Resumo
Este artigo apresenta linhas mapeadas em processos que se dão no desenvolvimento interior de uma aula, tomando três questões – Que aprender? Que conhecer? Que existir? – e mantendo aliança com os estudos desenvolvidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari, principalmente quando assumem a ciência problemática e o existir como processos engendrados com um pensamento sem imagem ou não-dogmático. As linhas mapeadas se dão rente ao acontecimento de salas de aulas de cursos de formação de docentes que ensinam ou ensinarão Matemática. Em experimentação com Matemática, um dispositivo – tenham o controle – arrasta saberes matemáticos e processos formativos e aciona, por meio de uma política que afirma a cognição como um vivo, perturbação tanto no conhecimento matemático, quanto nas crenças ou concepções que se tem deste saber. Este dispositivo possibilita aproximação a um aprender junto a um estado de coisas ao fazer valer o acontecimento atualizando-o através de funções, papel da ciência na produção do pensar. Assim, em experimentação, um conhecer se dá no desassossego e na perturbação, abolindo respostas rápidas e modelos antecipados, mesmo convivendo com eles. Por fim, ela, a experimentação, solicita outros modos de vida e outros mundos, numa outra ética, noutra estética em processos de dessubjetivação, de involução, fazendo ruir O modelo de Ser professora de Matemática.
Produção do Conhecimento; Produção do Existir; Educação Matemática; Processos Formativos; Ciência
Abstract
This article presents a cartography of lines in processes that take place in the inner development of a class, taking three questions – What learning happens? What knowledge happens? What existing happens? – and maintaining an alliance with the studies developed by Gilles Deleuze and Félix Guattari, especially when they assume problematic science and existence as processes engendered with an imageless or non-dogmatic thought. The cartography occurs close to events in classrooms of training courses for mathematics teachers. In experimentation with mathematics, a device – take control of it – drags mathematical knowledge and formative processes and sets, through a policy that affirms cognition as a living thing, a disturbance both in mathematical knowledge and in the beliefs or conceptions that one has of this field of knowledge. This device makes it possible to approach learning along with a state of affairs by making the event count by updating it through functions, that is the role of science in the production of thinking. Thus, in experimentation, knowledge takes place in disturbance, abolishing quick responses and anticipated models, even living with them. Finally, experimentation requests other ways of life and other worlds, in another ethics, in another aesthetics in processes of desubjectivation, of involution, causing the destruction of the model of Being a Mathematics teacher.
Knowledge production; Production of existing; Mathematics Education; Formation processes; Science
1 um cubo
“Uma aula é um cubo, ou seja, um espaço-tempo. Muitas coisas acontecem numa aula […]. É um espaço e uma temporalidade muito especiais. Há uma sequência. Não podemos recuperar o que não conseguimos fazer. Mas há um desenvolvimento interior numa aula. E as pessoas mudam entre uma semana e outra. O público de uma aula é algo fascinante”. Gilles Deleuze
numa aula de matemática, numa universidade pública, numa faculdade de educação, num curso de especialização em ciências e matemática e num curso de formação docente em pedagogia, pedagogas1 1 No decorrer deste artigo, são apresentadas partes de relatos de alunas de uma das turmas do Curso de Especialização em Ciências e Matemática e de uma das turmas do curso de Pedagogia, ambos os cursos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. No curso de especialização, a disciplina intitulada Educação matemática: concepções e aspectos filosóficos tinha como proposta experimentações e discussões da Educação Matemática enquanto área de estudos e pesquisas a partir das concepções que se produzem acerca da Matemática e seus processos de invenção. Para isso, lançava mão de exercícios e estudos de políticas de conhecimento que se imbricam na produção do conhecimento matemático e seus efeitos para se pensar a sala de aula e a pesquisa em Educação Matemática. Neste espaçotempo as duas autoras deste artigo atuavam como docentes, sendo campo de pesquisa de doutoramento da segunda autora. Já na graduação, a primeira autora e o autor atuavam na disciplina Fundamentos teórico-metodológicos em Matemática I, que propunha discutir os fundamentos filosóficos, epistemológicos e metodológicos da Matemática escolar, tomando a Matemática como produção humana sociocultural historicamente situada. Para tanto, disparava experimentações junto a conteúdos da matemática escolar presente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental no intuito de problematizar a Matemática (ou as matemáticas) e as concepções a ela associada. Em ambas, os saberes matemáticos escolares eram tomados como disparadores nas experimentações. e graduandas em pedagogia2 2 Há uma opção em tomar o feminino e as frases iniciando em minúsculas como uma política de escrita que resiste a modos hegemônicos de existir. Um devir-mulher em escrita: na turma de formação de pedagogas, que será citada durante esse artigo, havia três alunos frequentando, dentre trinta e cinco discentes. Já a turma do curso de especialização era composta por um grupo de trinta e cinco alunas. Uma minoridade: compromisso em operar nas entranhas do acontecimento sala de aula, no vivo da experimentação, assim como em operar junto ao pensamento produzido por Gilles Deleuze e Félix Guattari mapeando as linhas do dispositivo tenha o controle ativadas em letras minúsculas. Em um momento mais a frente, talvez uma traição acadêmica se apresente, desejando-se maior (maiúscula), busca concluir o inconcluível, pois puro acontecimento. Seria isto, uma meta-experiência? recebem uma quantidade considerável de peças idênticas em saco plástico e uma ordem: tenham o controle! uma regra: não utilizem nada que vocês já conheçam para estabelecer o controle. expor à experimentação uma máquina: o formalismo3 3 “[...] Um sistema formal consiste de teorias formais, isto é, termos primitivos, regras para a formação de fórmula, seguidos de axiomas ou postulados, regras de inferências e teoremas [...]” (Baraldi, 1999, p. 88). David Hilbert (1862 - 1943) propunha que toda Matemática poderia ser reduzida a um número finito de axiomas consistentes (o sistema não admite contradições ou, dito de outro modo, o sistema não admite uma proposição e sua negação). Deste modo, qualquer proposição da Matemática poderia ser provada dentro deste sistema e o sistema seria dito completo (quando qualquer proposição pode ser deduzida ou negada dentro do sistema). Kurt Friedrich Gödel (1906 - 1976), com seu Teorema da Incompletude, abala o formalismo clássico de Hilbert, ao apontar que em alguns sistemas formais, “[...] é possível a construção de proposições bem-formadas que não se pode deduzir se são verdadeiras ou se são falsas [...]” (Machado, 2013, p. 59). Consideradas todas as distinções desta experimentação com o formalismo de Hilbert e os estudos de Gödel, o que pretendemos destacar é como uma sistematização ou formalização vai tomando, no âmbito da naturalização, universalização e, por muitas vezes, totalização, “o” modo de ser e de funcionar da Matemática. matemático e seus sistemas apoiados em linguagem lógica4 4 Hilbert, em seu projeto de formalização completa da Matemática, considerava que as construções e os objetos que compõem as teorias formais tinham como instrumento fundamental para sua consistência e, por fim, de sua completude, a Lógica. A Lógica torna-se, portanto, um método de obter inferências de forma legítima. , uma matemática e seus objetos de controle e de organização, um território e suas estrias. em cena, a palavra de ordem5 5 Tomamos palavra de ordem junto ao pensamento de Deleuze e Guattari (1995) e dentre os tantos modos que nos dão a perceber como opera a palavra de ordem, destacamos a que os autores tomam junto a Elias Canetti, que se aproxima ao que compreendemos ser o modo de operar nesta atividade: “[...] a palavra de ordem é sentença de morte, implica sempre uma sentença como essa, mesmo muito atenuada, tornada simbólica, iniciática, temporária... etc. A palavra de ordem traz uma morte direta àquele que recebe a ordem, uma morte eventual se ele não obedece, ou, antes, uma morte que ele mesmo deve infligir, levar para outra parte [...]” (p. 54). Além disso, a palavra de ordem não está apenas no imperativo, pode estar guardada numa questão, numa promessa, numa dedicatória de amor, por exemplo. de uma matemática: ter controle. expor à experimentação outra máquina: a formação docente e seus modos de funcionar, um território e suas estrias. em cena, a palavra de ordem de uma formação: ter controle.
Tenha o controle!. Com esse comando e um pacote de círculos de madeira, começamos uma atividade. Mas como assim? Tenha o controle? De que forma?. Foram alguns questionamentos que tivemos ao começar a pensar na proposta. À medida que achávamos que tínhamos chegado a um resultado eficiente, a professora vinha e bagunçava o que tínhamos montado, desconstruindo, assim, nossa ideia de controle6 6 Neste formato, apresentamos relatos de alunas que participaram da atividade tenha o controle nos dois cursos citados. Esses relatos foram enviados em formato de artigos, via e-mail, como parte do processo avaliativo final das disciplinas. Já as figuras por vir, são recortes de escritas realizadas em sala de aula, no momento que o grupo estava em experimentação. A solicitação é que fossem anotando todo o processo e como se apresentava a discussão em grupo, como iam sendo construídas as ideias e também, por vezes, destruídas, até o ponto de conseguirem apresentar um registro de sua criação à solicitação do tenha o controle. .
(Diálogo entre professora e aluna, 2017).
como experimentação do controlar vem: o guardar das peças com o corpo, o guardar nos bolsos ou nas bolsas, o produzir uma forma. perder tempo. das docentes, como perturbação para a forma produzida em experimentação, vem: umas outras peças idênticas, lançadas abaixo do corpo que guarda as peças, ou uma bolsa invadida e uma retirada de peças, ou uma forma desfeita da sua estrutura original, todas seguidas da interjeição: oh, mas vocês ainda não têm o controle!7 7 A professora propositora da atividade tenha controle assume ações como jogar peças sobre a mesa que as alunas estão trabalhando ou guardar peças, desfazer uma organização posta para as alunas incluindo ou retirando peças, dentre outras, no sentido de criar problemas às respostas rápidas e fazer outras linhas se apresentarem na construção de um problema. . perder tempo. perturbação! em outras tantas tentativas do controle vem: representação da contagem em um sistema reconhecido, configurados pelos esquemas recognitivos, pelas regras e pelo saber anterior. e um novo: vocês não têm o controle! perder tempo.
um desenvolvimento interior numa aula: um corte no caos8 8 Deleuze e Guattari (2010) irão dizer das três disciplinas, três filhas do caos, as Caóides, como forma de pensamento e criação. Essas caóides produzem realidades nos planos que recortam o caos. A filosofia produz a forma do conceito, num plano de imanência, ao trazer do caos, variações; a arte, num plano de composição, produz a força da sensação, quando traz do caos, variedades; e a ciência, num plano de referência, estará a cargo da função do conhecimento a partir de variáveis. Disciplinas da produção do pensar e, por isso, do existir. Porém, sempre guardando uma aproximação com o caos, numa fuga à opinião. “[...] A opinião nos apresenta uma ciência que sonharia com a unidade, com unificar suas leis, hoje ainda procuraria uma comunidade das quatro forças [...]” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 242). Uma ciência assim é, pois, totalizante, já que teoremática. Já a aproximação com o caos, no acontecimento, é um exercício de uma ciência problemática, não totalizante, uma ciência que “[...] daria toda unidade racional à qual aspira, por um pedacinho de caos que pudesse explorar [...]”. Há, nessa aproximação com o caos, nos três planos, uma experiência perturbadora e criadora, já que “[...] nenhuma criação existe sem experiência [...]” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 152). . ficar na borda, no limite, naquilo que é variável. produção de um plano de referência, desaceleração da matéria. produção matemática. produção de ciência. que ciência? nada a recuperar, nem sensibilidade, nem imaginação, nem memória, nem o já pensado. ficar com: como controlar um quantificável? como sustentar o que não se pode controlar? como, ao solicitar o controle, perde-se um controle? perder tempo. perturbação.
desenvolver sem tornar melhor ou mais organizada, sem evoluir. há um desenvolvimento interior numa aula: vestígios. produção de rastros, de sinais, de perturbações. relações de velocidade e lentidão, produção de um espaçotempo outro. heterogêneos reunidos. peças concretas idênticas, ausência de cores, de texturas, de cheiros, de sabores... ausência de categorias. perder tempo. como controlar? controlar o quê? que regra impor para um controlar? inventar regra. controle provisório em fotos. controle provisório empilhando peças. controle provisório em formas reconhecidas. perder tempo. fotos retiradas de acesso. pilhas tombadas. formas desfeitas. variáveis. como controlar? perturbação. vestígios. sinais. peças retiradas de um grupo. peças lançadas à mesa. perder tempo. controle de quantidade assumido por uma forma. forma se desforma com a mudança da quantidade de peças. variáveis. perder tempo. perturbação. “quando pensávamos perder tempo, já fazíamos o aprendizado dos signos” (Deleuze, 2006a, p. 23).
2 que aprender?
“Nunca se sabe como alguém aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não por assimilação de conteúdos objetivos”. Gilles Deleuze
e a experimentação segue, perdendo tempo, produzindo torções com o não reconhecido, com o estranhamento, com a produção de modos, fazendo a cognição inventar-se inventando outros modos de operar. sistema cognitivo: um vivo. vivo que não se regula. vivo que não tende ao equilíbrio. vivo como um sistema autopoiético, “[...] como um sistema que tem como atributo inicial produzir a si mesmo [...]” (Kastrup, 1999KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 1999., p. 112). vivo como agente imerso em situações. não mais um vivo maturando9 9 A noção de autopoiese produzida por Maturana e Varela (1995) e discutida por Kastrup (1999) no campo dos estudos da cognição leva a pensar a invenção no seio do próprio vivo, o que afasta a produção do conhecimento, em especial do conhecimento matemático, da recognição. É por isso que, nessa seara, não se pode falar de um desenvolvimento que depende da maturação biológica ao modo como o faz, por exemplo, Jean Piaget em seu construtivismo temporalmente linear das estruturas lógico-matemáticas. O vivo e o mundo, alunas e matemáticas, se implicam em um processo de invenção que a experimentação com a atividade dispara. É por isso também que o desenvolvimento piagetiano é sobremaneira distinto daquele de que Deleuze fala na epígrafe que abre esse texto, já que o desenvolvimento no interior de uma aula implica um tempo, uma temporalidade que embaralha a cronologia passado-presente-futuro, fazendo sumir a linearidade e a teleologia sobre as quais Piaget assenta sua Epistemologia Genética. . não mais um vivo extraindo conhecimento dA Tradição10 10 As noções de invenção e autopoiese não fazem referência à tradição, à história ou à cultura como planos de representação sociais exteriores ao sujeito que vão, ao longo do processo de aprendizagem e desenvolvimento, sendo internalizados, conforme a Psicologia Histórico-Cultural de Lev Vigostki. Ao contrário, respondem pelas bifurcações que vão sendo produzidas na tradição, na história, na cultura. , dA História, dA Filosofia, dA Ciência. um vivo aprendendo com um outro, com uma tradição, com uma história, que segue em processo de produção, atualizando o virtual por funções, em relação. trazer do caos variáveis. trazer variáveis de um estado de coisas11 11 Deleuze e Guattari (2010, p. 150) apontam que “[...] a ciência não cessa de atualizar, por funções, o acontecimento num estado de coisas, uma coisa ou um corpo de referíveis [...]”. Os estados de coisas ou misturas (variáveis independentes, signos-velocidades ou partículas-trajetórias) são extraídos ou extraídas, pela ciência, do caos virtual. Essas misturas entram no regime de coordenadas referíveis, passam a funcionar entre o limite, nas bordas traçadas pelas funções, criando uma constante. No nosso caso, junto às experimentações com as alunas, há a produção de um contar, de suas regras e até, de uma linguagem para fazer funcionar um sistema de contagem, fazer funcionar um referível, atualizado por funções. Destaca-se que este estado de coisas, misturas ou variáveis atualizam uma virtualidade caótica, e ainda guardam sua potência ou seu potencial de origem. É através desse potencial que os enfrentamentos (acidentes, adjunções, ablações, projeções, aumento ou diminuição de variáveis, bifurcações etc.) se constituem como problema, como aquilo que produz o pensar, produz conhecimento. . sistema cognitivo, um vivo. cognição: ação efetiva. “[...] o domínio cognitivo não é um domínio de representações, mas um domínio experiencial [...]” (Kastrup, 1999KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 1999., p. 128). experimentar e perceber: conhecer. produção junto ao plano de referência da ciência, função do conhecimento.
: Relato de sala de aula12 12 Essas alunas produziram um grupo com oito peças, no entanto, o fez utilizando a forma de cruz, na qual cada elemento desta continha quatro peças.
um quantificável solicitando um contar. um quantificável sem um contar, naquilo que se apresenta à vida. quantidades pequenas percebidas no quantum do que são, peças e coleção de peças. intuir uma ideia de quantidade. quantidades sem nomes, sem simbologias, no que apresentam em presença13 13 Em experimentação, na ausência de possíveis categorias (cores, tamanhos, texturas etc.), vai se apresentando que as quantidades as quais se pode controlar, sem utilizar um já sabido, são aquelas percebidas através do que se denomina senso numérico que, no ser humano, apresenta-se até cinco unidades. Durante a experimentação, modos de contar se dão com organização de pequenos grupos com quatro elementos ou com cinco, que tombam noutros modos, deslocam-se de seus significantes. Não importa mais dizer quatro ou dizer cinco, importa como aqueles quantum funcionam. . variáveis. intuir. perceber. não mais unidades, não mais um a um. composição de peças com a ideia de quantidade quatro, guardada numa forma, num nome, num símbolo, todos inventados. composição de peças com a ideia de quantidade cinco, guardada numa forma, num nome, num símbolo. variáveis: composição de grupos de peças para dar a perceber a quantidade total de peças. experimentar. perturbação: um sistema de numeração indo-arábico silenciado, sem possibilidade de uso, presente. “[...] como é difícil, em qualquer campo, renunciar a essa crença em uma realidade exterior! [...]” (Deleuze, 2006a, p. 30). encontrar com o problema num estado de coisas, produção de um plano de referência. atualizar o acontecimento num estado de coisas. produção de um sítio, região de um estado de coisas. não mais identidade concebida, analogia julgada, oposição imaginada, similitude percebida. não mais representação. não mais recognição. criar, inventar. parada na imagem. desaceleração. colocar limite no caos. atualizar o virtual. ganhar uma referência. inventar, criar, atualizar num referível. um inimaginável, um impensável, um afásico, um imemorial. “[...] que é um pensamento que não faz mal a ninguém, nem àquele que pensa, nem aos outros? [...]” (Deleuze, 2006b, p. 198).
Concluímos a possibilidade de sistematizar as peças contando-as de uma forma diferente, a partir de conjuntos, denominando suas representações. Estabelecemos que a quantidade representada por um círculo de madeira equivalia a um filhote de ovelha, a quantidade representada por cinco círculos de madeira equivalia a uma ovelha adulta e, consequentemente, a quantidade representada por quinze círculos, [três grupos de cinco]14 14 No momento da experimentação em sala de aula, as alunas fizeram a composição das quinze peças, apresentando-as por três grupos de cinco, ou seja, quantidades intuitivamente percebidas. , de madeira equivalia a um rebanho de ovelhas.
(Diálogo entre professora e aluna, 2017).
peças idênticas, regras inventadas num controlar, para um contar: o interior de uma aula, uma emissão de signos. percepção. signos pedem passagem. perturbar. “[...] ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada [...]” (Deleuze, 2006a, p. 25). afecção15 15 O estado de coisas, por intermédio de seu potencial ou de sua potência, passa a corpo ou a divisão de corpos individuados naquele estado de coisas. Para Deleuze e Guattari (2010, p. 183, grifo nosso), esse momento é essencial. O estado de coisas, até então mistura, passa à interação. Aqui há um salto, essas interações dos corpos ativam uma sensibilidade “[...] que se exprimem já nos observadores parciais (nessas forças que percebem e experimentam; nesta experimentação, nos sistemas de contagem que vão se inventando, por exemplo), ligados ao estado de coisas, embora só completem sua atualização no ser vivo (para nosso estudo, consideramos a cognição como um vivo) [...]”. Essa sensibilidade, que é composta por uma protoperceptibilidade e uma protoafetividade, passa a ser tomada, pelos autores, como percepção e afecção. A percepção é “[...] um estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo [...]” e a afecção é a passagem de um estado de coisas a um estado de corpo, ou seja, no momento da interação, “[...] como aumento ou diminuição do potencial-potência, sob a ação de outros corpos” (p. 183). E, o que nos chama atenção e nos interessa, que mesmo não-viventes ou não-orgânicos, “as coisas têm um vivido, porque são percepções e afecções [...]”. . descontrole diante do desconhecido faz nascer pensar no pensamento. estar na vizinhança de um contar. experimentação. perceber e experimentar. percepção e afecção no interior de uma aula com invenção de um sistema de numeração. perturbação naquilo que se estuda. “[...] o que nos violenta é mais rico do que todos os frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais importante do que o pensamento é ‘aquilo que faz pensar’ [...]” (Deleuze, 2006a, p. 29). produção de um plano de referência, produção de proposições, de um como funcionar. sistematizar um contar, proposições que funcionam traçando referências num estado de coisas.
perturbar provoca produção de novos modos de operar com aquilo que se apresenta sem sentido reconhecido, noutros sentidos. variáveis. sentidos inventados, por coordenadas, no acontecimento. salas de aula de formação de professoras já pedagogas e de graduandas em pedagogia. torcer naquilo que se ensina ou que se ensinará, tornando-o irreconhecível, ilógico, noutras lógicas. numa lógica de um pensamento, no conjunto de suas crises16 16 Deleuze (1992, p. 106) ao dizer do trabalho de pensamento de Foucault aponta que “[...] a lógica de um pensamento é o conjunto das crises que ele atravessa, assemelha-se mais a uma cadeia vulcânica do que a um sistema tranquilo e próximo de equilíbrio [...]”. . um vivo inventando-se no que acontece, num aprender, atualizando, por funções, num plano de referência, um acontecimento num estado de coisas. um contar, um quantificar, uma ciência atualizando um virtual. sem seguir caminhos já trilhados mesmo que presente. bifurcar. sem dizer com a língua que já se fala mesmo que ouça seus sons. um não caminho, uma não língua. um aprender, agenciamento com peças a serem contadas, num controle, perdendo o controle de um estado de coisas já conhecido. uma função do conhecimento. ciência problemática. pura experimentação. “[...] nenhuma criação existe sem experiência [...]” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 152).
E foi exatamente isso que colocamos em xeque ao experienciarmos, pensando em outras possibilidades de construção da matemática e do sistema numérico. A turma reunida em grupos teve a missão de inventar seu próprio sistema. E nesse movimento, surgiu de tudo, sistema de docinhos, de animais, de comida. Mas, para além disso, chamou atenção para o fato de que, se nós construímos a matemática e cada um constrói de um jeito, mesmo que os conceitos a serem aprendidos já estejam formalizados na sociedade, ela deve fazer sentido para aquele que vai aprender.
(Diálogo entre professora e aluna, 2017).
em cena, produção de uma sistematização, de um plano de referência ou coordenação. “[...] há no mundo alguma coisa que força a pensar. este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição [...]” (Deleuze, 2006b, p. 203). inventar uma sistematização a partir da necessidade do controlar peças idênticas, quantificar, matematizar junto a um estado de coisas. “[...] o objeto do encontro [...] faz realmente nascer a sensibilidade no sentido [...]” (Deleuze, 2006b, p. 203). perceber, experimentar: percepção, afecção. não mais lembrar, imaginar ou conceber. não um ser sensível que se relaciona com uma memória, uma imagem ou uma definição, mas um ser do sensível diante daquilo que só pode ser sentido. “[...] o ser do sensível sensibiliza a alma, torna-a perplexa, isto é, força-a a colocar um problema, como se o objeto do encontro, o signo, fosse o portador de problema – como se ele suscitasse problema [...]” (Deleuze, 2006b, p. 204). no limite do controle, o que há: grupos pequenos de peças. intuir com o que há. perceber. inventar uma sistematização a partir da intuição, com a percepção de peças em um grupo menor, fazer valer um sistema, uma função. fazer funcionar. uma ação tornada outra, ensaiada no desajuste das faculdades, que solicita aos processos formativos um pensar, um aprender no encontro com o problema: sistematizar, produzir um referencial inventado na torção do pensar, produzir um sistema de contagem. para isso, largar-se da base decimal mesmo estando presente naquele estado de coisas. largar-se da enumeração reconhecida mesmo insistindo em funcionar naquele estado de coisas. largar-se da simbologia assumida mesmo que forçando passagem naquele estado de coisas. perder-se dos nomes associados, mesmo que presentes e inventar tantos outros naquele estado de coisas. largar-se das propriedades comungadas, excomungando-as e não eliminando-as, produzindo outras tantas com aquele estado de coisas... perder-se inventando com a ideia de quantidade. num estado de coisas, fazer valer o acontecimento, por funções, atualizando-o: uma ciência. isso funciona!
multiplicidade de sentidos afirmados. nenhuma idealidade a conquistar. nenhuma verdade a ratificar. aprender com peças idênticas um sistema que se inventa, inventando-se em formação docente. aprender com peças idênticas num sistema frágil, prestes a ruir, que solicita passagem para contar de outros modos, em outras línguas, mesmo que seja com as mesmas palavras. aprender produzindo matemáticas outras. aprender que a matemática é uma destas tantas outras, por isto mesmo, pura invenção.
3 que conhecer?
“‘O que se deseja quando se quer ‘conhecimento’”?
Friedrich Nietzsche
“O conhecimento não é nem uma forma, nem uma força, mas uma função: ‘eu funciono’”.
Deleuze e Guattari
uma política do conhecimento aliada a um pensamento dogmático: que deseja quando quer conhecer? um saber reconhecido, uma segurança conquistada. que deseja? garantia em códigos de esquemas recognitivos. que deseja? identidade concebida, oposição imaginada, analogia julgada, similitude percebida: convergência das faculdades. que deseja quando quer conhecer? identificar um objeto para que possa ser conhecido, buscar o Mesmo, conceber por identificação. buscar oposições, rememorar, imaginar e reencontrar uma determinação no objeto, determinar via imagem dogmática. que deseja quando quer conhecer? fazer relações entre já conhecidos, já ditos, entre antecipados e, por analogia, julgar o objeto. que deseja? buscar a semelhança entre objetos, dar continuidade ao que se percebe via o que já há num mundo reconhecido. que se deseja quando se quer conhecer? um senso comum, um fora do pensamento, garantindo a convergência das faculdades: o concebido, o imaginado, o julgado e o percebido em aliança, produzindo uma imagem para o pensamento. Quando o pensamento acessa a imagem, encontra paz e segurança em sua verdade. “[...] eis por que o mundo da representação se caracteriza por sua impotência em pensar a diferença em si mesma; e, ao mesmo tempo, em pensar a repetição para si mesma [...]” (Deleuze, 2006b, p. 201). e, com tudo isso, uma ciência se apresenta. e com isso tudo, vidas se produzem.
Ao criarmos o nosso próprio modelo de contagem, reforçamos e, através da prática, entendemos a concepção de matemática como produção humana e nos deparamos com a dificuldade de entender o funcionamento de um novo sistema, algo semelhante ao cenário escolar onde as crianças iniciam o aprendizado matemático.
(Diálogo entre professora e aluna, 2017).
uma política do conhecimento enfrentando um pensamento não dogmático: que deseja quando quer conhecer? contingência do encontro, desajuste das faculdades. que deseja? não conceber, não julgar, não imaginar, não perceber. abolir a identidade, a analogia, a oposição, a semelhança. ficar com o acontece. que deseja quando quer conhecer? ficar no que acontece. ficar no encontro. algo força a pensar: o objeto do encontro! experimentar. dar passagem aos afetos. decepcionar-se no encontro, uma certa inimizade com o já pensado e com o invariante. desassossegar-se com um ou num nascer do pensar no pensamento. “[...] só há pensamento involuntário, suscitado, coagido no pensamento, com mais forte razão é absolutamente necessário que ele nasça, por arrombamento, do fortuito do mundo [...]” (Deleuze, 2006b, p. 203). e, com tudo isso, uma ciência se apresenta. e com isso tudo, vidas se produzem.
Uma matemática pronta produz verdades, criando-se outro real permeado pelo medo do desconhecido; no aprender, o mundo vai se constituindo, possibilitando outras formas de ensinar; formas estas que não estejam amarradas em concepções prontas e acabadas em suas certezas ditadas como princípio verdadeiro de todas as coisas.
(Diálogo entre professora e aluna, 2017).
4 que existir?
“Tékhnetoûbíou (uma arte de viver, uma técnica de existência). É um estilo de vida, uma espécie de forma que se deve conferir à própria vida. Por exemplo, para construir um belo templo segundo a tékhne dos arquitetos, é preciso certamente obedecer a regras, regras técnicas indispensáveis. Mas o bom arquiteto é aquele que faz suficiente uso de sua liberdade para conferir ao templo uma forma, uma forma que é bela. [...] A obra bela é a que obedece à ideia de uma certa forma (um certo estilo, uma certa forma de vida)”. Michael Foucault
a favor de que estilo de vida uma imagem dogmática se apresenta? afirmar um sentido já dado. defesa de uma moral que só existe em função de si. fixidez dos esquemas de avaliação. valoração, hierarquização dos valores. conhecimento sustentado pela razão. pensamento representativo. discurso de legitimação de práticas morais. instinto de verdade, de conservação. ativação do sistema de condicionamentos e normatizações. busca pela identidade na reprodução da forma. parâmetro, medida para um julgamento. manifestação e intensificação da vontade de poder negativa. vontade de conhecer como dominação. ciência teoremática. homem do ressentimento: “[...] ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo [...]” (Nietzsche, 2006NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 29). ação valorativa das forças reativas. depreciação, correção da vida avaliada e julgada por uma moral que nega o erro por ela mesma inventado. moral que também nega o imprevisível, o risco, a experimentação, o acontecimento. preservação de uma única forma de vida. controle, escravidão. determinação de uma verdade universal, atemporal17 17 Deleuze e Guattari trazem a ciência como algo local, referencial e limitado no espaçotempo. A universalidade e a atemporalidade também são questões tratadas no pensamento nietzscheano. Atacam o mesmo problema com modos distintos e problematizam o conhecimento como algo do âmbito do universal, do ideal e do moralizante. O que nos interessa é como apontam para dimensão da invenção do conhecimento e a potência de criação do pensamento. . “[...] até que ponto a verdade suporta a assimilação? [...]” (Nietzsche, 2017NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Lafonte, 2017., p. 122).
Foi uma etapa desafiadora, que me fez querer desistir da disciplina, pois estava me sentindo insuficiente. Entretanto, a verdade é que eu não estava me permitindo EXPERIMENTAR. Essa era a proposta pensada desde o início... Que experimentássemos! Mas... Como experimentar algo que você tem medo? Não sabíamos, porém, tivemos que tentar.
(Diálogo entre professora e aluna, 2017).
a favor de que estilo de vida uma imagem não dogmática se apresenta? invenção de sentidos outros. vontade de conhecer no âmbito da problematização, da experimentação. ciência problemática. vontade de conhecer. coengendramento entre pensamento e existência. fuga à normatividade. inversão das relações de poder. aposta no que acontece, não mais erro ou acerto. negar a universalidade e a verdade hegemônica como condições de existência. abandono do sistema de julgamentos. “[...] em lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que afirma a vida. a vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento, a potência afirmativa da vida. [...] pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida [...]” (Deleuze, 2018DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 130). vida avaliada pela própria vida. elemento diferencial da criação de valores. ação das forças ativas, puro devir. vontade afirmativa de potência. configuração de uma estética de si. a vida como obra de arte. invenção de espaçostempos outros. aposta na experimentação. abertura de possíveis. criação de formas de vida. uma ética da imanência. uma arte de viver. “[...] os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. a vida ativa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida [...]” (Deleuze, 2007DELEUZE, G. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 2007., p. 18)18 18 Deleuze (2007, p. 18). .
Das pecinhas, ou melhor, do controle das pecinhas às produções textuais, existiu construção. Mas sempre acreditei que quase tudo no mundo já estava inventado, ou que eu jamais seria capaz de inventar algo. Talvez porque romantize as invenções, as produções. Mas se a matemática e tantas outras “coisas” do mundo são inventadas, temos que explorar nossa potência. Inventamos um sistema de numeração. Foi fantástico!
(Diálogo entre professora e aluna, 2017).
5 interior de uma aula, que passa?
Na produção de um interior de uma aula com saberes matemáticos e com processos formativos é acionada, por meio de uma política que afirma a cognição como um vivo, perturbação tanto no conhecimento matemático que se ensina ou se ensinará quanto nas crenças ou concepções que se tem deste saber. Uma palavra de ordem, ter controle, “[...] é como um grito de alarme ou uma mensagem de fuga [...]” (Deleuze; Guattari, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995., p. 54) fazendo com que processos formativos ou, poderíamos dizer, modos de existir, sejam colocados em devir outro dobrando também modos de produção do conhecimento.
Um interior de uma aula se desenvolve por decisões tomadas junto a uma política ligada a uma ética e a uma estética, constituindo um espaço de experimentação com matemática, deslocando a continuidade esperada de um tempo cronológico que crê num passado alimentando um presente na espera de um futuro que está por vir. O tempo que se produz é do âmbito da produção de um hábito. É o hábito, para Deleuze (2006b, p. 116) “[...] que extrai da repetição algo de novo: a diferença [...]”. O tempo é agora um tempo contraído, no qual “[...] só o presente existe. [...] A síntese do presente constitui o presente no tempo. [...] como presente vivo e constitui o passado e o presente como dimensões desse presente [...]” (Deleuze, 2006b, p. 120). E é nesse presente vivo que um campo problemático se constitui por meio da experimentação e outros modos de conceber matemática e de ser professora irão se dar. Por repetição, a diferenciação se dá em um tempo presente: percepção e afecção que já não pertencem a um ser biológico ou a um sujeito, mas que dependem da composição que se faz, daquilo que acontece no interior de uma aula que se desenvolve.
O interior que se desenvolve numa aula nada tem de espontâneo ou de um acaso probabilístico: é sim um acaso no lance19 19 Deleuze (2018) traz o lance de dados do pensamento nietzscheano. O que interessa não é o número de combinações possíveis ao se lançar o dado, nem probabilidade com que cada combinação possa vir a acontecer. O que importa, no âmbito da necessidade, naquilo que é fatal, num só lance, acolher a combinação que se apresenta. das forças que se combinam, acolhendo a combinação que se apresenta. Eis o fatal no âmbito do que se acolhe em acontecimento. Uma ética na produção de si aliada à intensificação da potência de vida, perguntando sempre: a serviço de que estilo de vida esse valor se coloca? Uma estética da formação docente não mais lhe bastando saberes já constituídos e instituídos ou modos de ser professora dogmáticos, insistindo sempre na formação enquanto processualidade, sempre em devir, no instituinte, processo de involução.
Ao tomar peças idênticas a serem controladas parecem sair de cena cores, texturas, tamanhos, cheiros... Uma assepsia que, por outro lado, faz acentuar uma dificuldade de produção de grupos de peças por uma distinção do que se assemelha em sua composição. O controlar acionado por um guardar, claro, uma forma possível de dar a resposta rápida ao problema instalado, é derrubado ao se conceber que outras peças entram ou saem do jogo, causando falência daquele modo. Algumas formas compostas por mais de cinco peças, quando solicitada uma repetição ou a comparação com outro grupo de peças também com mais de cinco peças, não conseguem ser repetidas ou comparadas, já que aquela quantidade não pode ser intuída.
Uma via de mão dupla. Uma direção: quando, no caos, se produz um corte, há desaceleração da matéria. Não há nada a recuperar. A própria experimentação se territorializa em algo, constitui uma forma, constitui uma ciência, ainda que problemática. Outra direção: se tomamos a experiência escolar com matemática como um ponto de partida, é a própria ciência teoremática – no mais das vezes veiculada na escola – que vai tendo sua forma desfeita na medida em que a aceleração de sua matéria acontece. É um movimento de avizinhamento do caos que está em jogo, um movimento de desterritorialização. Aqui não há nada a recuperar porque o que se recupera já está confinado na forma desacelerada da matéria e não dá mais conta da matéria acelerada. Uma atividade na borda, no limite: é tanto corte no caos e desaceleração da matéria quanto uma forma reconhecida que explode por conta de uma aceleração ou um avizinhamento do caos que se insere nela. É isso que está em jogo aqui: a aula está na proximidade da matemática escolar, da formação de professores etc. Então não é só um certo plano de referência que se constitui. Há um plano de referência naturalizado que se perde. Um plano de referência naturalizado: um controle sobre os objetos do mundo se estabelece com as quantificações; os processos de quantificação culminam em sistemas de numeração; o sistema de numeração decimal com algarismos indo-arábicos predomina em nossa cultura e toma a forma de um plano de referência sobre o qual se constitui o ato de ensinar na escola. No interior de uma aula, Ter o controle aciona experimentações e faz produzir sichas, cruzes e salsichões, pétalas, flores e jardins como efeitos do controlar, outros planos de referência que respondem a outros modos de se produzir o quantum: um plano de referência que se constitui. E quantos outros mais? Uma formação que aciona e experimenta o quantum de sichas, cruzes e salsichões, pétalas, flores e jardins dá a pensar a formação como invenção de si mesmo e de matemática, devir a-paralelo que desnaturaliza o plano de referência da matemática na exata medida em que desnaturaliza a subjetividade hegemônica a qual a própria matemática está conectada.
E assim, o que se experimenta é que por mais que as categorias cor, textura, tamanho e cheiros, assim como formas que não vingassem na experimentação parecessem ser excluídas, estavam todas ali, naquele plano. “[...] Variabilidades desaceleradas sobre constantes ou limites [...]” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 241). Uma linguagem e um registro já experimentados com o sistema de numeração indo-arábico, guardado em memória e em sua significância solicitam passagem. Porém, seu uso é impedido pelo descontrole da única regra do controle: não utilizem nada que vocês já conheçam. E o interior de uma aula vai sendo desenvolvido, na borda do já pensado, num impensável, num afásico, num imemorial. Eis, pois uma aproximação com o caos e um corte por um plano secante de referência que deseja por a funcionar outros modos do contar. Selecionar um modo, tomar uma pequena quantidade que pode ser percebida sem enumerações, no seu quantum, reduz o número de variáveis naquele caos. Produzir uma função – um funcionamento e fazer valer no desenvolvimento interior de uma aula o exercício que ciência sempre faz quando se aproxima do caos:
O cientista traz do caos variáveis, tornadas independentes por desaceleração, isto é, por eliminação de outras variabilidades quaisquer, suscetíveis de interferir, de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa função: não mais são liames de propriedades nas coisas, mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência, que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global (Deleuze; Guattari; 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 238).
No desenvolvimento interior de uma aula, pergunta-se: que ciência se produz? “[...] A ciência não é impregnada por sua própria unidade, mas pelo plano de referência constituído por todos os limites ou bordas sob as quais ela enfrenta o caos [...]” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 142). Uma ciência que escapa a qualquer unificação do referente; enfrenta, desacelera e faz um corte no caos para produzir conhecimento. Isso funciona entre bifurcações no plano de referência, “[...] como se a bifurcação fosse procurar, no infinito caos do virtual, novas formas por atualizar, operando uma espécie de potenciação da matéria [...]” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 147).
A ciência desce da virtualidade caótica aos estados de coisas e corpos que a atualizam; todavia, ela é menos inspirada pela preocupação de se unificar num sistema atual ordenado, do que por um desejo de não se afastar demais do caos, de escavar os potenciais para apreender e domesticar uma parte do que a impregna, o segredo do caos por detrás dela, a pressão do virtual (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 185).
No desenvolvimento interior de uma aula, processos de formação docente rente ao caos, próximos ao campo da produção do conhecimento matemático, faz um campo do saber que se quer universal abalar-se. O que se coloca em composição, em problema é, pois: que conhecer? que aprender? que existir?
O conhecer está aliado a um processo de invenção junto às variáveis retidas numa certa desaceleração que faz com que se produza um sistema de numeração bem rudimentar, que irá solicitar uma certa língua, que desloca uma linguagem matemática de sua assepsia e pureza, na invenção de novos sentidos e novo funcionamento. Há, pois um embaralhamento de códigos para a inauguração de novas formas de registro e de significância. Com isto tudo, os processos formativos, existires, passam a encontrar problema com a ciência e com suas crenças. Um aprender se dá através dos signos que se apresentam com uma matemática que vai sendo produzida. Outros modos de ser docente se configuram destituídos da segurança que se dava através de uma universalização e homogeneização de uma matemática e de um Ser docente.
A questão é, pois, da existência. Fiquemos com a canção de Caetano Veloso: “[...] existirmos: a que será que se destina? [...]” (Veloso, 1982). Vidas se atualizam em cursos de formação de professoras quando encontram problema com um saber matemático, enfrentando um território, desterritorializando-o. Numa desaceleração da matéria junto a um plano de referência que corta o caos, insiste-se em um enfrentamento no espaçotempo de uma aula. Sala de aula de formação de professoras com matemática, lugar de batalha e de invenções na produção de mundos e modos de existir. Uma aula, um cubo, um público: nunca se encerram em si, não é uma totalização. Que mobiliza? Fluxos das forças moventes no plano abrem possíveis em um espaço intensivo de uma aula. Um contínuo. Um cubo. Um público. Um pouco de ordem no caos. Fluxos, forças em enfrentamento. Vidas se arrastam nessa produção de linhas de vida. Há um desenvolvimento interior numa aula.
Referências
- BARALDI, I. M. Matemática na escola: que ciência é esta? Bauru: EDUSC, 1999.
- DELEUZE, G. Conversações São Paulo: Editora 34, 1992.
- DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a.
- DELEUZE, G. Diferença e Repetição São Paulo: Graal, 2006b.
- DELEUZE, G. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 2007.
- DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n-1 edições, 2018.
- DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
- DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.
- FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito Tradução de M. Fonseca e S. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
- KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
- MACHADO, J. N. Matemática e realidade: das concepções às ações docentes. São Paulo: Cortez, 2013.
- MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Editorial Psy II, 1995.
- NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
- NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Lafonte, 2017.
- VELOSO, C. C. Cinema Transcendental. São Paulo: Philips Records, 1982.
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No decorrer deste artigo, são apresentadas partes de relatos de alunas de uma das turmas do Curso de Especialização em Ciências e Matemática e de uma das turmas do curso de Pedagogia, ambos os cursos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. No curso de especialização, a disciplina intitulada Educação matemática: concepções e aspectos filosóficos tinha como proposta experimentações e discussões da Educação Matemática enquanto área de estudos e pesquisas a partir das concepções que se produzem acerca da Matemática e seus processos de invenção. Para isso, lançava mão de exercícios e estudos de políticas de conhecimento que se imbricam na produção do conhecimento matemático e seus efeitos para se pensar a sala de aula e a pesquisa em Educação Matemática. Neste espaçotempo as duas autoras deste artigo atuavam como docentes, sendo campo de pesquisa de doutoramento da segunda autora. Já na graduação, a primeira autora e o autor atuavam na disciplina Fundamentos teórico-metodológicos em Matemática I, que propunha discutir os fundamentos filosóficos, epistemológicos e metodológicos da Matemática escolar, tomando a Matemática como produção humana sociocultural historicamente situada. Para tanto, disparava experimentações junto a conteúdos da matemática escolar presente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental no intuito de problematizar a Matemática (ou as matemáticas) e as concepções a ela associada. Em ambas, os saberes matemáticos escolares eram tomados como disparadores nas experimentações.
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Há uma opção em tomar o feminino e as frases iniciando em minúsculas como uma política de escrita que resiste a modos hegemônicos de existir. Um devir-mulher em escrita: na turma de formação de pedagogas, que será citada durante esse artigo, havia três alunos frequentando, dentre trinta e cinco discentes. Já a turma do curso de especialização era composta por um grupo de trinta e cinco alunas. Uma minoridade: compromisso em operar nas entranhas do acontecimento sala de aula, no vivo da experimentação, assim como em operar junto ao pensamento produzido por Gilles Deleuze e Félix Guattari mapeando as linhas do dispositivo tenha o controle ativadas em letras minúsculas. Em um momento mais a frente, talvez uma traição acadêmica se apresente, desejando-se maior (maiúscula), busca concluir o inconcluível, pois puro acontecimento. Seria isto, uma meta-experiência?
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“[...] Um sistema formal consiste de teorias formais, isto é, termos primitivos, regras para a formação de fórmula, seguidos de axiomas ou postulados, regras de inferências e teoremas [...]” (Baraldi, 1999BARALDI, I. M. Matemática na escola: que ciência é esta? Bauru: EDUSC, 1999., p. 88). David Hilbert (1862 - 1943) propunha que toda Matemática poderia ser reduzida a um número finito de axiomas consistentes (o sistema não admite contradições ou, dito de outro modo, o sistema não admite uma proposição e sua negação). Deste modo, qualquer proposição da Matemática poderia ser provada dentro deste sistema e o sistema seria dito completo (quando qualquer proposição pode ser deduzida ou negada dentro do sistema). Kurt Friedrich Gödel (1906 - 1976), com seu Teorema da Incompletude, abala o formalismo clássico de Hilbert, ao apontar que em alguns sistemas formais, “[...] é possível a construção de proposições bem-formadas que não se pode deduzir se são verdadeiras ou se são falsas [...]” (Machado, 2013MACHADO, J. N. Matemática e realidade: das concepções às ações docentes. São Paulo: Cortez, 2013., p. 59). Consideradas todas as distinções desta experimentação com o formalismo de Hilbert e os estudos de Gödel, o que pretendemos destacar é como uma sistematização ou formalização vai tomando, no âmbito da naturalização, universalização e, por muitas vezes, totalização, “o” modo de ser e de funcionar da Matemática.
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Hilbert, em seu projeto de formalização completa da Matemática, considerava que as construções e os objetos que compõem as teorias formais tinham como instrumento fundamental para sua consistência e, por fim, de sua completude, a Lógica. A Lógica torna-se, portanto, um método de obter inferências de forma legítima.
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Tomamos palavra de ordem junto ao pensamento de Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. e dentre os tantos modos que nos dão a perceber como opera a palavra de ordem, destacamos a que os autores tomam junto a Elias Canetti, que se aproxima ao que compreendemos ser o modo de operar nesta atividade: “[...] a palavra de ordem é sentença de morte, implica sempre uma sentença como essa, mesmo muito atenuada, tornada simbólica, iniciática, temporária... etc. A palavra de ordem traz uma morte direta àquele que recebe a ordem, uma morte eventual se ele não obedece, ou, antes, uma morte que ele mesmo deve infligir, levar para outra parte [...]” (p. 54). Além disso, a palavra de ordem não está apenas no imperativo, pode estar guardada numa questão, numa promessa, numa dedicatória de amor, por exemplo.
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Neste formato, apresentamos relatos de alunas que participaram da atividade tenha o controle nos dois cursos citados. Esses relatos foram enviados em formato de artigos, via e-mail, como parte do processo avaliativo final das disciplinas. Já as figuras por vir, são recortes de escritas realizadas em sala de aula, no momento que o grupo estava em experimentação. A solicitação é que fossem anotando todo o processo e como se apresentava a discussão em grupo, como iam sendo construídas as ideias e também, por vezes, destruídas, até o ponto de conseguirem apresentar um registro de sua criação à solicitação do tenha o controle.
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A professora propositora da atividade tenha controle assume ações como jogar peças sobre a mesa que as alunas estão trabalhando ou guardar peças, desfazer uma organização posta para as alunas incluindo ou retirando peças, dentre outras, no sentido de criar problemas às respostas rápidas e fazer outras linhas se apresentarem na construção de um problema.
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Deleuze e Guattari (2010)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010. irão dizer das três disciplinas, três filhas do caos, as Caóides, como forma de pensamento e criação. Essas caóides produzem realidades nos planos que recortam o caos. A filosofia produz a forma do conceito, num plano de imanência, ao trazer do caos, variações; a arte, num plano de composição, produz a força da sensação, quando traz do caos, variedades; e a ciência, num plano de referência, estará a cargo da função do conhecimento a partir de variáveis. Disciplinas da produção do pensar e, por isso, do existir. Porém, sempre guardando uma aproximação com o caos, numa fuga à opinião. “[...] A opinião nos apresenta uma ciência que sonharia com a unidade, com unificar suas leis, hoje ainda procuraria uma comunidade das quatro forças [...]” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 242). Uma ciência assim é, pois, totalizante, já que teoremática. Já a aproximação com o caos, no acontecimento, é um exercício de uma ciência problemática, não totalizante, uma ciência que “[...] daria toda unidade racional à qual aspira, por um pedacinho de caos que pudesse explorar [...]”. Há, nessa aproximação com o caos, nos três planos, uma experiência perturbadora e criadora, já que “[...] nenhuma criação existe sem experiência [...]” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 152).
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A noção de autopoiese produzida por Maturana e Varela (1995)MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Editorial Psy II, 1995. e discutida por Kastrup (1999)KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. no campo dos estudos da cognição leva a pensar a invenção no seio do próprio vivo, o que afasta a produção do conhecimento, em especial do conhecimento matemático, da recognição. É por isso que, nessa seara, não se pode falar de um desenvolvimento que depende da maturação biológica ao modo como o faz, por exemplo, Jean Piaget em seu construtivismo temporalmente linear das estruturas lógico-matemáticas. O vivo e o mundo, alunas e matemáticas, se implicam em um processo de invenção que a experimentação com a atividade dispara. É por isso também que o desenvolvimento piagetiano é sobremaneira distinto daquele de que Deleuze fala na epígrafe que abre esse texto, já que o desenvolvimento no interior de uma aula implica um tempo, uma temporalidade que embaralha a cronologia passado-presente-futuro, fazendo sumir a linearidade e a teleologia sobre as quais Piaget assenta sua Epistemologia Genética.
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As noções de invenção e autopoiese não fazem referência à tradição, à história ou à cultura como planos de representação sociais exteriores ao sujeito que vão, ao longo do processo de aprendizagem e desenvolvimento, sendo internalizados, conforme a Psicologia Histórico-Cultural de Lev Vigostki. Ao contrário, respondem pelas bifurcações que vão sendo produzidas na tradição, na história, na cultura.
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Deleuze e Guattari (2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 150) apontam que “[...] a ciência não cessa de atualizar, por funções, o acontecimento num estado de coisas, uma coisa ou um corpo de referíveis [...]”. Os estados de coisas ou misturas (variáveis independentes, signos-velocidades ou partículas-trajetórias) são extraídos ou extraídas, pela ciência, do caos virtual. Essas misturas entram no regime de coordenadas referíveis, passam a funcionar entre o limite, nas bordas traçadas pelas funções, criando uma constante. No nosso caso, junto às experimentações com as alunas, há a produção de um contar, de suas regras e até, de uma linguagem para fazer funcionar um sistema de contagem, fazer funcionar um referível, atualizado por funções. Destaca-se que este estado de coisas, misturas ou variáveis atualizam uma virtualidade caótica, e ainda guardam sua potência ou seu potencial de origem. É através desse potencial que os enfrentamentos (acidentes, adjunções, ablações, projeções, aumento ou diminuição de variáveis, bifurcações etc.) se constituem como problema, como aquilo que produz o pensar, produz conhecimento.
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Essas alunas produziram um grupo com oito peças, no entanto, o fez utilizando a forma de cruz, na qual cada elemento desta continha quatro peças.
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Em experimentação, na ausência de possíveis categorias (cores, tamanhos, texturas etc.), vai se apresentando que as quantidades as quais se pode controlar, sem utilizar um já sabido, são aquelas percebidas através do que se denomina senso numérico que, no ser humano, apresenta-se até cinco unidades. Durante a experimentação, modos de contar se dão com organização de pequenos grupos com quatro elementos ou com cinco, que tombam noutros modos, deslocam-se de seus significantes. Não importa mais dizer quatro ou dizer cinco, importa como aqueles quantum funcionam.
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No momento da experimentação em sala de aula, as alunas fizeram a composição das quinze peças, apresentando-as por três grupos de cinco, ou seja, quantidades intuitivamente percebidas.
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O estado de coisas, por intermédio de seu potencial ou de sua potência, passa a corpo ou a divisão de corpos individuados naquele estado de coisas. Para Deleuze e Guattari (2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 183, grifo nosso), esse momento é essencial. O estado de coisas, até então mistura, passa à interação. Aqui há um salto, essas interações dos corpos ativam uma sensibilidade “[...] que se exprimem já nos observadores parciais (nessas forças que percebem e experimentam; nesta experimentação, nos sistemas de contagem que vão se inventando, por exemplo), ligados ao estado de coisas, embora só completem sua atualização no ser vivo (para nosso estudo, consideramos a cognição como um vivo) [...]”. Essa sensibilidade, que é composta por uma protoperceptibilidade e uma protoafetividade, passa a ser tomada, pelos autores, como percepção e afecção. A percepção é “[...] um estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo [...]” e a afecção é a passagem de um estado de coisas a um estado de corpo, ou seja, no momento da interação, “[...] como aumento ou diminuição do potencial-potência, sob a ação de outros corpos” (p. 183). E, o que nos chama atenção e nos interessa, que mesmo não-viventes ou não-orgânicos, “as coisas têm um vivido, porque são percepções e afecções [...]”.
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Deleuze (1992DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 106) ao dizer do trabalho de pensamento de Foucault aponta que “[...] a lógica de um pensamento é o conjunto das crises que ele atravessa, assemelha-se mais a uma cadeia vulcânica do que a um sistema tranquilo e próximo de equilíbrio [...]”.
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Deleuze e Guattari trazem a ciência como algo local, referencial e limitado no espaçotempo. A universalidade e a atemporalidade também são questões tratadas no pensamento nietzscheano. Atacam o mesmo problema com modos distintos e problematizam o conhecimento como algo do âmbito do universal, do ideal e do moralizante. O que nos interessa é como apontam para dimensão da invenção do conhecimento e a potência de criação do pensamento.
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Deleuze (2007DELEUZE, G. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 2007., p. 18).
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Deleuze (2018)DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n-1 edições, 2018. traz o lance de dados do pensamento nietzscheano. O que interessa não é o número de combinações possíveis ao se lançar o dado, nem probabilidade com que cada combinação possa vir a acontecer. O que importa, no âmbito da necessidade, naquilo que é fatal, num só lance, acolher a combinação que se apresenta.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
03 Abr 2023 -
Aceito
20 Jul 2023