RESUMO
Este artigo discute as reações sociais à proliferação de javalis europeus (Sus scrofa) no Pampa brasileiro como manifestações de transformações mais amplas no sistema agrário local, em curso desde a segunda metade do século XX. Por meio de uma crítica antropológica a noções contemporâneas como “ecoansiedade” e “transtorno de ansiedade ecológica”, o artigo busca demonstrar, a partir das percepções de criadores de animais em regime extensivo, como uma apreensão socialmente situada e não reducionista do que está em jogo nas ansiedades socioambientais, tal como enunciadas por sujeitos concretos em situações locais, pode ser obtida a partir da combinação entre abordagens etnográficas (sincrônicas) e históricas (diacrônicas).
PALAVRAS-CHAVES:
Ansiedades socioambientais; Invasão biológica; Javali; Pampa; Antropologia; História Ambiental
ABSTRACT
MThis article discusses the social reactions to the proliferation of European wild boars (Sus scrofa) in the Brazilian Pampa as manifestations of broader transformations in the local agrarian system ongoing since the second half of the 20th century. With an anthropological critique of contemporary notions such as “eco-anxiety” and “ecological anxiety disorder,” the article aims to demonstrate, from the perceptions of extensive livestock breeders, how a socially situated and non-reductionist apprehension of what is at stake in socio-environmental anxieties, as expressed by concrete subjects in local situations, can be obtained by a combination of ethnographic (synchronic) and historical (diachronic) approaches.
KEYWORDS:
Socioenvironmental anxieties; Biological invasion; Wild boar; Pampa; Anthropology; Environmental history
RESUMEN
Este artículo discute las reacciones sociales a la proliferación de jabalíes europeos (Sus scrofa) en la Pampa brasileña como manifestaciones de transformaciones más amplias en el sistema agrario local en curso desde la segunda mitad del siglo XX. Basándose en una crítica antropológica a las nociones contemporáneas como “ecoansiedad” y “trastorno de ansiedad ecológica”, este artículo busca demonstrar, desde las percepciones de ganaderos en régimen extensivo, cómo una aprehensión socialmente situada y no reduccionista de lo que está en juego en las ansiedades socioambientales, como expresan los sujetos en situaciones locales, puede lograrse mediante la combinación de enfoques etnográficos (sincrónicos) e históricos (diacrónicos).
PALABRAS CLAVE:
Ansiedades socioambientales; Invasión biológica; Jabalí; Pampa; Antropología; Historia Ambiental
INTRODUÇÃO
O modo com que espécies classificadas como “exóticas invasoras” são percebidas em diferentes contextos tem sido objeto de diversos estudos nas últimas décadas. Em grande parte, estes trabalhos têm enfatizado o enquadramento militarista da chamada “biologia das invasões” e suas ressonâncias simbólicas com o nacionalismo e a xenofobia (Comaroff; Comaroff, 2001COMAROFF, J.; COMAROFF, J. L. Naturing the nation: aliens, apocalypse and the Postcolonial State. Journal of South African Studies, New York, v. 27, n. 3, p. 627-651, 2001.; Larson, 2005LARSON, B. M. H. The war of the roses: demilitarizing Invasion Biology. Frontiers in Ecology and Environment, Hoboken, v. 3, n. 9, p. 495-500, 2005.; McNeely, 2011McNEELY, J. A. Xenophobia or conservation: some human dimensions of invasive alien species. In: ROTHERHAM, I. D.; LAMBERT, R. A. (ed.). Invasive and introduced plants and animals: human perceptions, attitudes and approaches to management. London: Earthscan, 2011. p. 19-38.; Fall, 2013FALL, J. J. Biosecurity and Ecology: beyond the nativism debate. In: DOBSON, K.; TAYLOR, S. L.; DOBSON, A. (ed.). Biosecurity: the socio-politics of invasive species and infectious diseases. London: Routledge , 2013. p. 167-182.). Outro conjunto de estudos, no entanto, tem procurado analisar as interações entre grupos humanos e esses organismos desde uma mirada não reducionista e pós-representacional, inspirados pela teoria ator-rede, a antropologia ecológica e a etnografia multiespécie (Helmreich; Kirksey; 2010HELMREICH, S. E.; KIRKSEY, E. The emergence of multispecies ethnography. Cultural Anthropology, Arlington, v. 25, n. 4, p. 545-576, 2010. ; Kirksey, 2015KIRKSEY, E. Emergent ecologies. Durham: Duke University Press, 2015.; Tsing, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília, DF: IEB; Mil Folhas, 2019. ). Já Lidström e colegas (2015LIDSTRÖM, S. et al. Invasive narratives and the inverse of slow violence: alien species in science and society. Environmental Humanities, Durham, v. 7, n. 1, p. 1-40, 2015.), apoiados no conceito de “violência lenta” desenvolvido por Nixon (2013NIXON, R. Slow violence and the environmentalism of the poor. Cambridge: Harvard University Press, 2013.), apontam como certas espécies invasoras têm servido como “bode expiatório” para processos de degradação socioambiental dos quais são, no mais das vezes, apenas suas manifestações mais superficiais e aparentes.
Em outras oportunidades já pude discutir, a partir dessa mesma chave analítica, como as reações sociais ao javali asselvajado europeu (Sus scrofa) no extremo sul do Brasil, especialmente entre atores sociais ligados à pecuária extensiva, têm sido moduladas por metáforas de criminalidade e outras articulações simbólicas relativas à constituição histórica do Pampa como fronteira política e pastoril (Sordi; Lewgoy, 2017SORDI, C.; LEWGOY, B. Javalis no Pampa: invasões biológicas, abigeato e transformações da paisagem na fronteira brasileiro-uruguaia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 23, n. 48, p. 75-98, 2017.; Sordi, 2020SORDI, C. Bicho bandido: wild boars, biological invasions and landscape transformations on the Brazilian-Uruguayan border (Pampas region). Social Anthropology/Anthropologie Sociale, New York, v. 28, n. 3, p. 614-628, 2020. ). Neste artigo, gostaria de examinar algumas ansiedades socioambientais mais amplas, manifestadas por meus interlocutores de pesquisa em suas percepções e atitudes face à presença dessa espécie nos campos do Sul. Por “ansiedades socioambientais”, compreendo um conjunto difuso de inquietações, compartilhadas por um grupo específico de sujeitos, a respeito das causas, consequências e desdobramentos futuros de processos de transformação do meio, percebidos como além do controle desses mesmos sujeitos, e que ameaçam, em maior ou menor medida, a reprodução de um modo de vida que lhes é familiar.
Inspirada em abordagens sociológicas clássicas sobre risco e crise ecológica (Beck, 2010BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.), essa concepção também deriva de uma crescente literatura no campo da saúde, que tem destacado o crescimento de formas de sofrimento psíquico e social decorrentes da crise ecológica global e do aumento das incertezas sociais contemporâneas (Albrecht et al., 2007ALBRECHT, G. et al. Solastalgia: the distress caused by environmental change. Australasian Psychiatry: Bulletin of Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists, Thousand Oaks, v. 15, n. 1, p. 95-98, 2007. Suplemento.; Robbins; Moore, 2013ROBBINS, P.; MOORE, S. A. Ecological Anxiety Disorder: diagnosing the Politics of the Anthropocene. Cultural Geographies, Thousand Oaks, v. 20, n. 1, p. 3-19, 2013.; Galway et al., 2019GALWAY, L. P. et al. Mapping the Solastalgia Literature: a scoping review study. International Journal of Environmental Research and Public Health , Basel, v. 16, n. 15, p. 2662, 2019.; Panu, 2020PANU, P. Anxiety and the ecological crisis: an analysis of eco-anxiety and climate anxiety. Sustainability, Basel, v. 12, n. 19, p. 7836, 2020.; Baudon; Jachens, 2021BAUDON, P.; JACHENS, L. A scoping review of interventions for the treatment of eco-anxiety. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 18, n. 18, p. 9636, 2021.; Coffey et al., 2021COFFEY, Y. et al. Understanding eco-anxiety: a systematic scoping review of current literature and identified knowledge gaps. The Journal of Climate Change and Health, Amsterdam, v. 3, p. 100047, 2021.) - sobretudo aquelas formas de sofrimento ligadas às mudanças climáticas e ao colapso das temporalidades histórica e geológica naquilo que tem sido chamado de Antropoceno (Crist, 2022CRIST, E. A pobreza da nossa nomenclatura. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante, 2022. p. 34-64.; Haraway, 2022HARAWAY, D. Ficar com o problema: Antropoceno, Capitaloceno, Chtulhuceno. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante , 2022. p. 66-126.; Moore, 2022MOORE, J. W. O surgimento da natureza barata. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante , 2022. p. 128-187.).
Apesar da grande importância destes diagnósticos na identificação de formas emergentes de sofrimento psíquico, entendo, por outro lado, que algumas destas abordagens podem incorrer no que a antropologia médica crítica classificou como “transformação profissional do sofrimento”. Ou seja, em uma rotulação externalista, mediante categorias clínicas excessivamente genéricas, que perigam trivializar a singularidade e o conteúdo próprio das experiências dos sujeitos tal como articuladas nas gramáticas de seus próprios mundos morais. Em suma, uma redução do que estaria concretamente em jogo (at stake) “para participantes particulares, em situações particulares” (Kleinman; Kleinman, 1995KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its profesional transformation: towards an ethnography of interpersonal experience. In: KLEINMAN, A. Writing at the margin: discourse between Anthropology and Medicine. Berkeley: University of California Press , 1995. p. 95-119.: 277).
Desta forma, para manter uma perspectiva experiencialmente próxima (experience-near) e, ao mesmo tempo, histórica e socialmente situada, daquilo que vinha a reboque das queixas de meus interlocutores contra a presença dos javalis, buscarei cotejar o conteúdo de suas ansiedades socioambientais com o registro histórico das mutações da paisagem pampeana nas últimas décadas. Mais precisamente, o amplo processo de conversão dos campos nativos do Sul do Brasil em uma paisagem cada vez mais avessa ao pastoreio e à pecuária extensiva, aqui pensados não apenas como um “sistema agrário” (Mazoyer; Roudart, 2010MAZOYER, M.; ROUDART, L. História das agriculturas no mundo: do Neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Unesp; Brasília, DF: Nead, 2010.) historicamente constituído a partir da sinergia entre rebanhos e campos nativos, mas um “mundo moral” (Das, 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007.) e um modo de vida específico que se veem ameaçados por forças fora do controle de seus sujeitos habituais.
O trabalho se baseia em quase uma década de pesquisa antropológica sobre o javali no Brasil. Entre 2014 e 2016, realizei trabalho de campo etnográfico na zona de fronteira brasileiro-uruguaia, onde estudei a reação de diferentes grupos da sociedade local à presença desses animais e pude acompanhar o início da estruturação da política de manejo da espécie no Brasil, cuja captura e abate por meios cinegéticos a recém haviam sido autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em janeiro de 2013 (Brasil, 2013BRASIL. Instrução Normativa nº 3, de 31 de janeiro de 2013. Autoriza o controle populacional do javali - Sus scrofa - em todo território nacional e dá outras providências. Brasília: Ministério do Meio Ambiente/Ibama, 2013.). Posteriormente, prossegui acompanhando esse universo e os desdobramentos da política de manejo do javali de forma mais distanciada e menos etnograficamente intensiva. Embora a pesquisa de campo tenha mapeado um amplo conjunto de atores sociais envolvidos com o javali na fronteira brasileiro-uruguaia e no Sul do Brasil (proprietários rurais, caçadores, autoridades ambientais e de saúde pública, veterinários, pesquisadores, agentes políticos etc.), as percepções e atitudes aqui enfocadas são aquelas manifestadas por um segmento específico da sociedade local. Qual seja, criadores de gado e ovelha situados no interior e nas imediações da Área de Proteção Ambiental (APA) do Ibirapuitã, unidade de conservação federal de uso sustentável localizada entre os municípios de Santana do Livramento, Alegrete, Rosário do Sul e Quaraí, no Rio Grande do Sul.
Seguindo a classificação proposta por Brito (2010BRITO, A. S. Entre o corredor e a estância: dinâmicas sociais e produtivas na APA do Ibirapuitã. 2010. Dissertação (Mestrado em Extensão Rural) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2010.) em sua análise das dinâmicas produtivas da região, os sujeitos aqui enfocados pertencem, predominantemente, aos segmentos “patronal típico” e “familiar de origem estancieira”. Ou seja, ocupantes de propriedades médias a grandes (100 a 2000 hectares), em sistemas de produção extensivos e de baixa capitalização. A formação histórica deste grupo social está vinculada aos processos de ocupação fundiária do Rio Grande do Sul como fronteira pecuária, sendo muito ligados ao ethos pastoril daí decorrente (Leal, 2021LEAL, O. F. Os gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2021.). De modo geral, trata-se de um grupo de prestígio e influência declinantes, em contraste com a emergência de formas mais intensivas e empresariais de produção agrícola (Da Ros, 2012DA ROS, C. A. Terra e poder no Rio Grande do Sul: as políticas agrárias durante o governo Olívio Dutra (1999-2002). Rio de Janeiro: Garamond, 2012.).
No contexto da pesquisa, esses sujeitos protagonizavam o drama social tecido em torno da presença dos javalis, cuja ação predatória sobre rebanhos era compreendida como ameaça ao seu modo de vida. Não obstante, apesar da inflamada retórica de “guerra ao javali” que sempre colocava a espécie no primeiro plano de suas ansiedades socioambientais, bem como o padrão histórico de relações agonísticas com predadores selvagens em zonas de fronteira pastoril (Knight, 2000KNIGHT, J. Natural enemies: people-wildlife conflicts in anthropological perspective. London: Routledge , 2000.; Freitas, 2021FREITAS, F. Hunters, rangers, cougars, and jaguars: human and nonhuman territories at the Argentine-Brazilian border, 1960s-1990s. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, n. 28, p. 59-79, 2021.), fui percebendo que, no fluxo dos diálogos mantidos com esses sujeitos, assim como na discussão pública entabulada pela imprensa regional e dramatizada em ocasiões como audiências públicas e eventos agropecuários, as conversas sobre javali logo derivavam para um discurso mais geral sobre as transformações vividas pelo ambiente pampeano em diferentes escalas temporais.
De acordo com Pillar e Vélez (2010PILAR, V. P.; VÉLEZ, E. Extinção dos campos sulinos em unidades de conservação: um fenômeno natural ou um problema ético? Natureza e Conservação , Goiânia, v. 8, n. 1, p. 84-86, 2010.), os campos sulinos, isto é, os ambientes campestres do Sul do Brasil formados não apenas pelo bioma Pampa, mas pelos campos de altitude associados à floresta ombrófila mista da Mata Atlântica,11 1 Os autores definem os campos sulinos como “ecossistemas típicos da região Sul do Brasil [que] se desenvolvem sob clima temperado e úmido, com chuvas bem distribuídas ao longo do ano” (Pillar; Vélez, 2010: 84). são ecossistemas bastante particulares, cuja dinâmica está historicamente associada à ocorrência de distúrbios naturais, como a herbivoria por animais pastadores e queimadas. Cruz e Guadagnin (2010CRUZ, R. C.; GUADAGNIN, D. L. Uma pequena história ambiental do Pampa: proposta de uma abordagem baseada na relação entre perturbação e mudança. In: COSTA, B. P.; QUOOS, J. H.; DICKEL, M. E. G. (org.). A sustentabilidade da Região da Campanha-RS: práticas e teorias a respeito das relações entre ambiente, sociedade, cultura e políticas públicas. Santa Maria: UFRGS, 2010. p. 154-178.), por sua vez, propõem uma periodização da história ambiental do Pampa atentando para a diferença de escala temporal em cada uma delas: (1) chegada das primeiras populações humanas e respostas adaptativas da biota, numa escala de milhares de anos; (2) a partir do século XVI, chegada dos europeus, seu gado, e formação da paisagem em sua configuração atual, numa escala de centenas de anos; (3) a partir do século XX, introdução da agricultura industrial, perda e fragmentação de habitats naturais, numa escala de dezenas de anos; e, por fim, (4) savanização do clima pela mudança climática e possível desaparecimento dos campos tal como conhecidos, também numa escala de dezenas de anos. Quanto a este último aspecto, os autores destacam que o aumento da temperatura global pode levar o Pampa a apresentar, no futuro, um perfil climático mais próximo dos ecossistemas de savana tropical. Ou seja, com um clima mais quente e chuvas mais sazonais do que ocorre hoje.
Nas conversas com meus interlocutores, as mudanças climáticas vinham poucas vezes à tona, embora muitos afirmassem que os ciclos sazonais estivessem cada vez mais imprevisíveis e as estiagens cada vez mais severas. Suas percepções da mudança, nesse sentido, pareciam muito mais voltadas aos efeitos e consequências do terceiro processo enumerado por Cruz e Guadagnin (2010CRUZ, R. C.; GUADAGNIN, D. L. Uma pequena história ambiental do Pampa: proposta de uma abordagem baseada na relação entre perturbação e mudança. In: COSTA, B. P.; QUOOS, J. H.; DICKEL, M. E. G. (org.). A sustentabilidade da Região da Campanha-RS: práticas e teorias a respeito das relações entre ambiente, sociedade, cultura e políticas públicas. Santa Maria: UFRGS, 2010. p. 154-178.). Ou seja, o que parecia estar prioritariamente em jogo era a substituição cada vez mais acelerada das tradicionais paisagens pastoris do Pampa pelos ambientes da agricultura mecanizada e da silvicultura, em curso a partir da segunda metade do século XX.
No que se segue, abordarei, inicialmente, a trajetória da introdução e da dispersão do javali no Pampa brasileiro, sobretudo dos anos 1990 até o presente. Em consonância com os argumentos de Lidström e colegas (2015LIDSTRÖM, S. et al. Invasive narratives and the inverse of slow violence: alien species in science and society. Environmental Humanities, Durham, v. 7, n. 1, p. 1-40, 2015.), procurarei mostrar como certos sentimentos de “aniquilamento do mundo conhecido” (Das, 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007.: 7) acionados em meus interlocutores pela presença dos javalis podem podem ser compreendidos como parte de um pacote de outros seres e existências incômodos promovido pela rápida transformação da paisagem pastoril em outro tipo de configuração agrária. Em seguida, apresentarei algumas perspectivas que têm sido propostas, contemporaneamente, na chave analítica das “ecoansiedades”, e argumentarei, a partir do caso examinado, por que entendo mais apropriado compreendê-las como ansiedades socioambientais. Por fim, defenderei a importância de se considerar as reações sociais a processos de invasão biológica, assim como outras formas de ansiedade socioambiental, como manifestações superficiais de tensões estruturais, possíveis de serem apreendidas a partir de um cruzamento entre abordagens etnográficas (sincrônicas) e históricas (diacrônicas).
O JAVALI COMO ESPÉCIE EXÓTICA INVASORA
O javali europeu tem sido listado há muitos anos entre as “100 piores espécies exóticas invasoras do mundo” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) (Lowe et al., 2004LOWE, S. et al. 100 of the World’s worst invasive alien species: a selection from the Global Invasive Species Database. Auckland: ISSG; IUCN, 2004.). Presente em todos os continentes do globo, exceto a Antártida, teve sua dispersão facilitada por sucessivas introduções ocorridas a reboque da colonização europeia. A expansão do javali é favorecida por sua notável valência ecológica, isto é, sua grande capacidade de adaptação a uma imensa gama de ambientes diferentes (Barrios-García; Ballari, 2012BARRIOS-GARCÍA, M. N.; BALLARI, S. A. Impact of wild boar (Sus scrofa) in its introduced and native range: a review. Biological Invasions, New York, v. 14, n. 4, p. 2283-2300, 2012.). Além disso, javalis e porcos domésticos são variedades distintas de uma mesma espécie e, portanto, intercruzáveis. Assim sendo, a presença de populações suínas de vida livre ou semiconfinada, bem como os cruzamentos humanamente induzidos entre javalis e porcos domésticos, tem favorecido a proliferação de javalis e os episódios de feralização, isto é, a deriva comportamental e ecológica de populações domésticas ao modo de vida selvagem.2 2 Em verdade, diversos sistemas tradicionais de criação suína ao redor do globo são pautados pela circulação constante destes animais entre momentos de maior ou menor controle humano, vida livre e vida confinada, doméstica e silvestre.
No Brasil, há registro de populações ferais de suínos desde o período colonial. Em sua Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821), por exemplo, o naturalista francês Auguste de Saint-Hillaire (2002SAINT-HILLAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília, DF: Senado Federal, 2002.: 225) relata a existência de “porcos domésticos que escaparam para os campos e aí se reproduzem prodigiosamente”. Já no Pantanal, acredita-se que a variedade asselvajada de Sus scrofa localmente referida como “porco monteiro” tenha sua origem nos movimentos demográficos e nas destruições ambientais causados pela Guerra do Paraguai (Desbiez et al., 2011DESBIEZ, A. L. J. et al. Invasive species and bushmeat hunting contributing to wildlife conservation: the case of feral pigs in a Neotropical wetland. Oryx, Cambridge, v. 45, n. 1, p. 78-83, 2011.). De todo modo, Pedrosa et al. (2015PEDROSA, F. et al. Current distribution of invasive feral pigs in Brazil: economic impacts and ecological uncertainty. Natureza e Conservação , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 84-87, 2015.), em uma tentativa de sistematização histórica, identificaram três grandes momentos de dispersão da espécie em território nacional: uma primeira onda, relativa aos episódios dispersos e pioneiros de feralização ocorridos até o século XIX; uma segunda onda, em finais dos anos 1980, centrada na fronteira com o Uruguai; e, por fim, uma terceira onda, entre os anos 1990 e 2000, disparada pela importação de javalis europeus e canadenses para produção de carne e cruzamentos com porcos domésticos em vários estados do Sul e Sudeste. Segundo os autores, somente com esta terceira onda, derivada de solturas ilegais e da falência dos empreendimentos destinados à produção de carne de javali, a proliferação suína teria ganhado escala verdadeiramente “continental”, conduzindo à presente situação de invasão biológica no país.
Em 2013, o Ibama passou a permitir a captura e o abate de javalis para fins de controle populacional por meio da Instrução Normativa nº 3/2013 (Brasil, 2013BRASIL. Instrução Normativa nº 3, de 31 de janeiro de 2013. Autoriza o controle populacional do javali - Sus scrofa - em todo território nacional e dá outras providências. Brasília: Ministério do Meio Ambiente/Ibama, 2013.). Essa medida converteu o javali no único animal silvestre de grande porte cujo abate é permitido no Brasil, o que acabou por engendrar certo renascimento da caça desportiva no país e um sem número de controvérsias envolvendo a delimitação de responsabilidades e competências entre caçadores (oficialmente, “controladores de fauna exótica”) e órgãos do Estado (Sordi, 2020SORDI, C. Bicho bandido: wild boars, biological invasions and landscape transformations on the Brazilian-Uruguayan border (Pampas region). Social Anthropology/Anthropologie Sociale, New York, v. 28, n. 3, p. 614-628, 2020. ). Em 2019, atendendo a demandas de agentes envolvidos no crescente circuito de manejo da espécie, o Ministério do Meio Ambiente, por meio do Ibama, reformulou alguns pontos da IN nº 3/2013, como a regulamentação do uso de cães de caça e as formas de registro oficial das peças abatidas (Brasil, 2019BRASIL. Instrução Normativa nº 12, de 25 de março de 2019. Brasília: Ministério do Meio Ambiente/Ibama , 2019.).
Quando estive em campo na fronteira brasileiro-uruguaia, entre 2014 e 2016, esse movimento ainda era bastante incipiente. Em uma audiência pública que acompanhei a respeito da “praga do javali” na Câmara de Vereadores de Santana do Livramento, em maio de 2014, as alegações de predação de cordeiros trazidas pelos criadores pareciam gerar, inclusive, certa incredulidade. Representantes da inspetoria veterinária local, por exemplo, desconfiavam se tratar de uma escusa para outros problemas mais conhecidos na região, como doenças parasitárias, mau manejo e abigeato.
Com efeito, os primeiros registros de javalis na linha fronteiriça do Rio Grande do Sul remontam aos anos 1980 (Deberdt; Scherer, 2007DEBERDT, A. J.; SCHERER, S. O javali asselvajado: ocorrência e manejo da espécie no Brasil. Natureza e Conservação, Goiânia, v. 5, n. 2, p. 31-44, 2007.). No entanto, de acordo com o gestor da APA do Ibirapuitã, engenheiro agrônomo Raul Coelho, os avistamentos na unidade de conservação e seus arredores só teriam se tornado mais frequentes a partir de 2011, assim como os relatos de ataques a cordeiros e lavouras nas propriedades da região. Ainda segundo o gestor, a expansão dos javalis parecia se dar em um movimento sul-norte desde a linha fronteiriça, o que acreditava estar relacionado ao processo de expansão de monocultivos florestais (eucalipto e pínus) no país vizinho (Coelho, 2014COELHO, R. C. P. Entrevista [6 de maio de 2014]. Entrevistador: Autor. Santana do Livramento, 2014.). Retornarei a esse ponto mais adiante.
A presença do javali no Uruguai é bem mais antiga que no Brasil, assim como a autorização da sua caça para fins de controle populacional. Em 1905, o aristocrata de origem argentina Aarón Anchorena (1877-1965) adquiriu uma propriedade no Departamento de Colonia e converteu-a em uma estação experimental de aclimatações. Com auxílio do paisagista alemão Hermann Bötrich, Anchorena construiu um parque em estilo inglês e plantou mais de duzentas espécies vegetais oriundas de todo o planeta. Entusiasta da caça desportiva, também introduziu, nos anos 1920, diversos animais exóticos em sua propriedade, como o javali europeu, importado do Cáucaso, e o cervo axis (Axis axis), oriundo da Índia. Conforme Lombardi, Geymonat e Berrini (2015LOMBARDI, R.; GEYMONAT, G.; BERRINI, R. El jabalí en Uruguay: problema, desafío y oportunidad. Montevideo: Forestal Atlántico Sur; Weyerhauser, 2015.), os animais introduzidos por Anchorena em sua estância teriam se feralizado e, posteriormente, dado início ao processo de dispersão da espécie no Uruguai.
O controle cinegético do javali tem vigorado no Uruguai de forma contínua desde 1996, ano em que foi declarado “espécie de livre caça” após ter sido instituído como “praga nacional”, em 1982. Desde então, tem havido certa exploração, inclusive turística, da atividade, com a organização de competições vinculadas a festivais folclóricos, como a Fiesta del jabalí, na municipalidade de Aiguá (Cutinella; Dabezies, 2020CUTINELLA, A. C.; DABEZIES, J. M. Identity and community in the feast of wild boar in Aiguá. Tekoporá, Montevideo, v. 2, n. 2, p. 60-75, 2020.). Em algum momento dos anos 1980, acredita-se que os descendentes destes animais tenham cruzado a fronteira com o Brasil na altura do Rio Jaguarão, espontaneamente ou facilitados pela ação humana, disparando o processo no Rio Grande do Sul (Deberdt; Scherer, 2007DEBERDT, A. J.; SCHERER, S. O javali asselvajado: ocorrência e manejo da espécie no Brasil. Natureza e Conservação, Goiânia, v. 5, n. 2, p. 31-44, 2007.).
Durante o trabalho de campo, observei um intenso intercâmbio de percepções, atitudes e estratégias entre agentes brasileiros e uruguaios a respeito do javali. Esse intercâmbio se dava de maneira tanto formal quanto informal, ou seja, envolvendo projetos de cooperação entre órgãos governamentais e instituições de ambos os países, mas também no plano dos discursos e práticas cotidianas, haja vista a intensa circulação social existente naquele trecho da linha divisória (Dorfman, 2007DORFMAN, A. Fronteira e contrabando em Santana do Livramento (BR)-Rivera (UY). Boletim Gaúcho de Geografia, Porto Alegre, n. 32, p. 75-92, 2007.). Os criadores de ovinos, em especial, eram percebidos como parte um mesmo grupo de “vítimas preferenciais” dos javalis, em ambos os lados da fronteira. Na conversação local, a “perda de cordeiros na boca desses porcos”, como ouvi certa vez, dava margem a um grande número de analogias e menções - algumas vezes jocosas, outras mais circunspectas - entre a predação de cordeiros, de um lado, o roubo de gado e o contrabando, de outro. Por este motivo, passei a dirigir minha atenção a esse grupo de interlocutores e suas impressões, de modo a compreender que processos mais abrangentes poderiam estar em jogo nas reações locais ao animal.
PERCEPÇÃO APOCALÍPTICA E CRIADORES ENCURRALADOS
Ao analisar as percepções de caçadores e camponeses sobre as transformações ambientais na Córsega, Dalla Bernardina (2009DALLA BERNARDINA, S. Le gibier du apocalypse : chasse et théorie du complot. Ethnologie Française, Paris, v. 39, n. 1, p. 89-99, 2009.) destacou a existência de uma “percepção apocalíptica do mundo”. Esta seria marcada pela interpretação de indícios, aparentemente desconexos (na paisagem, no clima, no comportamento dos animais etc.), de um mesmo processo de transformação fora de controle, causado por agências opacas ou de responsabilização incerta. Entendo que algo similar pode ser identificado nas ansiedades externalizadas por meus interlocutores em suas experiências com os javalis. Em especial, o modo com que a predação de ovinos era interpretada como mais um indício do declínio de um modo de vida específico, em sinergia com outros processos mais lentos de transformação da paisagem pampeana. De um criador da zona conhecida como Serra do Caverá, no município de Rosário do Sul, registrei o seguinte depoimento:
Daqui a cem anos, toda essa reserva [APA do Ibirapuitã] não vai ter mais criação de ovinos e nem de bovinos. Ela vai ser só mato, e só javali. As áreas pastoris tão diminuindo a cada dez anos cerca de 10%. Então, eu te diria o seguinte: o meu neto não vai sobreviver de lá [propriedade da família]. Pode ser que a minha filha sobreviva. Mas meu neto, só de árvores, não vai sobreviver (Transcrição de entrevista, 2015).
De outro pecuarista, situado na região de Cerros Verdes, em Santana do Livramento, ouvi o seguinte rumor, bastante afim ao tom de complô que relata Dalla Bernardina (2019DALLA BERNARDINA, S. Le gibier du apocalypse : chasse et théorie du complot. Ethnologie Française, Paris, v. 39, n. 1, p. 89-99, 2009.) sobre os arrazoados apocalípticos identificados na Córsega:
Tchê, eu tenho um amigo que estudou nos Estados Unidos e ele me disse o seguinte. Talvez tu não tenha nunca ouvido isso aí. Mas o cara é uma pessoa, assim, de alta cultura, ele teve estudando na Europa, estudou nos Estados Unidos, e me disse o seguinte: os americanos têm um levantamento, que diz que, no Rio Grande do Sul, nas próximas décadas, fica só reflorestamento, leite e soja. Pecuária de corte? Isso termina. Ele já me disse isso há uns 14 anos atrás, e eu acho que nós estamos realmente indo por este caminho. A pecuária tá encolhendo cada vez mais. Tá ficando em áreas marginais, em áreas de campo mais barato, tá entrando o reflorestamento, tá entrando a soja, principalmente a soja, e o gado de leite (Transcrição de entrevista, 2015).
Nestas e outras falas similares coletadas em campo, o impacto do javali era sempre associado, de uma forma ou outra, com a presença de outros entes introduzidos na região, que vinham reduzindo, ano após ano, as áreas disponíveis para a criação de rebanhos. Nem todos os criadores estabeleciam relações causais explícitas entre a expansão dos javalis e a dessas espécies. Mas na fala de quase todos, javalis, lavouras, florestamentos industriais e gramíneas invasoras faziam parte de um mesmo quadro referencial dos fatores que, a longo prazo, pareciam contribuir para o esgotamento das pastagens disponíveis e o inexorável declínio da pecuária em campos nativos. A planta Eragrostis plana Nees, conhecida no Rio Grande do Sul como capim-annoni, protagonizava boa parte dessas associações discursivas com o javali.
Com efeito, há uma longa trajetória de perturbações ambientais no Pampa decorrente da associação entre as espécies de ruminantes introduzidos pelos colonizadores, especialmente o gado bovino, e plantas exóticas invasoras. Em Imperialismo ecológico, Crosby (2010CROSBY, A. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) chama atenção às anotações de Charles Darwin e outros viajantes do século XIX sobre a profusão de ervas eurasianas nas pradarias sul-americanas. Introduzido no Brasil em meados dos anos 1950, junto a um lote de capim de Rhodes (Chloris gayana Kunth) importado da África do Sul, o annoni ganhou este nome em alusão ao latifundiário Ernesto José Annoni, responsável por sua difusão entre pecuaristas do Rio Grande do Sul. Na década de 1960, a partir da identificação de mudas da planta em sua propriedade, no município de Sarandi, Annoni passou a comercializá-la como “uma forrageira excelente e revolucionária”, de massa verde abundante e boa tolerância à intempérie (Reis, 1993REIS, J. C. L. Capim-annoni-2: origem, morfologia, características, disseminação. In: MACEDO, W. (org.). Reunião Regional de Avaliação da Pesquisa com Annoni 2. Bagé: Embrapa, 1993. p. 5-21.: 7).
Com o tempo, no entanto, a gramínea se demonstrou impalatável para a maior parte dos ruminantes e com baixo valor nutritivo, além de uma terrível competidora para a vegetação campestre nativa. Atualmente, considera-se o annoni como a espécie invasora de mais difícil controle nos campos sulinos, cobrindo cerca de um quinto dos campos nativos no Rio Grande do Sul (Medeiros; Focht, 2007MEDEIROS, R. B.; FOCHT, T. Invasão, prevenção, controle e utilização do capim-annoni-2 (Eragrostis plana Nees) no Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisa Agropecuária Gaúcha, Porto Alegre, v. 13, n. 1-2, p. 105-114, 2007.). Deste modo, assim como os javalis devoravam os cordeiros, o annoni devorava as pastagens nativas utilizadas por estes, compondo uma sinistra conjunção de figura, e fundo, animal e vegetal.
A associação do javali com os monocultivos florestais, por sua vez, ligava-se à percepção de sua veloz expansão no território uruguaio, conectado à zona da APA do Ibirapuitã por centenas de quilômetros de fronteira seca. Com efeito, para Bacchetta (2009BACCHETTA, V. L. A fraude da celulose. Porto Alegre: Dacasa, 2009.), a expansão da silvicultura no Uruguai tem sido percebida pelos habitantes da região norte do país como um dos fatores propiciadores da expansão de javalis. Conforme este autor, em seu processo inicial de proliferação, as populações de suínos asselvajados costumavam se abrigar nas matas ciliares dos rios e arroios que cortam as pradarias pampeanas. No contexto presente, entretanto, as grandes massas florestais implantadas pela silvicultura teriam oferecido aos javalis novas e melhores oportunidades de abrigo, promovendo seu crescimento populacional. De modo geral, entre os criadores do norte uruguaio, vigoraria uma sensação de encurralamento com relação às florestas de pínus e eucalipto, bem como de estar ocorrendo, “sem aviso prévio, a substituição acelerada de uma cultura produtiva por outra” (Bacchetta, 2009BACCHETTA, V. L. A fraude da celulose. Porto Alegre: Dacasa, 2009.: 61), um sentimento compartilhado por alguns de meus interlocutores.
Já quanto aos monocultivos agrícolas, as associações com o javali se entrecruzavam com tensões relativas às diferenças entre gaúchos e gringos. Nesse sentido, cabe registrar que a zona da APA do Ibirapuitã, além de próxima a uma fronteira nacional, também está situada em um limite entre dois domínios geomorfológicos, que, por sua vez, traduz-se em dois sistemas agrários distintos. À oeste, situa-se a área localmente referida como basalto, onde predomina uma cobertura de campos limpos sobre solos rasos, de difícil penetração agrícola. À leste, localizam-se os territórios conhecidos como areias, cuja composição dos solos é sedimentar e arenosa, com uma cobertura de gramíneas associada à mata de galeria ao longo dos rios e cursos d’água (Suertegaray; Fujimoto, 2012SUERTEGARAY, D. M. A.; FUJIMOTO, N. S. V. M. Morfogênese do relevo do estado do Rio Grande do Sul. In: VERDUM, R.; BASSO, L. A.; SUERTEGARAY, D. M. A. (org.). Rio Grande do Sul: paisagens e territórios em transformação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. p. 11-26.). Devido a essas condições naturais, a maior parte das criações de gado e ovelha remanescentes na região, assim como algumas das áreas mais bem preservadas de campos nativos no Rio Grande do Sul, tem se concentrado na zona do basalto.
A zona das areias, por sua vez, tem assistido, desde os anos 1970, a um profundo processo de conversão de pastagens naturais em lavouras mecanizadas de soja e arroz. Em grande parte, comandadas por empresários rurais e arrendatários oriundos das regiões de colonização europeia (italianos, sobretudo) do Norte e Noroeste do estado (gringos). Como já discuti em outro lugar (Sordi, 2022SORDI, C. A ovelha e o basalto: uma geofilosofia da resistência do campo nativo na Pampa brasileiro-uruguaia. Revista Ensambles, Los Polvorines, v. 9, n. 16, p. 31-45, 2022. ), a lavoura é percebida por muitos fronteiriços como uma atividade que acontece em um ritmo mais acelerado que o pastoreio, em ressonância com o espírito empresarial dos gringos. Essa avaliação decorre não apenas do tempo mais rápido de desenvolvimento dos grãos em contraste com o ritmo de cria, recria e engorda dos animais, mas de uma percepção relativa à velocidade com que os próprios fluxos de capital (empréstimos, financiamentos) informam um e outro sistema produtivo.3 3 Sobre os diferentes ritmos da pecuária e da agricultura no Pampa uruguaio, ver Álvarez (2011).
A temporalidade distinta entre lavoura e pecuária também parecia informar a reações de ambos os grupos aos javalis. Segundo o gestor da APA do Ibirapuitã, os lavoureiros teriam desenvolvido uma reação mais rápida de combate ao animal. Em suas palavras, “gringo não espera. Compra arma, contrata caçador, monta posto de tiro. O pessoal da pecuária foi um pouco mais devagar com isso” (Transcrição de entrevista, 2014). Da mesma forma, muitos interlocutores destacavam a própria identificação cultural e familiaridade dos ítalo-gaúchos com o universo da caça como uma das razões pelas quais o manejo da espécie lhes seria uma atividade mais “natural” para esses agentes. Embora as atividades cinegéticas sempre tenham feito parte da taskscape (Ingold, 2000INGOLD, T. The perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. London: Routledge , 2000.) da pecuária pampeana, muitos criadores de ovelha se diziam iletrados e dependentes de terceiros para o combate ao animal, amplificando sua sensação de impotência e perda de controle sobre a situação. Como me afirmou um deles, “eu não tenho arma, não tenho cachorro, nem tenho tempo pra ficar resolvendo este problema de javali” (Transcrição de entrevista, 2014).
DA ECOANSIEDADE ÀS ANSIEDADES SOCIOAMBIENTAIS
Em tempos recentes, a ocorrência simultânea de múltiplas crises econômicas, políticas, humanitárias, sanitárias e ambientais tem acentuado o grau de incerteza social e as percepções de risco inerentes ao processo de modernização (Beck, 2010BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.). A partir de 2020, os distúrbios produzidos pela pandemia de Covid-19 tornaram evidentes as fragilidades das infraestruturas globais a eventos disruptivos e visibilizaram ainda mais a distribuição diferencial do risco e da vulnerabilidade social entre diferentes estratos da população (Matta et al., 2021MATTA, G. C. et al. (org.). Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19; Fiocruz, 2021.). A ocorrência cada vez mais frequente e imprevisível de eventos naturais extremos em diferentes pontos do planeta tem agudizado as preocupações de leigos e especialistas com os efeitos das mudanças climáticas, ao tornarem mais tangíveis e imediatas algumas predições até então articuladas a mais longo prazo.4 4 A lógica algorítmica das redes sociais, por sua vez, intensifica o colapso de contextos entre vozes autorizadas e alternativas a respeito de todas essas crises, catalisando a incerteza social e a cacofonia política a seu respeito (Cesarino, 2021).
Deste modo, enquanto o idioma da modernização ecológica se reorienta da gramática da sustentabilidade para a da resiliência e da preparação (Nadasdy, 2007NADASDY, P. Adaptative co-management and the gospel of resilience. In: BERKES, F.; ARMITAGE, D.; DOUBLEDAY, N. (ed.). Adaptative co-management: collaboration, learning and multi-level governance. Seattle: University of Washington Press, 2007. p. 208-227.; Hornborg, 2009HORNBORG, A. Zero-sum world: challenges in conceptualizing environmental load displacement and ecologically unequal exchange in the world-system. International Journal of Comparative Sociology, Thousand Oaks, v. 50, n. 3-4, p. 237-262, 2009.; Druschke et al., 2016DRUSCHKE, C. G.; MEYERSON, L. A.; HYCHKA, K. From restoration to adaptation: the changing discourse of invasive species management in coastal New England under global environmental change. Biological Invasions , New York, v. 18, n. 3, p. 2739-2747, 2016.; Moore, 2022MOORE, J. W. O surgimento da natureza barata. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante , 2022. p. 128-187.), narrativas distópicas se disseminam no tecido social, entre o catastrofismo e a resignação (Danowski; Viveiros de Castro, 2014DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014.). Nas Humanidades e nas Ciências Sociais, esse conjunto de preocupações tem sido articulado por meio do conceito de Antropoceno. Proposto inicialmente no campo da datação geológica (Crutzen; Stoermer, 2000CRUTZEN, P. J.; STOERMER, E. F. The ‘Anthropocene’. IGBP Global Change Newsletter, Stockholm, n. 41, p. 17-18, 2000.), o conceito tem sido empregado por distintos autores da Filosofia e das Ciências Sociais como uma espécie de “espírito do tempo” da crise civilizacional contemporânea, assim como uma ferramenta analítica para o tensionamento dos grandes divisores ontológicos modernos, como natureza e cultura, ambiente e sociedade (Crist, 2022CRIST, E. A pobreza da nossa nomenclatura. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante, 2022. p. 34-64.; Haraway, 2022HARAWAY, D. Ficar com o problema: Antropoceno, Capitaloceno, Chtulhuceno. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante , 2022. p. 66-126.; Moore, 2022MOORE, J. W. O surgimento da natureza barata. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante , 2022. p. 128-187.).
Em 2006, o filósofo australiano Glenn Albrecht desenvolveu o conceito de “solastalgia” para se referir o sentimento melancólico de impotência, individual ou social, acarretado por mudanças socioambientais de difícil identificação ou para além do controle dos sujeitos afetados (Albrecht et al., 2007ALBRECHT, G. et al. Solastalgia: the distress caused by environmental change. Australasian Psychiatry: Bulletin of Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists, Thousand Oaks, v. 15, n. 1, p. 95-98, 2007. Suplemento.). Desde então, o conceito tem se disseminado na literatura sobre saúde mental de indivíduos e populações (Galway et al., 2019GALWAY, L. P. et al. Mapping the Solastalgia Literature: a scoping review study. International Journal of Environmental Research and Public Health , Basel, v. 16, n. 15, p. 2662, 2019.). A este conceito, se unem outras categorias desenvolvidas e discutidos no campo da saúde mental, como “ecoansiedade” (Panu, 2020PANU, P. Anxiety and the ecological crisis: an analysis of eco-anxiety and climate anxiety. Sustainability, Basel, v. 12, n. 19, p. 7836, 2020.; Baudon; Jaffens, 2021BAUDON, P.; JACHENS, L. A scoping review of interventions for the treatment of eco-anxiety. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 18, n. 18, p. 9636, 2021.; Coffey et al., 2021COFFEY, Y. et al. Understanding eco-anxiety: a systematic scoping review of current literature and identified knowledge gaps. The Journal of Climate Change and Health, Amsterdam, v. 3, p. 100047, 2021.) e “transtorno de ansiedade ecológica” (Robbins; Moore, 2007ROBBINS, P.; MOORE, S. A. Ecological Anxiety Disorder: diagnosing the Politics of the Anthropocene. Cultural Geographies, Thousand Oaks, v. 20, n. 1, p. 3-19, 2013.).
Em sua revisão sistemática de literatura, Coffey e demais autores (2021COFFEY, Y. et al. Understanding eco-anxiety: a systematic scoping review of current literature and identified knowledge gaps. The Journal of Climate Change and Health, Amsterdam, v. 3, p. 100047, 2021.) identificaram ao menos 22 operacionalizações distintas do conceito de “ecoansiedade” em nove trabalhos tomados como referência na área. De modo geral, os autores apontam uma série de inconsistências nessas definições, como uma falta de clareza na distinção entre ansiedades climáticas, isto é, explicitamente associadas ao processo de aquecimento global, e ecológicas em um sentido mais abrangente, ou seja, vinculadas a processos localmente situados de degradação de ambientes naturais, como no conceito de solastalgia. Da mesma maneira, Coffey e seus colegas (2021COFFEY, Y. et al. Understanding eco-anxiety: a systematic scoping review of current literature and identified knowledge gaps. The Journal of Climate Change and Health, Amsterdam, v. 3, p. 100047, 2021.) também ressaltam a proeminência de estudos sobre ecoansiedade em países do Norte global, donde parte a necessidade da ampliação da discussão para contextos não hegemônicos.
Para além dessas inconsistências, entendo ser necessário ampliar a compreensão dessas ansiedades como formas de sofrimento irredutivelmente sociais. Isto é, impossíveis de serem dissociadas de formas cultural e historicamente situadas de modulação e expressão das emoções. Ou, nos termos de Kleinman e Kleinman (1995KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its profesional transformation: towards an ethnography of interpersonal experience. In: KLEINMAN, A. Writing at the margin: discourse between Anthropology and Medicine. Berkeley: University of California Press , 1995. p. 95-119.), modos locais de percepção e enunciação daquilo que está em jogo nas situações estressoras, aflitivas e traumáticas vivenciadas socialmente. Conforme Victora (2011VICTORA, C. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da Antropologia. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 5, n. 4, p. 3-13, 2011: 3), o ponto fundamental no debate sobre sofrimento social é que
o adoecimento não está necessariamente relacionado às patologias genéricas universais que acometem indivíduos, os quais podem vivê-las diferentemente em diferentes tempos e sociedades. Trata-se, isso sim, de mostrar que diferentes tempos e sociedades produzem certos tipos de sofrimento, que são experimentados no corpo, ou seja, corporificados, na medida em que o corpo é o lócus de produção e atualização constante dos sentidos.
Com efeito, grupos historicamente marginalizados têm denunciado as iniquidades socioambientais de que são objetos em termos próximos a seus universos morais. Muitas vezes, para tensionar o discurso do ambientalismo hegemônico, centrado na responsabilização de um Anthropos genérico pelas mudanças climáticas (Ferdinand, 2022FERDINAND, M. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu , 2022.; Moore, 2022MOORE, J. W. O surgimento da natureza barata. In: MOORE, J. W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Elefante , 2022. p. 128-187.). Há de se pensar, portanto, se categorias como “ecoansiedade”, ou “transtorno de ansiedade ecológica”, conseguem dar conta de formas locais de sofrimento socioambiental e das demandas por reconhecimento e justiça delas decorrentes, em seus próprios termos e articulações.
Nesse sentido, a crítica que proponho à noção de “ecoansiedade” se aproxima daquela movida pela antropologia médica a noções como “estresse pós-traumático”, como uma modalidade de “transformação profissional do sofrimento” (Kleinman; Kleinman, 1995KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its profesional transformation: towards an ethnography of interpersonal experience. In: KLEINMAN, A. Writing at the margin: discourse between Anthropology and Medicine. Berkeley: University of California Press , 1995. p. 95-119.). Ou seja, uma trivialização do sofrimento dos sujeitos a partir de categorias abstratas e o esvaziamento de suas articulações experienciais e sociais. Para Kleinman e Kleinman (1995KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its profesional transformation: towards an ethnography of interpersonal experience. In: KLEINMAN, A. Writing at the margin: discourse between Anthropology and Medicine. Berkeley: University of California Press , 1995. p. 95-119.), uma etnografia que se mantenha fiel à dimensão experiencialmente próxima (experience-near) dos sujeitos deve procurar identificar o que está em jogo (at stake) para sujeitos particulares, em situações particulares, em termos e concepções locais.
Assim sendo, entendo que a expressão “ansiedades socioambientais” oferece uma ferramenta analítica mais produtiva para se compreender o sofrimento social e as inquietações compartilhadas decorrentes de transformações ambientais que “ecoansiedade”, “transtorno de ansiedade ecológica” e outras categorias do tipo. Em primeiro lugar, porque, enunciada no plural, ela implica o reconhecimento de experiências múltiplas e diversas, nem sempre redutíveis ao mesmo conjunto protocolar de “sintomas”. Em segundo, por enfatizar a conjunção não hifenizada “socioambiental”, empregada contemporaneamente pela ecologia política para sinalizar a indissociabilidade entre questões ambientais e sociopolíticas. Por fim, entendo que a manutenção do termo “ansiedades” no sintagma é relevante, apesar de suas possíveis conotações medicalizadas.
Isto porque, para além de formas específicas de sofrimento calcadas em uma determinada situação presente - ou presentificada, como no caso da intromissão dos eventos traumáticos na vida cotidiana (Das, 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007.) -, as ansiedades socioambientais possuem um inexorável caráter projetivo. Isto é, estão direcionadas ao futuro como domínio temporal cada vez mais incerto. Recentemente, diversos trabalhos têm apontado uma mudança na articulação temporal das formas de segurança coletiva, ou seja, uma mudança do paradigma da prevenção para o da preparação (Collier; Lakoff; Rabinow, 2004COLLIER, S.; LAKOFF, A.; RABINOW, P. Biosecurity: towards an anthropology of the contemporary. Anthropology Today, Blackwell, v. 20, n. 5, p. 3-7, 2004.; Braun, 2013BRAUN, B. Power over life: biosecurity as biopolitics. In: DOBSON, K.; TAYLOR, S. L.; DOBSON, A. (ed.). Biosecurity: the socio-politics of invasive species and infectious diseases. London: Routledge, 2013. p. 45-58.; Fortané; Keck, 2015FORTANÉ, N.; KECK, F. How biosecurity reframes animal surveillance. Revue d’Anthropologie des Connaissances, Paris, v. 9, n. 2, 2015.). Nesta nova articulação, a preocupação se desloca de eventos de ocorrência regular e previsível - o caráter sazonal de algumas doenças infecciosas, por exemplo - para a irrupção cada vez mais frequente de eventos catastróficos ou disruptivos de difícil predição, como a emergência de patógenos desconhecidos, ataques terroristas, eventos climáticos extremos, entre outros.
Todavia, a institucionalização dessas novas formas de segurança coletiva, calcadas em uma economia política do evento disruptivo, se faz acompanhada de uma permanência do que Nixon (2013NIXON, R. Slow violence and the environmentalism of the poor. Cambridge: Harvard University Press, 2013.) classificou de “violência lenta” (slow violence) inerente ao “ambientalismo dos pobres”. Ou seja, processos de degradação e injustiça socioambiental de temporalidade mais longa que, justamente por ocorrerem nas periferias do sistema-mundo e acometerem populações historicamente marginalizadas, acabam tendo expressão mais discreta na esfera pública e nas agendas oficiais do que as grandes catástrofes. Incluem-se aí as contaminações dos solos e das águas, os efeitos duradouros do uso de agrotóxicos na saúde humana, o cercamento dos territórios e povos e comunidades tradicionais por monocultivos e pela mineração, entre outros. Deste modo, se o desenvolvimento da resiliência de indivíduos e coletividades face aos eventos disruptivos contemporâneos é um dos objetivos da pesquisa sobre “ecoansiedade” (Panu, 2020PANU, P. Anxiety and the ecological crisis: an analysis of eco-anxiety and climate anxiety. Sustainability, Basel, v. 12, n. 19, p. 7836, 2020.), há de se questionar como diferentes grupos lidam com as ansiedades decorrentes de processos mais lentos, duradouros e silenciosos de degradação socioambiental, assim como as maneiras pelas quais articulam a dimensão temporal e histórica das suas ansiedades na projeção de futuros possíveis.
O filme Rifle (2016), dirigido pelo cineasta gaúcho David Pretto e ambientado na zona de fronteira brasileiro-uruguaia, compõe um retrato bastante fiel dessa atmosfera de ansiedades socioambientais desencadeadas por processos difusos e de responsabilização incerta, nos quais uma sensação crescente de perda das paisagens familiares se cruza com uma percepção de impotência frente a transformações muito rápidas, que fogem do controle dos sujeitos. No filme, o acosso de um grande empresário agrícola a uma propriedade pastoril empobrecida leva o protagonista, um campeiro de nome Dione, a reagir de forma inusitada e paranoica, patrulhando os limites da estância contra uma intrusão imaginária que nunca acontece.
“Encurralado”, “espremido”, “cercado”, “sem saída”, eram termos bastante frequentes nas conversas entabuladas com os criadores de ovelhas sobre o impacto dos javalis em suas vidas. Uma das queixas mais frequentes de meus interlocutores com relação aos javalis era o fato de a presença destes animais ter transformado rotinas habituais, como uma campereada ao final da tarde, em eventos potencialmente perigosos, deixando-os em constante estado de alerta. Em algumas propriedades com mais recursos, uma verdadeira securitização multiespécie tomara tração, com a instalação de câmeras de vigilância e outros aparatos para a proteção de rebanhos e mangueiras, como cercas eletrificadas e armadilhas. Ao final do dia, entretanto, muitos afirmavam se tratar de paliativos, pois a “real dimensão do problema” estaria para além das capacidades locais e individuais de lidar com ele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciei este artigo destacando a importância de se analisar as ansiedades socioambientais contemporâneas como uma forma de sofrimento propriamente social. Isto é, como fenômenos de grande complexidade experiencial possíveis de serem examinados sem cair nas armadilhas medicalizantes do que Kleinman e Kleinman (1995KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its profesional transformation: towards an ethnography of interpersonal experience. In: KLEINMAN, A. Writing at the margin: discourse between Anthropology and Medicine. Berkeley: University of California Press , 1995. p. 95-119.) conceituaram como “transformação profissional do sofrimento”. Nesse sentido, procurei demonstrar, a partir do exemplo das ansiedades articuladas a partir da presença dos javalis, como a etnografia é capaz de trazer à tona o que está em jogo, em situações particulares, para sujeitos particulares. O trabalho de campo, como se sabe, se dá a partir de um recorte no fluxo da experiência social dos sujeitos pesquisados, no qual o etnógrafo adentra um mundo moral local que só pode ser conhecido parcialmente. Bem por isso, a validade das observações precisa ser regularmente calibrada, uma vez que as estruturas de relevância que definem o que está em jogo para os sujeitos podem mudar de tempos em tempos, serem contestadas etc. (Kleinman; Kleinman, 1995KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its profesional transformation: towards an ethnography of interpersonal experience. In: KLEINMAN, A. Writing at the margin: discourse between Anthropology and Medicine. Berkeley: University of California Press , 1995. p. 95-119.: 277)
Em tempos recentes, as espécies exóticas invasoras têm sido objeto de diferentes consternações relativas ao seu impacto sobre o meio ambiente, atividades econômicas e sociais. No entanto, em muitos contextos, esses organismos têm servido como “bode expiatório” para processos estruturais de mais longa duração (Lidström et al., 2015LIDSTRÖM, S. et al. Invasive narratives and the inverse of slow violence: alien species in science and society. Environmental Humanities, Durham, v. 7, n. 1, p. 1-40, 2015.). Como o exemplo do javali nos mostra, é sempre possível divisar, no modo com que essas ansiedades são enunciadas, que outras dinâmicas para além do confronto com a espécie invasora em si podem estar em jogo em uma temporalidade mais profunda, e para além do plano sincrônico das emoções e sentimentos despertados por sua presença “aqui e agora”. Neste caso específico, trata-se da transformação de uma paisagem pastoril, constituída na escala histórica de séculos - e imbuída de familiaridade para os atores sociais envolvidos na criação de animais -, em outro tipo de ambiente, povoado por outro tipo de seres e relações, em uma escala temporal bastante curta, de poucas décadas (Cruz; Guadagnin, 2010CRUZ, R. C.; GUADAGNIN, D. L. Uma pequena história ambiental do Pampa: proposta de uma abordagem baseada na relação entre perturbação e mudança. In: COSTA, B. P.; QUOOS, J. H.; DICKEL, M. E. G. (org.). A sustentabilidade da Região da Campanha-RS: práticas e teorias a respeito das relações entre ambiente, sociedade, cultura e políticas públicas. Santa Maria: UFRGS, 2010. p. 154-178.).
É justamente no sentido de identificar essas particularidades que a colaboração entre abordagens etnográficas e históricas se faz cada vez mais necessária para a devida compreensão das ansiedades socioambientais contemporâneas, sem reduzi-las a expressões de categorias diagnósticas abstratas. As primeiras, por estarem voltadas para o plano experiencialmente próximo dos sujeitos. As segundas, por serem capazes de acessar os processos de média e longa duração subjacentes a esse plano, conferindo-lhes profundidade diacrônica. Somente assim poderemos cotejar as ansiedades socioambientais do presente com os processos de mais larga escala inscritos na temporalidade das paisagens (Ingold, 2000INGOLD, T. The perception of the Environment: essays in livelihood, dwelling and skill. London: Routledge , 2000.), visibilizando com isso sua historicidade, suas contingências e suas singularidades.
REFERÊNCIAS
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1
Os autores definem os campos sulinos como “ecossistemas típicos da região Sul do Brasil [que] se desenvolvem sob clima temperado e úmido, com chuvas bem distribuídas ao longo do ano” (Pillar; Vélez, 2010PILAR, V. P.; VÉLEZ, E. Extinção dos campos sulinos em unidades de conservação: um fenômeno natural ou um problema ético? Natureza e Conservação , Goiânia, v. 8, n. 1, p. 84-86, 2010.: 84).
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2
Em verdade, diversos sistemas tradicionais de criação suína ao redor do globo são pautados pela circulação constante destes animais entre momentos de maior ou menor controle humano, vida livre e vida confinada, doméstica e silvestre.
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3
Sobre os diferentes ritmos da pecuária e da agricultura no Pampa uruguaio, ver Álvarez (2011ÁLVAREZ, M. F. T. Tornar-se nativo / a resistência do liso. In: STEIL, C. A.; CARVALHO, I. C. M. (org.). Cultura, percepção e ambiente: diálogos com Tim Ingold. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. p. 153-173.).
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4
A lógica algorítmica das redes sociais, por sua vez, intensifica o colapso de contextos entre vozes autorizadas e alternativas a respeito de todas essas crises, catalisando a incerteza social e a cacofonia política a seu respeito (Cesarino, 2021CESARINO, L. O mundo virado do avesso: verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu, 2021.).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
15 Maio 2023 -
Aceito
20 Jul 2023