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MULTIVERSIDADE DOS POVOS DA TERRA DE MÃE PRETA: o giro das palavras e a pedagogia da luta

MULTIVERSITY OF THE PEOPLE OF EARTH OF MÃE PRETA: the turn of words and the pedagogy of struggle

MULTIVERSITÉ DU PEUPLE DE LA TERRE DE MÃE PRETA: la tournure des mots et la pédagogie de la lutte

Resumos

Esse artigo pretende descrever com uma experiência de educação kilombola e afroindígena, nomeada Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta, uma teia intercomunitária gestada no interior da Comunidade Kilombola Morada da Paz. Situada em Triunfo/RS, a comunidade é autorreconhecida como kilombola e comunidade espiritual, guiada por uma preta velha, Mãe Preta, e por um exu, Seu Sete. É, portanto, uma comunidade kilombola e de terreiro, formada sobretudo por mulheres negras. Através do aprendizado com Mãe Preta e seus dizedores que trago as palavras giradas e reinventadas para contracolonizar pensamentos e estrategiar sobre o mundo. Em aliança com a Multiversidade, dirijo meu esforço neste artigo em contar histórias de criações políticas e pedagógicas – que foi nomeado como pedagogia da luta –, confabulações alegres e de refúgios quilombistas, frente aos assombrosos modos coloniais de habitar a terra que permanecem aterrorizando corpos e territórios.

Quilombos; Educação; Terreiros; criações políticas; pedagogia da luta


This article intends to describe an experience of kilombola and afroindigenous education, named Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta, an intercommunity web gestated within the Kilombola Community Morada da Paz. Located in Triunfo/RS, the community is self-recognized as a kilombola and spiritual community, guided by a preta-velha, Mãe Preta, and by an exu, Seu Sete. It is, therefore, a kilombola and terreiro community, formed mainly by black women. Through learning with Mãe Preta and her sayers that I bring the words rotated and reinvented to counter-colonize thoughts and strategize about the world. In alliance with the Multiversidade, I direct my effort in this article to tell stories of political and pedagogical creations –which was named as pedagogy of struggle –, happy confabulations and quilombist refuges, in the face of the astonishing colonial ways of inhabiting the land that continue to terrorize bodies and territories.

Quilombos/maroons; Education; Terreiros; Political creations; Fight pedagogy


Cet article vise à décrire une expérience d’éducation kilombola et afroindigène, nommée Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta, un réseau intercommunautaire créé au sein de la Communauté Kilombola Morada da Paz. Située à Triunfo/RS, la communauté est reconnue comme une communauté kilombola et communauté spirituelle, guidée par une preta velha, Mãe Preta, et un exu, Seu Sete. Il s’agit donc d’une communauté kilombola et terreiro, formée principalement de femmes noires. En apprenant avec Mãe Preta et ses dictons que j’apporte les mots tournés et réinventés pour contre-coloniser les pensées et élaborer des stratégies sur le monde. En alliance avec la Multiversité, j’oriente dans cet article mon effort pour raconter des histoires de créations politiques et pédagogiques – qui s’appelait pédagogie de lutte –, de joyeuses confabulations et de refuges quilombistes, face aux étonnantes manières coloniales d’habiter la terre qui continuent de terroriser les corps et les territoires.

Quilombos/maroons; Èducation; terreiros; Créations politiques; Pédagogie de combat


Inicio este artigo através de um emaranhamento inicial,1 1 Utilizarei o itálico para conceitos oriundos da comunidade Morada da Paz e Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta, assim como para enfatizar palavras de acordo com o contexto. A pesquisa realizada contou com o auxílio financeiro da CAPES. O artigo aqui apresentado foi apreciado pelo Conselho de Ìyás e Bábàs da Nação Muzunguê Território de Mãe Preta que permitiram sua publicação. que consiste em descrever uma experiência de educação kilombola e afroindígena, ao mesmo tempo em que entendo a educação da atenção como parte do fazer antropológico situado (Ingold, 2018INGOLD, Tim. Antropologia e/como educação. Petrópolis: Ed. Vozes, 2018.; Haraway, 2019HARAWAY, Donna. Seguir con el problema: generar parentesco em el Chthuluceno. Bilbao: Edición Consonni, 2019.). Dedico-me a pensar com a Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta, uma teia intercomunitária iniciada pela Comunidade Kilombola Morada da Paz, situada em Triunfo/RS, Brasil. A Morada da Paz é autorreconhecida como kilombola e comunidade espiritual, vivida através da Nação Muzunguê, que agrega práticas de matriz africana, do xamanismo indígena mbyá guaraní e do budismo tibetano mahayana. É, portanto, uma comunidade kilombola e de terreiro, formada sobretudo por mulheres negras.

Possuo uma relação de amizade e respeito há dez anos com a comunidade, e filiação na Nação Muzunguê há sete anos, que se faz necessário apresentar como preâmbulo a este texto, visto ter sido a condição para a realização da pesquisa de doutorado (Flores, 2021a) e que se mantém ao longo dos anos.2 2 Ao longo da tese de doutorado nomeei a relação que estabeleci com a Morada da Paz de “composição contracolonizadora”, pois implicou um duplo-convite: na medida que as convidei para a realização de uma pesquisa de doutorado, fui convidada a realizar o processo de iniciação na comunidade e participar da espiritualidade ali vivida. A tese surge como um dos substratos desta relação, mas não única. Composição eu retomo de Deleuze (2002; 2017), porque não poderia dizer ser um pacto, acordo ou negociação, na medida em que essas percepções partem de uma noção de pessoa que exclui uma série de componentes não-humanos em interação. Composição porque partes das relações que me constituem encontraram-se com partes das relações que constituem as pessoas que fazem e criam a Morada da Paz, fazendo com que as envolvidas no problema que ali emergia – a construção de uma Tese que se “propõe a confrontar os saberes hegemônicos” a partir das práticas e saberes desenvolvidos na Morada da Paz – engajassem-se nas suas possibilidades de solução, em diferentes posições. Permitindo-me ser, através das forças que me atravessam, vetor para a potencialização da Morada e dos desejos que levaram as mais velhas e as entidades a aceitarem minha presença ali, da mesma forma que a Morada é um vetor de potência em mim que, dentre tantos fluxos do qual sou composta, também um vetor de novas imagens do pensamento a partir da e para a Antropologia. Contracolonizadora (Santos, 2019) porque foi sobretudo sobre ‘confrontar os saberes hegemônicos’ o início desta composição. Todas e todos aqueles que ali se iniciam tornam-se filhas e filhos de Mãe Preta, uma preta-velha, e Seu Sete, um exu, que guardam e protegem os caminhos da comunidade. É na condição de antropóloga, iaô e partícipe ativa da Multiversidade, enquanto aliada, que este artigo ganha presença. Exatamente por isso, parto de uma postura ética em descrever com, destacando o aspecto dialógico da produção de conhecimento, e como Multiversidade, considerando a posicionalidade singular que ocupo – resguardado o lugar de mulher branca e professora universitária que me constitui.

Dedico-me a apresentar a Multiversidade, e a Morada da Paz como orientadora deste projeto, como uma recusa à imobilidade propagada pelo desejo colonial e, ao mesmo tempo, como prática contracolonial permanente e insurgente às estruturas de poder e dominação que pesam sobre a vida de pessoas e corpos minoritários. O conceito de contracolonização eu retomo de Santos (2019)SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos – Modos e Significações. Brasília: Editora Ayó, 2019., liderança e pensador que fala e escreve desde o quilombo, que nos atenta para duas dimensões importantes: primeiro, não se trata de desfazer algo, mas de impedir sua continuidade, atentar e agir às consequências contínuas da colonização; segundo, contracolonizar é uma prática que só pode emergir daqueles que não corroboraram com a colonização e que não herdam os privilégios das suas consequências. A estes herdeiros, cabe a prática de descolonização junto aos seus, enquanto àqueles que foram vitimizados, e que ao mesmo tempo testemunham o fracasso colonial, cabe a contínua contracolonização, resistência criativa de afirmação da vida e da pluralidade.

Entendo a constituição da Multiversidade como um ato de amor, responsabilidade e respeito perante a vida coletiva, cuja tecitura se faz na intrínseca relação entre vidas humanas e mais-que-humanas. Descrevo com duas entidades espirituais centrais para o desenvolvimento desta teia intercomunitária, Mãe Preta e Iapucã, que ao mesmo tempo em que materializam a continuidade colonial do genocídio negro e indígena com suas presenças no terreiro, dão concretude às alianças afroindígenas criadoras de outros mundos possíveis. Neste ínterim, o ipádè, como são nomeadas as rodas de conversa e trocas de saberes intercomunitários, surge como principal ferramenta dialógica, reconhecido como espaço consagrado à Exu, senhor da comunicação e dos caminhos. Mas é através dos aprendizados com Mãe Preta, uma preta-velha, e seus dizedores que trago as palavras giradas, torcidas e reinventadas para contracolonizar pensamentos e estrategiar sobre o mundo. Em aliança com a Multiversidade, dirijo meu esforço neste artigo em contar histórias de criações políticas e pedagógicas – que foi nomeado como pedagogia da luta - , confabulações alegres e de refúgios quilombistas, frente aos assombrosos modos coloniais de habitar a terra (Ferdinand, 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia descolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: UBU Editora, 2022.) que permanecem aterrorizando corpos e territórios.3 3 Faço desse artigo também reverência ao pedido de Yalasè Yashodhan de resguardar a memória da Multiversidade.

MULTIVERSIDADE DOS POVOS DA TERRA DE MÃE PRETA

Foi em 2017, durante um trabalho espiritual,4 4 Trabalho espiritual, neste caso específico, envolve corpo, permitir-se ser afetado e atravessado pelas forças que afetam e atravessam os corpos daqueles que estão sendo convidados a ali se manifestarem. Até culminar em suas manifestações singularizadas. que os médiuns do território kilombola, sob orientação de Mãe Preta, foram ao encontro, no plano astral, dos povos indígenas e de qualquer sentimento de dor, sofrimento e tristeza, ou demais atravessamentos que possam ser encaminhados e conduzidos pelo trabalho que ali se desenvolvia. Saberes ancestrais de relação e comunicação com deidades e entidades possibilitou sentir e materializar a presença dos povos indígenas através dos corpos daquelas que ali estavam, kilombolas. Um movimento como este parece estar estritamente conectado com as forças que emanavam ao longo daqueles últimos anos.

Logo após um golpe de estado, que culminou no impeachment da então presidenta Dilma Rousseff em 2016, o ano de 2017 prolongou o grito de guerra indígena. Vivíamos uma das maiores ofensivas aos direitos indígenas, articuladas entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: paralisação das demarcações de terras indígenas, sucateamento das instituições e políticas públicas, o retorno da tese do marco temporal, riscos de aprovação da PEC 215 e invasões de terras indígenas. Um ano que registrou o aumento brutal da violência (Cimi, 2017CIMI. Relatório Violência contra os povos indígenas: dados de 2017. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2017. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2018/09/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2017-Cimi.pdf. Acesso em: 13 jul. 2023.
https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2...
) e violação dos direitos dos povos originários, foi seguido pela contínua urgência de mobilização dos movimentos, que culminou, naquele momento, em uma das maiores articulações indígenas em Brasília: o Acampamento Terra Livre, com a reunião de mais de 4 mil representantes de mais de 200 povos. Um acontecimento.

Pressentíamos a presença e farejávamos os ímpetos fascistas desde 2013, mas não antevíamos os tempos nebulosos que se sucederiam com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Tampouco imaginávamos que a mobilização entre as ATL’s de 2016, com a primeira plenária nacional de mulheres indígenas, e seu seguimento em 2017 resultaria na potência que hoje visualizamos das articulações em torno da Marcha das Mulheres Indígenas.5 5 Imaginamos menos ainda que hoje, em 2023, Sônia Guajajara, assumiria o Ministério dos Povos Indígenas e Joênia Wapichana a presidência da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

Lembrar é também fazer prolongar essas presenças e, como nos lembra Rufino (2019RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2019., p. 16), “combater o esquecimento é uma das principais armas contra o desencante do mundo”. Enquanto ocorriam essas mobilizações, no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Triunfo, há poucos quilômetros da capital do estado, percurso constante realizado através da BR 386, uma comunidade espiritual, formada majoritariamente por mulheres negras e autoidentificada como kilombola,6 6 Como desenvolvi em outro lugar (Flores, 2020) “Nomeiam-se kilombolas com k com o intuito de recuperar o sentido bantu do termo kilombo: fortaleza, união. Para elas, quilombola seria a “língua do colonizador” que as tornam “remanescentes” de antigos quilombos. Afirmam-se, contudo, sobreviventes: não aquelas que restaram, mas aquelas que resistiram e sobreviveram às investidas coloniais. Neste sentido, entendo o kilombo como uma modulação do que Nascimento (1980) chamou quilombismo: “ideia-força, energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV” (1980, p. 256). O quilombismo, para o autor, é um movimento de inúmeras práticas associativas, ilegais ou toleradas pelo poder colonial e estatal, que sustentavam e sustentam a necessidade de assegurar a “existência do ser” da população negra, resgatando a dignidade e liberdade através da organização de uma sociedade livre”. sentia as urgências das mobilizações. Nos foi alertado pelas entidades que guiam a comunidade Morada da Paz de que estávamos todas/os nós, humanos e não-humanos, enredadas em uma guerra cósmica7 7 Como dissertei em outro artigo (Flores, 2020), para a Morada, o mundo é habitado por seres e forças invisíveis, que povoam o cosmos e que engendram e atuam no que chamamos de ‘realidade’ e ‘materialidade’ – nos corpos, nas situações, nos espaços, no que nomeamos ‘estrutura social’, ou até mesmo ‘política’. A percepção de guerra cósmica parte da ideia de que forças e seres podem ser de potência, “das luzes”, ou destrutivas, “energias densas”, que servem “às trevas”. As designações dessas forças, que são dadas a perceber através do corpo, são anteriores, na medida em que sabem que forças das trevas e forças das luzes agem sobre o mundo visível, mas elas só são dadas a conhecer quando se encontram com os sujeitos que, então, as designam. São percebidas pelos efeitos que produzem, sejam eles benéficos ou nefastos – diria, então, que estes podem ser entendidos como bons encontros e maus encontros, nos termos propostos por Spinoza (Deleuze, 2002; 2017). É importante diferenciarmos as luzes e as trevas dos valores moralizantes e transcendentes para pensá-los segundo diferenças qualitativas dos modos de existência. O bom encontro ocorre quando “um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa”, produzindo paixões, ou afetos, alegria e fortalecendo nossa potência de agir. O mau encontro pauta-se, ao contrário, pela decomposição. É quando um corpo, ao nos encontrar, decompõe a relação do nosso, apesar de compor com as nossas partes, “mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência”, produzindo paixões tristes, diminuindo nossa potência de agir. São ambas consequências de afecções passivas, porque se explicam por um corpo exterior que nos afeta. intensificada ao longo dos anos, em que as ações e omissões não são inocentes. Não são profecias, as entidades não anteviam acontecimentos futuros, mas o futuro, em aberto, fazia-se virtualmente presente e nos colocava em posição de alerta: o que seria irrompia o que é e reatualizava o que já foi.

Foi durante esse trabalho espiritual, com que comecei essa descrição, que um determinado povo indígena foi alcançado pela Morada da Paz. Nos conta Mãe Preta que há tempos este povo vagava no plano astral e que, sob sua orientação, foi alcançado pelas forças que a Morada da Paz mobiliza. Dentre os espíritos que constituem este povo, havia uma anciã, reconhecida como uma liderança, e que se manifestou na comunidade, através da incorporação, para contar sua história. Disse-nos que seu povo foi exterminado pela guerra, que derramou o sangue de muitos homens e deixou em maior vulnerabilidade mulheres e crianças. Estas, como uma estratégia de resistência ao extermínio, adotaram o suicídio coletivo ao comer terra. Não sabemos exatamente em que época isso aconteceu, mas tampouco importa, visto que na medida em que se apresentam através dos corpos dos médiuns naquele trabalho espiritual, são e permanecem como vítimas e refugiadas de uma guerra em curso, uma guerra cósmica, em que o que foi irrompe o que é e ressoa no que será.

Iapucã era seu nome, anciã e liderança de um povo que trazia como característica as decisões espirituais e políticas serem realizadas por mulheres. Assim se apresentou. Disse-nos que a Morada da Paz, com a orientação de Mãe Preta, havia auxiliado a ela e a seu povo e que, em troca, colocava-se à disposição para auxiliar na construção de um projeto a ser germinado no território da Morada da Paz, solidificando uma aliança anticolonial afroindígena, entre Mãe Preta e Iapucã; entre um território kilombola, no plano terreno, e um povo indígena, no plano astral; entre corpos negros que presentificam corpos ancestrais indígenas no terreiro; entre o genocídio colonial vivido cujas forças atualizam-se no terreiro, e o genocídio atual cotidiano, que continuamente aproxima sujeitos negros e indígenas na linha do horizonte do extermínio da modernidade ocidental. O encontro de Iapucã com Mãe Preta e com a comunidade Morada da Paz não se inscreve em uma aliança abstrata, mas uma aliança situada, concreta, capaz de mobilizar frente a uma urgência que se apresenta e romper com o imobilismo. Mãe Preta, então, solicitou a ela que auxiliasse na construção do que seria a Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta, uma teia intercomunitária de fortalecimento espiritual e político entre povos indígenas, quilombolas e de terreiro.

Naquele momento, a anciã Iapucã nos comunicou que a Multiversidade traria a força das ancestrais “sangomas, morubixabas, caridés, tocaus”, dos Povos da Terra, e que “mulheres que foram esquecidas foram chamadas” a auxiliar nessa construção. “Mulheres ancestrais virão para trazer seus pensamentos” e, para isso, “é preciso reunir o povo e sonhar juntos nessa lua. Para que acessem os campos do sol, da chuva, do vento da Multiversidade”. Não há orientação trazida pelas entidades que as Yas e Baba, as mais velhas da comunidade, não honrem. Não por qualquer obrigação moral, mas pelo entendimento de que a vida se faz e se refaz nas relações de cuidado, numa ética da responsabilidade compartilhada, entre humanos e não-humanos. Exatamente por isso, honrar e saber herdar8 8 Herdar, prolongar, aqui, não pode ser entendido em um sentido de filiação, pois ele engendra um processo de transformação. Ser herdeira é estabelecer relação com um acontecimento. Não significa sentir da mesma forma, nem querer representar o que aconteceu. É fazer reverberar toda a sua potência através de outros meios e, com isso, ser capaz de suscitar novos acontecimentos. (Stengers; Pignarre, 2011, p. 4). o encontro afro-indígena ali estabelecido significava aceitar o desafio de construir a Multiversidade.

Sonhar juntos foi interpretado por mim naquele momento no seu sentido figurado, imaginar juntos o que seria e como seria isso que foi nomeado de Multiversidade. Mas foi através de um sonho, em seu sentido literal, que a Yalasè da Morada da Paz, Yashodhan Abya Yala, visualizou a possibilidade de ir ao encontro de comunidades indígenas, quilombolas e de terreiro, que culminou no projeto Sumaúma.9 9 O projeto Sumaúma, sonhado e desenhado pela Yalasè Yashodhan, tinha por objetivo o deslocamento de membros da comunidade Morada da Paz para territórios tradicionais em diversas regiões do Brasil. Foi assim que conheceram o território do Abacatal, assim como o parceiro Centro Alternativo de Cultura/CAC, em Belém/PA, o Quilombo Dandá/BA, entre outros territórios. Com esse projeto, financiado pelo OLMA e com duração de um ano, muitas pessoas que hoje se engajam na Multiversidade foram reencontradas.10 10 Reencontrar é o termo comumente utilizado na comunidade para designar certos encontros que produzem efeitos, ou seja, que produzem uma espécie de excedente, uma potência que transforma mutuamente os seres em relação e abre possibilidades de novas criações. Nesse sentido, nem todo encontro físico é um reencontro, pois o reencontro deixa marcas no mundo e potencializa conjuntamente as partes reencontradas. Em dezembro de 2018, a partir do engajamento da comunidade Morada da Paz e seus aliados, arrecadou-se o recurso necessário para trazer algumas das lideranças dos territórios visitados para o rito do Okan Ilu – O tambor do coração, um ritual-evento que acontece no território da Morada da Paz anualmente para celebrar o tambor.

Estiveram presentes integrantes do quilombo do Abacatal/PA, do povo indígena Kariri-Xocó e Fulni-ô/AL; do quilombo Dandá/BA; do povo indígena Kaingang/RS; do povo indígena mbyá-guarani/RS; do Centro Alternativo de Cultura/PA; do Ponto de Cultura A Bruxa tá Solta/RR11 11 Vídeo do encontro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AZwVA5pZTUU. Acesso em: 13 jul. 2023. . Foi neste ano que o Okan Ilu passou a ser cada vez mais consolidado como o espaço de encontro, no território Morada da Paz, da Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta. Assim, em 2019 estiveram no território integrantes do povo Kariri-Xocó e Fulni-ô/AL; do quilombo do Abacatal/PA; do quilombo Unidos do Lajeado/RS; do grupo de Candombe Nação Zumbalele/Uruguai; do Centro Alternativo de Cultura/PA; do Amigos da Terra/RS; do Observatório Luciano Mendes de Almeida/OLMA.12 12 Vídeo do encontro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ywNgVN41H5k&t=29s. Acesso em: 13 jul. 2023.

Em 2020 novos encontros se desenharam. Estiveram no território integrantes do Quilombo do Abacatal/PA; do povo indígena Pataxó Hahahae/BA; do Quilombo Dandá/BA; do Quilombo Manzo/MG; do Ponto de Cultura A Bruxa tá Solta/RR; e do Centro Alternativo de Cultura/PA. Em todos estes movimentos a Morada da Paz e seus aliados garantiram os meios de deslocamento, estadia e alimentação com recursos obtidos através de projetos sociais e doações. O encontro de 2021, contou com o apoio da UNICEF ao Programa Encruzilhadas da Multiversidade. Esse programa surgiu a partir dos encaminhamentos oriundos dos últimos encontros sobre a necessidade de trabalhar com os jovens dos territórios. Estiveram presentes, ao lado da kilombo Morada da Paz, integrantes do povo indígena Kariri-Xocó e Fulni-ô/AL; do povo indígena Macuxi/RR; da comunidade ribeirinha Nova Canaã/PA; do quilombo do Abacatal/PA; do quilombo Manzo/MG; do quilombo Dandá/BA; do Movimento de Atingidos pela Mineração/PA; do Centro Alternativo de Cultura/PA; e do grupo de pesquisa Kombit/UFRGS/RS.13 13 Vídeo do encontro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qQM_LZgeZbc. Acesso em: 13 jul. 2023.

O início do Programa Encruzilhada foi no encontro de 2021. Seu desenvolvimento ocorreu ao longo do ano de 2022 com encontros online com os jovens integrantes do projeto, e sua finalização foi no Festival da Multiversidade, organizado também no território Morada da Paz, uma semana antes do Okan Ilu de 2022. O Festival contou com a participação de integrantes do quilombo Dandá/BA; do quilombo Manzo/MG; do Comunidade ribeirinha Nova Canaã/PA; e do Povo Macuxi/RR. Por distintos motivos, outras comunidades partícipes do programa não puderam estar presentes. Em todos estes encontros, ainda que não intencionalmente, destaca-se a presença e o protagonismo majoritário de mulheres.

É importante salientar que desde 2015 o kilombo Morada da Paz realiza o Okan Ilu e acolhe convidados de diversos coletivos e territórios tradicionais para ipadès (rodas de troca e compartilhamento de saberes). Contudo, a partir de 2018 esses encontros constituem-se como espaços de desformação espiritual e político para fortalecimento dos modos de ser e existir dos povos e direitos territoriais através da Multiversidade. Um espaço dedicado à reverenciar o tambor (Ilu) e a divindade do tambor, Ayan, consolida-se como o espaço de troca de saberes. Tambor, vale dizer, é o principal instrumento de comunicação entre mundos (Aiye e Orun) dos povos de terreiro. E colocar em comunicação e relação através da ancestralidade é um dos principais objetivos da Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta.

O IPÁDÈ, A COMUNICAÇÃO E A CIRCULARIDADE

No fundo, não há comunicação sem dialogicidade e a comunicação se acha no centro mesmo do fenômeno vital. É neste sentido que a comunicação é, a um só tempo, vida, a outro, fator de mais vida. (Freire, 2021FREIRE, Paulo. À sombra dessa mangueira. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2021., p. 130)

Se podemos pensar algum nível de estruturação dos encontros da Multiversidade, eles ocorrem através dos ipádès, como são nomeadas as rodas de conversa na comunidade Morada da Paz. O termo, de origem iorubá, é traduzido por “encontro, reunião”. No candomblé ketu, ipàdé, concebido como apocope de pàdè para Elbein dos Santos (2012SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 210), corresponde a cerimônia diretamente associada ao Orixá Exu, princípio dinâmico de tudo o que existe, senhor do movimento. Um rito que antecede cerimônias, seja para Orixás ou Eguns, visto que Exu deve ser o primeiro a comer. “Nada se faz sem Exu” é uma máxima dos terreiros e na Morada da Paz não é diferente. Alimenta-se e reverencia-se Exu, visto ser ele o guardião e mensageiro entre os humanos e os Orixás, o intermediário entre mundos e intérprete da linguagem humana e divina, senhor da comunicação por excelência.14 14 Bastide (1978, p, p. 20) sugere que há uma “interpretação falsa”, em relação a esse rito, que parte do entendimento de que Exu poderia perturbar a cerimônia se não for homenageado antes de outros deuses. Por isso, para esta interpretação, seria necessário pedir que ele se afaste. Nesses casos, o termo despacho seria muitas vezes empregado como sinônimo do termo padê: “mandar alguém embora”. A Morada da Paz também se afasta deste entendimento.

Na Morada da Paz, ocorre o pádè antes de toda e qualquer cerimônia-ritual nomeada Muzunguês. Mas estende-se o sentido do termo ípádè para nomear todo e qualquer espaço de encontro, incluso rodas de conversa e partilha na comunidade. Ocupa, portanto, uma dimensão muito mais cotidiana, pois entende-se que a espiritualidade é vivida em toda e qualquer situação e que as rodas de conversa também são espaços ritualísticos. Todo ipádè acontece em roda, visto que a circularidade15 15 Chamo atenção para o fato de que a circularidade, tão central nas pedagogias de terreiro (Ferreira, 2019) e nos quilombos (Santos, 2019; Oliveira, 2020) encontra-se também nos escritos de Paulo Freire, o circulo de cultura. Segundo Brandão (2018, p, p. 57), é no círculo de cultura que “o diálogo deixa de ser uma simples metodologia ou uma técnica de ação grupal e passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é ‘aprender a dizer a sua palavra’”. É certo, contudo, que a circularidade, quando observada através das onto-epistemologias afro-brasileiras carregam outra formulação, ancorada sobretudo na ancestralidade. Como destacado por Ferreira (2019) nas palavras de Oliveira (2007, p, p. 132): “A ancestralidade é como um tecido produzido no tear africano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na urdidura do tecido está a verticalidade do tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do mundo que articula a trama e a urdidura da existência”. Entendo que seja sobretudo pela intercessão da ancestralidade que Antônio Bispo dos Santos, em comunicação oral, tenha afirmado que Paulo Freire é um grande educador porque soube aprender com os povos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, entre outros. é um dos aspectos centrais: “O fluxo energético é circular”, disse certa vez Yashodhan. Na Morada da Paz, quando um ipádè é aberto, seja lá qual for o tema a ser conversado, inicia-se, com defumação, o chamado “canto da unidade”, um toque para Exu Lonã,16 16 Exu Lonã é uma das qualidades de Exu. Caracterizado como o Senhor dos Caminhos, o caminhar, o buscar, o escolher, o decidir. Não por menos, rege os ipádès na Morada da Paz, espaço de partilhas e decisões coletivas. e são pré-estabelecidas algumas regras de conduta fundamentais.

O corpo, portanto, é colocado em movimento e as palavras entoadas para Exu, senhor da comunicação, da linguagem, dos caminhos. Há um espaço designado como a porta, por onde as pessoas entram e saem. Assim que se abre um ipádè há um fluxo de entrada e saída que é previamente acordado e incorporado no cotidiano daqueles que vivem a comunidade. Quando são visitantes, prontamente são ensinadas/os a como entrar e sair. Entra-se sempre pela esquerda dentro do fluxo da roda e se sai pela direita. Ensinam-nos que colonizadores fizeram os negros africanos circularem no sentido anti-horário ao redor de um grande baobá para esquecerem de suas raízes. Circundar em sentido horário é um ato de jamais esquecer as atrocidades do passado.

A circularidade é também o que imprime o movimento e transformação ao ipádè. Fernanda Oliveira (2020)OLIVEIRA, Fernanda. A gente vive é rodando: movimentos quilombolas e uma pedagogia das fronteiras. 2020. Tese (Doutorado em Educação: conhecimento e inclusão social) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020., desde sua relação com mestres quilombolas partícipes do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, descreve o que nomeou como “pedagogia das fronteiras” a partir da máxima trazida por Antônio Bispo dos Santos, “a gente vive é rodando”. Em sua tese, girar/rodar ganha potência descritiva como parte da política e pedagogia quilombola. Tomar as palavras coloniais e fazê-las girar para tontear o colonizador a partir de contra denominações (Santos, 2019), rodar para fazer hesitar, desacelerar o pensamento e as ações perante as artimanhas coloniais; rodar para proliferar resistências em refúgios quilombistas; e para devir-outro, como os processos de incorporação, manifestações das deidades e entidades, tanto nos ensinam. A circularidade como parte da cosmopercepção afro-brasileira.

Não há um lugar específico para acontecer os ipádès. Também ocorrem por diferentes intenções e variam conforme os objetivos. Os conselhos deliberativos da comunidade e da Multiversidade ocorrem através de ipádès, assim como as partilhas de como foi o dia, partilhas sobre os sentimentos e estudos coletivos de interesse comunitário ou da teia intercomunitária. Tudo acontece em ipádès, e assim são também os diálogos estabelecidos com pessoas externas à comunidade. Os ipádès funcionam através do axé de fala e do axé de escuta, respeitando a hierarquia do terreiro: das mais velhas às mais novas. Ter o axé de fala e de escuta marca um compromisso com a comunidade dentro e fora do território. A oralidade, portanto, cumpre papel central, ainda que não esgote o sentido da comunicação, constituída também pelas marcas através do qual se faz mundo e se produz vida, no corpo e no território. Pedir axé de fala e escuta é chamado agoyê mojubá e em todo o ipádè somos orientadas a pedi-lo. O agô, ou seja, a benção e licença das mais velhas da comunidade, me foi explicado como uma relação de respeito por suas histórias. Nos encontros da Multiversidade cada comunidade pede seu axé de fala e de escuta segundo os ensinamentos que trazem de seus povos. Quilombo Manzo, que também é um terreiro de Candomblé Bantu, pede licença para falar com “Kumbanda gira”, onde os demais presentes respondem “gira ê!” - não são meras palavras, elas encarnam histórias, deidades e mundos singulares quando enunciadas. Nestas giras do bom diálogo, crianças, jovens e adultos participam sem distinções.

Quando se pede o axé de fala e de escuta, deixa-se claro a quem se pede licença com aquela fala e aquela escuta. Implica a presentificação de tantos outros seres com os quais a/o falante compõe sua existência. Nessa concepção, aquela/e que fala, não fala sozinha/o e nisso reside sua responsabilidade. Os membros da Morada também apresentam o lugar do qual falam dentro da hierarquia circular,17 17 Modo de organização cósmico-política que constitui a comunidade. Uma outra forma de pensar a descentralização de poder, que nega tanto a verticalidade quanto à horizontalidade (Flores, 2021a). dos mais velhos aos mais novos em termos de pertencimento e comprometimento com a comunidade. E, por fim, se explicita com que intenção dirigimos a fala e a escuta. Esse processo é, como explicou certa vez Ya Ekedi Kahamy Ãdetta, para que possamos ter consciência de como dirigimos nossa fala e nossa escuta e para que os outros possam atentar a nossa intencionalidade. Constitui um ato de precaução consigo e com os outros, exatamente porque o ipádè está carregado de perigos18 18 O perigo também se apresenta no padê caracterizado por Elbein dos Santos (2012, p, p. 210): “Trata-se de uma cerimônia carregada de perigo em virtude do poder sobrenatural das entidades que serão invocadas e devido à sua finalidade que consiste em propulsionar e em manter as relações harmoniosas com essas entidades e em obter ou restabelecer, por meio de oferendas apropriadas, seu favor e proteção”. (entendido como tudo que pode produzir desequilíbrio e desarmonia ao longo da sua execução – mal-entendidos, tensionamentos, conflitos).

O ipádè, portanto, é o espaço por excelência do diálogo a partir da fala e da escuta, de aprendizado, de acordos comunitários, das resoluções de conflitos. Espaço que a qualquer momento pode contar com as intervenções das entidades que guiam e se manifestam na Morada da Paz, que se comunicam não apenas através das palavras, mas dos movimentos ritmados dos seus passos, dos elementos que portam e dos orins (cantos) sagrados. Também é investido de uma temporalidade própria que é ditado pelo fluxo do que é ali acionado. Há ipádès resolutivos relativamente rápidos, há outros que se estendem de acordo com o que precisa ser dito, ouvido ou refletido conjuntamente. Não há um cronograma fixo a ser seguido e nos é ensinado seguir o fluxo das energias em movimento. Como forma de se opor à temporalidade capitalista, são regidos não pelo “tempo do relógio”, mas pelo “tempo de Kitembo”, como diz Yashodhan – o tempo do necessário, mas também o tempo que reembaralha as linearidades temporais ocidentais. Uma “disjunção temporal” que a experiência de terreiro nos convida a prestar atenção e que desenvolverei no próximo tópico. Esta outra temporalidade ecoa na formulação de que “o presente atua como interlocutor do passado e, consecutivamente, locutor do futuro” (Santos, 2019SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos – Modos e Significações. Brasília: Editora Ayó, 2019., p. 16) e, por sua fez, traz o diálogo, da fala e da escuta, do próprio tempo.

No encontro da Multiversidade em 2020, o ipádè nomeado Abertura de Coração, onde todos falam e escutam sobre os sentimentos, as lutas, as alegrias experimentadas, estendeu pela tarde e noite. Apesar do cansaço coletivo dos corpos, não há interrupções nas falas, exatamente para garantir que ali seja um espaço seguro de partilha de experiências que nem sempre são possíveis e fáceis de colocar em palavras – sobretudo àquelas/es continuamente silenciadas/os pela máscara colonial e neuroses da branquitude.19 19 Tomo a imagem da máscara do silenciamento, trazida por Grada Kilomba, como parte das “políticas sádicas de conquista e dominação” (Kilomba, 2019, p. 33). Na contramão da política de silenciamento, a Morada da Paz constrói espaços de partilhas como a Abertura de Coração, como um espaço de cura às violências e silenciamentos continuamente promovidos, sobretudo às comunidades negras e indígenas. Não à toa, a Morada da Paz é caracterizada como uma curandeira, um espaço de cura que há tempos recebe em seus territórios lideranças comunitárias e ativistas sociais e auxilia na “reconstrução de seus corpos espirituais”. Contribuindo sobretudo para a atenção e cuidado àquelas/es que exercem o cuidado (Okaran, 2020). Ipádès como abertura de coração não são regidos pela forma argumentativa, da réplica e tréplica, mas pela partilha do que se deseja dizer e o que nos afeta da escuta de outres desde nossa experiência situada. Constituem, nesse caso especifico, espaços seguros para o exercício e aprendizagem da fala e da escuta. e de reelaboração dos traumas, na linguagem adotada por Grada Kilomba, constituintes das subjetividades e que manifestam, muitas vezes, camadas interseccionadas de opressão, como raça, classe, gênero e sexualidade.

Falar implica também em saber ouvir, aspecto central da dialogicidade,20 20 Em diálogo com as fundamentais contribuições freireanas no campo da educação, reconhecemos os seus limites demasiadamente humanistas quando colocadas em relação com uma aposta de articulação intercomunitária que tem como principais protagonistas entidades espirituais. Ainda assim, suas contribuições em torno do diálogo como parte de um projeto pedagógico crítico e propositivo merecem nossa consideração. É através do diálogo, segundo Zitkoski (2018, p, p. 85) que “podemos olhar o mundo e a nossa existência em sociedade como processo, algo em construção, como realidade inacabada e em constante transformação”. Para Freire (1974), a dialogicidade está na base da educação e envolve, sobretudo, a palavra. A “palavra verdadeira”, como se refere Freire, é ela mesma práxis transformadora, na medida em que agrega ação e reflexão sobre o mundo. Exatamente por isso, a palavra não é, e não pode ser, privilégio de alguns. É através da palavra que o diálogo e a possibilidade de “pronúncia do mundo” se institui. Pronúncia esta entendida como um ato de criação e recriação, fundamentada no amor – entendido por ele como um ato de curiosidade e comprometimento com as causas dos oprimidos - e na humildade – visto que a pronúncia não pode ser um ato arrogante e que a autossuficiência é incompatível com o diálogo. e são nos ipádès que o pensamento coletivo é tecido. Espaço, portanto, caracterizado por mim em outro momento (Flores, 2021b) como “comunidade de aprendizado”, termo que retomei de bell hooks (2017)hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017.. Ao desenvolver suas reflexões sobre práticas educativas libertárias, contrastando o funcionamento comum dos espaços escolares, bell hooks propõe uma “pedagogia engajada”, e desenvolve suas reflexões através do trabalho de Paulo Freire e do monge budista Thich Nhat Hanh. Ambos trazem a percepção de que a educação, como prática de liberdade, só pode acontecer quando realizada coletivamente, em uma “comunidade de aprendizado”, e a partir da práxis – o agir e refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo. Mas enquanto Freire, diz-nos a autora, desenvolve suas preocupações mais em função da mente, Hanh propõe uma abordagem holística e integral do sujeito e o professor ocupa o lugar de um curador. Ou seja, desenvolve a ideia de que a comunidade de aprendizado é um espaço de cura dos sujeitos. O ipádè na comunidade Morada da Paz acrescenta uma nova camada e altera outra à elaboração de bell hooks. A tônica da práxis não parece direcionada à transformação do mundo, mas a criação de outros mundos possíveis – abre-se à pluralidade ontológica –, como continuamente dito pela comunidade Morada da Paz. Da mesma forma, a comunidade de aprendizado, compreendida também como um espaço de cura, não é definida tão somente pela ação humana, mas pela relação estabelecida com entidades que muitas vezes manifestam-se nos corpos daqueles que participam do ipádè. E são as entidades as curadoras e professoras na vida comunitária na Morada da Paz (Okaran, 2020OKARAN (org.). Um Jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020.), território de encontro da Multiversidade.

MÃE PRETA, KITEMBO E OS DIZEDORES

Memória tem cor, cheiro e não tem tempo (Mãe Preta)

Kitembo é o senhor dos caminhos, não das vontades (Mãe Preta).

Após o encontro com Iapucã, as mais velhas do território reuniram em ipádè todos os membros da comunidade para partilhar o trabalho que havia sido feito e a orientação que foi recebida: construir a Multiversidade. Evidentemente há comunicação fora do ipádè, mas é nele onde as ideias são coletivizadas e suas forças fundamentadas. Afinal, as palavras são forças que agem quando enunciadas, como nos ensinam os terreiros, elas fazem pragmaticamente mundo: importam quais cânticos serão entoados para encantar certas folhas, com determinadas finalidades, em um tempo-espaço específico. Assim como importam as ideias com os quais pensamos ideias, diz Haraway (2019)HARAWAY, Donna. Seguir con el problema: generar parentesco em el Chthuluceno. Bilbao: Edición Consonni, 2019., para atentar-nos às urgências de contar histórias vitais em um planeta ferido. Uma preocupação que ressoa em mim em conexão com as formulações de Audre Lorde quando encontra na poesia o esqueleto que estrutura a vida de mulheres negras, a arte reveladora da experiência de subjetividades e ontologias feridas, ou melhor, dilaceradas pelas violências coloniais: “nomear aquilo que não tem nome, e que só então pode ser pensado” (2019, p. 47). A autora segue:

Os patriarcas brancos nos disseram: “penso, logo existo”. A mãe negra dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: “sinto, logo posso ser livre”. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade. (Lorde, 2019LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 48)

Ouvir o sussurro da mãe negra nos permitiria escutar histórias e modos de narrá-las que importam para entender, habitar e confrontar as ruínas do capitalismo e colonialismo. No caso da Morada da Paz, Mãe Preta talvez seja quem mais inspira a brincadeira com as palavras e com os seus dizedores21 21 Segundo Yashodhan Abya Yala (2021, p, p. 32): “Mãe Preta toma meu corpo com mansidão profunda e ela trás dos mundos ancestrais histórias que cuidam da gente. Seus dizedores, como ela assim fala, são ensinamentos para se aplicar na vida e meditar por longos períodos”. . Não possui qualquer compromisso com a língua do colonizador, ainda que tenha sido forjada nela à sua revelia, como todas e todos nós que herdamos a colonização em nossos corpos (ainda que em diferentes posicionalidades). Sua fala atualiza o pretuguês (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 54) originário do encontro colonial e da escravidão de pessoas africanas para as Américas. O pretuguês presentifica o continente originário em palavras (xinguilar, fazer o juncó, são exemplos), oriundas de línguas africanas, bem como na cadência e na entonação da fala à língua do colonizador. Ou seja, não há apenas alteração nos termos utilizados, mas nos referenciais de entendimento e uso da própria língua. Na história colonial do Brasil, foram aquelas/es que figuraram no lugar de “mãe preta” e “pai joão” os protagonistas do que a autora nomeia “resistência passiva”:

[...] explorados pela ideologia oficial como exemplos de integração e harmonia raciais, supostamente existentes no Brasil. Representariam o negro acomodado, que passivamente aceitou a escravidão e a ela correspondeu segundo a maneira cristã, oferecendo a outra face ao inimigo. Entretanto, não aceitamos tais estereótipos como reflexos ‘fiéis’ de uma realidade vivida com tanta dor e humilhação. Não podemos deixar de levar em consideração que existem variações quanto às formas de resistência. E uma delas, é a chamada ‘resistência passiva’ […] Mais precisamente, coube à ‘mãe preta’, enquanto sujeito-suposto-saber, a africanização do português falado no Brasil […] e, consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira.” (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 54)

Algo acontece entre a mãe negra, a poetisa, de Audre Lorde, que faz da poesia o meio de nomear suas experiências; a mãe preta, de Lélia Gonzalez, figura genérica que informa sobre um dos papéis históricos desenhados pelo colonialismo para mulheres negras escravizadas, e que, ao mesmo tempo, inventa e ensina o pretuguês como forma de resistência; e Mãe Preta, entidade guia e guardiã da comunidade Morada da Paz, com os seus dizedores: a experiência da diáspora, a permanência da escravidão e as formas subversivas de contradenominações, ou do giro com as palavras.

Mãe Preta é o nome de uma preta-velha considerada a mãe de todas e todos que se iniciam na espiritualidade vivida na comunidade kilombola Morada da Paz. Pretas e pretos-velhos, de modo geral, são entidades que se manifestam nos terreiros, muitos deles designam-se como Umbanda, e são caracterizados como velhos e velhas africanas que vivenciaram a senzala e a brutalidade da escravidão. Mestra de muitos ipádès e consultas que acontecem na comunidade, é uma entidade, que possui uma biografia singular. Yashodhan era jovem, muito antes da consolidação da Comunidade Morada da Paz, quando encontrou Mãe Preta. Havia uma senhora de mais idade que a manifestava em um Centro Espírita em Porto Alegre frequentado por Yashodhan. Certa vez essa senhora, já muito doente, disse a ela que Mãe Preta a havia escolhido para ser o seu canal depois que ela falecesse. Relação esta que se mantém desde então. É verdade que vez ou outra, durante conversas com Yashodhan, havia uma desconfiança de que, talvez, a Mãe Preta incorporada nessa senhora não fosse a mesma Mãe Preta que se manifesta em Yashodhan. Definir, contudo, pouco importa. Importa o que Mãe Preta faz fazer, o que ela desencadeia na mundificação na qual a comunidade se engaja fervorosamente desde seu encontro com Yashodhan.

Devemos reconhecer que são biografias enredadas que não se confundem, entre Yashodhan e Mãe Preta, mas fazem-se mutuamente. Pouco sabemos dos caminhos cósmicos percorridos por Mãe Preta, o que sabemos são fragmentos de uma biografia bastante complexa. Mãe Preta nos diz ser uma habitante das estrelas, da constelação de Órion mais precisamente, e também do continente africano, talvez “pertinho de Angola”, como narra um de seus orins (cantos sagrados). Diz ser uma “árvore cósmica da vida, e que ao assumir a forma de uma preta-velha é colo para a agonia planetária” (Abya Yala, 2021ABYA YALA, Yashodhan (org.). História, memória e resistência. São Leopoldo: Casa Leiria, 2021., p. 32). Apresenta-se e trabalha em diversos terreiros, para além da Morada da Paz. Uma senhora que, quando manifestada, faz o corpo da médium curvar-se e andar a passos miúdos. Seja pelo peso da idade ou pelas dores dos corpos dos que estiveram no cativeiro. Um corpo visivelmente cansado e, mesmo com custosos movimentos, xilinga (como costuma nomear o movimento ritmado dos corpos) o jongo quando entoado.

Anjos (2019)ANJOS, José Carlos Gomes dos. Brasil: uma nação contra as suas minorias. Revista de Psicanálise da SPPA, v. 26, n. 3, p. 507-522, dezembro 2019. nos recorda que o preto velho não possui uma identidade reconhecida passada, como um herói ancestral: “não é ninguém que já tenha sido, porque é alguém que é. Na intensidade do acontecimento da escravidão, o preto velho perdura como uma longa sequência de eventos a ela relacionados” (2019, p. 509). Sua presença materializa no corpo da médium, com objetos, movimentos e cânticos, o acontecimento. Como vemos no orin entoado à Mãe Preta:

Velha encarquilhada, carapinha branca/ Gandola de renda caída nas ancas/ Embalava o berço do filho do senhô que um dia a sinhá ganhou/ Era assim que Mãe Preta fazia/ tratava a todos com muita alegria/ Enquanto na senzala Pai João apanhava/ Mãe Preta do rosto uma lágrima enxugava/ Mãe Preta!/ Mãe Preta!/ Enquanto a chibata batia no seu amor/ Mãe Preta embalava o filho branco do senhor.22 22 Não tenho referências de quem compôs esse orin, mas é possível encontrá-lo na internet com algumas alterações na letra – como é comum em diversos pontos de umbanda.

A ambiguidade deste orin permeia sua entoação. O canto que celebra a presença de Mãe Preta no Aiyê, no plano terreno, e o que significa para aqueles que compõem a comunidade – cura, cuidado, carinho e acolhimento - é também um canto de horror que ecoa no terreiro e atualiza a brutalidade da escravidão. E o meu corpo, marcadamente branco pela racialidade colonial, não é – e não poderia ser – inocente perante ele. Não se trata, diz Anjos (2019)ANJOS, José Carlos Gomes dos. Brasil: uma nação contra as suas minorias. Revista de Psicanálise da SPPA, v. 26, n. 3, p. 507-522, dezembro 2019., de lembrar o passado ou evocá-lo, mas de compor com ele no presente. Uma intervenção de um acontecimento que quebra a cronologia cotidiana, produzindo a coexistência do passado e do presente. O argumento que desenvolve gira em torno da proposição da persistência da escravidão. E, a partir disso, articula a presença dos pretos velhos nos terreiros com a luta antirracista de ativistas do movimento negro e a violência colonial que segue em curso:

Um jovem negro amarrado a um poste de um bairro branco com as insígnias da escravidão não é sob esse regime afro-brasileiro de temporalização uma rememoração, um monumento. Trata-se do passado virtualmente presente. A verdade de que a escravidão não passou completamente, que artefatos e disposições corporais asseguram na longa duração a transformação das séries, sua dispersão numa multiplicidade de formas, a repetição sob a diferença. Diremos então que as formas da escravidão são sempre diferentes, mas a produção racista da realidade das raças se estabelece na longa duração. (Anjos, 2019ANJOS, José Carlos Gomes dos. Brasil: uma nação contra as suas minorias. Revista de Psicanálise da SPPA, v. 26, n. 3, p. 507-522, dezembro 2019., p. 517)

O contato com o texto de Anjos conduziu de outro modo minha atenção para Mãe Preta, sua presença, corpo e temporalidade. Nos convida a prestar atenção à dois paradoxos do tempo afro-brasileiro, quando levamos a sério a presença das pretas e pretos velhos no terreiro, aos quais ele não deseja resolver, mas sobretudo propagar. Começo pelo último, o que nomeia como uma disjunção entre atualidade de um corpo no passado e das atualizações deste mesmo corpo: “o corpo passado do corpo presente nunca deve ter existido completamente como atualidade, não podendo insistir se não pelas atualizações, mas não deixa de ter sido e continuar sendo fluxo corporal dotado de materialidade” (2019, p. 512). Um corpo, uma pessoa escravizada, inscrita em uma biografia racial, inscreve-se em biografias singulares que dão a ela existência material enredada com as vidas de outras pessoas. No caso específico, enreda-se a outras biografias raciais, visto que Yashodhan autoidentifica-se como negra.

O primeiro paradoxo é entre corporalidades e narrativas. O cântico de Mãe Preta aqui narrado acompanha, no ato de sua entoação, as transformações que operam no corpo da médium, que encarna no corpo um tempo passado no presente “como corpo passado em um discurso presente” (Anjos, 2019ANJOS, José Carlos Gomes dos. Brasil: uma nação contra as suas minorias. Revista de Psicanálise da SPPA, v. 26, n. 3, p. 507-522, dezembro 2019., p. 511), onde o corpo da médium plasma-se ao da preta velha.23 23 Evidentemente não partimos e, mais ainda, recusamos a suposição de representação que implica a maliciosa compreensão de que nossos interlocutores “acreditam” em coisas que a arrogância epistemológica ocidental diz não existir. O cântico de Mãe Preta narra no presente os sofrimentos de um corpo passado – o tempo verbal distancia-se do evento, mas o evento faz-se corpo, caracterizado por Anjos como “dissociação entre corpo e voz”. Mãe Preta encarna o evento, não apenas no corpo da médium, mas também na entonação da voz e na brincadeira com as palavras. Afinal, a fala também participa dessa disjunção temporal.

Dois paradoxos do tempo afro-brasileiro que prolongam o próprio acontecimento brutal: a escravidão negra transatlântica.24 24 Os paradoxos do tempo apresentados por Dos Anjos talvez possam ser estendidos às entidades indígenas que se manifestam nos terreiros, os caboclos, ainda que procedam por outros cortes e fluxos materiais distintos – o que demandaria melhor análise e atenção. Exatamente por isso, o autor propõe ler a escravidão a partir da sua coexistência no passado e no presente, dando centralidade a essa experiência na modernidade. Afinal, o genocídio negro segue como seu projeto e horizonte e eis a urgência da proposição que nos apresenta no interior da disciplina acadêmica da qual participa. Recusa terminantemente definir esses complexos paradoxos do tempo afro-brasileiro como incoerência, mesmo correndo risco da impossibilidade de coexistência relativamente harmônica entre as temporalidades afro-brasileiras e da disciplina da qual participa. Afinal, importam os pensamentos pelos quais pensamos pensamentos; importam as ideias que sentimos e pensamos outras ideias.

No encontro com os pretos velhos e militantes negros – ele mesmo um militante negro - atenta para a continuidade da escravidão e para a condição de sujeitos negros, sempre colocados fora da modernidade, e que, por sua vez, “negam suas profecias (marxistas, liberais, pós-modernas) com a gargalhada de Exu” (Idem, p. 514). A proposição do autor, sobre a permanência da escravidão, ecoa no dizedor de Mãe Preta de que a “memória tem cor e cheiro e não tem tempo”, fazendo girar, torcer, o pensamento que supõe o passado descorporificado, ao trazer à carne, no cheiro e na cor, a disjunção temporal. Mãe Preta, ela mesma uma preta velha, na condução dos médiuns do território ao encontro de Iapucã e seu povo, nos atenta para a continuidade colonial do genocídio indígena e para a urgência da articulação afroindígena e da mobilização interposta pela Multiversidade no interior da comunidade da qual participa. Multiversidade, uma palavra inventada por ela. Afinal, os tempos de urgências frente ao prolongamento dos genocídios negros e indígenas, ataques aos direitos territoriais e aos modos de vida de diversas populações humanas - marcadas pela racialidade colonial -, assim como não-humanas que compõem conjuntamente relações vitais - marcadas pelo excepcionalismo humano –, são tempos de necessárias invenções. “O presente como interlocutor do passado e como locutor do futuro” nos conduz ao encontro do pretuguês, de Lélia Gonzales, às contradenominações quilombolas, de Antônio Bispo dos Santos.

De um pretuguês produzido na senzala e seus fluxos materiais na presença da preta velha no terreiro, chamo a atenção para essa capacidade de fazer girar as palavras – esta aparato material-semiótico -, brincar, habitar suas carnes, derivar suas potencialidades como força revolucionária construtora de outro mundo possível, proliferar contradenominações. Guerra das denominações (Santos, 2015, p. 55) é como Bispo dos Santos nomeia as nomeações impostas pela colonização às experiências comunitárias quilombolas. Se é pelo nome que a colonização se faz, é pelo ato de contradenominar que a resistência quilombola se manifesta. Chamo atenção para o ato criativo da contradenominação que ganha sua força exatamente pela vivacidade das palavras na oralidade.

Desmontar e remontar palavras habita também o modo de construir pensamento nos ipádès, sob a presença e protagonismo majoritário de mulheres negras que constituem a Multiversidade. Ou multidiversidade, como Makota Kidoialê do quilombo Manzo nomeia essa teia em construção. Um nome sobre outro nome que foi também notado e endossado por Mãe Preta, entre risadas. O riso atravessa o giro das palavras. O que a base colonial julga como erro, engano, confusão, faz Exu gargalhar, senhor dos caminhos e das encruzilhadas, e estende as possibilidades de significações, caminhos abertos na carne do signo.25 25 Rufino (2019, p, p. 117) nomeia essa prática comum aos povos afrodiaspóricos de a “dobra na linguagem”: “A dobra é a astúcia daquele que enuncia para não ser totalmente compreendido, não pela falta de sentido, mas pela capacidade de produzir outros que transgridam as regras de um modo normativo. A linguagem é um campo que revela múltiplas possibilidades, assim como enigmatiza muitas outras. É o terreno onde os jogos se estabelecem, e seus movimentos podem ganhar outros rumos, as regras podem ser transgredidas e lançadas a outros horizontes”. Performá-las, no sentido de por as palavras em movimento, é um dos aspectos educativos que encontramos nos ipádès da Morada e da Multiversidade que presentifica não o que foi, mas o que ainda é. Há uma desconfiança brincante com as palavras consensualizadas na língua do colonizador.

Afirmam-se kilombo com k, na Morada da Paz, por motivo similar. Multiversidade e desformação, seguem o mesmo ímpeto. Cria-se na linguagem uma exterioridade à forma-Estado.26 26 Como disse em outro momento: Utilizar o k na atribuição de kilombo é expressar na linguagem uma exterioridade ao Estado, fazendo do kilombo, através de uma série de práticas, uma “máquina de guerra”” (Flores, 2021a). Conceição Evaristo recupera um clássico texto da historiadora Beatriz Nascimento sobre kilombo/quilombo e afirma que quilombo surge “não mais como uma mística de guerra bélica declarada, mas como esforço de combate pela vida”, em que as religiões afro-brasileiras se apresentam como aquelas que fortalecem o corpo e a mente como instrumentos de luta, ao operarem com “a força vital, máquina-de-guerra existencial e fisica” (Evaristo, 2010). A autora não desenvolve o que entende por máquina de guerra, mas conecto com o pensamento de Clastres e de Deleuze e Guattari. Por isso, retomo esse conceito, entendendo o kilombo como uma máquina de guerra, no que consiste à ação política desenvolvida pela Morada, mas também como uma máquina de guerra na própria atividade do pensamento. Deleuze e Guattari (1997) sustentam que a lei do Estado opera através da interioridade e exterioridade. As máquinas de guerra, que são exteriores à forma-Estado, e aos aparelhos de Estado, com seus movimentos de captura e interiorização, coexistem e concorrem em um mesmo campo de interação. Estado sempre existiu, mas, da mesma forma, as máquinas de guerra sempre existiram e existirão – como aquilo que ameaça os aparelhos de Estado e cuja multiplicidade não é capaz de ser totalmente interiorizada pela forma-Estado. Quando receberam a orientação de Mãe Preta para criarem um espaço de estudo prático da espiritualidade, alguém sugeriu que fosse um espaço de “formação”. Eis que Mãe Preta responde que seria um espaço de des-formação. “Deformação, Mãe Preta?”, perguntou alguém. E Mãe Preta, entre gargalhadas, diz que não quer ninguém deformado, não! Explica seu argumento: deformar é mudar a forma, mas tendo-a como referência. Desformar, contudo, é “tirar da forma”. Precisamos “aprender a desaprender” como fomos ensinados nos espaços formativos institucionalizados e legitimados pelo sistema-mundo capitalista. É neste sentido que o objetivo da Multiversidade não é formação, mas desformação mútua, dialógica e contínua, através dos ipádès, com a participação de humanos e não-humanos. Desformar de formatações que cada vez mais refinam seus modos de matar.

Multiversidade também surge de uma desconfiança criativa diante da Universidade: não existe um saber único sobre o mundo, tampouco um único lugar para exercitar o saber, afirmam as mais velhas.27 27 Sobre a relação que a comunidade Morada da Paz estabelece com os conhecimentos e espaços universitários (Okaran, 2020). Para uma discussão sobre como manejam os conceitos de saber e conhecer na relação com a Universidade, entendida como um espaço do colonizador, mas com o qual estabelecem relações parciais (Flores, 2021b). A Universidade e a Ciência, sabem bem, protagonizam epistemicídios que prolongam as violências contra os povos negros e indígenas. Ao contrário, para elas o saber se faz na vivência - que é múltipla e situada - o que comumente é apontado como aquilo que falta às Universidades. A crítica desenvolvida pela comunidade e a proposição de Mãe Preta para a construção da Multiversidade converge com movimentos mais amplos que tem acontecido ao longo da América Latina na busca pela autodeterminação dos povos, no reconhecimento de que há muitos mundos parcialmente interconectados e reverbera criativamente uma perspectiva contracolonizadora do ensino-aprendizagem. Multiversidade surge como conexão e comunicação alegre, como sugere Omo Ayo Otunjá, Yakekere (mãe pequena) da comunidade Morada da Paz, de territórios que são, na medida em que existem, produtores de saberes-fazeres, reflexividades e conhecimentos em defesa da vida:

A Multiversidade possibilita um diálogo constante, de nos olharmos, povos olhando uns aos outros, estrategiando juntos. […] Talvez um trem da alegria, um transporte da alegria. Um meio que nos comunica, que nos conecte. (David; Flores, 2021DAVID, Cláudia Rocha; FLORES, Luiza Dias . Escrevivendo com Folaiyan: encruzilhada de encruzilhadas. IDENTIDADE!, São Leopoldo, v. 26, p. 62-79, 2021., p. 78-79)

Essa capacidade de estrategiar, através dos ipádès, intercaladas com brincadeiras de roda, cantorias e comidas das muitas regiões e territórios que ali se encontram, possibilitaram diálogos e reflexões conjuntas sobre as defesas dos territórios.

REVIRAR A TERRA PRETA

Como dito, em 2018 foi o primeiro encontro da Multiversidade. Nele, duas lideranças, Makini e Maberu, do quilombo do Abacatal/PA, localizado no município de Ananindeua – região metropolitana de Belém -, compartilharam suas histórias e a história do seu território em ipádè. O quilombo, com 312 anos de existência, recebeu o título coletivo da terra em 1999. Apesar disso, desde então têm seu território ameaçado por distintos empreendimentos, públicos e privados, tais como, Linha de Transmissão Marituba-Castanhal, Rodovia Liberdade, Aterro Sanitário, Lixão do Aurá, entre outros. Frente a esses assédios e seguindo a convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, construíram seu protocolo de consulta prévia, livre, informada e de boa fé, como estratégia fundamental na proteção e garantia de seus territórios ancestrais.28 28 Para ter acesso ao documento, ver em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/protocolo-de-consulta-quilombolas-de-abacatalaura Ressalta-se que o protocolo de consulta prévia é instrumento garantido por lei em prol da autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais. Naquele ipádè compartilharam conosco como deu-se a construção e qual a relevância deste instrumento para a defesa dos seus territórios.

Em 2019, também no encontro com as comunidades que participam da Multiversidade, por orientação de Mãe Preta, realizou-se a primeira “parada da Légua”. Os participantes levaram seus tambores e cantos para a BR 386, como gesto de afirmação cultural e de seu direito de ser e existir em um município e estado profundamente racistas. Em 2020, o movimento orientado por Mãe Preta em 2019 foi melhor compreendido por todas/os do território. A comunidade kilombola Morada da Paz foi surpreendida com o Licenciamento para a ampliação da BR386 – a manifestação material e situada do habitar colonial da Terra. Localizada há 400 metros da BR 386, o território kilombola encontra-se na sua Área de Influência Direta. Local onde vivem há mais de vinte anos, autorreconhecida kilombola desde 2016, dedicada entre outras coisas em reflorestar um território que por anos foi utilizado para a monocultura do eucalipto.

Ao serem contatadas pela empresa, que já estava com a Licença Prévia em mãos, tomam conhecimento do projeto sobre o qual não foram consultadas, assim como demais comunidades quilombolas e povos indígenas afetados pelo empreendimento. Em 2020, portanto, mobilizam-se com um conjunto de aliados na construção do seu protocolo de consulta. Realizaram-se ipádès intercomunitários, ipádès com aliados mediadores do embate cosmopolítico travado contra a empresa MRS e órgãos estatais, ipádès com os representantes da empresa, do IBAMA e do INCRA, sempre acompanhados do toque dos tambores, e dos cânticos para as entidades que protegem e regem o território (para mais informações sobre o caso, ver Abya Yala, 2022ABYA YALA, Yashodhan (org.). Dossiê kilombo: proteger, defender, vigiar. São Leopoldo: Casa Leiria, 2022.).

Relações tecidas no Pará, através do quilombo do Abacatal, são acionadas também para dar o suporte e conhecimento dos amparos legais à comunidade. O encontro da Multiversidade de 2020 foi marcado por confabulações coletivas sobre a defesa dos territórios ancestrais. Compreensões compartilhadas sobre o que é um impacto e como são definidos, foram motivos de discussão e partilhas de experiência, em seus próprios termos, cada qual com suas singularidades territoriais. No caso da Morada, as crianças do território tinham intensos sonhos de que sua casa estava sendo invadida. Impactos experimentados pela comunidade antes mesmo da construção da rodovia.

Assim como definir o que são “patrimônios imateriais” dos territórios a serem salvaguardados. O som dos tambores, que servem para comunicação entre humanos e entidades, são patrimônios, assim como o cheiro da fumaça da defumação – lembrou Makota Kidoialê, do quilombo Manzo – elementos que são desestabilizados com a intensificação e intrusão sonora, de cheiros e fumaças com o fluxo de automóveis que cruzam a BR 386, por exemplo. Yashodhan propõe não chamar de “patrimônio”, mas matrimônio. Não seguindo a conotação patriarcal do casamento, mas entendendo-o como relações que não se definem pela propriedade, mas por vínculos rituais de cuidado. Do latim, Matri, oriundo do mater, mãe. Monium, referindo-se a atos rituais. Sem dúvida, é na linguagem que opera boa parte das violências sofridas pelas populações negras e indígenas nas Américas, o inacesso à informação e à garantia de direitos são a prova cabal disto. Desmontar e remontar palavras, sobretudo que veiculam ideias opressoras, estender seus sentidos, são formas criativas de compor mundos mais possíveis de serem habitados. Aprender e desaprender a língua do colonizador constituem os caminhos para compor estratégias de resistência, para colocar as ideias para circular, e as palavras girar, devir-outra.

Os diálogos sobre as investidas coloniais no território da Morada da Paz se estenderam ao longo do encontro de 2020 e 2021 nos encontros da Multiversidade, e não apenas, e resultaram em uma recente publicação. Compõem o Dossiê Kilombo: proteger, defender e vigiar,29 29 Disponível em: http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/acervo/compaz/dossiekilombo/index.html. Acesso em: 13 jul. 2023. organizado por Yashodhan Abya Yala, a cartografia elaborada pela Morada da Paz resultante da oficina ministrada por um grupo de pesquisa da UFRGS sobre cartografia social, junto com o seu Protocolo de Consulta prévia, livre, informada e de boa fé e o estatuto comunitário Igbesi Alaafia. O Dossiê foi finalizado em 2022 e distribuído às comunidades no encontro da Multiversidade deste mesmo ano, seguindo o fluxo contínuo e criativos das urgências que atravessam os territórios. Início de 2023, após a apresentação de uma Ação Civil Pública denunciando a violação de seu direito à consulta prévia, livre e informada, e audiência pública decorrente disso, a obra de ampliação da BR386 foi suspensa entre os quilômetros 405 e 4015 que afetam diretamente a comunidade.30 30 Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/02/15/consulta-previa-justica-federal-reconhece-direito-de-comunidade-kilombola-no-rs. Acesso em: 13 jul. 2023. Um respiro, ainda que sabem que a luta pela vida digna é sucedida de inúmeras batalhas. A continuidade dessa luta, apontou a comunidade, segue dois caminhos: a incidência política e a pedagogia da luta. Parte desta pedagogia da luta implica no que recentemente Yashodhan Abya Yala nomeou como “revirar a terra preta dentro do Estado”.

Há algum tempo, em um ipádè, Yashodhan partilhou uma sensação. Disse que, precisaríamos nós, lideranças comunitárias e aliadas/os ali reunidas/os, “revirar a terra preta” nos territórios comunitários envolvidos na teia da Multiversidade. Uma fala que me intrigou. É certo que a terra, da qual nos fala, conecta-se com o fato de que as comunidades partícipes da Multiversidade são reconhecidas como “povos da terra”. Não proprietárias/os, mas aquelas/es que fazem da terra um espaço de convivência com seres humanos e não-humanos. Neste sentido, revirar a terra é, de algum modo, revirar-se com, apontando o que já tem sido amplamente discutido sobre o caráter consubstancial de corpos e territórios desses que fazem da terra uma aliada. É certo também que a terra preta, remete-nos às protagonistas dessa teia que são, em sua maioria, pessoas (humanas e entidades) e territórios negros e indígenas, sobreviventes e insurgentes do racismo colonial.

Mas a terra, que carrega tantas camadas de referências (planeta, substância, conceito), parece ser acionada no seu sentido mais elementar e mundano: a terra preta, um composto de matéria orgânica, encontrada na camada superficial do solo, sobretudo nas matas, abaixo da serrapilheira, que desempenha importante papel na aeração e drenagem, o que auxilia o alcance mais profundo das raízes em seu devir-com plantas. Bastante rica em nutrientes e microorganismos, como bactérias e fungos, trabalhadores incansáveis nos processos de decomposição e fundamentais à vitalidade do solo. O ato de revolver, revirar a terra, além de arejá-la e facilitar a permeabilidade do solo, traz o que está mais abaixo para a superfície e vice-versa, movimenta, compõe com os movimentos que ali ocorrem, orquestrado por outras relações multiespecies. Re-virar, virar muitas vezes, é também devir-com os seres e os processos desse composto terra preta e demanda atenção àquilo que está sendo revirado.

Não nos é permitido esquecer que a terra, e as pessoas que a habitam, tem sido transformadas em escalas globais pelo sistema exploratório colonial-capitalista. Fazendo dela e das pessoas recurso de extração energética a serviço da produção em grande escala desde o sistema colonial da plantation, alterando as ecologias em detrimento da mesmificação monocultural da vida e da expansão dos grandes empreendimentos, o que Ferdinand (2022)FERDINAND, Malcom. Uma ecologia descolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: UBU Editora, 2022. chamou de o “habitar colonial da Terra”. Nada disso é novidade para as comunidades articuladas através da Multiversidade. O quilombo Manzo, situado em Belo Horizonte/MG desde a década de 70, se insurgiu recentemente contra um grande projeto de mineração na Serra do Curral, da qual é vizinho, e com a qual estabelece relações de cuidado mútuo. Semelhante à comunidade Nova Canaã em Barcarena/PA, que também enfrentou os tentáculos da mineração sob suas terras. Ou quilombo Dandá, situado em Simões Filho/BA, com mais de 250 anos de existência enfrenta, até hoje, a invasão dos seus territórios por posseiros. Ou o quilombo do Abacatal/PA, com 312 anos, que recentemente enfrentou o risco de ter seu território atravessado pela construção da Rodovia Liberdade.

Porém, “revirar a terra preta”, no avesso do extermínio, aproxima-se ao movimento da enxada daquele que a ama, que estabelece com ela uma relação de cuidado, de curiosidade às suas singularidades e de diálogo, através dos movimentos compassados ou das palavras entoadas em cantos, com outros-que-humanos que habitam o composto terra preta. Lembro de uma das jovens do território Morada da Paz, quando criança comentar comigo sobre a “chacina” que haviam cometido no ramal que dá acesso à comunidade: as árvores foram cortadas sem nenhum cuidado. Talvez “revirar a terra preta” seja outro nome para uma educação da atenção frente às temporalidades emaranhadas e à coextensividade do ecocídio e do genocídio dos povos da terra.

Traz consigo também o convite para respirar junto, humanos e não-humanos, trazer de baixo para a superfície, fazer circular o solo e respirar junto o cheiro úmido que habita as entranhas da terra. Não sem suor, tampouco sem intempéries que se apresentam na lida. “Revirar a terra preta dentro do Estado” tem sido o que a Morada da Paz tem feito no enfrentamento a uma das manifestações do “habitar colonial da Terra”, com a proposta de ampliação da BR 386. Nesse contexto, revolve-se a terra como se revolve-se as ideias coletivamente, criam-se alianças intercomunitárias, giram-se as palavras para tontear o colonizador. Os resultados da Ação Civil Pública resultam não apenas em uma pedagogia da luta, no sentido de formas organizativas no interior do próprio kilombo e da rede intercomunitária da Multiversidade, mas também tem demandado aos órgãos públicos envolvidos na contenda, como IBAMA e INCRA,31 31 A título de exemplo, em audiência pública ficou evidente a confusão, intencional ou não, entre Estudo de Componente Quilombola e Consulta Prévia pelo representante do INCRA, o que precisou ser elucidado pela própria comunidade kilombola. a criação de seus protocolos internos para efetivar a consulta prévia, livre e informada de comunidades tradicionais, quando impactadas por grandes empreendimentos.

Descrever construções políticas e pedagógicas em processo, como a criação da Multiversidade, corrobora com a proposição traçada por Anjos de fazer antropologia em estado de guerra, antropologia como relatório de guerra (Anjos, 2017, p. 216). Busquei, através do encontro afroindígena inicial, como resposta à violência colonial branca ocidental, apresentar a força dos encontros da Multiversidade, desenvolvidos através dos ipádès, que traz a potência da circularidade, do diálogo e da participação ativa de humanos e mais-que-humanos. Mãe Preta e Iapucã, sobretudo, como partícipes da construção de mundos possíveis. O ipádè constitui a forma dialógica por excelência da Multiversidade, espaço das confabulações coletivas, refúgios quilombistas em que a brincadeira contracolonialista e giro com as palavras ganham vida. Retomo a relevância de Mãe Preta, cuja presença opera outra temporalidade no terreiro, mestra das invenções de palavras como formas de resistência a persistência colonial da escravidão, nas suas formas genocidas e ecocidas, elucidadas pela situação concreta de enfrentamento vivida pela Comunidade Kilombola Morada da Paz. A partir dessa situação, retomo a ideia de Yashodhan Abya Yala e da urgência de “revirar a terra preta”, proposição que atravessa os encontros da Multiversidade, com a urgência de criações políticas comunitárias conjuntas. Como rota de resistência, revirar a terra preta – mesmo “dentro do Estado” - em busca de uma pedagogia da luta.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Utilizarei o itálico para conceitos oriundos da comunidade Morada da Paz e Multiversidade dos Povos da Terra de Mãe Preta, assim como para enfatizar palavras de acordo com o contexto. A pesquisa realizada contou com o auxílio financeiro da CAPES. O artigo aqui apresentado foi apreciado pelo Conselho de Ìyás e Bábàs da Nação Muzunguê Território de Mãe Preta que permitiram sua publicação.
  • 2
    Ao longo da tese de doutorado nomeei a relação que estabeleci com a Morada da Paz de “composição contracolonizadora”, pois implicou um duplo-convite: na medida que as convidei para a realização de uma pesquisa de doutorado, fui convidada a realizar o processo de iniciação na comunidade e participar da espiritualidade ali vivida. A tese surge como um dos substratos desta relação, mas não única. Composição eu retomo de Deleuze (2002DELEUZE, Gilles. Espinoza: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.; 2017), porque não poderia dizer ser um pacto, acordo ou negociação, na medida em que essas percepções partem de uma noção de pessoa que exclui uma série de componentes não-humanos em interação. Composição porque partes das relações que me constituem encontraram-se com partes das relações que constituem as pessoas que fazem e criam a Morada da Paz, fazendo com que as envolvidas no problema que ali emergia – a construção de uma Tese que se “propõe a confrontar os saberes hegemônicos” a partir das práticas e saberes desenvolvidos na Morada da Paz – engajassem-se nas suas possibilidades de solução, em diferentes posições. Permitindo-me ser, através das forças que me atravessam, vetor para a potencialização da Morada e dos desejos que levaram as mais velhas e as entidades a aceitarem minha presença ali, da mesma forma que a Morada é um vetor de potência em mim que, dentre tantos fluxos do qual sou composta, também um vetor de novas imagens do pensamento a partir da e para a Antropologia. Contracolonizadora (Santos, 2019SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos – Modos e Significações. Brasília: Editora Ayó, 2019.) porque foi sobretudo sobre ‘confrontar os saberes hegemônicos’ o início desta composição.
  • 3
    Faço desse artigo também reverência ao pedido de Yalasè Yashodhan de resguardar a memória da Multiversidade.
  • 4
    Trabalho espiritual, neste caso específico, envolve corpo, permitir-se ser afetado e atravessado pelas forças que afetam e atravessam os corpos daqueles que estão sendo convidados a ali se manifestarem. Até culminar em suas manifestações singularizadas.
  • 5
    Imaginamos menos ainda que hoje, em 2023, Sônia Guajajara, assumiria o Ministério dos Povos Indígenas e Joênia Wapichana a presidência da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
  • 6
    Como desenvolvi em outro lugar (Flores, 2020FLORES, Luiza Dias. Um ‘nós’ intercessor: quando a etnografia também é magia. Revista Mana, Rio de Janeiro, v. 26, p. 1-31, 2020.) “Nomeiam-se kilombolas com k com o intuito de recuperar o sentido bantu do termo kilombo: fortaleza, união. Para elas, quilombola seria a “língua do colonizador” que as tornam “remanescentes” de antigos quilombos. Afirmam-se, contudo, sobreviventes: não aquelas que restaram, mas aquelas que resistiram e sobreviveram às investidas coloniais. Neste sentido, entendo o kilombo como uma modulação do que Nascimento (1980)NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. chamou quilombismo: “ideia-força, energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV” (1980, p. 256). O quilombismo, para o autor, é um movimento de inúmeras práticas associativas, ilegais ou toleradas pelo poder colonial e estatal, que sustentavam e sustentam a necessidade de assegurar a “existência do ser” da população negra, resgatando a dignidade e liberdade através da organização de uma sociedade livre”.
  • 7
    Como dissertei em outro artigo (Flores, 2020FLORES, Luiza Dias. Um ‘nós’ intercessor: quando a etnografia também é magia. Revista Mana, Rio de Janeiro, v. 26, p. 1-31, 2020.), para a Morada, o mundo é habitado por seres e forças invisíveis, que povoam o cosmos e que engendram e atuam no que chamamos de ‘realidade’ e ‘materialidade’ – nos corpos, nas situações, nos espaços, no que nomeamos ‘estrutura social’, ou até mesmo ‘política’. A percepção de guerra cósmica parte da ideia de que forças e seres podem ser de potência, “das luzes”, ou destrutivas, “energias densas”, que servem “às trevas”. As designações dessas forças, que são dadas a perceber através do corpo, são anteriores, na medida em que sabem que forças das trevas e forças das luzes agem sobre o mundo visível, mas elas só são dadas a conhecer quando se encontram com os sujeitos que, então, as designam. São percebidas pelos efeitos que produzem, sejam eles benéficos ou nefastos – diria, então, que estes podem ser entendidos como bons encontros e maus encontros, nos termos propostos por Spinoza (Deleuze, 2002DELEUZE, Gilles. Espinoza: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.; 2017). É importante diferenciarmos as luzes e as trevas dos valores moralizantes e transcendentes para pensá-los segundo diferenças qualitativas dos modos de existência. O bom encontro ocorre quando “um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa”, produzindo paixões, ou afetos, alegria e fortalecendo nossa potência de agir. O mau encontro pauta-se, ao contrário, pela decomposição. É quando um corpo, ao nos encontrar, decompõe a relação do nosso, apesar de compor com as nossas partes, “mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência”, produzindo paixões tristes, diminuindo nossa potência de agir. São ambas consequências de afecções passivas, porque se explicam por um corpo exterior que nos afeta.
  • 8
    Herdar, prolongar, aqui, não pode ser entendido em um sentido de filiação, pois ele engendra um processo de transformação. Ser herdeira é estabelecer relação com um acontecimento. Não significa sentir da mesma forma, nem querer representar o que aconteceu. É fazer reverberar toda a sua potência através de outros meios e, com isso, ser capaz de suscitar novos acontecimentos. (Stengers; Pignarre, 2011STENGERS, Isabelle; PIGNARRE, Philippe. Capitalist Sorcery: Breaking the spell. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011., p. 4).
  • 9
    O projeto Sumaúma, sonhado e desenhado pela Yalasè Yashodhan, tinha por objetivo o deslocamento de membros da comunidade Morada da Paz para territórios tradicionais em diversas regiões do Brasil. Foi assim que conheceram o território do Abacatal, assim como o parceiro Centro Alternativo de Cultura/CAC, em Belém/PA, o Quilombo Dandá/BA, entre outros territórios.
  • 10
    Reencontrar é o termo comumente utilizado na comunidade para designar certos encontros que produzem efeitos, ou seja, que produzem uma espécie de excedente, uma potência que transforma mutuamente os seres em relação e abre possibilidades de novas criações. Nesse sentido, nem todo encontro físico é um reencontro, pois o reencontro deixa marcas no mundo e potencializa conjuntamente as partes reencontradas.
  • 11
    Vídeo do encontro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AZwVA5pZTUU. Acesso em: 13 jul. 2023.
  • 12
    Vídeo do encontro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ywNgVN41H5k&t=29s. Acesso em: 13 jul. 2023.
  • 13
    Vídeo do encontro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qQM_LZgeZbc. Acesso em: 13 jul. 2023.
  • 14
    Bastide (1978, pBASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia Editora nacional, 1978., p. 20) sugere que há uma “interpretação falsa”, em relação a esse rito, que parte do entendimento de que Exu poderia perturbar a cerimônia se não for homenageado antes de outros deuses. Por isso, para esta interpretação, seria necessário pedir que ele se afaste. Nesses casos, o termo despacho seria muitas vezes empregado como sinônimo do termo padê: “mandar alguém embora”. A Morada da Paz também se afasta deste entendimento.
  • 15
    Chamo atenção para o fato de que a circularidade, tão central nas pedagogias de terreiro (Ferreira, 2019)FERREIRA, Tássio. Pedagogia da circularidade afrocênica: diretrizes metodológicas inspiradas nas ensinagens da tradição do Candomblé Congo-Angola. 2019. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019. e nos quilombos (Santos, 2019SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos – Modos e Significações. Brasília: Editora Ayó, 2019.; Oliveira, 2020)OLIVEIRA, Fernanda. A gente vive é rodando: movimentos quilombolas e uma pedagogia das fronteiras. 2020. Tese (Doutorado em Educação: conhecimento e inclusão social) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020. encontra-se também nos escritos de Paulo Freire, o circulo de cultura. Segundo Brandão (2018, pBRANDÃO, Carlos Rodrigues. Circulo de Cultura. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime (org.) Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018., p. 57), é no círculo de cultura que “o diálogo deixa de ser uma simples metodologia ou uma técnica de ação grupal e passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é ‘aprender a dizer a sua palavra’”. É certo, contudo, que a circularidade, quando observada através das onto-epistemologias afro-brasileiras carregam outra formulação, ancorada sobretudo na ancestralidade. Como destacado por Ferreira (2019)FERREIRA, Tássio. Pedagogia da circularidade afrocênica: diretrizes metodológicas inspiradas nas ensinagens da tradição do Candomblé Congo-Angola. 2019. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019. nas palavras de Oliveira (2007, pOLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da Ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Gráfica e Editora Popular, 2007., p. 132): “A ancestralidade é como um tecido produzido no tear africano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na urdidura do tecido está a verticalidade do tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do mundo que articula a trama e a urdidura da existência”. Entendo que seja sobretudo pela intercessão da ancestralidade que Antônio Bispo dos Santos, em comunicação oral, tenha afirmado que Paulo Freire é um grande educador porque soube aprender com os povos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, entre outros.
  • 16
    Exu Lonã é uma das qualidades de Exu. Caracterizado como o Senhor dos Caminhos, o caminhar, o buscar, o escolher, o decidir. Não por menos, rege os ipádès na Morada da Paz, espaço de partilhas e decisões coletivas.
  • 17
    Modo de organização cósmico-política que constitui a comunidade. Uma outra forma de pensar a descentralização de poder, que nega tanto a verticalidade quanto à horizontalidade (Flores, 2021a).
  • 18
    O perigo também se apresenta no padê caracterizado por Elbein dos Santos (2012, pSANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 210): “Trata-se de uma cerimônia carregada de perigo em virtude do poder sobrenatural das entidades que serão invocadas e devido à sua finalidade que consiste em propulsionar e em manter as relações harmoniosas com essas entidades e em obter ou restabelecer, por meio de oferendas apropriadas, seu favor e proteção”.
  • 19
    Tomo a imagem da máscara do silenciamento, trazida por Grada Kilomba, como parte das “políticas sádicas de conquista e dominação” (Kilomba, 2019, p. 33). Na contramão da política de silenciamento, a Morada da Paz constrói espaços de partilhas como a Abertura de Coração, como um espaço de cura às violências e silenciamentos continuamente promovidos, sobretudo às comunidades negras e indígenas. Não à toa, a Morada da Paz é caracterizada como uma curandeira, um espaço de cura que há tempos recebe em seus territórios lideranças comunitárias e ativistas sociais e auxilia na “reconstrução de seus corpos espirituais”. Contribuindo sobretudo para a atenção e cuidado àquelas/es que exercem o cuidado (Okaran, 2020)OKARAN (org.). Um Jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020..
  • 20
    Em diálogo com as fundamentais contribuições freireanas no campo da educação, reconhecemos os seus limites demasiadamente humanistas quando colocadas em relação com uma aposta de articulação intercomunitária que tem como principais protagonistas entidades espirituais. Ainda assim, suas contribuições em torno do diálogo como parte de um projeto pedagógico crítico e propositivo merecem nossa consideração. É através do diálogo, segundo Zitkoski (2018, pZITKOSKI, Jaime. Diálogo/Dialogicidade. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018., p. 85) que “podemos olhar o mundo e a nossa existência em sociedade como processo, algo em construção, como realidade inacabada e em constante transformação”. Para Freire (1974)FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974., a dialogicidade está na base da educação e envolve, sobretudo, a palavra. A “palavra verdadeira”, como se refere Freire, é ela mesma práxis transformadora, na medida em que agrega ação e reflexão sobre o mundo. Exatamente por isso, a palavra não é, e não pode ser, privilégio de alguns. É através da palavra que o diálogo e a possibilidade de “pronúncia do mundo” se institui. Pronúncia esta entendida como um ato de criação e recriação, fundamentada no amor – entendido por ele como um ato de curiosidade e comprometimento com as causas dos oprimidos - e na humildade – visto que a pronúncia não pode ser um ato arrogante e que a autossuficiência é incompatível com o diálogo.
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    Segundo Yashodhan Abya Yala (2021, pABYA YALA, Yashodhan (org.). História, memória e resistência. São Leopoldo: Casa Leiria, 2021., p. 32): “Mãe Preta toma meu corpo com mansidão profunda e ela trás dos mundos ancestrais histórias que cuidam da gente. Seus dizedores, como ela assim fala, são ensinamentos para se aplicar na vida e meditar por longos períodos”.
  • 22
    Não tenho referências de quem compôs esse orin, mas é possível encontrá-lo na internet com algumas alterações na letra – como é comum em diversos pontos de umbanda.
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    Evidentemente não partimos e, mais ainda, recusamos a suposição de representação que implica a maliciosa compreensão de que nossos interlocutores “acreditam” em coisas que a arrogância epistemológica ocidental diz não existir.
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    Os paradoxos do tempo apresentados por Dos Anjos talvez possam ser estendidos às entidades indígenas que se manifestam nos terreiros, os caboclos, ainda que procedam por outros cortes e fluxos materiais distintos – o que demandaria melhor análise e atenção.
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    Rufino (2019, pRUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2019., p. 117) nomeia essa prática comum aos povos afrodiaspóricos de a “dobra na linguagem”: “A dobra é a astúcia daquele que enuncia para não ser totalmente compreendido, não pela falta de sentido, mas pela capacidade de produzir outros que transgridam as regras de um modo normativo. A linguagem é um campo que revela múltiplas possibilidades, assim como enigmatiza muitas outras. É o terreno onde os jogos se estabelecem, e seus movimentos podem ganhar outros rumos, as regras podem ser transgredidas e lançadas a outros horizontes”.
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    Como disse em outro momento: Utilizar o k na atribuição de kilombo é expressar na linguagem uma exterioridade ao Estado, fazendo do kilombo, através de uma série de práticas, uma “máquina de guerra”” (Flores, 2021a). Conceição Evaristo recupera um clássico texto da historiadora Beatriz Nascimento sobre kilombo/quilombo e afirma que quilombo surge “não mais como uma mística de guerra bélica declarada, mas como esforço de combate pela vida”, em que as religiões afro-brasileiras se apresentam como aquelas que fortalecem o corpo e a mente como instrumentos de luta, ao operarem com “a força vital, máquina-de-guerra existencial e fisica” (Evaristo, 2010). A autora não desenvolve o que entende por máquina de guerra, mas conecto com o pensamento de Clastres e de Deleuze e Guattari. Por isso, retomo esse conceito, entendendo o kilombo como uma máquina de guerra, no que consiste à ação política desenvolvida pela Morada, mas também como uma máquina de guerra na própria atividade do pensamento. Deleuze e Guattari (1997) sustentam que a lei do Estado opera através da interioridade e exterioridade. As máquinas de guerra, que são exteriores à forma-Estado, e aos aparelhos de Estado, com seus movimentos de captura e interiorização, coexistem e concorrem em um mesmo campo de interação. Estado sempre existiu, mas, da mesma forma, as máquinas de guerra sempre existiram e existirão – como aquilo que ameaça os aparelhos de Estado e cuja multiplicidade não é capaz de ser totalmente interiorizada pela forma-Estado.
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    Sobre a relação que a comunidade Morada da Paz estabelece com os conhecimentos e espaços universitários (Okaran, 2020)OKARAN (org.). Um Jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020.. Para uma discussão sobre como manejam os conceitos de saber e conhecer na relação com a Universidade, entendida como um espaço do colonizador, mas com o qual estabelecem relações parciais (Flores, 2021b).
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    A título de exemplo, em audiência pública ficou evidente a confusão, intencional ou não, entre Estudo de Componente Quilombola e Consulta Prévia pelo representante do INCRA, o que precisou ser elucidado pela própria comunidade kilombola.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2023
  • Aceito
    02 Jun 2023
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