Resumo
Objetivo Avaliar a incidência e os fatores associados aos acidentes de trabalho envolvendo material biológico ocorridos durante a limpeza de produtos para a saúde em profissionais da equipe de enfermagem no Brasil.
Métodos Estudo de coorte retrospectivo realizado entre 2015 e 2019. A população foi dividida em dois grupos para fins de comparação, sendo composto de profissionais que sofreram acidentes durante a limpeza de produtos para a saúde e o outro grupo dos profissionais que se acidentaram em outras circunstâncias. Os dados do estudo foram extraídos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (número de acidentes) e Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (número de profissionais). Analisou-se os fatores associados à incidência de acidentes de trabalho envolvendo material biológico (variável dependente) durante a limpeza de produtos para a saúde por meio da regressão de Poisson múltipla.
Resultados A taxa média de incidência de acidentes de trabalho envolvendo material biológico foi de 115,0 casos a cada 100 mil profissionais de enfermagem entre 2015 e 2020, e, entre os técnicos de enfermagem, a incidência, foi de 151,6 casos a cada 100 mil profissionais. Para os profissionais de enfermagem, verificou-se que o risco de acidentes foi 2,49 vezes maior em exposições percutâneas. O risco de acidentes foi 1,87 vez maior quando o material envolvido era sangue. O risco aumentou ainda quando o agente envolvido era lâmina/lanceta e outros agentes.
Conclusão A taxa de incidência foi elevada e esteve associada aos fatores demográficos, laborais e relacionados ao acidente.
Acidentes; Acidentes de trabalho; Materiais biocompatíveis; Equipe de enfermagem; Incidência
Resumen
Objetivo Evaluar la incidencia y los factores asociados a los accidentes de trabajo con material biológico ocurridos durante la limpieza de productos para la salud por profesionales de equipos de enfermería en Brasil.
Métodos Estudio de cohorte retrospectivo realizado entre 2015 y 2019. La población fue dividida en dos grupos para fines comparativos, uno con profesionales que sufrieron accidentes durante la limpieza de productos para la salud y el otro grupo con profesionales que se accidentaron en otras circunstancias. Los datos del estudio se extrajeron del Sistema de Información de Agravios de Notificación (número de accidentes) y del Registro Nacional de Establecimientos de Salud (número de profesionales). Se analizaron los factores asociados a la incidencia de accidentes de trabajo con material biológico (variable dependiente) durante la limpieza de productos para la salud mediante la regresión de Poisson múltiple.
Resultados El índice promedio de incidencia de accidentes de trabajo con material biológico fue de 115,0 casos cada 100.000 profesionales de enfermería entre 2015 y 2020; y entre los técnicos de enfermería, la incidencia fue de 151,6 casos cada 100.000 profesionales. Se verificó que el riesgo de accidentes fue 2,49 veces más grande en exposiciones precutáneas entre los profesionales de enfermería. El riesgo de accidentes fue 1,87 veces más grande cuando el material era sangre. El riesgo aumentó más cuando el agente eran hojas/lancetas y otros agentes.
Conclusión El índice de incidencia fue alto y se asoció a los factores demográficos, laborales y relacionados con el accidente.
Accidentes; Accidentes de trabajo; Materiales biocompatibles; Grupo de enfermería; Incidencia
Abstract
Objective To assess incidence and factors associated with occupational accidents involving biological material that occur during the cleaning of reusable medical devices among nursing staff in Brazil.
Methods This is a retrospective cohort study conducted between 2015 and 2019. The population was divided into two groups for comparison purposes, one composed of professionals who suffered accidents while cleaning reusable medical devices and the other composed of professionals who suffered accidents under other circumstances. The study data were extracted from the Notifiable Diseases Information System (number of accidents) and the Brazilian National Registry of Health Establishments (number of professionals). The factors associated with the incidence of occupational accidents involving biological material (dependent variable) during the cleaning of reusable medical devices were analyzed using multiple Poisson regression.
Results The mean incidence rate of occupational accidents involving biological material was 115.0 cases per 100,000 nursing professionals between 2015 and 2020, and, among nursing technicians, the incidence was 151.6 cases per 100,000 professionals. For nursing professionals, it was found that the risk of accidents was 2.49 times higher in percutaneous exposure. The risk of accidents was 1.87 times higher when the material involved was blood. The risk increased even more when the device involved was a blade/blood lancet and others.
Conclusion The incidence rate was high and was associated with demographic, work-related and accident-related factors.
Accidents; Accidents, occupational; Biocompatible materials; Nursing, team; Incidence
Introdução
Os ambientes de saúde apresentam uma variedade de riscos, sendo o risco biológico o mais comum e o de maior incidência. Ele é definido como a probabilidade da ocorrência da exposição ocupacional a agentes capazes de promover efeitos adversos à saúde e é frequentemente envolvido na ocorrência de acidentes de trabalho com exposição a material biológico.(1)
Dentre as unidades hospitalares com maior magnitude de acidentes de trabalho com exposição a material biológico, está o Centro de Material e Esterilização, onde os trabalhadores estão frequentemente expostos a diversos riscos laborais, sobretudo o biológico.(2) O Centro de Material e Esterilização é uma das unidades de apoio indispensáveis para o funcionamento de um serviço de saúde, uma vez que é o local específico para o processamento de Produtos Para Saúde. É dividido em área suja, denominada de expurgo, onde são realizados os procedimentos de limpeza e secagem dos materiais, e em área limpa, onde os Produtos Para Saúde são preparados, empacotados, esterilizados, guardados e distribuídos.(3,4)
A limpeza é uma das etapas mais importantes para o sucesso do processamento de Produtos Para Saúde, mas também é a que oferece mais risco ao trabalhador que permanentemente manuseia os Produtos Para Saúde contaminados. No expurgo, os Produtos Para Saúde oriundos de todas as unidades assistenciais são submetidos a diversas etapas que requerem o contato das mãos do trabalhador, o que aumenta a chance de acidentes de trabalho com exposição a material biológico.(3-5)
Os acidentes de trabalho com exposição a material biológico apresentam elevada magnitude. Nos Estados Unidos, estima-se que 385 mil profissionais de hospitais sofram acidentes de trabalho com exposição a material biológico a cada ano.(6) No Brasil, os acidentes de trabalho com exposição a material biológico também representam importante problema de saúde pública. No período de 2010 a 2016, foram notificados 243.621 acidentes de trabalho com exposição a material biológico em profissionais da saúde, correspondendo a 34.803 notificações/ano. A taxa de incidência desses acidentes varia de 3,65 casos/1.000 profissionais da saúde/ano na Paraíba a 24,7 casos/1.000 profissionais da saúde/ano no Paraná. A maioria dos profissionais que se acidenta é do sexo feminino e adulto jovem. Além disso, 76,4% dos acidentes em 2016 envolveram profissionais da equipe de enfermagem (enfermeiros ou auxiliares/técnicos de enfermagem).(7)
Embora sejam frequentes no Brasil, estudos sobre a epidemiologia dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico ocorridos durante a etapa da limpeza de Produtos Para Saúde têm sido pouco investigados, sobretudo nos profissionais de enfermagem, grupo com maior incidência. Há uma lacuna na literatura sobre a incidência dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico e seus fatores de risco, a qual se amplia quando se considera a análise de dados nacionais. Estudos epidemiológicos que avaliam esses aspectos são úteis para subsidiar a saúde do trabalhador dos profissionais de enfermagem, permitindo o planejamento de estratégias para diminuir riscos e a magnitude desses agravos no Brasil.(8) Dessa forma, o objetivo deste estudo foi avaliar a incidência e os fatores associados aos acidentes de trabalho envolvendo material biológico ocorridos durante a limpeza de Produtos Para Saúde em profissionais da equipe de enfermagem no Brasil.
Métodos
Estudo de coorte retrospectivo. A população global do estudo foi composta de profissionais de enfermagem que sofreram acidentes de trabalho com exposição a material biológico e foram notificados, independentemente do tipo de circunstância do acidente, incluindo aqueles que se acidentaram durante a administração de medicamentos, descarte inadequado de materiais, procedimentos assistenciais básicos, entre outros. A população de interesse incluiu profissionais que sofreram acidentes durante a limpeza de Produtos Para Saúde e foi comparada àqueles que sofreram acidentes em outras circunstâncias. Neste estudo, foi considerado acidentes de trabalho com exposição a material biológico todo caso de acidente envolvendo exposição direta e/ou indireta do trabalhador a material biológico potencialmente contaminado por patógenos, por meio de material perfurocortante ou não,(9) cujo código da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) é o Z20.9.(10) Foram incluídos os seguintes profissionais, de acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO): enfermeiros (CBO: 2235-05) e auxiliares (CBO: 3222-30)/técnicos de enfermagem (CBO:3222-05).(11)
Os microdados do número absoluto de acidentes de trabalho com exposição a material biológico foram extraídos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Os dados desse sistema provêm das fichas de notificação compulsória e investigação, incluindo as notificações dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico. O acesso ao banco foi concedido pela Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. Além disso, foram utilizados os microdados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), que contém informações sobre o número de profissionais de saúde dos serviços de saúde no Brasil.
O estudo incluiu notificações de acidentes de trabalho com exposição a material biológico de profissionais da equipe de enfermagem de todas as 27 unidades da federação das cinco grandes regiões do Brasil: Sudeste, Sul, Centro-Oeste, Norte e Nordeste. O estudo abrangeu as notificações registradas entre 1° de janeiro de 2015 e 27 de julho de 2020, data da última atualização dos microdados utilizados. A extração de dados ocorreu em dezembro de 2020.
O principal indicador analisado foi a taxa de incidência média de acidentes de trabalho com exposição a material biológico ocorridos durante a limpeza de Produtos Para Saúde, no período de 2015 a 2020, conforme a fórmula:
Para a análise dos fatores associados, a variável dependente foi a ocorrência de acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a limpeza de Produtos Para Saúde. Essa variável foi do tipo qualitativa binária, classificada como zero (“0”) ou um (“1”). As variáveis independentes foram: sociodemográficas – faixa etária, em anos, categorizada a partir dos 18 anos (18-29 anos; 30-39 anos; 40-49 anos; 50-59 anos ou ≥60 anos); sexo (masculino ou feminino); região geográfica de residência (Sudeste, Sul, Centro-Oeste, Norte ou Nordeste) e escolaridade (nível técnico ou nível superior); laborais – categoria profissional (enfermeiros e auxiliares/técnicos de enfermagem) e vínculo empregatício (empregado com carteira assinada, servidor público ou outros); relacionadas ao acidente – exposição percutânea (não ou sim), exposição em pele íntegra (não ou sim); exposição com pele não íntegra (não ou sim); exposição à mucosa oral/ocular (não ou sim); material orgânico (sangue/soro/plasma, líquidos cavitários, fluidos com sangue e outros líquidos) e agente (agulha/intracath, lâmina/lanceta ou outros) e vacina contra o vírus da hepatite B (VHB), categorizada em não ou sim. O profissional que referiu pelo menos três doses da vacina antes do acidente foram considerados vacinados.
O ano da notificação e o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) no momento do acidente foram considerados na análise descritiva. Foram analisados os seguintes EPI: luvas (não ou sim); óculos de proteção (não ou sim); máscara (não ou sim); botas (não ou sim) e avental (não ou sim).
Os dados foram analisados pelo programa STATA, versão 16.0. A análise dos dados foi realizada em duas etapas, sendo uma a de análise descritiva e a outra a de análise inferencial.
Na análise descritiva, estimaram-se as características da população segundo grupos 1 e 2 por meio da frequência absoluta (n) e relativa (%). A taxa de incidência média de acidentes de trabalho com exposição a material biológico ocorridos durante a etapa de limpeza de Produtos para Saúde foi estimada para o Brasil, regiões, unidades da federação e para cada categoria profissional.
A análise inferencial, bivariada e múltipla, foi usada para analisar os fatores associados ao acidente de trabalho com exposição a material biológico ocorrido durante a limpeza de Produtos Para Saúde. Dessa forma, o grupo de profissionais que sofreu acidente durante a limpeza foi comparado com o dos que sofreram acidentes em outras situações laborais. Na análise bivariada, foi feita regressão de Poisson para verificar a associação entre cada variável independente e a variável dependente. Valores de p<0,20 foram adicionados a um modelo de regressão múltipla de Poisson com variância robusta, pelo método de entrada única. A qualidade do ajuste do modelo final foi avaliada pelo goodness-of-fit. A magnitude do efeito do modelo de regressão múltipla foi estabelecida pelo Risco Relativo Ajustado (RPA) e respectivos Intervalo de Confiança de 95% (IC95%). O teste do qui-quadrado de Wald foi utilizado para estabelecer a significância estatística. O coeficiente de McFadden’s (R2 de McFadden’s) foi utilizado para analisar o poder explicativo do modelo.
Na presente investigação, não houve necessidade de submissão e de avaliação do projeto do estudo ao Comitê de Ética em Pesquisa, uma vez que se trata de pesquisa sobre dados secundários, sem identificação dos participantes e dados sensíveis, conforme preveem as resoluções 466, de 12 de dezembro de 2012 e 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde.(12,13)
Resultados
Foram analisados 167.093 acidentes de trabalho com exposição a material biológico em profissionais de enfermagem notificados entre 1° do janeiro de 2016 a 27 de julho de 2020. A taxa de incidência média de acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a etapa da limpeza de Produtos Para Saúde foi de 115,0 casos a cada 100 mil profissionais de enfermagem no Brasil. Observou-se que a menor taxa foi verificada no Amapá (18,7 casos a cada 100 mil profissionais de enfermagem) e a maior em Santa Catarina (300,2 casos a cada 100 mil profissionais de enfermagem), conforme sintetiza a figura 1.
Taxa de incidência média de acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a etapa de limpeza de produtos para saúde em profissionais da equipe de enfermagem
Na categoria profissional dos enfermeiros, a taxa de incidência média de acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a etapa da limpeza de Produtos Para Saúde foi de 22,0 casos a cada 100 mil enfermeiros. Nas categorias dos auxiliares e técnicos de enfermagem, a taxa de incidência média foi 6,89 vezes maior (151,6 casos a cada 100 mil profissionais). A tabela 1 sintetiza as características dos profissionais da equipe de enfermagem incluídos no estudo, estratificadas por aqueles sem (n = 161.398; 96,6%) e com envolvimento em acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a etapa da limpeza de Produtos Para Saúde (n = 5.695; 3,4%). A média de idade dos profissionais da equipe de enfermagem envolvidos em acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a etapa da limpeza de Produtos Para Saúde foi de 37,1 anos (desvio-padrão=10,6), com 27,2% e 35,8% na faixa etária de 18-29 anos e 30-39 anos, respectivamente. A maioria era do sexo feminino (91,1%), técnico de enfermagem (75,9%) e empregado com carteira assinada (72,1%). A Região Sudeste representou 42,6% dos casos notificados desses profissionais. Do total, 76,5% foram exposições percutâneas e, em 70,3%, o material orgânico envolvido foi o soro/sangue/plasma; outros agentes estiveram envolvidos em 65,1% dos acidentes. A frequência de uso de EPI no momento do acidente de trabalho foi de 93,3% para as luvas, 68,1% para o avental, 46,1% para os óculos de proteção, 50,1% para máscara e 26,4% para botas. A maioria dos profissionais (95,9%) apresentava esquema completo da vacina contra o VHB.
O modelo de regressão de Poisson com variância robusta mostrou que o risco de acidentes foi 1,48 vez (IC95%=1,32-1,65) maior em mulheres do que em homens. Verificou-se gradiente positivo do risco de acidentes com o incremento da faixa etária após 40 anos, aumentando 1,54 vez (IC95%=1,27-1,88) naqueles com 60 anos ou mais quando comparados à faixa etária mais jovem (18-29 anos). Indivíduos das Regiões Centro-Oeste, Sul e Norte apresentaram risco de acidentes 1,30 vez (IC95%=1,16-1,46), 1,45 vez (IC95%=1,35-1,55) e 1,27 vez (IC95%=1,09-1,49) maior quando comparados aos da Região Sudeste, respectivamente. Auxiliares de enfermagem e técnicos de enfermagem apresentaram risco de acidentes 3,70 vezes (IC95%=3,17-4,31) e 2,83 vezes (IC95%=2,46-3,25) maior quando comparados aos enfermeiros, respectivamente. Empregados com carteira assinada apresentaram risco de acidentes 1,44 vez (IC95%=1,22-1,70) maior quando comparados àqueles com outras situações empregatícias (Tabela 2).
Observou-se que o risco de acidentes foi 1,87 vez (IC95%=1,70-2,06) maior quando o material biológico envolvido era fluido com sangue e 1,37 vez (IC95%=1,28-2,52) maior em outros líquidos quando comparado a materiais envolvendo soro/sangue/plasma. Verificou-se que o risco de acidentes foi 2,49 vezes (IC95%=2,26-2,75) maior em exposições percutâneas e 0,35 vez (IC95%=0,31-0,40) menor em exposições à mucosa oral/ocular do que os acidentes sem esses tipos de exposições, respectivamente. O risco aumentou ainda quando o agente envolvido era lâmina/lanceta (RRA=8,40; IC95% de 7,55-9,34) e outros agentes (RRA=22,37; IC95%=20,50-24,41) quando comparados às agulhas/intracaths. Por fim, o risco foi 1,37 vez (IC95%=1,17-1,59) maior em indivíduos sem esquema completo de vacinação contra o VHB quando comparado àqueles vacinados (Tabela 2).
Discussão
Este estudo apresenta algumas limitações. Primeiro, ele utilizou dados secundários do Sinan, com diferentes níveis de completitude de informações. Muitas variáveis apresentaram missing data, sugerindo baixa qualidade na informação, o que pode subestimar as taxas de incidências e influenciar nas análises dos fatores de risco. Segundo, não afasta a possibilidade de preenchimento incorreto das fichas de notificação por parte dos profissionais notificadores, o que pode levar à presença de viés na informação dos acidentes. Terceiro, a ficha de notificação não apresenta variáveis importantes que poderiam auxiliar na compreensão da epidemiologia dos acidentes, como o local de ocorrência do acidente de trabalho com exposição a material biológico (por exemplo: dentro ou fora do Centro de Material e Esterilização, em unidades de Atenção Primária à Saúde), tipo de luva utilizado no momento do acidente, tipo de limpeza (manual ou automatizada) e momento de ocorrência do acidente (recepção, pré-limpeza, limpeza e secagem). Quarto, o grupo de comparação foi constituído de profissionais que se acidentaram em outras circunstâncias (por exemplo: punção venosa) ao invés de um grupo comparativo de profissionais que desenvolviam atividades semelhantes, mas que não acidentaram durante a etapa de limpeza. Assim, o uso desse grupo de comparação pode ter influenciado nos resultados dos fatores de risco.
Verificou-se que auxiliares e técnicos de enfermagem apresentaram maior risco de acidentes quando comparados aos enfermeiros. Esse resultado foi semelhante ao de outros estudos que avaliaram acidentes na unidade do Centro de Material e Esterilização e em outras unidades assistenciais.(14,15)Ainda, os auxiliares e técnicos de enfermagem são as categorias que mais se acidentam em outras unidades assistenciais.(7) Isso ocorre devido ao fato de esses profissionais desenvolverem mais frequentemente as atividades técnicas com maiores riscos de exposição a material biológico, como no caso do manuseio de objetos pontiagudos, cuidados com os pacientes com doenças infectocontagiosas e, mais recentemente, com a doença causada pelo coronavírus 2019 (Covid-19), entre outras.(1,16)
O Centro de Material e Esterilização se destaca em relação a qualquer outra unidade assistencial, por se tratar de um lugar insalubre e com exposição a Produtos Para Saúde contaminados que são frequentemente manuseados, o que confere alto risco, principalmente, no processo de limpeza, cujas atividades são desenvolvidas quase exclusivamente por auxiliares e técnicos de enfermagem.(14) Esse fato justifica a maior ocorrência de acidentes nessas categorias. Além do maior risco ocasionado pelas atividades desenvolvidas no nível técnico, há de se considerarem as jornadas de trabalho extenuantes, associadas a múltiplos vínculos, remanejamento frequente para composição das equipes, acúmulos de funções por insuficiência de recursos humanos que incorrem em maior desgaste profissional, queda de rendimento e redução de atenção ao trabalho, aumentando a probabilidade de acidentes de trabalho com exposição a material biológico.(17)Desse modo, ressalta-se a importância do enfoque das políticas de prevenção de acidentes nessa categoria profissional, visando à redução da ocorrência dos acidentes envolvendo material biológico.
Foi observado risco aumentado de acidentes de trabalho com exposição a material biológico em profissionais com o aumento da faixa etária quando comparados à faixa etária mais jovem, o que corrobora outros achados ocorridos em unidades assistenciais.(1,7) Alguns autores discutem que, apesar desse grupo, em geral, apresentar maior destreza e experiência em atividades, esses fatos não asseguram redução de acidentes de trabalho com exposição a material biológico, provavelmente devido à maior confiança, o que pode ter subestimado a adesão às Precauções Padrão e oferecido resistência à utilização de EPI,(17) sendo necessário, mais atenção a esse público durante a supervisão diária na realização do trabalho.
As lancetas e lâminas são, frequentemente, envolvidas em casos de acidentes, tendo sido relatadas porcentagens que chegam até 12,0% dos acidentes.(18,19)Neste estudo, entre os profissionais da equipe de enfermagem, foi observado aumento do risco de acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a etapa da limpeza de Produtos Para Saúde quando o contaminante envolvido era fluido com sangue, em exposições percutâneas e quando o instrumento envolvido eram lâminas/lancetas. Um estudo na unidade do Centro de Material e Esterilização identificou que 81,82% dos acidentes ocorreram durante a limpeza de Produtos Para Saúde, sendo que, destes, 90% referiram o sangue como agente contaminante.(20) É importante mencionar que acidentes ocorridos nessas circunstâncias são considerados graves, com grande risco de exposição e transmissão a diversos agentes infecciosos.(21)
Outros estudos também relataram o sangue como o mais presente nos acidentes ocorridos em diversos setores das unidades hospitalares,(22,23) sendo um dado preocupante a ocorrência de acidentes com lâminas/lancetas ou agulhas com lúmen no contexto do trabalho em Centro de Material e Esterilização, no momento da limpeza de Produtos Para Saúde, quando não seria esperada a presença de resíduos perfurocortantes. Tais acidentes representam falhas no gerenciamento de resíduos, especificamente em sua primeira fase, a segregação, e atingem profissionais que, pela lógica da atividade desempenhada, não mantêm contato direto com o paciente, mas manuseiam os resíduos oriundos dessa assistência, como, por exemplo, a equipe do Centro de Material e Esterilização. Verificaram-se, assim, neste estudo, a concretização das consequências do manejo inadequado de materiais perfurocortantes por profissionais e a segregação incorreta dos resíduos nos setores assistenciais, incorrendo diretamente em acidentes de trabalho com exposição a material biológico nos profissionais responsáveis pelos processos de limpeza no Centro de Material e Esterilização.(3,4)
Devido ao manuseio de Produtos Para Saúde contaminados com fluidos corporais, o uso de EPI e a automatização de métodos de limpeza tornam-se fundamentais. Os achados deste estudo mostram baixas frequências de uso de EPI no momento dos acidentes de trabalho, com exposição a material biológico na equipe de enfermagem. A frequência de registro em relação às luvas mostra que 6,7% dos profissionais não utilizavam luvas durante a limpeza de Produtos Para Saúde no momento dos acidentes de trabalho com exposição a material biológico. Tal dado é preocupante ao se considerar o potencial de contaminação da limpeza de Produtos Para Saúde. Sabe-se que, apesar de as luvas não impedirem a perfuração, funcionam como uma barreira mecânica que auxilia na redução da exposição aos patógenos, pois removem grande parte do fluido orgânico de uma agulha quando há perfuração.(24) Destaca-se, ainda, que o banco de dados não permite identificar o tipo de luvas utilizado, impedindo uma análise quanto ao atendimento à recomendação do uso de luvas grossas e cano longo.(3)
Também chamou a atenção o registro do uso de óculos de proteção e máscaras no momento acidentes de trabalho com exposição a material biológico, de 46,1% e 50,1%, respectivamente. Sabe-se que a geração de aerossóis é uma consequência da limpeza manual que é comum no Brasil.(14,25) A ficha do Sinan não identifica o sítio da mucosa exposta, mas, neste estudo, a exposição à mucosa representou 11,5% dos acidentes entre a equipe de enfermagem, fato também observado em outra investigação.(26)
Além disso, enfatiza-se a importância de uma política de educação permanente para os trabalhadores responsáveis pela limpeza de PSS, visando à segurança do processamento e, por conseguinte, do paciente, e também no sentido de fazer entender a importância da adesão aos EPI, visando à segurança do trabalhador. Sabe-se que profissionais despreparados e desmotivados para a realização da função muitas vezes incorrem em negligência do uso do EPI, e é maior a ocorrência de acidentes de trabalho com exposição a material biológico.(27) Assim, consideram-se imprescindíveis a implementação de políticas de monitoramento para o cumprimento da legislação vigente quanto à disponibilidade e ao uso dos EPI e a automatização dos métodos de limpeza no contexto do processamento de Produtos Para Saúde em todos os níveis da assistência. Sabe-se que a limpeza manual ainda deverá permanecer como prática em Centro de Material e Esterilização, mas estando limitada aos Produtos Para Saúde de conformação complexa,(28) o que terá, obviamente, com frequência muito menor.
Conclusão
A taxa de incidência média de acidentes de trabalho com exposição a material biológico durante a etapa da limpeza de Produtos Para Saúde em profissionais da equipe de enfermagem no Brasil foi de 115,0 casos a cada 100 mil profissionais de enfermagem, sendo maior em auxiliares e técnicos de enfermagem quando comparados aos enfermeiros. A análise de regressão mostrou mais risco de acidentes em mulheres, nas faixas etárias mais velhas e entre os servidores públicos. Os materiais perfurocortantes foram os mais envolvidos nos acidentes; o fluido com sangue foi o principal agente biológico, e as luvas foram o Equipamento de Proteção Individual mais frequente entre os trabalhadores no momento dos acidentes. Máscaras e óculos tiveram menores frequências de uso no momento da ocorrência dos acidentes.
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Editado por
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Editor Associado:
Alexandre Pazetto Balsanelli (https://orcid.org/0000-0003-3757-1061) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
19 Out 2023 -
Aceito
17 Jun 2024