Acessibilidade / Reportar erro

Infraestruturas residuais: colonialismos na gestão de resíduos e a política catadora

RESUMO

O artigo explora a relação entre resíduos e cidade a partir do prisma das infraestruturas urbanas e propõe o conceito de “infraestruturas residuais” como estratégia para analisar a dimensão residual, não hegemônica, que se constitui nos sistemas de gestão, enfocando processos de mudança que reconfiguram a infraestrutura operando a exclusão de elementos considerados à margem, apesar de sua centralidade prática. O foco etnográfico se volta para o “fechamento” do aterro de Jardim Gramacho, no Rio metropolitano, pensado como um “evento infraestrutural”, que mobiliza uma arena de disputa entre distintos atores e repertórios tecnológicos, configurando uma política dos resíduos. A noção de “pessoas como infraestruturas corporificadas” qualifica os catadores como sistemas sociotécnicos e descortina a persistência de colonialismos nos sistemas de gestão de resíduos modernos, que continuam moldando as geografias urbanas e (re)produzindo estruturas racializadas de desigualdade. A política catadora é então pensada como um socioambientalismo popular capaz de forjar modelos de cidadania e projetos de cidade alternativos.

PALAVRAS-CHAVE:
Resíduos; Infraestruturas; Sistemas sociotécnicos; Colonialismos; Produção da cidade

ABSTRACT

The article explores the relationship between waste and cities through the prism of urban infrastructures, and proposes the concept of “residual infrastructure” as a strategy to analyze the residual, not hegemonic, dimension of waste management systems, focusing on change processes that reconfigure the infrastructure excludes elements deemed marginal, despite their actual centrality. The ethnographic focuses the “closure” of the Jardim Gramacho landfill, in the Rio de Janeiro metropolitan region, considered as an “infrastructural event” that mobilized a contentious arena between different actors and technological repertoires, configuring the waste policies. The notion of “people as embodied infrastructures” qualifies the waste pickers that collect recyclable material as socio-technical systems and reveals the persistence of colonialisms in modern waste management, which continue to shape urban geographies and (re)produce racialized structures of inequality. Waste-picking policies are thought of as a kind of popular socio-environmentalism capable of forging citizenship models and alternative projects for the city.

KEYWORDS:
Waste; Infrastructures; Sociotechnical systems; Colonialisms; City-making

Este texto busca refletir sobre a relação entre resíduos e cidade e adota os espaços dos lixões e aterros de resíduos, normalmente invisibilizados e estigmatizados, como foco de análise privilegiado para pensar a produção da cidade. Os sistemas de gestão de resíduos, centrados em vazadouros, aterros e outros locais para despejo de objetos descartáveis, produzem territórios específicos, compondo infraestruturas urbanas que (re)modelam a cidade desde suas margens.

A partir do caso do fechamento do aterro de resíduos de Jardim Gramacho, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, abordamos um processo de mudança infraestrutural ou desfazer de uma infraestrutura. A etnografia corresponde ao trabalho de campo realizado durante a pesquisa de doutorado, quando acompanhei as atividades dos catadores de recicláveis durante 14 meses entre abril de 2011 e junho de 2012.1 1 Esse trabalho resultou na tese publicada em livro Lima (2021), que se soma às contribuições dos estudos sociais dos resíduos ou discard studies. Nesse artigo retomo o material etnográfico para empreender uma análise a partir de uma perspectiva distinta, da “virada infraestrutural” aberta pelo campo dos estudos sobre infraestruturas. Nesse sentido, a reflexão se insere na interseção desses dois recentes campos acadêmicos multidisciplinares com relevância crescente no cenário internacional.

A noção de “infraestruturas residuais” é desenvolvida como chave conceitual para a análise e seu uso não se justifica apenas pela temática, por adotar como objeto as infraestruturas urbanas centradas nos sistemas de gestão de resíduos, mas, sobretudo, por avançar teoricamente no tratamento do tema em relação a três aspectos principais.

Primeiro, ao enquadrar em uma mesma perspectiva de análise as múltiplas escalas, relações, espacialidades e temporalidades agenciadas pelos resíduos, a noção se mostra útil por colocar em foco a dimensão residual, não dominante ou hegemônica, que constitui os sistemas de gestão, concebidos historicamente a partir de uma perspectiva meramente técnica pautada pelas engenharias (Reno, 2015RENO, J. Waste and waste management. Annual Review of Anthropology, v.44, n.1, p.557-72, 2015. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102214-014146
https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-1...
). O conceito busca lançar luz sobre a dimensão humana, “corporificada” (Csordas, 1990CSORDAS, T. J. Embodiment as a Paradigm for Anthropology. Ethos, v.18, n.1, p.5-47, 1990. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/640395>.
http://www.jstor.org/stable/640395...
), “vital” (Fredericks, 2018_______. Garbarge Citizenship: Vital Infrastructures of Labor in Dakar, Senegal. Duke University Press, 2018.) dos sistemas “sociotécnicos” (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; Callon, 2004CALLON, M. Por uma nova abordagem da ciência, da inovação e do mercado - o papel das redes sociotécnicas. In: PARENTE, A. (Org.) Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004. p.64-79.) que compõem as infraestruturas em questão, trazendo ao debate aspectos como corpo, raça e colonialismo na discussão da produção da cidade.

Segundo, desenvolvendo uma perspectiva corporificada da infraestrutura, que enquadre a materialidade, o corpo, a raça e as dimensões de poder que estruturaram historicamente o desenvolvimento urbano e a formação das cidades, o conceito fornece um prisma processual das infraestruturas urbanas. Este permite incorporar durações de mais longo alcance na análise, mapeando continuidades e descontinuidades, e em que medida mudanças atualizam formas de reprodução ou representam condições de possibilidade para transformações sociais e urbanas efetivas.

Terceiro, o conceito de infraestruturas residuais propõe uma abordagem da ideia de margem, que a qualifica analiticamente sem essencializar e objetificar as relações de poder e geográficas que estruturam o espaço urbano e suas dinâmicas. Nela, a margem é assumida como uma posição residual, enfatizando a conexão, a interdependência e a reversibilidade ao tratar das relações entre supostas margens e centros. Esse deslocamento incorpora a possibilidade de reversão perspectiva das posições, construindo uma abertura conceitual para que a posição marginal possa ser tratada com centralidade, num englobamento reversível que torna visíveis as relações mais opacas e sistematicamente deixadas à sombra entre as partes.2 2 Para uma aplicação etnográfica avant la lettre da ideia de infraestruturas residuais ver Lima (2020).

Tais características tornam o conceito de infraestruturas residuais integrador, por permitir não se limitar às fronteiras formais ou institucionais, incorporando em seu escopo relações e articulações entre distintos sistemas de gestão de resíduos para além da divisão formal/informal, assumindo como parte de uma mesma infraestrutura espaços mais amplos da cidade, regiões intermunicipais, e outras conexões operantes na prática, porém não pensadas em relação porque separadas no plano discursivo.

A despeito de serem centrais para a operação e funcionamento dos sistemas de gestão de resíduos, as pessoas e os corpos que “informalmente” os sustentam e colocam em movimento são concebidos como elementos estrangeiros a esses, sofrendo reiteradas e ineficazes tentativas de seu alijamento ou exclusão. Os efeitos políticos desse processo se materializam na (re)produção estrutural das desigualdades sociais e raciais forjadas no contexto colonial, que continuam moldando as geografias urbanas e as formas de habitar a cidade pelas populações periféricas, em particular os catadores, predominantemente pretas.3 3 De acordo com dados do Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 66% dos catadores se afirmam negros (pretos e pardos) (Sant’Ana e Metello, 2016), número que chega a variar para 74% em outras análises (Ancat, 2018, p.17).

Enquanto objetos eminentemente mediadores e em fluxo, que agenciam modos de governo, saberes expertos e leigos, sistemas técnicos e simbólicos, redes materiais e amplos mercados, os resíduos e as infraestruturas que os sustentam e são sustentadas por eles, são pensadas enquanto matérias políticas (Braun et al., 2010BRAUN, B.; WHATMORE, S.; STENGERS, I. (Org.) Political matter: Technoscience, democracy, and public life. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.; Cirelli, 2021CIRELLI, C. et al. Penser le politique par les déchets. Géocarrefour, v.95, n.95/1, 2021.; Mcfarlane, 2008McFARLANE, C. Governing the contaminated city: Infrastructure and sanitation in colonial and post‐colonial Bombay. International journal of urban and regional research, v.32, n.2, p.415-35, 2008.), atravessadas, em sua faceta mais latente, por jogos de poder assimétricos e muitas vezes injustos, que reproduzem estruturas racializadas de desigualdade. A política dos resíduos em jogo na conformação das infraestruturas mantém, no entanto, um caráter aberto, carregando em suas brechas a possibilidade de transformação a partir da ação política cotidiana dos atores.

Mediante cenas etnográficas, o texto retraça a história do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho e analisa o seu “fechamento”, que atingiu diretamente o bairro e a população de catadores que trabalhava no local, como um caso privilegiado ou evento infraestrutural (Carse, 2017CARSE, A. An infrastructural event: making sense of Panama’s drought. Water Alternatives, v.10, n.3, p.888-909, 2017.). Esse evento, que marca o desfazer de uma infraestrutura, conjuga diferentes temporalidades, interconexões e invisibilidades, pondo em relevo as relações de poder e disputas entre atores, lógicas e modelos de gestão distintos, que constituem a política dos resíduos. Nesse jogo eram colocadas em tensão não apenas formas de vida e distintos usos dos espaços urbanos, mas modos de governo e modelos de cidadania que abrigavam projetos alternativos de cidade.

Desse modo, o caso converge com tendências globais da governança de resíduos, apontando similaridades, mas guardando especificidades significativas que permitem pensar processos de urbanização, reprodução de desigualdades e potencialidades da luta política dos pobres urbanos comparativamente no Sul Global.

“Nossos tempos de escravidão”: pessoas como infraestruturas corporificadas e colonialismos nos sistemas sociotécnicos de resíduos

Andando pelo chão de terra vermelha do aterro, avisto um grupo de catadores sentados após uma manhã de trabalho na Rampa.4 4 Designação nativa do local em que os resíduos eram despejados e no qual a catação era exercida no aterro. Com o volume de materiais acumulados assumindo a forma de um morro, a “rampa” também fazia referência, de modo genérico, ao empreendimento do aterro como um todo. Era hora da sesta, eles descansavam e conversavam descontraidamente, então me aproximei. Ao fundo, a paisagem verde contornada por cadeias de montanhas e chaminés que cuspiam fogo, espetáculo corriqueiro proporcionado pela atividade da Refinaria de Petróleo (Reduc), situada do outro lado da margem do Rio Sarapuí.

Começo a conversar com Laura,5 5 Os nomes das personagens são pseudônimos. catadora que já conhecia e que naquela ocasião observava a gravação de um filme ficcional tendo o aterro como locação. Alguns catadores atuavam como figurantes exercendo seu próprio trabalho e ela também se incluía nesse grupo. Ao perguntar da sua opinião sobre a cena que víamos, Laura ativa muitas memórias daquele espaço, assim como a dos companheiros ao seu redor que nos ouviam: “essa cena que eles tão fazendo aí, eu acho que vai dar mais emoção, porque vai ser tipo filme de terror. A gente lutando, na dificuldade. [...] Esse filme tá fazendo uma presença assim da escravidão, as pessoa lutando”

Eu: “como vocês imaginam que vai ser a história do filme?”

Ilana: “pegando a vida real. O que a gente passa”.

Laura: “não é? É vida real mesmo. Isso aqui agora, não. O que foi nossos tempos de escravidão aqui, foi muito sofrimento”.

Eu: “escravidão que você fala é o catar aqui como era antes?”

Laura: “é o sofrimento. A gente catava no sofrimento. Tinha um guarda lá na portaria, ela aqui sabe que o homem era triste. Ele era horrível. E não tinha caminhão pra subir material, tinha horário”.

Eunice: “era por dentro d’água, nós subia por dentro do mangue”.

Jeová: “naquela época, esse material que a gente catava aqui era tudo carregado na mão, no braço”.

Laura: “e o Benito [segurança da época] metia a faca nas lona e carregava tudo”.

Jeová: “antigamente, os guarda vinha e queimava as lona era o maior prejuízo pra todo mundo. A gente vivia revoltado. Sofremo. O sofrimento antigamente era muito grande aqui nesse lixo. Não era fácil não. Hoje em dia tá tudo fácil”.

Eu: “e como é que foi essa mudança?”

Eunice: “com a tirada dos guarda foi mudando tudo. Primeiro entrou os guarda já mais compreensivo, que não humilhava tanto o xepeiro. Que a gente era muito humilhado aqui dentro. A gente vinha pra trabalhar, não sabia se a gente ia voltar pra casa, muito acidente, muita coisa que acontecia aqui com os catador. Agora a gente pode dizer que tá no mar de rosa. A gente sofre, mas não é tanto conforme a gente sofria antigamente, no passado, entendeu?”

Distante dos sentidos normalmente atribuídos pelo senso comum e dos estereótipos estigmatizantes que circulam nas imagens veiculadas pela mídia, o Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (AMJG) na prática não correspondia à ideia de um vazio social. As recorrentes e sempre reiteradas representações que versam sobre a falta, a carência e a necessidade como chaves de inteligibilidade para a compreensão desse universo compõem um retrato enganoso de “fim de mundo”, lugar miserável à parte da sociedade, destituído das condições básicas que costumam conferir o status de “humanidade”. Nesse quadro, um local caracterizado pelo acúmulo monumental de dejetos e objetos descartados não poderia ser outra coisa senão um espaço alheio ao Estado e seus ordenamentos e degradante diante dos valores e dos modos de vida civilizados, em suma, um lugar à margem.

O que essa imagem esconde é o fato de que tais espaços não são locais isolados, encerrados no além da fronteira que separa a sociedade, a civilização e, ao cabo, a humanidade. Muito pelo contrário, “lixões”, aterros e vazadouros de lixo, articulam uma infinidade de fluxos, regiões, materialidades e processos, e nesse sentido, “integram” a cidade, na medida em que centralizam os sistemas de gestão de resíduos. Por essa mesma lógica, os resíduos não seriam meramente coisas inúteis e desprezadas que constituiriam um problema, mas objetos eminentemente mediadores, que criam e mantêm uma série de conexões. Sob essa perspectiva, os resíduos e os espaços caracterizados pela presença massiva desses ganham um sentido positivo, na medida em que agenciam uma multiplicidade de relações compondo uma rede heterogênea que operacionaliza e sustenta infraestruturas urbanas imprescindíveis para a vida nas cidades.

Voltamos assim para a história de Laura. Em 2011, quando nos conhecemos, o aterro de Jardim Gramacho estava em operação há 33 anos e Laura completava 29 anos como catadora no local. Inaugurado em 1978, o empreendimento foi concebido como uma solução definitiva para a questão da limpeza urbana e da destinação dos resíduos da região metropolitana. Foi projetado durante o regime militar, no âmbito da recém-criada Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Fundrem), sob a gestão direta do poder federal, que transformou a localidade em “área de segurança nacional”. O projeto de engenharia previa o “impedimento da invasão da área por catadores de lixo (xepeiros), para evitar problemas à operação dos equipamentos ou focos de transmissão de doenças” (Nascimento, 2002NASCIMENTO, V. B. Estudo de Caso: análise da remediação ambiental do aterro metropolitano de Gramacho - Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002. Dissertação (Mestrado) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz., p. 43). E apesar de concebido dentro das melhores técnicas que se conhecia na época, o projeto se descaracterizou no processo de sua implementação6 6 Condizente com a temporalidade “ainda construção, já ruína” descrita por Cavalcanti (2021). e o aterro foi inaugurado sem respeitar os parâmetros e as legislações vigentes, na condição de “lixão”.

O relato de memórias de Laura e seus colegas catadores descreve o trabalho e o modo de operação do aterro no período compreendido pelo seu funcionamento em caráter irregular, situação na qual permaneceu por aproximadamente 14 anos, angariando uma população cada vez maior de pessoas interessadas em coletar os materiais ali despejados, que também se acumulavam progressivamente na paisagem. Essa época foi marcada por condições duras de trabalho, insegurança e violência, expressas pela ausência de estrutura como caminhão para transporte da carga coletada, pela existência de abusos e humilhações praticadas pelos guardas, que expropriavam os materiais dos catadores, por riscos de acidentes com constantes incêndios pela falta de canalização e adequação do gás expelido pelos detritos, e pela privação e cerceamento ao acesso do local para a coleta por parte das mulheres, o que as deixava em situação de profunda vulnerabilidade, tendo que atravessar o mangue a pé para adentrar o local.

A caracterização da experiência do passado na Rampa é sintetizada por Laura com uma frase que remete às marcas e efeitos em seu próprio corpo: “a gente catava no sofrimento”. Seu colega Jeová complementava esse quadro afirmando que “era tudo carregado na mão, no braço”. Essa experiência de sofrimento no exercício da atividade de catação foi qualificada por Laura como “nossos tempos de escravidão aqui”. A frase ressoa para além da experiência pessoal ou geracional de Laura e seus companheiros e pode ser colocada em perspectiva histórica levando a análise do governo dos restos e dos dispositivos técnicos que compunham os sistemas de gestão dos resíduos para um passado mais longínquo, que remonta aos primórdios da limpeza urbana no Rio de Janeiro.7 7 Para uma análise histórica detalhada do governo dos restos e dos sistemas de gestão dos resíduos no Rio de Janeiro, ver Lima (2021).

Esse movimento retrospectivo remete a um Rio colonial marcado pela escravidão e revela especificidades históricas dos modos de urbanização da cidade. Na sociedade colonial sob o regime escravocrata, negros africanos eram incumbidos de quase a totalidade das atividades urbanas, em particular, a construção de obras de infraestrutura, provimento de serviços, incluindo aqueles relacionados ao abastecimento de água e à destinação dos excrementos.

No século XIX, o Rio de Janeiro se transforma no centro político, administrativo e comercial do Império português, mudança de status decorrida da vinda da corte portuguesa para a cidade, o que operou transformações sociais e políticas consideráveis com a expansão da economia urbana e a demanda civilizatória por serviços de infraestrutura, sobretudo para abrigar apropriadamente a nobreza e a elite da então capital (Prior, 2008PRIOR, T. Chegada da corte: hábitos sanitários no Brasil Colônia. GT ÁGUAS, Revistas das águas, PGR, 4a CCR, ano 2, n.6, jun. 2008. Disponível em: <http://revistadasaguas.pgr.mpf. gov.br/edicoes-da-revistaedicao-06/artigos/chegada-da-corte-habitos-sanitarios-no-brasil-colonia>.
http://revistadasaguas.pgr.mpf. gov.br/e...
). O Rio oitocentista era uma cidade profundamente africana, contendo entre 1821-49 “a maior concentração urbana de escravos existente no mundo desde o final do Império Romano” (Alencastro, 1997, p.24).

A higiene doméstica e pública nos tempos coloniais e imperiais da cidade era feita pelos negros escravizados cujos corpos consistiam nos dispositivos técnicos que operacionalizavam a gestão dos restos. “O sistema de saneamento das cidades brasileiras foi por muito tempo o ‘tigre’”, como eram vulgarmente conhecidos os barris de excremento que negros escravizados carregavam na cabeça das casas até às praias para o despejo no mar, e que denominou com o tempo os próprios sujeitos cativos obrigados a esse serviço, relata Gilberto Freyre (1999_______. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patricarcal. 36.ed. Rio de Janeiro: Record, 1999., p.461; 1996, p.197), que aponta ainda fato de que sua existência retardou a instalação dos serviços de esgoto. Os tigres constavam na escala mais baixa entre os escravizados, sofrendo um estigma ainda mais intenso, duplicado pela relação que sua atividade obrigava a estabelecer com os dejetos.

Retraçando os sistemas de resíduos historicamente, recuperamos os nexos que dão sentido às memórias de Laura ao sublinhar o sofrimento acarretado pelo exercício das atividades de lidar com os resíduos, materializado no corpo, na medida em que “era tudo carregado na mão, no braço”. Esses braços e mãos que erguiam e sustentavam a cidade, limpavam as ruas, carregavam detritos e coletavam materiais eram corpos pretos, escravizados, violentados e submetidos a posições subalternas da estrutura social. A presença desses corpos aponta uma dimensão literal e encarnada da noção de “pessoas como infraestrutura” (Simone, 2004SIMONE, A. People as infrastructure: Intersecting fragments in Johannesburg. Public culture, v.16, n.3, p.407-429, 2004.), em que mãos, braços, membros e corpos funcionam como operadores, consistindo em dispositivos sociotécnicos dos sistemas urbanos.

Essa condição manual e humana, de modo mais ou menos visível e sob mudanças de status de formal a informal, irá persistir ao longo do tempo, como centro da política dos resíduos, alvo constante de disputas em torno das infraestruturas urbanas de gestão de resíduos e das formas de habitar a cidade. Para enfatizar analiticamente essa dimensão humana, Fredericks (2014FREDERICKS, R. Vital infrastructures of trash in Dakar. Comparative Studies of South Asia, Africa and the Middle East, v.34, n.3, p.532-48, 2014.) propõe a noção de “infraestruturas vitais” a partir dos trabalhadores de limpeza de Senegal, enquanto Amy Zhang (2019ZHANG, A. Invisible Labouring Bodies: Waste Work as Infrastructure in China. Made In China Journal, 2019) pensa os trabalhadores de resíduos no contexto chinês com a ideia de “invisible labouring bodies”.

Em consonância com recentes formulações (Andueza et al., 2021ANDUEZA, L. et al. The body as infrastructure. Environment and Planning E: Nature and Space, v.4, n.3, p.799-817, 2021.), prefiro pensar em termos de “pessoas como infraestrutura corporificada” (embodied) de modo a acentuar a dimensão material, racial e corporal que sustenta historicamente as infraestruturas urbanas, trazendo para o foco o racismo, o colonialismo e a desigualdades estruturais que lançam luz sobre as dinâmicas políticas do presente, apontando permanências, diante das tentativas sistemáticas de exclusão dessas pessoas do próprio sistema, a despeito da centralidade que possuem na prática.

A dimensão colonialista que atravessa a produção de resíduos foi sublinhada por Liboiron (2021LIBOIRON, M. Pollution is colonialism. Duke University Press, 2021., p.6) ao pensar o colonialismo de modo mais persistente e sutil como “a set of contemporary and evolving land relations that can be maintained by good intentions and even good deeds”. Apesar de seu argumento dar proeminência ao caso das terras indígenas, fornece pistas inspiradoras para refletirmos sobre as contínuas formas de colonialismo presentes nas grandes cidades, que atualizam violências, explorações e desigualdades na relação com a “terra” no próprio quadro de formação das cidades modernas. Isso é válido sobretudo em contextos marcados pela diáspora da população negra, “integrada” à estrutura do espaço urbano sob a dominação racista do regime colonial da escravidão, como a história do Rio de Janeiro demonstra de modo paradigmático. Nesse sentido, ao abordar a gestão de resíduos no Rio metropolitano, esse trabalho ajuda a qualificar pesquisas recentes que enfocam a relação entre raça e cidade (Barone; Rios, 2019BARONE, A.; RIOS, F. (Org.) Negros nas cidades brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2019.), indicando desdobramentos contemporâneos do fato de que o desenvolvimento urbano de cidades latino-americanas foi racialmente estruturado, “caracterizando a própria distribuição populacional no espaço urbano” (Silvério, 2019SILVÉRIO, V. R. Uma releitura do ‘lugar do negro’ e dos ‘lugares de gente negra’ nas cidades. In. BARONE, A.; RIOS, F. (Org.) Negros nas cidades brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2019., p.28).

“Aí eu botei uma cozinha aqui dentro”: vidas e escombros nas margens da cidade

Ao contar a sua experiência no aterro, “lutando, na dificuldade”, Laura aponta para mudanças ocorridas no local e sua história vai desdobrando outros sentidos da relação com esse território, que vão além do sofrimento. Na conversa, ela comentou que “nunca mais cozinhou na rampa”, rememorando como tudo começou:

“Aí eu botei uma cozinha aqui dentro. Comecei a cozinhar com uma lata de vinte (litros). Vendia salgado, levava de manhã trezentos bolinhos, vendia cada um por um Real e na hora do almoço não tinha mais nenhum, aí foi crescendo. O povo foi gostando. Quando eu vi eu já tava dando almoço pra quarenta pessoas. Mas tinha coisa com fartura! Era muita coisa que vazava, às vezes caixa cheia de congelado na validade ainda. Pintava salmão, fazia salmão, pintava feijoada, fazia feijoada. Eu fazia tudo quanto é tipo de comida. Aí pronto. Todo mundo comia comigo. Até os guarda almoçava tudo. Não tinha limite também não. Arrumava essas latas de sorvete, outras latas de Neston aquilo ali eu enchia, que você sabe que xepeiro come, né? Isso foi como eu levei minha vida, uns oito anos cozinhando aqui dentro, no chão.”

Depois a sua cozinha acabou, “o pessoal foi vendo aquilo, aí foi estragou tudo, eu me aborreci e parei”, e Laura continuou no aterro apenas catando. Ela dizia que gostava de trabalhar nisso mesmo, no entanto, seus familiares não gostavam do trabalho que ela exercia. Na sua narrativa, deixava expressos os afetos que mantinha por aquele lugar “onde a gente criou nossos neto, né? Eu criei filho, neto e já tem um casal de bisneto. Então, é onde eu agradeço muito a Deus, de Deus ter me botado nesse lugarzinho que eu estou”. Apesar de demonstrar cansaço pelos quase trinta anos de rampa, “minhas força tão acabando”, Laura não catava mais “lá em cima”, o que justificava pelo fato de que “meus amigos estão todos nas cooperativas”, e também porque, segundo sua avaliação, quase não tinha mais material lá por causa do fechamento do aterro. Em relação a isso ela afirmava “Vou sentir muita saudade” ao mesmo tempo em que dizia “só saio daqui quando a rampa acabar”.

O aterro de Jardim Gramacho na época em que realizava minha pesquisa abrigava aproximadamente 1.600 catadores, e funcionava ininterruptamente, recebendo caminhões ao longo de todo o dia e durante a noite e a madrugada. Os catadores optavam por turnos, uma parte preferia o noturno, por ser mais calmo, outra parte gostava da agitação do exercício do trabalho de dia na companhia dos demais. No início de 2011, o aterro ainda recebia cerca de 9.000 toneladas por dia de resíduos e a população de catadores lidava com esses montantes de materiais, triando e separando aquilo que possuía valor para revenda na cadeia produtiva da reciclagem. A atividade manual dos catadores no aterro, que alimentava a indústria recicladora através de diversos circuitos comerciais mais ou menos informais envolvendo cooperativas, depósitos e outros estabelecimentos, complementava os sistemas de gestão de resíduos e limpeza urbana municipais, compondo conjuntamente com estes as infraestruturas residuais da região metropolitana.

Os territórios caracterizados pela presença massiva de resíduos abrem brechas e permitem a criação de oportunidades. A atividade do aterro proporcionava combinações complexas de objetos, espaços, pessoas e práticas, movimentando toda a economia dos resíduos no local, na qual catadores se engajavam de modo a extrair e aproveitar ganhos monetários (Millar, 2008MILLAR, K. Making trash into treasure: struggles for autonomy on a Brazilian garbage dump. Anthropology of Work Review, v.29, n.2, p.25-34, 2008.; 2018; Lima, 2017LIMA, M. R. P. Plasticidades recriadas: conhecimento sensível, valor e indeterminação na atividade dos catadores de recicláveis. Sociol. Antropol., Rio de Janeiro, v.7, n.1, p.209-38, abr. 2017. https://doi.org/10.1590/2238-38752017v719.
https://doi.org/10.1590/2238-38752017v71...
). É por isso que a experiência dos catadores no aterro pode ser definida não apenas como uma fonte de sofrimento, mas também como um “refúgio”, que oferece a eles maior autonomia na vida diária em um contexto de profunda instabilidade e precariedade (Millar, 2014, p.35).

A história de Laura e sua cozinha não ilumina apenas a “viração”, dimensão empreendedora e econômica que atravessa o cotidiano das classes populares, mas também outras dimensões que vão se sedimentando a partir do vínculo com o espaço, e que permitem entender porque muitos catadores resistiam à ideia de deixar a atividade no local, expressando suas preferências pela permanência ali. Tais dimensões são atravessadas por afetos, consistindo na produção de relações pessoais, de amizades, de momentos de lazer e espaços de sociabilidade marcados pelo riso, piadas, provocações, elementos que ultrapassam o âmbito estritamente laboral, fazendo a Rampa adquirir contornos específicos e conferindo outros sentidos de pertencimento para os catadores.

Como uma catadora costumava me dizer “a rampa é democrática”, e de fato a gigantesca pilha de objetos descartados e detritos de Jardim Gramacho, com o talude tendo chegado a 40 metros de altura, ganhava ares de uma verdadeira entidade para os catadores, que a chamavam de mãe (“Rampa mãe”, “mãe rampa”), denominação que articula em seu campo semântico o cuidado, sendo aquela que provê, que dá e permite a vida, mas também, mantendo a ambiguidade própria do lixo, sendo aquela que põe constantemente em perigo, e que pode causar injúria bem como levar à morte.8 8 Casos de acidentes, pessoas aterradas pelos resíduos despejados pelo caminhão, e adoecimentos por tuberculose e outras doenças não eram incomuns.

Essa ambiguidade está presente nas memórias e experiências de Laura e seus colegas, ao lembrarem dos incêndios constantes e acidentes, das ocasiões em que quase perderam a vida, das violências, arbitrariedades e humilhações pelos guardas, das dificuldades e do sofrimento pela ausência do direito de acesso e falta de equipamentos para o trabalho. Esses episódios indicam ainda as transformações pelas quais o aterro passou historicamente, que acompanham mudanças nas concepções sociais, nos planos estatais e modos de governo de territórios e populações, e constituem processos pelos quais a cidade é produzida.9 9 Mariano Perelman (2010) reflete sobre a relação histórica entre os espaços destinados aos resíduos e a produção da cidade a partir do caso do fechamento do vazadouro La Quema e das transformações nos modos de conceber o trabalho dos catadores no contexto de Buenos Aires.

Após a inauguração do aterro em caráter irregular na década de 1970 e do seu funcionamento como lixão por 15 anos, o evento internacional ambiental Rio-92 foi o marco histórico responsável pela sua remediação e adequação às normas vigentes, transformando-o em aterro controlado, o que permitia a presença de catadores. Dentre as ações que corresponderam à recuperação do local constam o desenvolvimento de soluções técnicas para o tratamento do chorume e do biogás de modo a evitar incêndios, a recuperação dos manguezais, a cobertura especial da área destinada a resíduos hospitalares, o monitoramento da entrada de pessoas e caminhões, além da formação da primeira cooperativa de catadores do bairro. Vinte anos depois, às vésperas do evento Rio+20 que se inscreve no ciclo de megaeventos sediados na cidade na década de 2010, o aterro de Gramacho encerraria suas atividades após 34 anos de operação.

A emergência e decadência do aterro de Jardim Gramacho nos leva a refletir sobre a dimensão espacial e urbana do trabalho dos catadores, enquanto formas de vida que fazem a cidade.10 10 Millar (2018) propõe pensar a atividade dos catadores como “formas de vida” para fugir do dualismo formal e informal, lançando mão de uma estratégia conceitual que não seja pautada pelo paradigma do trabalho assalariado e incorpore outras dimensões para a compreensão da relação dos catadores com o aterro, não apenas como trabalho ou relação econômica, mas como experiência ontológica. O olhar para sua materialidade em retrospectiva no tempo permite inquirir o que o aterro abriga em suas camadas? Quais suores, lutas, sofrimentos, histórias compõem a textura desses materiais que são aterrados? A Rampa é composta por densidades afetivas, laços sociais, vidas, mas também guarda nos sedimentos de seus estratos violências e expropriações.

Gordillo (2014GORDILLO, G. Rubble: the afterlife of destruction. Duke University Press, 2014., p.11) propõe a noção de “escombro” como lentes através das quais podemos examinar o espaço negativamente, “por meio dos lugares que foram negados para criar as geografias do presente”. O antropólogo fornece a partir disso uma perspectiva estratigráfica sobre o espaço, que nos ajuda a pensar as formas anteriores do uso do território que foram destruídas. A transformação do aterro, após o “fechamento”, em uma usina de biogás aponta para essas sedimentações e transformações “modernas” que “passam por cima”, aterrando a história dos catadores dali. Tais tecnologias e empreendimentos tecnológicos reconfiguram a infraestrutura residual, e a partir de suas promessas de modernidade (Larkin, 2013LARKIN, B. The Politics and Poetics of Infrastructure. Annual Review of Anthropology, v.42, n.1, p.327-343, 2013.; Anand et al., 2018ANAND, N.; GUPTA, A.; APPEL, H. (Ed.) The promise of infrastructure. Duke University Press, 2018.), atualizam um discurso estigmatizante sobre os catadores, operando na prática a desterritorialização dos mesmos. Estes precisam redefinir novos circuitos, estratégias e formas organizacionais para a obtenção de materiais recicláveis, uma vez que o acesso às matérias-primas depositadas no aterro passa a ser interditado a eles, com a concessão dos direitos de exploração do gás passando para o setor privado.11 11 O que, com especificidades, reencena historicamente a oposição enclosures x commons (O’Hare, 2017) Assim, a política dos resíduos se constitui também por conflitos e lutas em torno do direito à cidade.12 12 Esse processo ganha contornos globais, sendo implementado através de distintas configurações locais em países tanto do Sul global como India, (Sharma, 2021), como no Norte (Alexander; Reno, 2020)

O aterro de Jardim Gramacho se mostra um objeto privilegiado para pensar a cidade, na medida em que compõe geografias urbanas dos resíduos a partir de territórios “marginais” como a Rampa. A emergência desses espaços na paisagem das cidades corresponde à demarcação de novas fronteiras urbanas pelos planos e políticas de resíduos, (re)definição de novos centros a partir do estabelecimento de lugares afastados dos perímetros urbanos, de novas margens. Marginal aqui assume um sentido posicional e, portanto, perspectivo. Pôr em foco a perspectiva relativa a essa posição marginal e as relações que conectam ambas as posições como mutuamente constitutivas é o que o conceito de infraestruturas residuais busca enfatizar. Evidenciamos assim dimensões proeminentes que tendem a permanecer na opacidade, como a econômica.

Centralizadas pelos espaços dos lixões e aterros, as infraestruturas residuais põem em operação grandes mercados globais, seja via a grande indústria da reciclagem, capaz de gerar anualmente 200 bilhões de dólares (Millar, 2018_______. Reclaiming the Discarded: Life and Labor on Rio’s Garbage Dump. Durham, NC: Duke University Press, 2018. p.248., p.8), seja através do setor centrado em investimentos em tecnologias de geração de energia e biogás a partir de resíduos. Ao pensar o “fechamento” do aterro como evento infraestrutural, rastreamos atores, interesses, estratégias e disputas, colocando em foco as relações de poder que atravessam e constituem a política dos resíduos, de modo a observar na remodelagem da infraestrutura residual a reprodução de injustiças e desigualdades.

A carona de Severino: tecnologias de gestão de resíduos e rearranjos da cidade

Foi um gesto intuitivo. Imediatamente após eu fazer o comentário despretensioso de que ia embora, a catadora com quem conversava deu um grito, sinalizando para que o veículo, que seguia em direção à saída do aterro, parasse. Minha interlocutora se aproximou da carreta da Comlurb e, após poucas explicações, conseguiu uma carona para mim. Foi assim que naquele dia voltei de Jardim Gramacho, bairro de Duque de Caxias, até o Rio de Janeiro, cidade onde morava. Subi no veículo suntuoso, de aspecto prontamente limpo e aparência de novo, e assim que entrei na cabine com ar-condicionado, comecei a conversar com Severino, o motorista, que gentilmente havia aceitado minha companhia para aquela viagem.

De origem nordestina, Severino contou que tinha três filhos e gostava de dançar na “Feira dos paraíbas”. Ele morava em Jardim Gramacho havia quase quarenta anos, antes mesmo da construção do aterro de resíduos, época em que tomava banho no Rio Sarapuí. Severino definiu Jardim Gramacho como um “bairro industrial” e, se referindo às favelas no entorno do aterro, disse que o bairro não era “só aquilo ali”, também existia uma “parte rica, só com casarão”.

“Lixo dá dinheiro”. Com essa observação Severino começou a contar que já havia se aventurado na coleta de materiais recicláveis no aterro: “uma época tentei catar à noite, mas não consegui tirar nada. É muito sofrido, você ganha dinheiro, mas é sofrido”. Comentou que alguns catadores conseguiam R$ 3.000, 3.500 por mês com um turno de trabalho de 12 horas, mas ele se dizia satisfeito com o emprego de motorista, “gosto do meu trabalho. Não ganho bem, mas também não ganho mal”.

Severino trabalhava há quinze anos na Comlurb, companhia que realiza a limpeza urbana no município do Rio de Janeiro. A carreta que dirigia, assim como toda a frota de caminhões em circulação da Comlurb, era terceirizada, da empresa Júlio Simões. Na ocasião, Severino já havia descarregado duas vezes na nova área de destinação dos resíduos do município do Rio de Janeiro, em Seropédica, a cerca de 70 quilômetros da capital, onde foi construída uma Central de Tratamento de Resíduos (CTR) para substituir o aterro de Jardim Gramacho. Quando o veículo chegou na estação de transferência de resíduos da Comlurb no bairro do Cajú, agradeci me despedindo, pois havia chegado o fim da viagem.

O período no qual ocorreu essa carona correspondeu a um momento histórico singular, marcado por uma transição significativa representada pelo “fechamento” do aterro de Jardim Gramacho, até então peça estratégica do sistema gestão de resíduos da região metropolitana do Rio de Janeiro. O encerramento das atividades do aterro desativado em 2012 operou uma mudança infraestrutural, com o rearranjo do sistema de gestão de resíduos acarretando implicações em diversas escalas.

O relato etnográfico da carona com Severino nos oferece sobre o espaço uma perspectiva deslocada. Estar em trânsito com ele permitiu a percepção do aterro de resíduos não como um lugar estático e envolto em si mesmo, mas como um local conectado a outros empreendimentos, situados em diversos espaços urbanos, que fazem parte dos sistemas de resíduos e constituem a infraestrutura residual da cidade.

Em seu relato, Severino descreve um trajeto percorrido em suas viagens como motorista da Comlurb, que compreende o Aterro de Jardim Gramacho, a Estação de Transferência de Resíduos (ETR) no Cajú e a Central de Tratamento de Resíduos (CTR) em Seropédica. A construção desse último empreendimento, não sem conflitos e resistência da população local (Pereira, 2020PEREIRA, T. C. G. O processo de produção de uma injustiça ambiental e seus impactos: o caso do CTR Rio em Seropédica. Espaço e Economia. Revista brasileira de geografia econômica, 2020.), foi estratégica na medida em que viabilizou em termos logísticos o fechamento do aterro em atividade até então, oferecendo um local alternativo para o depósito de resíduos, o que operacionalizou na prática o rearranjo do sistema de resíduos.

A CTR de Seropédica é operada pela empresa Ciclus.13 13 Disponível em: <https://ciclusambiental.com.br>. Fundada em 2010, a Ciclus é uma concessão da Comlurb formada como Sociedade de Propósito Específico (SPE) para realização da gestão integrada de resíduos sólidos. Com o slogan “transformando resíduos em ativos” na apresentação institucional da empresa, a CTR é apontada como “a solução mais segura, moderna e eficiente para tratar resíduos sólidos, domiciliares e de grandes geradores”.14 14 Disponível em: <https://web.archive.org/web/20130818172927/http://ciclusambiental.com.br/ciclus_ctr.php>. Formada por um “conjunto de tecnologias integradas”, o projeto da central é composto de aterro sanitário bioenergético, estação de captação e tratamento de biogás para geração de energia limpa, estação de tratamento de chorume para transformação em água de reuso. Além de transformar resíduos em “energia limpa e renovável”, a Ciclus se apresenta como tendo solucionado “um dos maiores problemas ambientais do Estado do Rio de Janeiro com o encerramento do Aterro Metropolitano de Gramacho”. E como consequência da sua busca por “soluções inovadoras”, a empresa afirma atrair “investimentos na ampliação das indústrias já existentes e na chegada de outras, gerando mais empregos, valorização do município e crescimento sustentável”.15 15 Disponível em: <https://web.archive.org/web/20130818172927/http://ciclusambiental.com.br/ciclus_ctr.php>.

A Ciclus une dois grupos empresariais: a logística das Estações de Transferência de Resíduos (ETR) fica sob a responsabilidade da Julio Simões, enquanto a tecnologia de tratamento de resíduos, incluindo projeto técnico e modelo institucional, é proveniente da Haztec.16 16 Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/economia/mulheres-responsaveis-pelo-novo-aterro-sanitario-em-seropedica-tem-desafio-de-transformar-lixo-do-rio-em-ativo-ambiental-177333.html>. Sua atuação no Estado do Rio de Janeiro contava com quatro Centrais de Tratamento de Resíduos (CTR) localizadas nos municípios de Nova Iguaçu, Barra Mansa, São Gonçalo e Seropédica, todas administradas por meio de concessões públicas junto às prefeituras locais. Em 2009, a empresa era apontada como “uma das maiores potências do Brasil em serviços ambientais”.17 17 Disponível em: <http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/1694_O+EMPRESA- RIO+QUE+VEIO+DO+MAR>, Acesso em: 12 jul. 2012. Reproduzido em: <http://www.terra.com.br/istoedinheiro-temp/edicoes/614/artigo143880-1.htm>.

A descrição desse empreendimento apresenta atores específicos que adentram o cenário da gestão de resíduos, propondo outros usos para os objetos descartados e agenciando novos mercados com conexões globais. Esses agentes econômicos possuem enorme capital financeiro e mobilizam investimentos que são materializados na construção de infraestrutruras nas quais a tecnologia opera como elemento central e estaria equacionada às noções de “modernidade” e “desenvolvimento sustentável”. Este modelo de gestão de resíduos é orientado pelo paradigma da modernização tecnológica,18 18 Ver Lima (2021). e se justifica pelas promessas da eficácia do controle técnico sobre o mundo (Brouwer et al., 2010BROUWER, J.; MULDER, A.; SPUYBROEK, L. The politics of impure. In: BROUWER, J.; MULDER, J.; SPUYBROEK, L. (Ed.) The politics of the impure. V2_ publishing, 2010.).

Nessa perspectiva, os catadores se tornam símbolos de um modelo obsoleto e insustentável, o que cria tensões e disputas entre os catadores e os atores que aparecem como representantes de uma economia emergente bilionária. Esse processo descortina lógicas e propostas de gestão de resíduos diametralmente distintas e a partir dele podemos pensar a política dos resíduos no Rio de Janeiro, identificando alguns padrões e suas implicações.

A política catadora: socioambientalismo popular e cidadanias alternativas

Se os resíduos e suas infraestruturas foram fundacionais na produção das cidades modernas, com a limpeza das cidades europeias do século XIX tendo sido um momento-chave da emergência do liberalismo urbano através do disciplinamento dos corpos (Cooper, 2010COOPER, T. Recycling modernity: waste and environmental history. History Compass, v.8, n.9, p.1114-25, 2010.), no contexto latino-americano, em particular no Rio de Janeiro, o desenvolvimento urbano foi marcado pelo racismo colonialista, com a exploração de corpos negros operacionalizando os sistemas de provimento dos serviços urbanos, como apontou o exemplo dos “tigres”. Essa população foi integrada à estrutura social de modo profundamente desigual, e tais estruturas racializadas de desigualdade persistiram nos sistemas de resíduos ao longo do tempo.

A noção de “pessoas como infraestruturas corporificadas” buscou pôr em relevo esse processo, indicando a persistência de colonialismos nos sistemas de gestão de resíduos modernos, na medida em que sua dimensão humana, “sociotécnica” ou “vital” vem sendo sistematicamente negada ou desqualificada, com as pessoas que sustentam os sistemas de gestão sofrendo reiteradas tentativas de exclusão ou marginalização, a despeito de serem fundamentais para a operacionalização prática dos mesmos.

Ao analisar etnograficamente o caso do fechamento do aterro de Jardim Gramacho como um evento infraestrutural, apresentamos dimensões e aspectos em jogo na mudança das infraestruturas, descortinando uma política dos resíduos. As transformações decorrentes desse rearranjo evidenciam uma arena na qual o setor privado, representado por grupos empresariais ligados a fundos de investimento e ao capital financeiro disputam os territórios, os projetos e os resíduos, pautados pelo paradigma da modernização tecnológica e suas promessas, com uma atuação caracterizada por forte tendência à monopolização. Nessa disputa, esses atores reconfiguram a cidade por meio de grandes empreendimentos tecnológicos, baseados na geração de energia a partir dos resíduos, atualizando as infraestruturas como tecnologias de governo liberais e neoliberais (Anand et al., 2018ANAND, N.; GUPTA, A.; APPEL, H. (Ed.) The promise of infrastructure. Duke University Press, 2018.; Wakefield, 2018WAKEFIELD, S. Infrastructures of liberal life: From modernity and progress to resilience and ruins. Geography Compass, v.12, n.7, p.e12377, 2018.).

O conceito de infraestruturas residuais desenvolve um prisma analítico capaz de integrar sistemas formais e informais de resíduos, contornando a fronteira mobilizada como dispositivo de deslegitimação das práticas dos catadores. Com o conceito, buscamos evidenciar a dimensão sociotécnica presente no corpo e no trabalho desses atores para reconhecê-los como parte constitutiva e legítima da infraestrutura. Desse modo, ao enfocarmos analiticamente a posição residual da infraestrutura, restituímos a centralidade da atuação dos catadores para as dinâmicas urbanas voltadas aos resíduos, o que permite qualificá-la, lançando luz sobre persistências e resistências a despeito das tentativas de apagamento.

A partir disso, buscamos pensar a política dos resíduos da perspectiva da política catadora, pondo em relevo as concepções e as estratégias de ação dos atores “marginais” da infraestrutura. Nas últimas duas décadas, os catadores vêm se organizando desde a fundação do Movimento Nacional dos Catadores de materiais Recicláveis (MNCR), iniciativa pioneira que se tornou referência internacional (Gabard, 2011GABARD, L. F. Hacia una articulación global de recicladores. In: SCHAMBER, P.; SUÁREZ, F. (Org.) Recicloscopio III: miradas sobre recuperadores urbanos, formas organizativas y circuitos de valorización de residuos en América Latina. Buenos Aires: CICCUS; UNLa; Universidad Naiconal de Sarmiento, 2011.), conseguindo pautar a construção da Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS), marco da gestão de resíduos do país, sancionada em 2010.

Antes mesmo da Lei n.12.305, que institui a PNRS, ser sancionada, o MNCR já se manifestava através de uma nota pública19 19 Para ler a nota na íntegra: <http://www.mncr.org.br/artigos/mncr-pede-veto-a-incineracao-na-politica-nacional-deresiduos-solidos>. solicitando ao presidente da República o veto do artigo que apresentava o “aproveitamento energético” como uma das opções para a destinação ambientalmente adequada dos resíduos, que não foi concedido. Desde então, organizações de catadores vem denunciando e se manifestando contra o caráter excludente que tais tecnologias imprimem à gestão de resíduos no país. Em contraposição a isso, apresentam uma proposta de “reciclagem popular”, baseada na coleta seletiva solidária, no cooperativismo, orientados pelos princípios da busca por equidade e por justiça socioambiental (Pérez, 2019PÉREZ, R. Proletarização, ação coletiva e inclusão social: a mobilização dos trabalhadores da reciclagem no Brasil e no Uruguai. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

O fechamento do aterro atingiu diretamente o bairro e sua população, impactando a pulsante economia local em torno dos resíduos, em meio ao contexto de profunda crise que se seguiu ao ciclo de megaeventos, marcados pela deposição de Dilma Rousseff e a ascensão de Jair Bolsonaro e seu projeto de destruição das políticas sociais e de desenvolvimento que marcaram o governo do Partido dos Trabalhadores. Esse cenário foi agravado ainda crise sanitária da pandemia de Covid-19, cujas consequências dramáticas vem se materializando no aumento acentuado dos índices de desemprego, inflação e miséria, com intensificação de práticas informais, inclusive a coleta de descartáveis nas ruas.

Uma vez que o fechamento do aterro representou para os catadores a obstrução do acesso à principal fonte da matéria-prima da região, entidades, organizações e lideranças de catadores de Jardim Gramacho vem reformulando suas estratégias de atuação e mobilização para obterem materiais recicláveis e seguirem trabalhando (Lima, 2018_______. Paradoxos da formalização: a inclusão social dos catadores de recicláveis a partir do caso do encerramento do aterro de Jardim Gramacho (RJ). Horizontes Antropológicos, v.24, n.50, p.145-80, 2018. https://doi.org/10.1590/S0104-71832018000100006.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183201800...
). Isso se traduz nos esforços empreendidos para manutenção das cooperativas, pressionando prefeituras e o poder público pela contratação destas para a realização da gestão de resíduos, com o devido pagamento pelos serviços ambientais prestados.20 20 Sobre pautas e mobilizações da política catadora no Rio de Janeiro: <https://www.residualab.uerj.br/organizacao-de-catadores-gestao-de-residuos-e-politica-no-rio-de-janeiro/>.

Atualmente, uma das principais lutas dos catadores se direciona para o estabelecimento de condições justas na estruturação e implementação do sistema de logística reversa de embalagens, e o devido pagamento em benefício dos atores que destinam corretamente os resíduos, com base no princípio do “poluidor pagador, protetor recebedor”. Os catadores expõem as desigualdades que estruturam o setor industrial, mirando as grandes multinacionais, que colocam anualmente milhares de toneladas de produtos no meio ambiente sem assumir devidamente a responsabilidade pelo ciclo de vida dos resíduos gerados por suas atividades.

O universo agenciado pelos resíduos e as infraestruturas produzidas por eles estão inextrincavelmente entrelaçados à dimensão política que atravessa a relação entre as práticas dos trabalhadores, as disputas e desigualdades que conformam o espaço urbano e as potencialidades e limitações na construção de formas de cidadania (Fredericks, 2018_______. Garbarge Citizenship: Vital Infrastructures of Labor in Dakar, Senegal. Duke University Press, 2018.; Samson, 2009SAMSON, M. Wasted citizenship? Reclaimers and the privatised expansion of the public sphere. Africa Development, v.34, p.3-4, 2009.)

A política catadora que emerge das infraestruturas residuais, ao reivindicar a construção de sistemas de resíduos e de mercados recicladores a partir de condições mais justas para os atores que atuam nas margens, não apenas pautam uma luta que se inscreve na definição de cidadanias alternativas: “trashworkers’vibrant political refusal to be refuse” (Fredericks, 2014FREDERICKS, R. Vital infrastructures of trash in Dakar. Comparative Studies of South Asia, Africa and the Middle East, v.34, n.3, p.532-48, 2014., p.533). Mas, ao pôr em cena um socioambientalismo popular em busca de condições de vida e modos de existência mais dignos, inclusivos e equânimes, constroem uma arena de disputa nas quais seus corpos, e as formas de vida que engendram, ao forjarem outros modos de habitar o mundo, traçam também projetos de cidade que oferecem as condições imaginárias, simbólicas e materiais, para a produção de outros futuros possíveis.

Referências

  • ALECASTRO, L. F. de. Vida privada e ordem privada no Brasil. In: ALENCASTRO, L. F. (Org.) História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p.11-95.
  • ALEXANDER, C.; RENO, J. Global Entanglements of Recycling Policy and Practice. Oxford Research Encyclopedia of Anthropology. 2020.
  • ANAND, N.; GUPTA, A.; APPEL, H. (Ed.) The promise of infrastructure. Duke University Press, 2018.
  • ANCAT. Anuário de Reciclagem: Relatório de Atuação da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT) 2017-2018. Disponível: <https://cempre.org.br/wp-content/uploads/2020/11/2-Anu%C3%A1rio-da-Reciclagem.pdf>. Acesso em: 4 out 2021.
    » https://cempre.org.br/wp-content/uploads/2020/11/2-Anu%C3%A1rio-da-Reciclagem.pdf
  • ANDUEZA, L. et al. The body as infrastructure. Environment and Planning E: Nature and Space, v.4, n.3, p.799-817, 2021.
  • BARONE, A.; RIOS, F. (Org.) Negros nas cidades brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2019.
  • BRAUN, B.; WHATMORE, S.; STENGERS, I. (Org.) Political matter: Technoscience, democracy, and public life. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.
  • BROUWER, J.; MULDER, A.; SPUYBROEK, L. The politics of impure. In: BROUWER, J.; MULDER, J.; SPUYBROEK, L. (Ed.) The politics of the impure. V2_ publishing, 2010.
  • CALLON, M. Por uma nova abordagem da ciência, da inovação e do mercado - o papel das redes sociotécnicas. In: PARENTE, A. (Org.) Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004. p.64-79.
  • CARSE, A. An infrastructural event: making sense of Panama’s drought. Water Alternatives, v.10, n.3, p.888-909, 2017.
  • CAVALCANTI, M. Still construction and already ruin. In: LANCIONE, M.; McFARLANE, C. (Ed.) Global urbanism: Knowledge, power and the city. New York: Routledge, 2021.
  • CIRELLI, C. et al. Penser le politique par les déchets. Géocarrefour, v.95, n.95/1, 2021.
  • COOPER, T. Recycling modernity: waste and environmental history. History Compass, v.8, n.9, p.1114-25, 2010.
  • CSORDAS, T. J. Embodiment as a Paradigm for Anthropology. Ethos, v.18, n.1, p.5-47, 1990. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/640395>.
    » http://www.jstor.org/stable/640395
  • FREDERICKS, R. Vital infrastructures of trash in Dakar. Comparative Studies of South Asia, Africa and the Middle East, v.34, n.3, p.532-48, 2014.
  • _______. Garbarge Citizenship: Vital Infrastructures of Labor in Dakar, Senegal. Duke University Press, 2018.
  • FREYRE, G. Sobrados e mucambos: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. 9.ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.
  • _______. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patricarcal. 36.ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
  • GABARD, L. F. Hacia una articulación global de recicladores. In: SCHAMBER, P.; SUÁREZ, F. (Org.) Recicloscopio III: miradas sobre recuperadores urbanos, formas organizativas y circuitos de valorización de residuos en América Latina. Buenos Aires: CICCUS; UNLa; Universidad Naiconal de Sarmiento, 2011.
  • GORDILLO, G. Rubble: the afterlife of destruction. Duke University Press, 2014.
  • LARKIN, B. The Politics and Poetics of Infrastructure. Annual Review of Anthropology, v.42, n.1, p.327-343, 2013.
  • LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
  • LIBOIRON, M. Pollution is colonialism. Duke University Press, 2021.
  • LIMA, M. R. P. Plasticidades recriadas: conhecimento sensível, valor e indeterminação na atividade dos catadores de recicláveis. Sociol. Antropol., Rio de Janeiro, v.7, n.1, p.209-38, abr. 2017. https://doi.org/10.1590/2238-38752017v719.
    » https://doi.org/10.1590/2238-38752017v719.
  • _______. Paradoxos da formalização: a inclusão social dos catadores de recicláveis a partir do caso do encerramento do aterro de Jardim Gramacho (RJ). Horizontes Antropológicos, v.24, n.50, p.145-80, 2018. https://doi.org/10.1590/S0104-71832018000100006.
    » https://doi.org/10.1590/S0104-71832018000100006.
  • LIMA, M. R. P. (Toxi)City of Steel: Steelmaking infrastructure and social contestation in a case of contamination by industrial waste. Revista Anthropológicas, v. 31, p. 86-121, 2020. https://doi.org/10.51359/2525-5223.2020.247373.
    » https://doi.org/10.51359/2525-5223.2020.247373.
  • _______. O avesso do lixo: materialidade, valor e visibilidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.
  • McFARLANE, C. Governing the contaminated city: Infrastructure and sanitation in colonial and post‐colonial Bombay. International journal of urban and regional research, v.32, n.2, p.415-35, 2008.
  • MILLAR, K. Making trash into treasure: struggles for autonomy on a Brazilian garbage dump. Anthropology of Work Review, v.29, n.2, p.25-34, 2008.
  • _______. Reclaiming the Discarded: Life and Labor on Rio’s Garbage Dump. Durham, NC: Duke University Press, 2018. p.248.
  • _______. The precarious present: Wageless labor and disrupted life in Rio de Janeiro, Brazil. Cultural Anthropology, v.29, n.1, p.32-53, 2014.
  • NASCIMENTO, V. B. Estudo de Caso: análise da remediação ambiental do aterro metropolitano de Gramacho - Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002. Dissertação (Mestrado) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.
  • O’HARE, P. Recovering requeche and classifying clasificadores: an ethnography of hygienic enclosure and Montevideo’s waste commons. Cambridge, 2017. PhD Thesis (Philosophy in Social Anthropology) - Clare College, University of Cambridge.
  • PEREIRA, T. C. G. O processo de produção de uma injustiça ambiental e seus impactos: o caso do CTR Rio em Seropédica. Espaço e Economia. Revista brasileira de geografia econômica, 2020.
  • PERELMAN, M. Memórias de la quema: o cirujeo em Buenos Aires trinta anos depois. MANA, v.16, n.2, p.375-99, 2010.
  • PÉREZ, R. Proletarização, ação coletiva e inclusão social: a mobilização dos trabalhadores da reciclagem no Brasil e no Uruguai. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • PRIOR, T. Chegada da corte: hábitos sanitários no Brasil Colônia. GT ÁGUAS, Revistas das águas, PGR, 4a CCR, ano 2, n.6, jun. 2008. Disponível em: <http://revistadasaguas.pgr.mpf. gov.br/edicoes-da-revistaedicao-06/artigos/chegada-da-corte-habitos-sanitarios-no-brasil-colonia>.
    » http://revistadasaguas.pgr.mpf. gov.br/edicoes-da-revistaedicao-06/artigos/chegada-da-corte-habitos-sanitarios-no-brasil-colonia
  • RENO, J. Waste and waste management. Annual Review of Anthropology, v.44, n.1, p.557-72, 2015. https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102214-014146
    » https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102214-014146
  • SAMSON, M. Wasted citizenship? Reclaimers and the privatised expansion of the public sphere. Africa Development, v.34, p.3-4, 2009.
  • SANT’ANA, D.; METELLO, D. Reciclagem e inclusão social no Brasil: balanço e desafios. In: PEREIRA, B.; GOES, F. (Orf.) Catadores de materiais recicláveis: um encontro nacional. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.
  • SHARMA, S. A moral politics of blame. Discard studies blog. 2021. Disponível em: <https://discardstudies.com/2021/05/17/a-moral-politics-of-blame/>, Acesso em: 28 agro. 2021.
    » https://discardstudies.com/2021/05/17/a-moral-politics-of-blame
  • SILVÉRIO, V. R. Uma releitura do ‘lugar do negro’ e dos ‘lugares de gente negra’ nas cidades. In. BARONE, A.; RIOS, F. (Org.) Negros nas cidades brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2019.
  • SIMONE, A. People as infrastructure: Intersecting fragments in Johannesburg. Public culture, v.16, n.3, p.407-429, 2004.
  • WAKEFIELD, S. Infrastructures of liberal life: From modernity and progress to resilience and ruins. Geography Compass, v.12, n.7, p.e12377, 2018.
  • ZHANG, A. Invisible Labouring Bodies: Waste Work as Infrastructure in China. Made In China Journal, 2019

Notas

  • 1
    Esse trabalho resultou na tese publicada em livro Lima (2021), que se soma às contribuições dos estudos sociais dos resíduos ou discard studies. Nesse artigo retomo o material etnográfico para empreender uma análise a partir de uma perspectiva distinta, da “virada infraestrutural” aberta pelo campo dos estudos sobre infraestruturas. Nesse sentido, a reflexão se insere na interseção desses dois recentes campos acadêmicos multidisciplinares com relevância crescente no cenário internacional.
  • 2
    Para uma aplicação etnográfica avant la lettre da ideia de infraestruturas residuais ver Lima (2020).
  • 3
    De acordo com dados do Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 66% dos catadores se afirmam negros (pretos e pardos) (Sant’Ana e Metello, 2016), número que chega a variar para 74% em outras análises (Ancat, 2018, p.17).
  • 4
    Designação nativa do local em que os resíduos eram despejados e no qual a catação era exercida no aterro. Com o volume de materiais acumulados assumindo a forma de um morro, a “rampa” também fazia referência, de modo genérico, ao empreendimento do aterro como um todo.
  • 5
    Os nomes das personagens são pseudônimos.
  • 6
    Condizente com a temporalidade “ainda construção, já ruína” descrita por Cavalcanti (2021).
  • 7
    Para uma análise histórica detalhada do governo dos restos e dos sistemas de gestão dos resíduos no Rio de Janeiro, ver Lima (2021).
  • 8
    Casos de acidentes, pessoas aterradas pelos resíduos despejados pelo caminhão, e adoecimentos por tuberculose e outras doenças não eram incomuns.
  • 9
    Mariano Perelman (2010) reflete sobre a relação histórica entre os espaços destinados aos resíduos e a produção da cidade a partir do caso do fechamento do vazadouro La Quema e das transformações nos modos de conceber o trabalho dos catadores no contexto de Buenos Aires.
  • 10
    Millar (2018) propõe pensar a atividade dos catadores como “formas de vida” para fugir do dualismo formal e informal, lançando mão de uma estratégia conceitual que não seja pautada pelo paradigma do trabalho assalariado e incorpore outras dimensões para a compreensão da relação dos catadores com o aterro, não apenas como trabalho ou relação econômica, mas como experiência ontológica.
  • 11
    O que, com especificidades, reencena historicamente a oposição enclosures x commons (O’Hare, 2017)
  • 12
    Esse processo ganha contornos globais, sendo implementado através de distintas configurações locais em países tanto do Sul global como India, (Sharma, 2021), como no Norte (Alexander; Reno, 2020)
  • 13
    Disponível em: <https://ciclusambiental.com.br>.
  • 14
    Disponível em: <https://web.archive.org/web/20130818172927/http://ciclusambiental.com.br/ciclus_ctr.php>.
  • 15
    Disponível em: <https://web.archive.org/web/20130818172927/http://ciclusambiental.com.br/ciclus_ctr.php>.
  • 16
    Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/economia/mulheres-responsaveis-pelo-novo-aterro-sanitario-em-seropedica-tem-desafio-de-transformar-lixo-do-rio-em-ativo-ambiental-177333.html>.
  • 17
    Disponível em: <http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/1694_O+EMPRESA- RIO+QUE+VEIO+DO+MAR>, Acesso em: 12 jul. 2012. Reproduzido em: <http://www.terra.com.br/istoedinheiro-temp/edicoes/614/artigo143880-1.htm>.
  • 18
    Ver Lima (2021).
  • 19
    Para ler a nota na íntegra: <http://www.mncr.org.br/artigos/mncr-pede-veto-a-incineracao-na-politica-nacional-deresiduos-solidos>.
  • 20
    Sobre pautas e mobilizações da política catadora no Rio de Janeiro: <https://www.residualab.uerj.br/organizacao-de-catadores-gestao-de-residuos-e-politica-no-rio-de-janeiro/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2021
  • Aceito
    07 Jul 2022
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br