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Fundamentalismo sectário impede o fortalecimento da economia da sociobiodiversidade

RESUMO

A conquista democrática representada pela expansão das áreas protegidas no Brasil, desde meados dos anos 1980, está hoje sob permanente agressão. Este artigo mostra algumas das raízes ideológicas e culturais dos incentivos à destruição florestal representados pela visão de mundo dos militares com protagonismo na formulação de políticas para a Amazônia. O artigo também apresenta, de forma sumária, forças que procuram se contrapor às atuais políticas federais e iniciativas com o potencial de abrir caminho a uma forte economia da sociobiodiversidade florestal na Amazônia. Essa bioeconomia não pode limitar-se às áreas florestais e será cada vez mais importante na agricultura familiar, nas grandes fazendas e é fonte de inspiração para políticas urbanas e metropolitanas apoiadas na ideia de Soluções Baseadas na Natureza.

PALAVRAS-CHAVE:
Soberania; Doutrina de Segurança Nacional; Desmatamento; Bioeconomia; Ativismo; Empreendedorismo

ABSTRACT

The democratic achievement represented by the expansion of protected areas in Brazil since the mid-1980s is today under permanent aggression. This article shows some of the ideological and cultural roots of the incentives for forest destruction represented by the worldview of the military, who play a leading role in the formulation of policies for the Amazon. The article also briefly presents the forces that seek to oppose current federal policies and initiatives with the potential to pave the way for a strong forest sociobiodiversity economy in the Amazon. This bioeconomy cannot be limited to forest areas and will be increasingly important in family farming and in large farms, and is a source of inspiration for urban and metropolitan policies supported by the idea of Nature-Based Solutions.

KEYWORDS:
Sovereignty; National Security Doctrine; Deforestation; Bioeconomy; Activism; Entrepreneurship

Apresentação

Foi na abertura do Webinar Brasil 2020 - 200 anos de Independência, organizado pelo Instituto General Villas Boas, que Hamilton Mourão,1 1 A frase do general Hamilton Mourão pode ser ouvida no minuto 52:34 dessa gravação disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=bogRVb7Shv0&t=2351s>. vice-presidente da República, ofereceu a seus ouvintes do século XXI as reflexões abaixo tão ao sabor da guerra fria.

Os Estados podem ser soberanos no sentido jurídico, mas agentes exteriores influenciam os assuntos internos. E neste Século XXI, uma das maiores questões que ameaça a soberania é a sustentabilidade. Desta forma, a questão do desenvolvimento da Amazônia, onde diversos atores não estatais limitam nossa soberania é algo que tem que ser abraçado pela Nação como um todo...sob pena de sofrermos severas consequências. E quando a gente fala em severas consequências a gente fala em intervenção. Na sua definição mais ampla, a intervenção refere-se a ações externas que influenciam os assuntos internos de outros Estados soberanos.

O Webinar, que contou com exposições de negacionistas climáticos, aconteceu no dia 25 de agosto de 2021, duas semanas após o lançamento do 6º Relatório de Avaliação (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) e menos de cem dias antes da 26ª Conferência Climática, realizada em dezembro deste ano em Glasgow. Nenhum dos cientistas brasileiros que contribuíram, como autores ou revisores para o relatório do IPCC, participou do Webinar do Instituto General Villas Boas.

Poucos meses antes, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva mencionava, em conferência no Instituto Defesa & Segurança,2 2 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=alqtlhY4T68>. o “vazio populacional” da Amazônia como um risco à soberania brasileira sobre esse território. O que era tratado, pelo general, como “vulnerabilidade”, tornava-se ainda mais grave diante do que ele chamava de “discursos globalistas e indigenistas” que levaram “governos submissos” a demarcar terras indígenas, que comprometem a soberania nacional, particularmente em áreas de fronteira e a endossar a “Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas”.

Esses são apenas dois exemplos de uma visão a respeito da Amazônia e dos povos da floresta que, desde janeiro de 2019, inspira as políticas do governo federal brasileiro para a região. A demonização da conquista democrática representada pela demarcação de territórios indígenas e quilombolas, a ênfase na ideia de riquezas naturais cobiçadas por interesses estrangeiros e as declarações explícitas de que o melhor uso que se pode fazer do bioma é representado por suas formas convencionais de exploração (mineração, pecuária e soja)3 3 A perplexidade do ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, em janeiro de 2019, em Davos, diante da sugestão de Jair Bolsonaro de que os Estados Unidos ajudassem o Brasil a explorar os recursos da Amazônia (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CPpH7FRFcY0>), é menos emblemática do que a explicação da cena por parte do vice-presidente Mourão, quando ele acusava Gore de ser um claro defensor da internacionalização da Amazônia (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xNaf2P0JiLQ>). são vetores culturais das práticas destrutivas que se intensificaram na Amazônia desde o início de 2019: se a Amazônia é um território vazio em que povos indígenas são facilmente manipuláveis por potências e interesses estrangeiros,4 4 Em agosto de 2019, tanto Jair Bolsonaro quanto seu ministro, o general Augusto Heleno, declararam existirem irregularidades na demarcação e que territórios indígenas estavam sendo vendidos a estrangeiros, sem mostrar qualquer evidência que fundamentassem essas acusações, como mostra matéria publicada pela revista Exame (Disponível em: <https://exame.com/brasil/e-muita-terra-para-pouco-indio-diz-bolsonaro/>). sua ocupação torna-se premissa para o exercício da soberania. E a forma mais efetiva e rápida de promover essa ocupação é pelo incentivo de atividades convencionais de garimpo, extração de madeira, pecuária e agricultura de grãos.

Este texto procura mostrar a gigantesca distância que separa essa visão sobre uma Amazônia despovoada e ameaçada por interesses estrangeiros, dos benefícios que poderiam resultar para a região (e para o Brasil como um todo) de políticas que se voltassem a uma economia do conhecimento da natureza (Abramovay, 2019ABRAMOVAY, R. Amazônia. Por uma economia do conhecimento da natureza. São Paulo: Ed. Elefante. 2019.). Para isso, ele se divide em três seções, além desta Apresentação.

Primeiramente, o trabalho apresenta a particularidade das emissões brasileiras de gases de efeito estufa, quando comparadas às de outros países de dimensões econômicas, demográficas e territoriais como as suas. Esse contraste se relaciona à precariedade cada vez maior da governança florestal no Brasil e à destruição que daí decorre. A decisão da Assembleia Legislativa de Rondônia, por exemplo, de revogar a criação do Parque Estadual Ilha das Flores e de reduzir os limites da Reserva do Desenvolvimento Sustentável do Limoeiro5 5 Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/em-rondonia-deputados-aprovam-nova-reducao-de-areas-protegidas>. é coerente com a explosão do desmatamento no estado e o aumento de seu rebanho bovino de 5,4 milhões em 2019 para 14,2 milhões de cabeças em 2021 (Ferrari, 2021FERRARI, M. A política destrutiva de Bolsonaro em Rondônia. Isto É. 2021. Disponível em: <https://istoe.com.br/a-politica-destrutiva-de-bolsonaro-em-rondonia/>. Acesso em: Jan. 2022.
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).

Em seguida, o texto mostra, de maneira sumária, a visão governamental predominante sobre a ocupação e o uso do território. Por fim, o trabalho apresenta algumas das mais importantes reações vindas da sociedade civil, do ativismo, da comunidade científica, de empresas e de governos estaduais contra as políticas destrutivas do governo federal.

A particularidade das emissões brasileiras

Embora as emissões de gases de efeito estufa atinjam a biosfera como um todo e não respeitem as fronteiras nacionais, nem todos os países contribuem igualmente para sua intensificação. Os de baixa renda sofrem seus impactos, mas beneficiam-se muito menos que os mais ricos das comodidades propiciadas pelo uso generalizado de combustíveis fósseis em suas matrizes de transporte, energia e aquecimento domiciliar (Wolf, 2017WOLF, M. Why climate change puts the poorest most at risk. Financial Times, 2017. Disponível em: <https://www.ft.com/content/f350020e-b206-11e7-a398-73d59db9e399>. Acesso em: Dez. 2017.
https://www.ft.com/content/f350020e-b206...
).

Mas além dessas diferenças relativas ao grau de desenvolvimento no mundo, as fontes das emissões são nacionalmente distintas.

Em quase todos os países, os combustíveis fósseis (que estão na base da matriz energética e dos sistemas de mobilidade em todo o mundo) são os principais vetores das emissões de gases de efeito estufa (Blanco et al., 2014BLANCO G. et al. Drivers, Trends and Mitigation. In: EDENHOFER, O. et al. (Ed.) Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA, 2014.). Mas no Brasil é diferente. Entre os dez maiores emissores globais, somos os únicos em que metade das emissões deriva de desmatamento (Observatório do Clima, 2020). A Indonésia nos acompanhava nesse triste recorde, mas reduziu significativamente seu desmatamento desde o início de 2019.6 6 Disponível em: <https://climateactiontracker.org/countries/indonesia/>. É importante lembrar que, em 2020, a Indonésia reduziu seu desmatamento em 75%, em comparação ao ano anterior. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-indonesia-environment-idUSKBN2AV1AU>.

Essa singularidade é importante por afetar o conteúdo da luta contra a crise climática, quando se compara o Brasil a outros grandes emissores. Descarbonizar a vida econômica na China, na Índia, nos Estados Unidos, no Japão ou na União Europeia significa transformar de maneira profunda o sistema de transportes (Sims et al., 2014SIMS R. et al. “Transport”. In: EDENHOFER, O. et. al. (Ed.) Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA. 2014.), a matriz energética (Lee; Birol, 2020LEE, H.; BIROL, F. Energy is at the heart of the solution to the climate challenge. IPCC. 2020. Disponível em: <https://www.ipcc.ch/2020/07/31/energy-climatechallenge/>. Acesso em: Jul. 2020.
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), o aquecimento e a refrigeração dos domicílios e dos locais de trabalho, seus padrões de construção (Lucon et al., 2014LUCON O. et al. “Buildings”. In: EDENHOFER, O. et al. (Ed.) Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA. 2014.) e mesmo os padrões de consumo alimentar (Xu et al., 2021XU, X. et al. Global greenhouse gas emissions from animal-based foods are twice those of plant-based foods. Nature Food, n. 2, p.724-32, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.1038/s43016-021-00358-x>. Acesso em: Dez. 2021.
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).

Isso só é alcançado por meio de muita ciência e muita inovação tecnológica (Barnham 2015BARNHAM, K. The burning answer. A user’s guide to solar revolution. London: Weindenfeld & Nicholson, 2015.). Ao mesmo tempo, não se podem subestimar os custos dessa transição para as famílias e para as empresas: a generalização dos veículos elétricos tende a exterminar milhares de pequenas oficinas mecânicas (Brennan, 2020BRENNAN, R. Electric vehicles are changing the future of auto maintenance. Techcrunch. 2020. Disponível em: <https://techcrunch.com/2020/03/06/electric-vehicles-are-changing-the-future-of-auto-maintenance/>. Acesso em: Jan. de 2022.
https://techcrunch.com/2020/03/06/electr...
). Os veículos sem motorista vão eliminar muitos empregos e pequenos negócios (Ford, 2016FORD, M. Rise of Robots: Technology and the Threat of a Jobless Future. New York: Perseus. 2016.). Os coletes amarelos na França surgiram quando um imposto sobre os combustíveis ameaçava populações menos conectadas por redes públicas de transportes e mais dependentes do automóvel individual. Relatório recente do Tony Blair Institute for Global Change (Meyer; Lord, 2021MEYER, B.; LORD, T. Planes, Homes and Automobiles: The Role of Behaviour Change in Delivering Net Zero. Tony Blair Institute for Global Change. 2021. Disponível em: <https://institute.global/policy/planes-homes-and-automobiles-role-behaviour-change-delivering-net-zero>. Acesso em: Ago. 2021.
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) mostra a importância e a dificuldade de que mudem os comportamentos dos indivíduos com relação a seus modos de vida, condição para o avanço da descarbonização.

A adoção do Green Deal na União Europeia e do Green New Deal nos Estados Unidos vai acelerar o processo de transição para uma economia de baixo carbono. É claro que os interesses petrolíferos nos Estados Unidos ainda são poderosos, tanto mais que o país conquistou, neste século, sua independência energética graças às tecnologias descentralizadas de exploração de gás e petróleo por meio de fracionamento hidráulico (o shale gas), que se espalham por todo seu território (Yergin, 2020YERGIN, D. The New Map. Energy, Climate and the Clash of Nations. New York: Penguin Press. 2020.).

Apesar disso, os compromissos não só do governo, mas de atores fundamentais do setor privado e de inúmeras autoridades locais dos Estados Unidos são tanto mais fortes, que os riscos físicos derivados da crise climática já se fazem sentir no mundo dos negócios, nas carteiras dos investidores e nas apólices de seguro (Jolly, 2021JOLLY, J. 2021’s extreme weather leads to insurers’ biggest payout in 10 years. The Guardian, 2021. Disponível em: <https://www.theguardian.com/business/2021/jul/21/2021s-extreme-weather-leads-to-insurers-biggest-payout-in-10-years>. Acesso em: Jul. 2021.
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). Na União Europeia, o Banco Central compromete-se a se livrar de todos os ativos que estejam ligados à emissão de gases de efeito estufa.

A China e a Índia abrigam hoje algumas das mais importantes empresas globais em energia solar e eólica (Baraniuk, 2018BARANIUK, C. How China’s giant solar farms are transforming world energy. BBC. 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/future/article/20180822-why-china-is-transforming-the-worlds-solar-energy>. Acesso em: Jan. de 2022.
https://www.bbc.com/future/article/20180...
). Os avanços científicos e tecnológicos dos dois países estão na base de compromissos ambiciosos relativos à descarbonização de suas economias. Trabalho do International Council on Clean Transportation mostra que é crescente o número de países e cidades com planos para eliminar a circulação de veículos com motor a combustão interna durante as duas próximas décadas (Wappelhorst, 2021WAPPELHORST, S. Update on government targets for phasing out new sales of internal combustion engine passenger cars. Briefing International Council on Clean Transportation, 2021. Disponível em: <https://theicct.org/sites/default/files/publications/update-govt-targets-ice-phaseouts-jun2021_0.pdf>. Acesso em: Jun. 2021.
https://theicct.org/sites/default/files/...
).

Em suma, o cerne da luta contra a crise climática está num amplo conjunto de mudanças nos padrões produtivos e de consumo, com base em alguns dos mais importantes avanços científicos e tecnológicos contemporâneos, cuja incorporação ao cotidiano da sociedade exige mudanças fundamentais de comportamento por parte das famílias e das empresas.

Zerar o desmatamento não exige transformação estrutural na economia

A luta contra a crise climática vai exigir, no Brasil, transformações tão importantes quanto no restante do mundo. Mas o fato de metade de nossas emissões virem de desmatamento diferencia de forma notável o Brasil do restante do mundo.

Zerar o desmatamento é algo que pode ser alcançado sem qualquer modificação no sistema de transportes, na matriz energética, nos padrões de consumo, no aquecimento ou na refrigeração dos imóveis. Claro que monitorar o desmatamento supõe ciência e tecnologia e o Brasil hoje é líder global nesta área, graças a organizações como a Embrapa, o Inpe ou a redes de organizações não governamentais como o MapBiomas (Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura, s.d.), que incluem os avanços conquistados pelo Imazon ou pelo Ipam. Mas interromper a devastação e contribuir, por esse meio, para o sucesso no enfrentamento do mais importante desafio coletivo da espécie humana é algo que, no nosso caso, não supõe transformações econômicas nem inovações científicas e tecnológicas como aquelas que os países mais dependentes de combustíveis fósseis que nós, estão levando adiante.

Entre 2004 e 2012, o Brasil foi o país que deu, individualmente, a mais importante contribuição na luta contra a crise climática ao reduzir em 80% suas emissões de gases de efeito estufa derivadas da destruição florestal (Boucher et al., 2014BOUCHER, D. et al. Histórias de sucesso no âmbito do desmatamento. Nações tropicais onde as políticas de proteção e reflorestamento deram resultado. Union of Concerned Scientists. 2014. Disponível em: <https://www.ucsusa.org/sites/default/files/2019-10/UCS-2014-DeforestationSuccessStories-Portugues-final.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
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). A repressão ao desmatamento ilegal (que representa a quase totalidade da devastação) e a criação de áreas protegidas (territórios indígenas, territórios quilombolas, reservas extrativistas, parques nacionais e estaduais) foram os principais mecanismos para esse sucesso internacionalmente reconhecido (Capobianco, 2021CAPOBIANCO, J. P. Amazônia. Uma década de esperança. São Paulo: Estação Liberdade. 2021.). E, como mostra importante estudo do Instituto Escolhas (2017), as perdas econômicas dessa conquista foram irrisórias. Elas atingiram sobretudo a geração de renda apoiada em trabalhos de baixa qualificação e baixa remuneração ligados ao desmatamento. Que a Amazônia brasileira tenha hoje cerca de metade de sua superfície ocupada por áreas protegidas é uma conquista democrática e que atraiu para o país recursos financeiros consideráveis, por meio de diferentes dispositivos dos quais o mais importante é o Fundo Amazônia.

Mas se é assim, se o Brasil tem a possibilidade de reduzir metade de suas emissões sem que para isso sejam necessárias transformações estruturais em sua vida econômica, por que isso não ocorre? Por que razão, a partir de 2013, mas sobretudo a partir de 2019, o desmatamento voltou a subir a ponto de despertar, não só, protestos da sociedade civil, mas a apreensão de organismos multilaterais de desenvolvimento e alertas de censura vindos dos mais importantes fundos globais de investimento (Spring, 2020SPRING, J. Global investors demand to meet Brazil diplomats over deforestation. Reuters. 2020. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-brazil-environment-investors/global-investors-demand-to-meet-brazil-diplomats-over-deforestation-idUSKBN23U0L8>. Acesso em: Jun. 2020.
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)?

A resposta a essas perguntas envolve dimensões que vão além do escopo deste artigo. O mais importante, no âmbito da governança florestal, é evitar duas falácias. A primeira é aquela segundo a qual as queimadas derivam de uma herança cultural ligada a técnicas tradicionais de cultivo. Ao longo do tempo, as comunidades indígenas desenvolveram técnicas de uso controlado do fogo (Mistry et al., 2016MISTRY, J.; BILBAO B.; BERARDI A. Community owned solutions for fire management in tropical ecosystems: case studies from Indigenous communities of South America. Philosophical Transactions of the Royal Society. 2016. Disponível em: <https://royalsocietypublishing.org/doi/full/10.1098/rstb.2015.0174>. Acesso em: Jul 2016.
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), que fazem de seus territórios as áreas mais bem protegidas e menos devastadas das florestas tropicais (FAO e Filac, 2021). Nos estados de Mato Grosso e Rondônia, a destruição florestal nos territórios indígenas entre 2000 e 2012 foi dez vezes menor do que em seu entorno (Peterson; Stevens, 2014PETERSON, R.; STEVENS, C. 3 Maps Show Importance of Local Communities in Forest Conservation. World Resources Institute. 2014. Disponível em: <https://www.wri.org/insights/3-maps-show-importance-local-communities-forest-conservation>. Acesso em: Out. 2014.
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).

A segunda falácia postula que o desmatamento é provocado por pessoas que, não encontrando meios de sobrevivência, embrenham-se na mata e derrubam-na para garantir sua sobrevivência. Embora agricultores familiares sempre tenham queimado e derrubado a floresta para implantar suas lavouras, essas atividades, na Amazônia, não chegaram a alterar as paisagens de forma significativa (Butler, 2020BUTLER, R. Forest on the Rainforest. Mongabay. 2020. Disponível em: <https://rainforests.mongabay.com/rainforest-fires/>. Acesso em: Jan. de 2022.
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) durante a maior parte da história. É a partir dos anos 1970 que esse cenário muda, com a implantação de grandes projetos que resultaram na expansão da pecuária, que responde por três quartos do desmatamento na região. Desmatar exige meios técnicos poderosos e caros. “Não existe desmatamento sem investimento” diz Tasso Azevedo, coordenador geral do Mapbiomas em entrevista a Daniela Chiaretti (2020CHIARETTI, D. Desmatamento não está só crescendo no país, mas acelerando. Valor Econômico, 2020. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/07/13/desmatamento-nao-esta-so-crescendo-no-pais-mas-acelerando.ghtml>. Acesso em: Jan. de 2022.
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). Os custos ficam entre US$ 200 e US$ 400 por hectare (Arantes, 2016ARANTES, C. O custo do desmate em avaliação de pastagens plantadas: quando e como considerar? In: XXXI CONGRESSO PAN-AMERICANO DE AVALIAÇÕES. 2016. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.mrcl.com.br/upav_rj/R0072_2.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
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).

Tanto é assim que uma das formas mais eficientes de redução do desmatamento, entre 2004 e 2012, foi a autorização legal oferecida aos órgãos ambientais de destruir os pesados equipamentos empregados no desmatamento (ou no garimpo ilegal). No entanto, a partir de janeiro de 2019, o atual governo proibiu esses procedimentos, lançando um claro sinal aos desmatadores e aos garimpeiros ilegais de que suas atividades seriam cada vez menos reprimidas (Werneck, 2020WERNECK, F. Arquitetura da devastação. The Intercept Brasil, 2020. Disponível em: <https://theintercept.com/2020/04/27/bolsonaro-destruicao-maquinas-crimes-meio-ambiente/>. Acesso em: Abr. 2020.
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). Quando se junta a essa determinação o discurso governamental contrário à ampliação dos territórios indígenas, o acolhimento por autoridades federais de protagonistas de atividades ilegais no garimpo (Camargos, 2021CAMARGOS, D. Quem está por trás do lobby pelo garimpo ilegal de ouro nas terras dos Munduruku. Repórter Brasil. 2021. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2021/07/quem-esta-por-tras-do-lobby-pelo-garimpo-ilegal-de-ouro-nas-terras-dos-munduruku/>. Acesso em: Jan. de 2022.
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), a redução na aplicação de multas por parte do Ibama, a paralisação das atividades de fiscalização, a tolerância diante da invasão de áreas públicas e territórios indígenas (Rajão et al., 2021RAJÃO, R. et al. Dicotomia da impunidade do desmatamento ilegal. Policy Brief CSR/LAGESA/UFMG, 2021. Disponível em: <https://csr.ufmg.br/csr/wp-content/uploads/2021/06/Rajao_Schmitt-et-al_Julgamentos-IBAMA_final.pdf>. Acesso em: Jun. 2021.
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), ficam claros os sinais vindos das autoridades de Brasília de que os protagonistas da destruição são tratados como se fossem veículos de crescimento econômico e de desenvolvimento.

A visão de mundo dos mais destacados membros do atual governo ajuda a entender esse processo destrutivo que tem resultado na continuidade da destruição e no fortalecimento das atividades ilegais e, por vezes, criminosas. Dois pontos merecem especial destaque, nesse sentido.

O primeiro é o negacionismo climático. É importante lembrar que o presidente da República ameaçava deixar o Acordo de Paris e seguir os passos do que fez Donald Trump (Fearnside, 2019FEARNSIDE, P. Bolsonaro e o Acordo de Paris: Declarações contraditórias. Amazônia Real, 2019. Acesso em: Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/bolsonaro-e-o-acordo-de-paris-2-declaracoes-contraditorias/>. Acesso em: Jan. 2022.
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) e que Joe Biden reverteu no primeiro dia de seu mandato. Esse anúncio de que o negacionismo seria levado à prática foi feito explicitamente durante a campanha eleitoral. Ele se exprimiu igualmente na participação de delegação oficial brasileira em conferência internacional de negacionistas climáticos (Poder 360, 2019). Se o atual governo não levou essa intenção adiante foi pela pressão da sociedade civil e do empresariado brasileiro que calculou corretamente o impacto desastroso que tal medida traria à economia e particularmente à agricultura. Mas o negacionismo climático ainda está presente. O general Augusto Heleno, por exemplo, em sua apresentação na audiência pública sobre o Fundo Clima, no Supremo Tribunal Federal, declarou: “as razões do aquecimento são discutidas por cientistas famosos com teses antagônicas” (Galvani, 2020GALVANI, G. Ministros usam informações falsas sobre meio ambiente em audiência no STF. Carta Capital, 2020. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/ministros-usam-informacoes-falsas-sobre-meio-ambiente-em-audiencia-no-stf/>. Acesso em: Jan. de 2022.
https://www.cartacapital.com.br/politica...
).

O general não é um cientista, mas preocupa que, pelo posto que ocupa, esteja tão mal-informado. O antagonismo com relação às mudanças climáticas é hoje, na comunidade científica global, tão importante quanto a dúvida em saber se a Terra é plana ou não. Não existe antagonismo com relação à ideia de que o mundo passa por mudanças climáticas e que essas são de origem antrópica. Há debates sobre seus impactos, sobre os melhores métodos para medi-la ou combatê-la, mas não há qualquer cientista sério, publicando em revistas internacionais com rigoroso sistema de revisão pelos pares que coloque em dúvida a existência das mudanças climáticas e sua origem antrópica (Oreskes, 2004ORESKES, N. The Scientific Consensus on Climate Change. Science, 2004. Disponível em: <https://www.science.org/lookup/doi/10.1126/science.1103618>. Acesso em: Jan. 2020.
https://www.science.org/lookup/doi/10.11...
).

O que há, sim, é um movimento internacional que reúne segmentos extremistas de várias partes do mundo e que, em diversos países recebe financiamento de empresas fósseis (Cook et al., 2019COOK, J. et al. Exxon has misled Americans on climate change for decades. Here’s how to fight back. The Guardian. 2019. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/oct/23/exxon-climate-change-fossil-fuels-disinformation>.
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) para difundir teses que a comunidade científica, as organizações multilaterais de desenvolvimento e as mais expressivas organizações tanto da sociedade civil como empresariais rejeitam. Como bem demonstra o trabalho de Oreskes e Conway (2019ORESKES, N.; CONWAY, E. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. New York: Bloomsbury Publishing, 2019.), a polêmica em torno da existência das mudanças climáticas é tão sólida quanto aquela que finge discutir se o cigarro é ou não um vetor de graves doenças como o câncer.

O segundo ponto que merece especial destaque na visão de mundo que fortalece o processo destrutivo pelo qual passa a Amazônia não é particular ao atual governo, embora tenha chegado agora a seu paroxismo. Por um lado, como foi visto na apresentação, logo acima, a Amazônia é vista como uma espécie de território vazio, à espera de oportunidades de investimentos na exploração de suas riquezas minerais e na expansão de atividades agropecuárias. Essa visão moldou-se no período da ditadura militar por meio das políticas que se traduziam em frases como “ocupar a terra sem homem da Amazônia, com os homens sem terra do Nordeste” e “integrar para não entregar” (Gomes et al., 2012GOMES, C. et al. Oportunidades de apoio a atividades sustentáveis na Amazônia. Fundo Amazônia, 2012. Disponível em: <http://www.fundoamazonia.gov.br/export/sites/default/pt/.galleries/documentos/biblioteca/GIZ_Estudo_Oportunidades_APS.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
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).

Na maior parte dos casos, o regime militar apoiou iniciativas que resultaram na destruição de áreas florestais para que nelas fossem implantados projetos agropecuários cuja capacidade de geração de renda e cujos efeitos econômicos multiplicadores foram muito baixos (Pinto, 2021PINTO, L. F. A Amazônia de Brasília. Amazônia Real, 2021. Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/a-amazonia-de-brasilia/>. Acesso em: Mar. 2021.
https://amazoniareal.com.br/a-amazonia-d...
). Lançavam-se populações indígenas e ribeirinhas em profunda insegurança que só não foi maior graças ao apoio que recebiam de organizações não governamentais e de setores importantes da Igreja Católica (Della Cava, 1978).

Essas políticas não refletiam apenas os compromissos do regime militar com os setores empresariais que se beneficiaram com as políticas de incentivo fiscal, cujo principal resultado econômico foi a aceleração da concentração fundiária, da agressão aos povos da floresta e o início das atividades que resultaram no avanço do desmatamento. Essas políticas revelavam também a doutrina militar segundo a qual seria necessário proteger a Amazônia (e, por aí, a soberania nacional) contra países supostamente interessados em explorar as suas riquezas em detrimento dos benefícios que essa exploração poderia trazer aos brasileiros. Monteiro e Miranda (2020MONTEIRO G.; MIRANDA B. A Amazônia e o desafio do desenvolvimento. Questões contemporâneas. Concertação pela Amazônia, 2020. Disponível em: <https://sites.google.com/view/concertacaoamazonia/eixos-do-entendimento-amaz%C3%B4nia?authuser=0>. Acesso em: 2020.
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, p.11) mostram que “a ideia de que o controle efe, tivo da Amazônia implica a demonstração da capacidade de uso de seus recursos naturais é um elemento fundamental na formulação das políticas de desenvolvimento regional implementadas pelos sucessivos governos militares entre o fim dos anos 1960 e meados dos anos 1980”.

Essa visão transforma o interesse global na manutenção dos serviços ecossistêmicos que a floresta amazônica presta à vida no planeta em cortina de fumaça sob a qual se esconderia a intenção sub-reptícia de atentar contra a soberania nacional e impedir que o imenso potencial do Brasil se realize. Pior que a paranoia de que potências estrangeiras teriam a intenção de ocupar a Amazônia é a concepção segundo a qual a melhor maneira de contrapor-se a essa suposta ameaça é intensificar as formas convencionais de exploração de suas riquezas, por meio de uma economia da destruição da natureza, onde a floresta daria lugar a unidades agropecuárias e a iniciativas minerais que seriam a marca não só da apropriação do território por brasileiros, mas a expressão da nossa capacidade soberana de gerar riqueza.

O que essa visão encobre é que a verdadeira ameaça ao território da Amazônia não vem de potências estrangeiras, e sim da interação entre a apropriação ilegal de terras públicas, a invasão de territórios indígenas, a criação predatória de gado em áreas protegidas, o garimpo clandestino e as crescentes atividades criminosas que atravessam os países amazônicos (Abdenur et al., 2020ABDENUR, A. et al. Crime ambiental na bacia amazônica: uma Tipologia para Pesquisa, Política Pública e Ação. Instituto Igarapé. 2020. Disponível em: <https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2020/08/2020-08-19_E-47_Crime-Ambiental-Amazonia-Tipologia-PT.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
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). Na verdade, essa visão está profundamente enraizada na Doutrina de Segurança Nacional. Ou, nas palavras do jornalista Lúcio Flávio Pinto: “A Doutrina de Segurança Nacional, que é a matriz da nossa geopolítica para a região, é a madrasta intelectual da Amazônia” (Pinto, 2021).

Além disso, a concepção predominante no governo federal sobre a Amazônia não estimula a emergência daquilo de que a região mais necessita, ou seja, uma economia do conhecimento da natureza, que permita o fortalecimento das cadeias de valor da sociobiodiversidade e exerça atração não de grileiros e invasores de terras públicas, e sim de investidores interessados em fazer da sabedoria e da experiência dos povos da floresta o ponto de partida para descobertas científicas capazes de contribuir para o bem-estar humano em alimentação, produtos farmacêuticos e cosméticos (Abramovay, 2021aABRAMOVAY, R. et al. The new bioeconomy in the Amazon: Opportunities and challenges for a healthy standing forest and flowing rivers. In: Science Panel for the Amazon, Amazon Assessment Report 2021. Chapter 30 in Brief. 2021. Disponível em: <https://www.theamazonwewant.org/wp-content/uploads/2021/08/Chapter-30-in-Brief-The-new-bioeconomy-in-the-Amazon-Opportunities-and-challenges-for-a-healthy-standing-forest-and-flowing-rivers-Final.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
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).

Em outras palavras, a floresta amazônica é estratégica para o Brasil não apenas pelos serviços ecossistêmicos que oferece ao conjunto da vida no Planeta, mas igualmente por seus potenciais para que o país transforme sua condição de detentor da maior sociobiodiversidade do planeta em vetor de geração de renda, de luta contra a pobreza e de inovação científica e tecnológica.

A Amazônia longe do radar da bioeconomia global

Aí é necessário constatar um impressionante paradoxo: embora a mais importante sociobiodiversidade do planeta esteja nas florestas tropicais, essas (e especialmente a da Amazônia) estão distantes da fronteira científica e tecnológica da bioeconomia global (Abramovay et al., 2021ABRAMOVAY, R. et al. The new bioeconomy in the Amazon: Opportunities and challenges for a healthy standing forest and flowing rivers. In: Science Panel for the Amazon, Amazon Assessment Report 2021. Chapter 30 in Brief. 2021. Disponível em: <https://www.theamazonwewant.org/wp-content/uploads/2021/08/Chapter-30-in-Brief-The-new-bioeconomy-in-the-Amazon-Opportunities-and-challenges-for-a-healthy-standing-forest-and-flowing-rivers-Final.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
https://www.theamazonwewant.org/wp-conte...
). Dos 225 documentos sobre bioeconomia florestal publicados por 567 organizações de 44 países entre 2003 e 2020, os países mais expressivos na área eram Finlândia e Canadá. Entre as dez organizações que mais publicaram na área de bioeconomia florestal, não há nenhuma situada em um país com floresta tropical. De todos os trabalhos analisados no artigo, as palavras-chave “bioeconomia” e “florestas tropicais” jamais aparecem juntas (Paletto et al., 2020PALETTO, A. et al. A literature review on forest bioeconomy with a bibliometric network analysis. Journal of Forest Science, v.66, n.7, p.265-279, July. 2020. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/343302527_A_literature_review_on_forest_bioeconomy_with_a_bibliometric_network_analysis>. Acesso em: Jul. 2020.
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). No relatório conjunto das Academias de Ciências, de Engenharia e de Medicina (Nasem, 2020) sobre bioeconomia, não há qualquer referência à importância das florestas tropicais. Mesmo documentos voltados à bioeconomia vindos da América Latina (Rodríguez et al., 2019) consagram-se a culturas plantadas como cana-de-açúcar ou milho, mas não às florestas tropicais.

Isso diz muito sobre nosso imenso desafio que consiste não só em interromper o ciclo de destruição, criminalidade e violência na Amazônia, mas, sobretudo, em atrair para a região talentos científicos e tecnológicos brasileiros e internacionais para que fortaleçam as organizações universitárias e os institutos de pesquisa já existentes na região estimulando inovações capazes de gerar renda não pela destruição e pela exportação de produtos pouco elaborados, mas, sobretudo, pela capacidade de usar inteligência e informação na obtenção daquilo que a floresta pode oferecer para a espécie humana.

Só o multilateralismo democrático, a cooperação entre organizações de pesquisa públicas e privadas, brasileiras e globais, permitirão que esse paradoxo da distância entre a Amazônia e a fronteira científica e tecnológica da bioeconomia seja enfrentado. Ou, nas palavras de Lúcio Flávio Pinto, no já citado artigo de João Moreira Salles (2020SALLES, J. Arrabalde: Parte II - Sete bois em linha. Piauí. Ed. 170. 2020. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/arrabalde-parte-ii/>. Acesso em: Dez. 2020.
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: “A Amazônia só terá saída em conversa com o mundo. O medo dos estrangeiros é uma falácia” (Salles, 2020).

Mas é claro que a visão governamental segundo a qual potências estrangeiras ameaçam nosso território por quererem extrair riquezas que devem ser obtidas o quanto antes por brasileiros (mesmo que às custas da floresta7 7 O depoimento de Assuero Doca Veronez, presidente da Federação de Agricultura do Acre, sobre a Amacro, acrônimo de Amazonas, Acre e Rondônia, um projeto para estimular a produção agropecuária na confluência desses três estados é emblemático. No vídeo veiculado logo ao início da reportagem de Wenzel e Sá (2020), Veronez explica: “temos que sair desta inércia improdutiva em que nós estamos, principalmente no Acre e no Amazonas” (minuto 0:58). “A questão ambiental foi uma questão muito limitadora. Desmatamento pra nós é sinônimo de progresso, por mais que isso possa chocar as pessoas. O Acre não tem minério, não tem potencial turístico. O que o Acre tem, são as melhores terras do Brasil. Só que esta terra tem um problema: tem uma floresta em cima. É problema a floresta, porque a floresta não dá retorno econômico”. ) ergue-se como importante obstáculo para realizar o objetivo estratégico de alcançar um modelo de crescimento baseado numa economia do conhecimento e não da destruição da natureza. Além disso, é uma visão do mundo incapaz de oferecer alternativa consistente a uma economia hoje marcada não só pela destruição, mas pela imensa pobreza (Imazon, 2014).

O Painel Científico para a Amazônia, que reuniu 200 cientistas dos nove países da região, tem um capítulo voltado especificamente à bioeconomia (Abramovay et al., 2021ABRAMOVAY, R. et al. The new bioeconomy in the Amazon: Opportunities and challenges for a healthy standing forest and flowing rivers. In: Science Panel for the Amazon, Amazon Assessment Report 2021. Chapter 30 in Brief. 2021. Disponível em: <https://www.theamazonwewant.org/wp-content/uploads/2021/08/Chapter-30-in-Brief-The-new-bioeconomy-in-the-Amazon-Opportunities-and-challenges-for-a-healthy-standing-forest-and-flowing-rivers-Final.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
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). O ponto de partida da reflexão é que a bioeconomia, mais que um setor econômico, é um valor ético decisivo na relação entre sociedade e natureza. Isso significa, em primeiro lugar, o reconhecimento da cultura material e espiritual dos povos da floresta como base para o desenvolvimento sustentável da região. Mas é claro que esses conhecimentos devem ser integrados e fortalecidos pelo trabalho da comunidade científica e de empreendedores inovadores. Hoje existe na Amazônia um conjunto importante de pesquisadores vinculados a organizações governamentais e não governamentais que vêm atuando de forma decisiva não só na defesa dos povos da floresta, mas também na busca de meios de geração de renda a partir da economia da sociobiodiversidade floresta. O fortalecimento dessa economia supõe infraestruturas muito distantes das que hoje são construídas e planejadas na Amazônia: internet de qualidade, meios de refrigeração e beneficiamos dos produtos, transporte ágil não dependente de fósseis, energias não poluentes são premissas para a emergência de uma forte economia da sociobiodiversidade florestal.

Mas a bioeconomia não pode limitar-se aos povos da floresta. Ela deve fazer parte igualmente das práticas produtivas não só dos 750 mil agricultores familiares da região, como também das grandes fazendas lá instaladas. E é fundamental, igualmente, que as cidades da Amazônia (sedes de municípios, cidades médias e áreas metropolitanas) tenham sua gestão baseadas no conceito que a IUCN começou a divulgar a partir de 2016 de “Soluções Baseadas na Natureza” (Cohen-Shacham et al., 2016). Plantio de árvores, pavimentação que não impermeabilize as superfícies urbanas, defesa das populações ribeirinhas ameaçadas pelo avanço de edificações de alta renda nas áreas por elas até aqui ocupadas, instalações que permitam valorizar as culturas dos povos tradicionais que se encontram nas cidades e dos produtos que vêm da floresta, estes são alguns exemplos de desafios urbanos e metropolitanos na Amazônia. A cidade de Belém, atualmente, tem sua administração inspirada exatamente pelo enfrentamento a estes desafios.

Um inédito arco de forças contra o fanatismo

Felizmente, há atores relevantes que se distanciam da visão predominante hoje no governo federal e que estão contribuindo para a emergência de formas construtivas de uso da sociobiodiversidade da Amazônia. Em primeiro lugar é fundamental mencionar a importância do ativismo cujas energias hoje não se concentram apenas na denúncia da violência, do desmantelamento das políticas de proteção da floresta, dos territórios indígenas e do patrimônio público. O ativismo na Amazônia hoje é composto por pessoas com excelente formação técnica e acadêmica, cujo trabalho de campo permite que muitas vezes produzam artigos científicos publicados em respeitadas revistas internacionais. Mais que isso: muitas organizações ativistas estão empregando sua experiência e seu conhecimento no fomento ao empreendedorismo voltado à emergência de uma dinâmica economia da sociobiodiversidade florestal. A defesa dos povos da floresta é fortalecida pelo empenho em vincular, de forma cuidadosa, as atividades das populações indígenas e ribeirinhas a mercados de nicho e a cadeias de valor de grandes empresas. O mais emblemático exemplo neste sentido é o Selo Origens Brasil8 8 Disponível em: <http://origensbrasil.org.br/>. que reúne instituições não governamentais como o Instituto Socioambiental e o Imaflora a empresas como Alpargatas, Wickbold e tantas outras na comercialização de produtos da sociobiodiversidade florestal em áreas protegidas. Mas organizações como a Conexsus, o Centro de Empreendedorismo da Amazônia, O Idesam (e sobretudo a iniciativa recente de criação da Amaz), o Instituto Centro de Vida, o Instituto Mamirauá, o Instituto Peabiru são apenas algumas de um amplo conjunto de iniciativas voltadas à valorização dos produtos da sociobiodiversidade na Amazônia.

Plano de Recuperação Verde

Essa conversão do ativismo em impulsionador de iniciativas econômicas relevantes é correlativa à formação de um diversificado arco de forças empresariais voltadas ao uso sustentável da sociobiodiversidade florestal. No ano 2020, o incentivo do governo federal às formas predatórias de ocupação e uso da floresta provocou reações empresariais inéditas. Um exemplo nessa direção é a carta assinada por dezessete ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central onde se preconiza desmatamento zero para a Amazônia e o cerrado, como forma não só de interromper o ciclo destrutivo atual, mas também de impedir que os problemas reputacionais derivados do desmatamento em larga escala se repercutam sobre o conjunto da economia (Abramovay, 2021bABRAMOVAY, R. et al. The new bioeconomy in the Amazon: Opportunities and challenges for a healthy standing forest and flowing rivers. In: Science Panel for the Amazon, Amazon Assessment Report 2021. Chapter 30 in Brief. 2021. Disponível em: <https://www.theamazonwewant.org/wp-content/uploads/2021/08/Chapter-30-in-Brief-The-new-bioeconomy-in-the-Amazon-Opportunities-and-challenges-for-a-healthy-standing-forest-and-flowing-rivers-Final.pdf>. Acesso em: Jan. de 2022.
https://www.theamazonwewant.org/wp-conte...
). No mesmo sentido, formou-se um acordo pré-competitivo entre os três maiores bancos privados do país não só para interromper o financiamento de atores econômicos ligados à devastação, mas sobretudo no esforço de estimular formas construtivas de uso da sociobiodiversidade. Os compromissos de dois dos maiores frigoríficos brasileiros e globais (Marfrig e JBS) de rastrear suas cadeias produtivas desde a origem e de estimular o uso sustentável da biodiversidade no âmbito do respeito à manutenção da floresta em pé vão na mesma direção. Uma das mais importantes expressões dessas mudanças é a emergência de uma Concertação pela Amazônia9 9 Disponível em: <https://arapyau.org.br/concertacao-pela-amazonia-lanca-portal-com-informacoes-sobre-a-iniciativa-e-a-regiao/>. que reúne representantes de grandes empresas brasileiras e internacionais, personalidades do mundo artísticos, representantes de povos da floresta, ativistas e que está elaborando um diagnóstico e um projeto para fazer do uso sustentável da sociobiodiversidade o cerne de um modelo de crescimento capaz de vincular organicamente o uso sustentável da sociobiodiversidade ao combate à pobreza e o fortalecimento da inovação.

É importante mencionar também a formulação de um Plano de Recuperação Verde por iniciativa do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal (2021), sob a direção de Flavio Dino, governador do Maranhão. Apesar da evidente distância política entre os nove governadores da região, esse Plano tem a virtude de buscar caminhos não predatórios para a geração de renda e a redução das desigualdades na Amazônia.

A cada dia fica mais claro que a visão de mundo predominante hoje no governo federal (para não falar de sua inépcia técnica e organizacional) tornou-se ameaça para a saúde pública, para a educação, para a democracia e para a emergência de negócios capazes de contribuir para o desenvolvimento do país. Felizmente, a crescente unidade entre governos municipais e estaduais da Amazônia, cientistas, ativistas e um número cada vez maior de empresas está apontando caminhos pelos quais o respeito a nossa sociobiodiversidade será um trunfo na luta pelo desenvolvimento sustentável na Amazônia e no Brasil como um todo.

Referências

Notas

  • 1
    A frase do general Hamilton Mourão pode ser ouvida no minuto 52:34 dessa gravação disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=bogRVb7Shv0&t=2351s>.
  • 2
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=alqtlhY4T68>.
  • 3
    A perplexidade do ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, em janeiro de 2019, em Davos, diante da sugestão de Jair Bolsonaro de que os Estados Unidos ajudassem o Brasil a explorar os recursos da Amazônia (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CPpH7FRFcY0>), é menos emblemática do que a explicação da cena por parte do vice-presidente Mourão, quando ele acusava Gore de ser um claro defensor da internacionalização da Amazônia (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xNaf2P0JiLQ>).
  • 4
    Em agosto de 2019, tanto Jair Bolsonaro quanto seu ministro, o general Augusto Heleno, declararam existirem irregularidades na demarcação e que territórios indígenas estavam sendo vendidos a estrangeiros, sem mostrar qualquer evidência que fundamentassem essas acusações, como mostra matéria publicada pela revista Exame (Disponível em: <https://exame.com/brasil/e-muita-terra-para-pouco-indio-diz-bolsonaro/>).
  • 5
    Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/em-rondonia-deputados-aprovam-nova-reducao-de-areas-protegidas>.
  • 6
    Disponível em: <https://climateactiontracker.org/countries/indonesia/>. É importante lembrar que, em 2020, a Indonésia reduziu seu desmatamento em 75%, em comparação ao ano anterior. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-indonesia-environment-idUSKBN2AV1AU>.
  • 7
    O depoimento de Assuero Doca Veronez, presidente da Federação de Agricultura do Acre, sobre a Amacro, acrônimo de Amazonas, Acre e Rondônia, um projeto para estimular a produção agropecuária na confluência desses três estados é emblemático. No vídeo veiculado logo ao início da reportagem de Wenzel e Sá (2020), Veronez explica: “temos que sair desta inércia improdutiva em que nós estamos, principalmente no Acre e no Amazonas” (minuto 0:58). “A questão ambiental foi uma questão muito limitadora. Desmatamento pra nós é sinônimo de progresso, por mais que isso possa chocar as pessoas. O Acre não tem minério, não tem potencial turístico. O que o Acre tem, são as melhores terras do Brasil. Só que esta terra tem um problema: tem uma floresta em cima. É problema a floresta, porque a floresta não dá retorno econômico”.
  • 8
    Disponível em: <http://origensbrasil.org.br/>.
  • 9
    Disponível em: <https://arapyau.org.br/concertacao-pela-amazonia-lanca-portal-com-informacoes-sobre-a-iniciativa-e-a-regiao/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2022
  • Aceito
    19 Maio 2022
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