtube. (2023). Palestra sobre a Portaria conjunta MGI/MF/CGU nº 33, de 2023. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://www.youtube.com/watch?v=VxgNiu5MrDU
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). Todo o processo seguiu as diretrizes da entrevista qualitativa e da análise de conteúdo categorial e busca por triangulação de informações de modo a garantir a validade dos dados (Rocha, 2020Rocha, V. (2020). Da teoria à análise: uma introdução ao uso de entrevistas individuais semiestruturadas na ciência política. Revista Política Hoje, 30(1), 197-251. Recuperado em 20 de maio de 2024, de https://periodicos.ufpe.br/revistas/politicahoje/article/view/247229/41689
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; Sampaio & Lycarião, 2018Sampaio, R., & Lycarião, D. (2018). Eu quero acreditar! Da importância, formas de uso e limites dos testes de confiabilidade na Análise de Conteúdo. Revista de Sociologia e Politica, 26(66), 31-47. http://doi.org/10.1590/1678-987318266602
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). Encerrou-se a coleta de dados no sexto participante, haja vista a rápida saturação das informações, ou seja, os interlocutores repetiam informações já coletadas. Admite-se que, dado o limitado número de participantes, a parte qualitativa da pesquisa tenha fraco efeito de validade externa, dizendo respeito somente ao universo pesquisado. Assim, embora as entrevistas realizadas sejam limitadas em termos de generalização, a parte qualitativa da pesquisa foi essencial para promover insights e indícios iniciais sobre o tema, funcionando como um instrumento heurístico. Dado que pouco se sabia sobre a temática da formulação de políticas de agricultura, os resultados indicam uma linha de pesquisa que pode ser aprofundada em estudos futuros.
Posto que o projeto faz parte de um esforço maior de compreensão do fenômeno das transferências voluntárias da União com os entes subnacionais, a pesquisa “Transferências voluntárias da União aos entes subnacionais” foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FGV - Parecer n. P.455.2023.
Resultados e discussão
Durante o período de 2010 a 2023, o Ministério da Agricultura estabeleceu uma série de convênios com entes subnacionais, demonstrando uma dinâmica variável ao longo dos anos. Apesar das flutuações, é possível perceber uma tendência geral de crescimento até 2019 (naquele ano, firmaram-se 4.761 convênios), seguida por uma redução nos anos subsequentes (em 2023, firmou-se 776 convênios). Somando os números de convênios ao longo desses 14 anos, obtemos um total de 38.227 acordos celebrados. Desses, 21.476 foram financiados com recursos de emendas parlamentares e 16.751 com recursos do próprio MAPA. O volume de recursos e a quantidade de convênios aportados pelo MAPA ao longo da série histórica, dentro de cada ano fiscal, são apresentados na sequência no Quadro 1.
- Proporção de despesas mensais do MAPA em relação à média anual dos valores dos convênios celebrados com entes subnacionais, 2010-2023.
Nesse sentido, a análise do Quadro 1 rejeita a ideia de que há uma hiperconcentração generalizada de recursos no final do ano fiscal quando se analisa as transferências voluntárias do MAPA. Identifica-se que, ao longo dos meses da série histórica, há maiores momentos de concentração de envios de recursos do que outros, mas não há uma tendência explícita que indique uma maior concentração permanente no final do ano fiscal. Identifica-se que nos anos de 2014, 2017, 2018, 2021 e 2022, por exemplo, a média foi maior que 1, contudo, isso não é característica exclusiva do mês de dezembro, dado que vários outros meses também apresentam valores acima da média.
A seguir, apresentamos os resultados da análise voltada exclusivamente aos convênios que o MAPA faz com recursos próprios, excluindo-se emendas parlamentares. A Figura 1 apresenta os convênios celebrados pelo MAPA com os entes subnacionais, com recursos próprios, de 2010 a 2023. O gráfico separa mensalmente o volume dos convênios e, com isso, identifica-se que há um hiperconcentração no mês de dezembro, apesar de variar ao longo dos anos. O pico maior foi no mês de dezembro de 2019, quando 2.756 convênios foram celebrados. O gráfico mostra a discrepância entre os meses do último trimestre do ano fiscal e do restante do ano.
- Volume de convênios celebrados pelo MAPA com entes subnacionais, com recursos próprios, por ano e mês – 2010-2023. Fonte: Elaboração própria, a partir de consulta à Plataforma Transferegov.br (Brasil, 2024bBrasil. (2024b). Portal sobre transferências e parcerias da União. Recuperado em 20 de maio de 2024, de https://www.gov.br/transferegov/pt-br
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O Quadro 2, por sua vez, apresenta a proporção de despesas mensais em relação à média anual dos valores dos convênios celebrados pelo MAPA com entes subnacionais, a partir da metodologia utilizada por Baumann (2019)Baumann, S. (2019). Putting it off for later: procrastination and end of fiscal year spending spikes. The Scandinavian Journal of Economics, 121(2), 706-735. http://doi.org/10.1111/sjoe.12287
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. Identifica-se, nesse ponto, que a média das despesas com convênios do MAPA no mês de dezembro não é maior do que a do restante do ano. Na realidade, identifica-se o contrário, ou seja, os convênios ao longo do ano são os que apresentam valores significativamente maiores em comparação à média anual. Combinadas às informações da Figura 1 e do Quadro 2, depreende-se que há uma pulverização de recursos no mês de dezembro, distribuídos em muitos convênios sobremaneira mais “baratos” em comparação à média anual.
– Proporção de despesas mensais em relação à média anual dos valores dos convênios celebrados pelo MAPA com entes subnacionais, 2010-2023.
Nesse ponto, percebe-se que a questão traçada a partir da literatura, de que haveria uma hiperconcentração de recursos no final do ano fiscal, não consegue abarcar a complexidade da realidade brasileira, pois, por um lado, há uma hiperconcentração de convênios no final do ano fiscal, contudo, isso não significa que há um maior gasto de recursos por parte do Ministério, dado que os convênios mais vultosos são celebrados ao longo do ano. Para fins ilustrativos, identificamos que, em agosto de 2020, o MAPA celebrou 100 convênios com entes subnacionais, e a mediana do valor desses acordos era de 5.999.263,00, enquanto isso, em dezembro do mesmo ano, o MAPA celebrou 1.740 convênios, cuja mediana de valores era de 376.747,00. Ou seja, ao longo do ano, os convênios são poucos, mas caros, enquanto que, em dezembro, são muitos, mas de baixo custo.
Para oferecer uma explicação sobre o fenômeno, é importante considerar a análise de Grisa et al. (2017)Grisa, C., Kato, K. Y. M., Flexor, G. G., & Zimmermann, S. A. (2017). Capacidades estatais para o desenvolvimento rural no Brasil: análise das políticas públicas para a agricultura familiar. Society and Culture, 20(1), 13-38. http://doi.org/10.5216/sec.v20i1.50853
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, quando afirma que o Estado brasileiro, mesmo tendo apoiado ao longo dos anos 2000 a agricultura familiar e iniciativas sociais na área da agricultura, nunca reduziu o apoio às elites rurais ligadas ao agronegócio. Essas elites, segundo Pompeia (2020)Pompeia, C. (2020). Concertação e Poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 35(104), e3510410. http://doi.org/10.1590/3510410/2020
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, também ocuparam ou se fizeram representar nas estruturas formais do Governo, tal como o MAPA, ao longo do tempo. Nesse sentido, aventa-se a hipótese de que as elites ou grupos com maior poder e prestígio político no MAPA consigam, ao longo do ano e, principalmente, antes do mês de dezembro, captar convênios de maior valor financeiro. Com os recursos que sobram, no mês de dezembro, o Ministério pode comtemplar um amplo conjunto de atores, pulverizando os recursos remanescentes. A literatura sobre transferências voluntárias indica um forte viés na liberação dessas emendas, já que membros da elite política e congressual têm maior sucesso na liberação de suas emendas e recursos (Baião et al., 2018, pBaião, A. L., Couto, C. G., & Jucá, I. C. (2018). A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Revista Brasileira de Ciência Política, 25(25), 47-86. http://doi.org/10.1590/0103-335220182502
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. 49). Nesse sentido, a literatura na área da ciência política traz insumos para respaldar essa interpretação. Assim, depreende-se que atores políticos com maior habilidade técnica e política conseguem, ao longo do ano, captar os convênios com altos valores financeiros. Importante ressaltar que a celebração de muitos convênios, mesmo que menos vultuosos no mês de dezembro, se dá pelo fato de que o orçamento expira no final do ano fiscal, e o MAPA se vê compelido a liberar os recursos para não os perder. Assim, o acúmulo de convênios no final do ano fiscal representa a distribuição da “rapa do tacho” em termos de orçamento, mas não dos valores maiores em poder do MAPA.
Em relação à questão de que a hiperconcentração de recursos se daria nos convênios cujo financiamento é oriundo do Poder Legislativo, através de emendas parlamentares, a Figura 2 e o Quadro 3, a seguir, apresentam as análises relativas a esse ponto. Identifica-se, na Figura 2, uma hiperconcentração de convênios em dezembro, embora em menor escala se comparado à Figura 1. No caso em tela, verifica-se que, a partir de junho, já se visualizam aumentos significativos em comparação aos 5 primeiros meses do ano, em que os números são muito baixos.
- Convênios celebrados pelo MAPA com entes subnacionais, com recursos oriundos de emendas parlamentares, por ano e mês – 2010-2023. Fonte: Elaboração própria, a partir de consulta à Plataforma Transferegov.br (Brasil, 2024bBrasil. (2024b). Portal sobre transferências e parcerias da União. Recuperado em 20 de maio de 2024, de https://www.gov.br/transferegov/pt-br
https://www.gov.br/transferegov/pt-br... ).
– Proporção de despesas mensais em relação à média anual dos valores enviados dos convênios celebrados pelo MAPA com entes subnacionais, com recursos de emendas parlamentares, 2010-2023.
O Quadro 3 apresenta a proporção de despesas mensais em relação à média anual dos valores dos convênios celebrados pelo MAPA, com recursos de emendas parlamentares e, assim como o Quadro 2, se identifica que, apesar de haver uma concentração no último trimestre do ano, ela não ocorre necessariamente em dezembro. Verifica-se que os valores são mais bem distribuídos ao longo do ano, inclusive nos primeiros meses, em que o número de convênios é muito baixo. Nesse sentido, refuta-se a hipótese de que haveria uma hiperconcentração de recursos em dezembro, com os recursos do Legislativo que são direcionados ao MAPA através de emendas parlamentares. Contudo, chama-se a atenção de que a realidade brasileira é mais complexa do que a hipótese dicotômica de “haver ou não haver”, como apregoa a literatura, dado que há, no final do ano fiscal, uma maior concentração de convênios celebrados, mesmo que do ponto de vista orçamentário haja uma divisão mais homogênea ao longo do ano fiscal.
A esse fenômeno oferecemos a explicação de que, conforme aponta a literatura, a distribuição de recursos via emenda parlamentar obedece a critérios diversos, que vão desde o prestígio do parlamentar dentro do partido até a capacidade de mobilização dos prefeitos e atores políticos subnacionais (Baião et al., 2018Baião, A. L., Couto, C. G., & Jucá, I. C. (2018). A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Revista Brasileira de Ciência Política, 25(25), 47-86. http://doi.org/10.1590/0103-335220182502
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; Meireles, 2024Meireles, F. (2024). Política Distributiva em Coalizão. Dados, 67(1), e20210135. http://doi.org/10.1590/dados.2024.67.1.308
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). Estendendo o raciocínio já proposto por Baião et al. (2018)Baião, A. L., Couto, C. G., & Jucá, I. C. (2018). A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Revista Brasileira de Ciência Política, 25(25), 47-86. http://doi.org/10.1590/0103-335220182502
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e por Meireles (2024)Meireles, F. (2024). Política Distributiva em Coalizão. Dados, 67(1), e20210135. http://doi.org/10.1590/dados.2024.67.1.308
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, pode-se inferir que, para além de privilegiar os correligionários e aliados na ordem de distribuição de emendas parlamentares, os partidos que têm influência no MAPA podem também distribuir recursos mais vultuosos a correligionários ao longo do ano, enquanto, em dezembro, pulveriza-se os recursos remanescentes em um amplo número de convênios comparativamente “mais baratos”. Dada a regra que estabelece o orçamento impositivo, reitera-se a tese de que a hiperconcentração ocorre com mais força quando se trata dos recursos do próprio Poder Executivo, em comparação com as emendas parlamentares, haja vista que a indicação de convênios oriunda de emenda parlamentar passou a ser, depois de 2015, de execução obrigatória, não cabendo ao Ministério postergar sua execução.
A seguir, apresenta-se a análise qualitativa do processo de celebração de convênios entre o MAPA e os entes subnacionais.
Entre março e maio de 2024 buscamos compreender, junto aos gestores federais que atuam diretamente com o processo de celebração de convênios, como funciona o cotidiano do órgão e quais processos administrativos eram executados. Todos os entrevistados eram funcionários públicos há mais de uma década, vinculados à administração pública federal. As entrevistas foram gravadas e transcritas. Além disso, analisou-se um Webinar, publicado na rede social Youtube (2023Youtube. (2023). Palestra sobre a Portaria conjunta MGI/MF/CGU nº 33, de 2023. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://www.youtube.com/watch?v=VxgNiu5MrDU
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), no Canal Rede de Parcerias, alimentado pelo Ministério da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos, endereçado aos gestores públicos federais, em 2023. A apresentação dos dados ocorrerá a partir de dois eixos: (i) processo administrativo de celebração dos convênios, subdividido em compreensão do arranjo institucional e relação do MAPA com os entes subnacionais, e; (ii) percepção sobre a qualidade do gasto público no momento da celebração dos convênios.
Em relação ao primeiro eixo, a Entrevistada 1 explicou que antes de qualquer convênio ser celebrado, ele passa por uma análise por parte de um servidor do MAPA que, por sua vez, avalia a viabilidade técnica do convênio, a justificativa apresentada, bem como se os valores propostos estão em linha com os valores de mercado, se há necessidade real, se a contrapartida do município, estado ou ONG está sendo cumprida e se houve a inclusão do valor da contrapartida em seu orçamento. Segundo a entrevistada, essa avaliação é realizada em todos os convênios ao longo do ano e nenhum convênio avança para a celebração sem essa análise e parecer prévios. Após a avaliação, há três possibilidades de cadastro dentro da plataforma Mais Brasil, que são: aprovar diretamente; solicitar justificativas ou modificações no projeto ou no plano de trabalho; ou rejeitar, devido à inviabilidade técnica, caso não haja solução viável. Nesse sentido, identifica-se que a burocracia federal está preocupada não apenas com a legalidade formal do processo, mas também com a qualidade do gasto público a ser realizado no âmbito do MAPA.
Contudo, no final do ano, quando há um grande volume de convênios a serem celebrados, algumas aprovações podem ser feitas mesmo que o plano de trabalho não seja aprovado imediatamente, desde que haja mínima possibilidade de execução, mediante um instrumento específico. Nesse caso, conforme a Entrevistada 1, usa-se o instrumento chamado “cláusula suspensiva”, ou seja, o convênio é registrado na plataforma e o recurso empenhado, mas o plano de trabalho deve ser revisado ou reformulado dentro de 60 dias após a celebração. Uma cláusula suspensiva é uma disposição em um contrato que permite que o documento seja assinado mesmo que certas condições ainda não tenham sido cumpridas. No entanto, a efetivação dos termos do contrato está condicionada ao cumprimento dessas condições dentro do prazo específico. Se as condições não forem cumpridas dentro desse prazo, o contrato pode ser considerado extinto e os termos do contrato não serão efetivados.
Além disso, um ponto que também foi relatado é que é comum haver contingenciamentos aos orçamentos dos ministérios ao longo do ano por causa das flutuações das receitas arrecadadas pela União. Esses contingenciamentos, ou seja, as reduções das expectativas de receita livre do Ministério para alocar recursos em seus próprios projetos, alteram a dinâmica de celebração dos convênios com os entes subnacionais. Contudo, conforme indicado pelo Entrevistado 2, os cortes realizados pelo Ministério em suas subsecretarias não são equânimes, ou seja, quando há contingenciamento, não se corta o mesmo percentual de todos os projetos. Algumas áreas e secretarias precisam reduzir o volume e o número de convênios a serem celebrados, enquanto outras não. As secretarias coordenadas por agentes com maior poder político e prestígio sofrem menos contingenciamentos, numa dinâmica a qual Pinto (2019)Pinto, É. G. (2019). Erosão orçamentário-financeira dos direitos sociais na Constituição de 1988. Ciencia & Saude Coletiva, 24(12), 4473-4478. http://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25092019
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chama de escolhas das prioridades alocativas.
O Entrevistado 2 também afirma, no que tange ao recebimento de emendas parlamentares, que políticos mais experientes têm vantagens e maior trânsito dentro do Ministério, como acesso às lideranças e maior influência para direcionar recursos, enquanto os políticos mais novos podem ter menos influência e acessam recursos menos expressivos. Nesse sentido, conforme argumentado anteriormente, o mesmo fenômeno já foi apontado por Baião et al. (2018)Baião, A. L., Couto, C. G., & Jucá, I. C. (2018). A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Revista Brasileira de Ciência Política, 25(25), 47-86. http://doi.org/10.1590/0103-335220182502
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e por Meireles (2024)Meireles, F. (2024). Política Distributiva em Coalizão. Dados, 67(1), e20210135. http://doi.org/10.1590/dados.2024.67.1.308
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, observando que parlamentares mais experientes e com maior poder político acessam mais recursos, têm mais trânsito ministerial e conseguem maior celeridade na destinação de suas emendas. Esse tipo de fenômeno também pode ser pensado através do conceito de rent seeking, ou seja, a partir da ideia de que há uma relação em que uma parte obtém do Estado ganhos econômicos, prestígio e poder político (Almeida-Santos et al., 2024Almeida-Santos, P. S., Mendes, N. C. F., & Matias-Pereira, J. (2024). Impactos de ações rent-seeking sobre o orçamento público: o efeito do caso “Máfia das Ambulâncias” nos municípios mato-grossenses. Revista Brasileira de Ciência Política, 43, e275921. http://doi.org/10.1590/0103-3352.2024.43.275921
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).
Sobre a dinâmica de contingenciamento e suplementação de recursos ao MAPA, o Entrevistado 3 explicou que durante uma revisão do cenário fiscal, geralmente feita entre agosto e outubro, pode haver uma redução no déficit previsto na União, o que abre espaço para a alocação de créditos orçamentários. Esses créditos são de alocação discricionária do Ministério, o que significa que o MAPA passa a ter recursos disponíveis entre novembro-dezembro, mesmo sem editais vigentes e projetos pré-selecionados. Desse modo, o processo de seleção dos convênios no último trimestre precisa ser acelerado para acompanhar a chegada rápida dos recursos. Contudo, a expiração do orçamento no final do ano fiscal impele os burocratas instalados na administração pública federal a acelerarem o processo formal de celebração dos convênios, conforme indica o trecho de entrevista abaixo.
Em dezembro, o processo impõe um ritmo de trabalho que chega à quase desumanidade ao Poder Executivo. A rotina, principalmente para quem opera nessa parte de transferência de recursos, passa a ser exaustiva. A gente tem, já teve, anos aqui em que a equipe praticamente ficou morando dentro da Secretaria. A gente tinha turnos em que as pessoas saíam às 10 horas da noite e às 8 horas da manhã tinha que voltar, e algumas vezes enveredava pela madrugada e outros já eles tinham que voltar. [...] A gente já chegou, aqui, a receber suplementação na casa dos milhões, faltando 10 dias para terminar o ano fiscal, e ter que executar. (Entrevistado 2).
Em relação à qualidade do gasto público, em decorrência da hiperconcentração de recursos no final do ano, há dois pontos que merecem destaque. O primeiro é que quase todos os entrevistados (5 de 6) concordaram que esse processo, decorrente do arranjo institucional posto, prejudica a qualidade do gasto público. Conforme afirmado em vários momentos, a burocracia do Ministério ao celebrar um convênio – seja oriundo de emenda parlamentar, seja oriundo do próprio MAPA – busca dialogar com os entes nacionais e com o concedente do recurso a fim de qualificar tecnicamente o projeto e melhorar o objetivo da política. Esse processo de diálogo e melhoria fica impossibilitado em dezembro, quando um alto número de convênios precisa ser celebrado. O Entrevistado que não endossou diretamente essa tese acredita que a cláusula suspensiva tem como objetivo corrigir esse problema, dado que confere ao gestor local a possibilidade de qualificar o projeto outrora empenhado no ano posterior à sua formalização. Essa tese é rejeitada pelos demais entrevistados, os quais afirmam que vícios de origem (por exemplo, uma cidade que não precisa de determinado recurso ou projeto e o obtém do mesmo modo, enquanto outros municípios que precisam não o recebem; ou projetos voltados para um setor em um determinado município, enquanto outros setores necessitam mais) não conseguem ser corrigidos por meio desse instrumento. Esse mesmo Entrevistado afirma, entretanto, que o pico de celebração de convênios no final do ano é prejudicial à administração pública porque atrasa a execução do recurso empenhado, em razão de o período entre dezembro e fevereiro, normalmente, possuir um fluxo mais lento de trabalho na administração pública.
Em outra entrevista, uma interlocutora reforça a pressão pela execução dos recursos em dezembro, inscrevendo-os em restos a pagar, a fim de que o Tesouro Nacional não recolha o que não foi empenhado até dezembro (Entrevistada 3). Quando provocada, a gestora afirmou que a não execução do recurso é muito prejudicial para qualquer secretaria da administração pública federal, dado que essa prática se torna um indicador de má gestão fiscal. Nesse sentido, caso não houver a execução do recurso, no ano seguinte, a Secretaria e o Ministério receberão menos recursos, posto que a interpretação decorrente é de que a secretaria tem pouca capacidade de execução orçamentária. Assim, o gestor é incentivado a empenhar os recursos, mesmo que seja em projetos entendidos como de pouca ou nenhuma qualidade, que não atendam às políticas do Ministério ou que careçam de evidências de que resolverão o problema declarado. Isso ocorre para evitar futuras penalizações ao órgão e, por outro lado, não há instrumentos que premiem gestores ou secretarias cujos projetos tenham mais eficiência, eficácia ou efetividade do gasto público, que reduza desigualdades sociais, promovam a cidadania ou aumentem a produtividade no campo da agricultura.
Para além das entrevistas, analisamos um Webinar que versa sobre o processo de celebração dos convênios, destinado aos gestores públicos federais e disponibilizado online. O evento foi realizado pelo Coordenador-Geral de Planejamento e Normas do Ministério do Planejamento e Orçamento (Youtube, 2023Youtube. (2023). Palestra sobre a Portaria conjunta MGI/MF/CGU nº 33, de 2023. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://www.youtube.com/watch?v=VxgNiu5MrDU
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). Nesse evento, é enfatizada a ideia de que é importante o Ministério “garantir o recurso” em dezembro e assume-se verbalmente a impossibilidade de análise dos convênios celebrados. Entre os minutos 67 e 69 do Webinar, ouve-se:
Gestora: Se ele [ente subnacional] entregou a documentação e eu não tenho tempo hábil para analisar, precisa que eu complemente, ou, caso ver que o documento não está certo, eu posso condicionar [o repasse] mediante clausula suspensiva? Gestor do MPO: você vai assinar com clausula suspensiva, para garantir o orçamento. [...] Você ganhará tempo. A emenda chegou em dezembro, o ministério tem 1.900 convênios para celebrar em dezembro, lá no dia 24, dia 29 de dezembro, aquelas loucuras de meia-noite, 11h da noite, aquela bagunça toda. Você obviamente não tem tempo para analisar os projetos básicos de forma correta. Você vai assinar com a cláusula suspensiva, não necessariamente precisa ser de 9 meses [o prazo para entrega de toda a documentação necessária], você vai estabelecer um prazo menor, que você já sabe que, ele te apresentando, só vai ter que pedir complementação, e você vai ganhar tempo e não vai perder o orçamento, porque o orçamento vai ser inscrito em restos a pagar, mas ele está vinculado a um instrumento jurídico dentro do exercício financeiro (Youtube, 2023Youtube. (2023). Palestra sobre a Portaria conjunta MGI/MF/CGU nº 33, de 2023. Recuperado em 10 de agosto de 2024, de https://www.youtube.com/watch?v=VxgNiu5MrDU
https://www.youtube.com/watch?v=VxgNiu5M... . Grifos nossos).
Importante assinalar que as falas ditas durante as entrevistas convergem com o que foi proferido publicamente pelos gestores públicos federais na transmissão disponibilizada na internet. Isto posto, volta-se à clássica discussão acerca das disfuncionalidades da burocracia, conforme descrito por Robert Merton, na década de 1940, e que Bresser Pereira, na Reforma Gerencial dos anos 1990, procurou resolver (Abrucio, 2007Abrucio, F. L. (2007). Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas. Revista de Administração Pública, 41(spe), 67-86. http://doi.org/10.1590/S0034-76122007000700005
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). O que se observa é que as pressões internas da estrutura organizacional, principalmente a relação com o arranjo institucional e o Tesouro Nacional, criam disfuncionalidades que não premiam a gestão baseada em evidências, a coordenação e a observância para que haja eficiência, eficácia e efetividade do gasto público e combate aos vazios assistenciais no país, outrossim, premiam puramente a execução do recurso, independentemente de para qual projeto ou localidade se destina. O cumprimento da regra, nesse sentido, passa a ser um fim em si mesmo e um mecanismo de autopreservação da própria burocracia ministerial. Esse comportamento não é novo, haja vista que desde os anos 1960 a proposição de Niskanen previa que os burocratas agem como maximizadores de orçamento, buscando constantemente aumentar seus próprios poderes ao expandir os recursos alocados para suas respectivas agências (Breton & Wintrobe, 1975Breton, A., & Wintrobe, R. (1975). The equilibrium size of a budget-maximizing Bureau: a note on Niskanen’s theory of bureaucracy. Journal of Political Economy, 83(1), 195-207. http://doi.org/10.1086/260313
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).
Frente ao exposto, identifica-se que, na dinâmica do contingenciamento e descontingenciamento, combinada com o recebimento de vultuosos recursos financeiros no final do ano e com a impossibilidade de aguardar um processo de análise das necessidades de alocação dos recursos aos entes subnacionais, os burocratas são compelidos a empenharem os recursos pulverizando-os conforme são submetidos às pressões administrativas e políticas. Além disso, os dados corroboram ao que vem sendo argumentado pela literatura no sentido de que as elites partidárias conseguem, ao longo do ano, captar vultuosos recursos antes do seu término, quando há uma tendência maior por pulverização (Baião et al., 2018Baião, A. L., Couto, C. G., & Jucá, I. C. (2018). A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Revista Brasileira de Ciência Política, 25(25), 47-86. http://doi.org/10.1590/0103-335220182502
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; Meireles, 2024Meireles, F. (2024). Política Distributiva em Coalizão. Dados, 67(1), e20210135. http://doi.org/10.1590/dados.2024.67.1.308
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). Posto que a análise se voltou às transferências voluntárias do MAPA aos entes subnacionais, pode-se também discutir que tal formato de financiamento das políticas públicas pode sofrer restrições, dada a forte indexação orçamentária vigente no orçamento federal, ou seja, a crescente obrigatoriedade de gastos com a dívida pública, previdência social, fundos constitucionais etc. tem o potencial de, a longo prazo, comprometer os investimentos discricionários em áreas como agricultura e desenvolvimento rural.
Conforme indicado por Lima et al. (2021)Lima, L. L., Aguiar, R. B., & Lui, L. (2021). Conectando problemas, soluções e expectativas: mapeando a literatura sobre análise do desenho de políticas públicas. Revista Brasileira de Ciência Política, (36), e246779. http://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.36.246779
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, quando uma política é informada primeiramente por processos de barganha e influência política, diminuem-se as chances de alcançar a efetividade e a resolução dos problemas sociais. O que se identifica é que a burocracia instalada no MAPA busca, em condições normais de trabalho, usar conhecimento técnico e científico para qualificar os projetos analisados, contudo, em dezembro, os incentivos voltados à preservação da estrutura organizacional se sobrepõem aos incentivos pela primazia da qualidade do gasto.
O presente estudo possui limitações. Analisamos somente as transferências voluntárias de recursos aos entes subnacionais e não os gastos do próprio Ministério em atividades diretamente conduzidas por ele (manutenção da Escola Nacional de Gestão Agropecuária, viagens de servidores, material permanente, gasto com manutenção dos prédios, etc.), sem intermediação dos entes subnacionais. Outra questão é que deixamos de fora os TEDs (termos de execução descentralizada) celebrados pelo Ministério com órgãos da administração pública federal como IBGE, Embrapa e Universidades Federais. Ou seja, não analisamos todos os recursos executados pelo MAPA, mas uma de suas dimensões. Outra limitação do estudo é que ele não averiguou se os ciclos eleitorais afetam a liberação dos recursos e se correligionários políticos (no caso, Ministro da Agricultura e prefeitos) possuem maior acesso aos recursos discricionários. Dado que o objetivo da abordagem qualitativa era compreender de forma mais abrangente o processo burocrático de celebração dos convênios, optou-se por não realizar uma análise quantitativa dos contingenciamentos orçamentários ocorridos no Ministério durante o período analisado e seu impacto temporal. Entende-se que essa análise, apesar de importante, extrapolaria os limites do artigo, tanto em extensão quanto em escopo. Apesar de reconhecermos a importância de verificar como os contingenciamentos orçamentários anuais e a liberação de recursos extras no mês de dezembro afetam a temporalidade do gasto e a qualidade dos investimentos no campo da agricultura, consideramos que futuros estudos poderão se aprofundar nessa questão. Outro ponto relevante é que a discussão sobre a qualidade do gasto público, que, neste estudo, foi conduzida a partir de dados qualitativos baseados na percepção dos gestores públicos federais. Evidentemente, metodologias quantitativas objetivas poderão ser desenvolvidas para avaliar essa temática e verificar a qualidade dos investimentos realizados pelo MAPA. Apesar das limitações, considera-se que este estudo levantou questões que ainda estavam pouco exploradas pela literatura, abrindo espaço para que futuros estudos avancem nesse debate.
Conclusão
Os achados deste estudo se somam aos estudos já existentes sobre orçamento público (Peres, 2024Peres, U. D. (2024). Governança do orçamento de São Paulo revisitada pós 2014. Da escassez à sobra de recursos. Estudos Avançados, 38(111), 7-29. http://doi.org/10.1590/s0103-4014.202438111.002
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; Faria, 2023Faria, R. O. (2023). Emendas parlamentares e processo orçamentário no presidencialismo de coalizão. São Paulo: Blucher.), em geral, e na área da agricultura e meio rural, em particular (Corcioli & Medina, 2023Corcioli, G., & Medina, G. D. S. (2023). Política agrícola para o agronegócio: uso de recursos públicos em benefício indireto de multinacionais estrangeiras. Estudos Avançados, 37(108), 89-106. http://doi.org/10.1590/s0103-4014.2023.37108.006
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; Amaral & Bacha, 2023Amaral, F. J. G., & Bacha, C. J. C. (2023). Subvenções federais dadas à agropecuária brasileira no período de 2003 a 2019. Revista de Economia e Sociologia Rural, 61(1), e251646. http://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.251646
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; Xavier, 2020Xavier, L. F. (2020). Recursos do orçamento público federal destinados ao meio rural: dinâmica das contas brasileiras entre 2000 e 2017. Revista de Economia e Sociologia Rural, 59(2), e217682. http://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.217682
http://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.21...
). Esses estudos identificam como investimentos e subvenções federais vêm sendo direcionadas ao setor da agricultura no Brasil. Este estudo, por outro lado, produz evidências no sentido de identificar a temporalidade dos gastos do MAPA e sua concentração ao longo do ano fiscal.
A tese que deu origem ao presente artigo foi refutada, ou seja, identifica-se que não há uma hiperconcentração generalizada de gastos do MAPA no final do ano, seja quando se olha como um todo, seja quando se divide os gastos pela origem financiadora – Poder Executivo ou Poder Legislativo. Identificamos que há uma distribuição de recursos heterogênea ao longo do ano: em alguns casos, ela se concentra no final do ano fiscal, enquanto em outros, a distribuição se dispersa ao longo do ano. Contudo, o estudo conseguiu revelar que há uma dinâmica muito mais complexa do que argumenta a literatura internacional, na medida em que se identificou uma hiperconcentração de convênios celebrados em dezembro, sem, contudo, indicar que sejam esses os convênios que mais concentram recursos financeiros.
Quando se discutiu, na abordagem qualitativa baseada na percepção dos gestores públicos federais, a temática do processo administrativo de celebração dos recursos e seu impacto na qualidade do gasto público no campo da agricultura, identificou-se que há grandes obstáculos processuais, tais o contingenciamento de gastos ao longo do ano, cortes não equânimes dentro das secretarias e influência de atores políticos na tomada de decisão. Também identificamos uma preocupação dos gestores de, ao longo do ano, dialogarem com as partes interessadas pelo convênio, de modo a qualificar o projeto em termos técnicos e formais e conseguir aplicar o recurso público com mais qualidade. Contudo, no final do ano, a preocupação da estrutura burocrática federal que trabalha com celebração de convênios passa a ser voltada ao empenho do recurso, usando instrumentos, como a cláusula suspensiva, para não perder o valor financeiro e para a secretaria não ser penalizada no ano seguinte com redução de orçamento.
O artigo conclui que, por mais que a Reforma Bresser tenha postulado a troca de “normas” por “resultados” e a “qualidade do gasto público” como parâmetros para avaliar a conduta da administração pública brasileira e de seus burocratas, identifica-se que, no que tange à burocracia responsável pelo processo de seleção do que vai ser financiado discricionariamente na administração pública federal brasileira, o avanço outrora proposto não encontra espaço diante dos incentivos e pressões existentes. A hiperconcentração de convênios no final do ano fiscal e a queda da qualidade do gasto público decorrente é um efeito perverso causado pelo arranjo institucional vigente. Esse quadro afeta sobremaneira a qualidade do gasto na área da agricultura no Brasil, dado que deixa o investimento público suscetível às pressões políticas, processos de barganha e não atendendo às necessidades reais dos entes subnacionais. Argumenta-se a respeito da necessidade de rever o arranjo institucional de celebração de recursos de modo a aventar instrumentos que garantam a qualidade do gasto público.
Agradecimentos
Os autores agradecem a Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (Processo 00193-00000256/2023-65) pelo financiamento da pesquisa.
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A terminologia correta inclui convênios, contratos de repasse, termos de fomento e outros tipos de transferências voluntárias aos entes subnacionais. Neste artigo, para facilitar o entendimento e para fins de taxonomia, chamaremos todos esses tipos de transferências voluntárias de “convênios”.
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Como citar: Lui, L., Carvalho, D., Rosa, T. G., Miquelino, W., & Santana, H. (2024). Hiperconcentração de gastos no final do ano fiscal: uma análise dos convênios celebrados pelo MAPA. Revista de Economia e Sociologia Rural, 62(4), e287871. https://doi.org/10.1590/1806-9479.2023.287871
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JEL Classification: H11 e H50.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
25 Jun 2024 -
Aceito
26 Ago 2024