Uma crítica liberal ao identitarismo
As demandas vinculadas à identidade parecem ter entrado definitivamente para o vocabulário político da esquerda. Os velhos movimentos identitários de direita - supremacismo branco, sionismo, nacionalismos xenófobos, fundamentalismos religiosos - são compreendidos há muito tempo como obstáculos à igualdade e à construção de uma ordem democrática. Já as políticas de identidade à esquerda surgem do reconhecimento dos múltiplos padrões de opressão vigentes na sociedade e se propõem alcançar uma democracia mais inclusiva e uma igualdade qualificada pelo respeito às diferenças. Diluídas numa prática militante pouco informada, porém, elas produziram o que os críticos definem como um tipo de “intolerância progressista” - aquilo que é por vezes chamado “identitarismo” ou, em inglês, woke.
A crítica do identitarismo possui uma literatura já vasta, informada pelo marxismo (Fraser, 2000FRASER, Nancy. (2000), “Rethinking recognition”. New Left Review, segunda série, 3: 107-20.; Haider, 2018HAIDER, Asad. (2018), Mistaken identity: race and class in the age of Trump. Londres, Verso.), pela psicanálise (Roudinesco, 2000), pela antropologia (Remotti, 2010REMOTTI, Francesco. (2010), L’ossessione identitaria. Roma, Laterza.), pelo liberalismo (Lilla, 2017LILLA, Mark. (2017), The once and future liberal: after identity politics. Nova York, HarperCollins.). É neste último grupo que se insere o livro de Yascha Mounk (2023), The identity trap: a story of ideas and power in our times, uma abrangente refutação do que ele chama de “síntese identitária” a partir do ponto de vista de um liberal militante. Como o autor resume, já nas primeiras páginas do livro: “Minha preocupação com a síntese identitária é que, à sua maneira, ela torna mais difícil que as pessoas ampliem suas lealdades para além de uma identidade particular, de uma maneira que possa sustentar estabilidade, solidariedade e justiça social” (p. 14). É uma preocupação política, portanto, não apenas teórica.
Cientista político estadunidense nascido na antiga Alemanha Oriental, Mounk ficou conhecido ao publicar The people vs. democracy (2018MOUNK, Yascha. (2018), The people vs. democracy: why our freedom is in danger and how to save it. Cambridge (MA), Harvard University Press.), um dos best-sellers que a Ciência Política de língua inglesa produziu sobre a “crise da democracia” após a vitória de Donald Trump em 2016. Tal como seu competidor de maior êxito, o livro How democracies die, de Levitsky e Ziblatt (2018LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. (2018), How democracies die. Nova York, Crown.), Mounk põe a culpa no avanço do “populismo” iliberal, que rompeu o pacto de cavalheiros vigente - que garantia que a tomada de decisões permaneceria monopólio de uma elite qualificada - e passou a mobilizar a irracionalidade das massas para alcançar o poder. Mas tem o mérito de incluir com certo destaque os aspectos econômicos, em especial a concentração da riqueza, entre as explicações da crise.
Mais ainda que o livro anterior, este The identity trap é dirigido a um público amplo, embora não dispense o aparato de referências próprio de uma obra acadêmica. A intenção é claramente didática. Cada capítulo se encerra com uma série de pontos principais a serem fixados, e a revisão da obra dos pensadores discutidos - apresentados na qualidade de inspiradores da doutrina woke, como Michel Foucault, Edward Said, Gayatri Spivak e Kimberlé Crenshaw - é bastante introdutória. Mas Mounk é eficaz ao demonstrar que o woke não é nem Said, nem Foucault, nem mesmo Spivak ou Crenshaw. É uma derivação simplificadora de obras que se prestam a equívocos (e em alguns casos podem ser consideradas lhanamente equivocadas), mas são bem mais complexas e desafiadoras do que a militância que inspiram.
A síntese, segundo Mounk, é um amálgama de percepções diversas, que têm em comum sobretudo a desconfiança em relação a qualquer discurso que reivindique a universalidade. De Foucault, é extraído o ceticismo quanto à possibilidade de construção de um conhecimento objetivo, que leva à exaltação do ponto de vista do sujeito, tornado invulnerável a qualquer embate com evidências que viriam da realidade exterior. De Said, um determinado modo de usar a análise do discurso com propósitos políticos, que no entanto esbarra na crítica do próprio Said à passividade que seria produto do foucaultianismo. De Spivak, a síntese retém a ideia de que é preciso mobilizar politicamente as identidades como se fossem essências, deixando no caminho o caráter estratégico desta escolha e abraçando um essencialismo tout court. Do jurista Derrick Bell, um dos criadores da chamada “teoria crítica da raça”, uma forma de pessimismo “orgulhoso” sobre o Ocidente e a preferência por políticas expressamente orientadas pelo pertencimento de grupo, que ampliam as barreiras entre diversos segmentos da população. Por fim, Crenshaw contribui tanto com a noção de “interseccionalidade” quanto com a descrença na possibilidade de que membros de um grupo entendam a situação de outro, desaguando nas percepções mais exclusivistas relacionadas ao “lugar de fala”.
A vulgata identitarista, assim, leva a uma forma de separatismo, em que os grupos subalternos julgam necessário romper o contato com outros grupos. O livro começa mostrando como, hoje, alguns coletivos negros defendem a segregação racial nas escolas, sob o argumento de que é necessário educar as crianças para que se sintam “seres raciais” em primeiro lugar (p. 3). Isso vale também para as crianças brancas, reunidas em turmas exclusivas onde aprenderiam sobre “branquitude” e se conscientizariam sobre seus próprios privilégios (embora um resultado mais provável seja a cristalização de uma solidariedade exclusivista de grupo em favor destes mesmos privilégios). Enfim, nada mais longe do “I have a dream” de Martin Luther King - ou da promessa liberal de que somos capazes de definir a nós mesmos, em vez de sermos definidos de antemão pelo grupo em que nascemos (p. 16).
O enclausuramento no grupo é a base para as polêmicas artificiais sobre apropriação cultural, que presumem uma “pureza” inexistente nas culturas humanas - Mounk cita longamente um trecho do filósofo de origem ganesa Kwame Anthony Appiah, que mostra como os tecidos hoje reconhecidos como tradicionalmente africanos não existiriam sem a importação de têxteis asiáticos pelo colonizador europeu (p. 154). Corretamente, o autor diferencia formas de influência, hibridação e adaptação, próprias da convivência com o outro, do aproveitamento imoral da criação cultural alheia, como quando músicos brancos faziam sucesso com ritmos negros no momento em que os artistas negros eram barrados da indústria fonográfica (p. 151).
O identitarismo leva também a uma leitura particularmente ingênua da velha ideia do privilégio epistêmico do dominado - só quem sofre a opressão pode falar dela e qualquer intervenção externa deve ser vetada. O ponto final deste processo, como aponta Mounk, é a percepção de que cada um tem a “sua verdade”, uma verdade que ninguém tem o direito de questionar “com base em fatos supostamente objetivos, especialmente se não pertence ao mesmo grupo identitário marginalizado” (p. 72). Criam-se reservas de mercado discursivo e, como contraface, a cultura do “cancelamento”, para punir aqueles que ousam fugir dos espaços que lhes são designados.
Há, enfim, a predileção pelo uso de instrumentos de ação afirmativa, tornados uma espécie de panaceia, sem atenção seja para os cuidados que sua implementação exige, seja para seus efeitos colaterais potencialmente danosos. Como escreveram Sandra Day O’Connor e Ruth Ginsburg, duas icônicas juízas progressistas da Suprema Corte dos Estados Unidos, “mesmo que seus objetivos sejam convincentes, [as ações afirmativas] são potencialmente tão perigosas que não podem ser empregadas de forma mais ampla do que o interesse exige” e devem ser pensadas como temporárias (p. 210).
Mas o ponto é que, da perspectiva da “síntese identitária”, aquilo que uma perspectiva igualitária mais tradicional percebe como efeito danoso pode, ao contrário, ser muito bem-vindo. A fixação de uma identidade específica como ponto de referência central para o acesso a todos os espaços do mundo social, enclausurando os indivíduos dentro dela, é um resultado positivo para visões que negam qualquer possibilidade de acesso a uma humanidade comum. Mounk se detém sobre casos particularmente absurdos, como o fato de que recursos médicos escassos, como as novas drogas contra a Covid-19, foram alocados, no estado de Nova York, de acordo com critérios de reparação histórica para grupos marginalizados, em especial negros, não de necessidade de cada paciente (p. 6).
O autor observa que identificar a existência e a importância do racismo na sociedade não significa julgar que as políticas devem ser definidas pela raça. Seu exemplo são as punições por porte de drogas, que atingem muito mais usuários negros do que brancos: a solução não é criar “cotas” para que todos os grupos sofram quinhões semelhantes de prisões arbitrárias, mas garantir o funcionamento equânime da justiça, não importando a identidade dos seus alvos (pp. 213-214). É um exemplo que mostra tanto a força quanto os limites da abordagem do livro. De fato, o abandono de um horizonte de humanidade comum é moralmente repulsivo - e Mounk tem razão quando anota que a recusa a priori da noção de “racismo reverso” leva a ignorar formas de discriminação e violência que, embora não sendo estruturais, podem ser ativas das relações interpessoais (p. 227). Mas um enquadramento que parte de aceitação quase acrítica das instituições liberais impede perceber que as próprias regras que distinguem os comportamentos aceitáveis ou não (no caso, porte de drogas) são enviesadas em desfavor dos grupos dominados e, portanto, a solução não se limita a garantir a equanimidade na sua aplicação.
É apenas ao citar o cientista político Adolph Reed Jr., um notável crítico negro das políticas da identidade, que é apontado um problema central delas: o ideal de que os negros sejam “representados em todos os degraus da escala da hierarquia econômica, em proporção aproximada à sua representação na população em geral”, mas mantendo as disparidades entre um grupo dominante e os dominados, não é criar uma “sociedade mais justa, apenas uma sociedade diferentemente injusta” (p. 227). De fato, a deriva identitária tende a ignorar o capitalismo como estrutura central de produção de desigualdades e dominação e a abrir mão de projetos de transformação social com compromisso igualitário mais radical, focando apenas na maior permeabilidade das hierarquias a determinados integrantes de grupos subalternos. Mais mulheres, negros ou pessoas trans nas esferas de representação política, nas universidades ou no alto escalão das grandes corporações não desafia o fato de que nossa sociedade é atravessada pela diferença entre os que têm poder político e os que não têm, os que têm capital cultural legítimo e os que não têm, os que têm dinheiro e controle sobre as decisões econômicas e os que não têm. Mas a vinculação entre capitalismo e produção/reprodução de desigualdades é um tema ausente no livro de Mounk.
Assim, ele ridiculariza o treinamento corporativo da Coca-Cola para “confrontar o racismo”, cheio de slogans sobre “ser menos branco”, o que seria sinônimo de ser “menos opressivo”, “menos ignorante” etc. (p. 107). A inspiração, devidamente contratada pela fábrica de refrigerantes, era Robin DiAngelo, uma autora branca que se tornoubest-seller como “treinadora de diversidade” e cujo ponto de partida é a afirmação de que todo branco é obrigatoriamente racista - e que a mera tentativa de refutar essa alegação já é a prova de sua veracidade (p. 124). No entanto, não há nenhum esforço para contrastar essas políticas, não só da Coca-Cola como de Google, Amazon e de outras grandes empresas, com as condições de trabalho da mão de obra superexplorada, cujas funções mais desgastantes e sub-remuneradas continuam a ser atribuídas desproporcionalmente a mulheres e a pessoas não brancas.
O livro ganha um tom algo bizarro no final. Mounk se dispõe a dar dicas para o enfrentamento do discurso woke, tanto para ativistas quanto para funcionários públicos e empresários. Ele passa de recomendações práticas como “faça alianças” (uma vez que a oposição ao identitarismo une liberais, socialdemocratas, marxistas e alguns conservadores clássicos) para um registro de autoajuda, com o conselho de ter “orgulho dos próprios pontos de vista” quando estiver discutindo com outros (p. 273). Mas, apesar dessas limitações, trata-se de uma contribuição informada e honesta a um debate que não pode mais ser adiado.
Referências Bibliográficas
- FRASER, Nancy. (2000), “Rethinking recognition”. New Left Review, segunda série, 3: 107-20.
- HAIDER, Asad. (2018), Mistaken identity: race and class in the age of Trump. Londres, Verso.
- LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. (2018), How democracies die. Nova York, Crown.
- LILLA, Mark. (2017), The once and future liberal: after identity politics. Nova York, HarperCollins.
- MOUNK, Yascha. (2018), The people vs. democracy: why our freedom is in danger and how to save it. Cambridge (MA), Harvard University Press.
- REMOTTI, Francesco. (2010), L’ossessione identitaria. Roma, Laterza.
- ROUDINESCO, Élisabeth. (2021), Soi-même comme un roi: essai sur les dérives identitaires. Paris, Seuil.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
30 Mar 2024 -
Aceito
26 Jun 2024