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Cérebro, estresse e defesa: elementos para uma teoria neurocientífica do trauma psicológico

Brain, stress and defense: elements for a neuroscientific theory of psychological trauma

Cerebro, estrés y defensa: elementos para una teoría neurocientífica del trauma psicológico

Cerveau, stress et défense : éléments pour une théorie neuroscientifique du trauma psychologique

Resumo

As condições psicopatológicas decorrentes de acontecimentos traumáticos vêm progressivamente recebendo interpretações de natureza neurocientífica. Com isso, experiências humanas devastadoras são reduzidas ao funcionamento perturbado de sistemas neurofisiológicos atribuídos às respostas de estresse. Através de revisão narrativa, este artigo procura explorar algumas das condições epistemológicas elementares ao surgimento de uma teoria neurocientífica do estresse traumático, demonstrando a solidariedade que ela conserva com a teoria evolucionária e com a pesquisa do condicionamento clássico em animais. Espera-se que este trabalho possa salientar algumas das repercussões éticas da negligência dos fatores sociais e culturais nas interpretações dos fenômenos secundários ao traumatismo.

Palavras-chave:
trauma psicológico; estresse pós-traumático; condicionamento clássico; neurociências

Abstract

Psychopathological conditions resulting from traumatic events have increasingly received neuroscientific interpretations, reducing the complexity of devastating human experiences to the disturbed functioning of neurophysiological systems attributed to stress responses. This narrative review explores some epistemological conditions essential to fashioning a neuroscientific theory of traumatic stress, showing the solidarity it maintains with evolutionary theory and with research on classical conditioning in animals. We hope this work can highlight some of the ethical repercussions in neglecting social and cultural factors when interpreting secondary trauma phenomena.

Keywords:
psychological trauma; post-traumatic stress; classic conditioning; neurosciences

Resumen

Las condiciones psicopatológicas resultantes de eventos traumáticos han recibido progresivamente interpretaciones neurocientíficas. Como resultado, las devastadoras experiencias humanas vieron reducidas su complejidad al funcionamiento perturbado de los sistemas neurofisiológicos atribuidos a las respuestas al estrés. A partir de una revisión narrativa, este artículo buscará explorar algunas de las condiciones epistemológicas esenciales para el surgimiento de una teoría neurocientífica del estrés traumático, demostrando la solidaridad que mantiene con la teoría evolutiva y con la investigación sobre el condicionamiento clásico en animales. Se espera que este trabajo pueda resaltar algunas de las repercusiones éticas de descuidar los factores sociales y culturales en la interpretación de los fenómenos secundarios de trauma.

Palabras clave:
trauma psicológico; estrés postraumático; acondicionamiento clásico; neurociencias

Resumé

Les conditions psychopathologiques résultant d’événements traumatiques ont progressivement reçu des interprétations neuroscientifiques, en réduisant la complexité des expériences humaines dévastatrices au fonctionnement perturbé des systèmes neurophysiologiques attribué aux réponses au stress. Cette revue narrative explore quelques conditions épistémologiques essentielles pour élaborer une théorie neuroscientifique du stress traumatique, démontrant la solidarité qu’elle entretient avec la théorie évolutionniste et avec les recherches sur le conditionnement classique. On espère que ce travail pourra mettre en évidence certaines des répercussions éthiques associées à la négligence des facteurs sociaux et culturels dans l’interprétation des phénomènes traumatiques secondaires.

Mots-clés:
traumatisme psychologique; stress post traumatique; conditionnement classique; neurosciences

Introdução

O interesse por problemas de saúde mental relacionados a eventos traumáticos circunscritos ou prolongados tem aumentado significativamente nos últimos 40 anos (Cloitre, 2021Cloitre, M. (2021). Complex PTSD: Assessment and treatment. European Journal of Psychotraumatology, 12(sup. 1), Artigo 1866423. doi: 10.1080/20008198.2020.1866423
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; Resick, 2013Resick, P. (2013). Stress and trauma. London, England: Psychology Press.; Richter-Levin, Stork, & Schmidt, 2019Richter-Levin, G., Stork, O., & Schmidt, M. V. (2019). Animal models of PTSD: A challenge to be met. Molecular Psychiatry, 24, 1135-1156. doi: 10.1038/s41380-018-0272-5
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; Wilson & Raphael, 1993Wilson, J. P., & Raphael, B. (1993). International handbook of traumatic stress syndromes. New York, NY: Springer .). Embora desde tempos remotos já tenhamos notícias de condições pós-traumáticas secundárias a tragédias civis (Trimble, 1985Trimble, M. (1985). Post-traumatic stress disorder: History of a concept. In C. R. Figley (Org.), Trauma and its wake (Vol. 1). New York, NY: Routledge.), é apenas com a especulação de uma entidade psicopatológica discreta, confiável e fenomenologicamente distinta que a pesquisa do trauma adquire contornos sistemáticos na literatura científica (Everly Jr. & Lating, 1995Everly, G. S., Jr., & Lating, J. M. (Eds.). (1995). Psychotraumatology: Key papers and core concepts in post-traumatic stress. New York, NY: Springer.). A origem desse entusiasmo remonta ao lançamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) pela Associação Psiquiátrica Americana (APA). Desde a publicação da terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-III), em 1980 (APA, 1980American Psychiatric Association. (1980). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (3a ed.). Washington, DC: APA.), uma expansão exponencial do campo da psicotraumatologia moveu o estudo e o tratamento do trauma para o mainstream da psiquiatria moderna, da psicologia e das neurociências, assim como os incluiu no raio de interesse das ciências sociais e comportamentais (Wilson & Raphael, 1993Wilson, J. P., & Raphael, B. (1993). International handbook of traumatic stress syndromes. New York, NY: Springer .).

Atualmente, as condições pós-traumáticas vêm sendo progressivamente interpretadas à luz do instrumental teórico e metodológico das pesquisas neurocientíficas (Yehuda & LeDoux, 2007Yehuda, R., & LeDoux, J. (2007). Response variation following trauma: A translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron, 56(1), 19-32. doi: 10.1016/j.neuron.2007.09.006
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). Esse redirecionamento na abordagem do fenômeno do traumatismo derivou de transformações epistemológicas fundamentais na compreensão dos processos de traumatização. Se entre os séculos XVII e XIX o conceito de memória protagonizou as descrições de sintomas fóbicos, dissociativos e excitatórios em sujeitos vitimados por acontecimentos devastadores, a partir da metade do século XX passamos a presenciar essas descrições se subordinarem ao domínio conceitual do estresse (Rau e Fanselow, 2007Rau, V., & Fanselow, M. S. (2007). Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In L. Kirmayer, R. Lemelson & M. Barad (Eds.), Understanding trauma: Integrating biological, psychological and cultural perspectives (pp. 27-41). New York, NY: Cambridge University Press .; Young, 1995Young, A. (1995). The harmony of illusions: Inventing post-traumatic stress disorder. Princeton, NJ: Princeton University Press .). Amparado inicialmente na pesquisa comportamental do medo e depois na incorporação de achados neurobiológicos, o trauma então ingressa definitivamente no espectro da pesquisa neurocientífica.

Segundo essa tradição - que absorve os postulados da teoria do condicionamento clássico e da etologia darwinista -, o processo de defesa corresponderia a uma sequência de etapas que se ligam em cadeia, desenvolvendo-se umas sobre as outras consecutivamente (Schauer & Elbert, 2010Schauer, M., & Elbert, T.. (2010). Dissociation following traumatic stress: Etiology and treatment. Journal of Psychology, 218(2), 109-127. doi: 10.1027/0044-3409/a000018
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). Como se especula que o medo, a raiva, a evitação e outras reações a eventos traumáticos tenham desempenhado funções importantes de sobrevivência desde antes da história humana registrada (Hobfoll, 2004Hobfoll, S. E. (2004). Stress, culture, and community: The psychology and philosophy of stress. New York, NY: Springer .), o campo da psicotraumatologia passou a entender que o repertório de reações à ameaça segue um roteiro definido, no qual a exposição a eventos com risco de vida seria inerentemente angustiante e teria o poder de provocar reações psicofisiológicas instintivas de luta-ou-fuga (McNally, 2003McNally, R. J. (2003). Progress and controversy in the study of posttraumatic stress disorder. Annual Review of Psychology, 54, 229-252. doi: 10.1146/annurev.psych.54.101601.145112
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).

Assim, a teoria do condicionamento clássico passou a figurar no cerne da interpretação neurocientífica do trauma: primeiro, ao enquadrar catástrofes, genocídios, epidemias e outras formas de violência no modelo comportamental da iminência predatória (Rau & Fanselow, 2007Rau, V., & Fanselow, M. S. (2007). Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In L. Kirmayer, R. Lemelson & M. Barad (Eds.), Understanding trauma: Integrating biological, psychological and cultural perspectives (pp. 27-41). New York, NY: Cambridge University Press .); segundo, ao privilegiar, para esses eventos, o paradigma do congelamento, já que um dos fatores mais críticos em uma situação traumática é a experiência de desamparo, isto é, a compreensão de que nenhuma ação pode ser tomada para evitar o inevitável. Se, como van der Kolk (1996van der Kolk, B. A. (1996). Trauma and memory. In B. A. van der Kolk , A. McFarlane & L. Weiseah (Eds.), Traumatic stress: The effects of overwhelming experience on mind, body, and society (pp. 279-303). New York, NY: Guilford Press .) sugere, o trauma for conceituado como o resultado de uma falha da ativação fisiológica natural e das secreções hormonais responsáveis pela organização de uma resposta eficaz à ameaça, provavelmente precisaríamos limitar o mecanismo da traumatização ao fenômeno da imobilidade e requisitar, para ele, apoio no modelo animal do choque incontrolável.

É dessa forma que o sujeito diagnosticado com TEPT será, na tradição neurocientífica, representado como alguém cuja adaptação ao evento traumático falha por consequência de uma característica/dificuldade específica na generalização da ameaça - o que o torna particularmente ineficaz na extinção da resposta de estresse (Rau, DeCola, & Fanselow, 2005Rau, V., DeCola, J. P., & Fanselow, M. S. (2005). Stress-induced enhancement of fear learning: An animal model of posttraumatic stress disorder. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 29(8), 1207-1223. doi: 10.1016/j.neubiorev.2005.04.010
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). Em suma, o fóbico terá uma forte resposta de medo ante a visão de uma cobra, mas não de uma aranha; porém, o indivíduo com TEPT realizará uma super generalização da sua resposta original, pois teria um “limiar reduzido de eliciação do medo para uma rede ampla de estímulos reminiscentes do trauma original” (Rothbaum & Davis, 2003Rothbaum, B. O., & Davis, M.. (2003). Applying learning principles to the treatment of post-trauma reactions. In J. A. King, C. F. Ferris & I. I. Lederhendler (Orgs.), Roots of mental illness in children (pp. 112-121). New York, NY: New York Academy of Sciences ., p. 113). Uma combinação de condicionalidade aumentada, capacidade diminuída de inibição e aprendizado de discriminação prejudicado levariam o medo, nestes sujeitos, a ser desencadeado mesmo na presença de sinais seguros, no decorrer do dia ou da noite, em vigília ou durante o sono.

Este artigo procurará apresentar algumas diretrizes epistemológicas fundamentais à emergência de uma teoria neurocientífica do trauma psicológico, demonstrando como essa formulação sugere duas condições especiais: a aderência da psicotraumatologia à pesquisa neurobiológica do estresse; e, paradoxalmente, a subordinação de suas premissas originárias na teoria comportamental do condicionamento e na teoria cognitiva da dissociação peritraumática. Por fim, pretende-se explorar algumas consequências éticas da incorporação do fenômeno traumático pela tradição neurobiológica e pela neuropsiquiatria que lhe acompanha.

A extinção do medo

As hipóteses biológicas postulam que o TEPT seja uma espécie de forte aprendizado associativo no qual o comportamento reativo de excitação e medo manifestos durante a consecução de um evento traumático reincide futuramente em combinação com lembretes do trauma (Baldwin, 2013Baldwin, D. V. (2013). Primitive mechanisms of trauma response: An evolutionary perspective on trauma-related disorders. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 37(8), 1549-1566. doi: 10.1016/j.neubiorev.2013.06.004
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). Por sua vez, as teorias do condicionamento propõem que reações de estresse persistentes podem ocorrer como resultado do aprendizado de extinção prejudicado, e é precisamente a incapacidade de extinguir um medo aprendido que determinará a falha na recuperação vislumbrada como um dos componentes etiológicos elementares ao desenvolvimento de uma patologia pós-traumática (Maren & Holmes, 2016Maren, S., & Holmes, A. (2016). Stress and fear extinction. Neuropsychopharmacology, 41(1), 58-79. doi: 10.1038/npp.2015.180
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; Rothbaum & Davis, 2003Rothbaum, B. O., & Davis, M.. (2003). Applying learning principles to the treatment of post-trauma reactions. In J. A. King, C. F. Ferris & I. I. Lederhendler (Orgs.), Roots of mental illness in children (pp. 112-121). New York, NY: New York Academy of Sciences .). Ao estudar o processo de extinção, portanto, poderíamos ser informados sobre a etiologia e a manutenção do TEPT.

A resposta normal ao trauma em humanos engloba um conjunto de reações previsíveis que incluem a revivência, a evitação, e o sobressalto (Rothbaum & Davis, 2003Rothbaum, B. O., & Davis, M.. (2003). Applying learning principles to the treatment of post-trauma reactions. In J. A. King, C. F. Ferris & I. I. Lederhendler (Orgs.), Roots of mental illness in children (pp. 112-121). New York, NY: New York Academy of Sciences .). Na maioria das pessoas expostas ao trauma, essas respostas se extinguem ao longo do tempo. Contudo, em uma minoria, a extinção falha e as respostas persistem, e os sintomas passam a ser reconhecidos no distúrbio traumático. Isso é importante não apenas porque “uma capacidade insuficiente de aprendizado de extinção pode predispor alguns indivíduos ao desenvolvimento do TEPT” (Guthrie & Bryant, 2006Guthrie, R. M., & Bryant, R. A. (2006). Extinction learning before trauma and subsequent posttraumatic stress. Psychosomatic Medicine, 68(2), 307-311. doi: 10.1097/01.psy.0000208629.67653.cc
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, p. 307), mas porque essa que é a figura mórbida da traumatização humana por excelência é, em parte, causada pela falha na descontinuação de reações fisiológicas e psicológicas outrora esperadas à circunstância traumática (Shalev, 1996Shalev, A. (1996). Stress versus traumatic stress: From acute homeostatic reactions from chronic psychopathology. In B. A. van der Kolk, A. McFarlane & L. Weiseah (Orgs.), Traumatic stress: The effects of overwhelming experience on mind, body, and society (pp. 77-102). New York, NY: Guilford Press.).

Para tanto, é fundamental compreender como o extenso gradiente de generalização do medo, usualmente reconhecido em indivíduos diagnosticados com TEPT (Rothbaum & Davis, 2003Rothbaum, B. O., & Davis, M.. (2003). Applying learning principles to the treatment of post-trauma reactions. In J. A. King, C. F. Ferris & I. I. Lederhendler (Orgs.), Roots of mental illness in children (pp. 112-121). New York, NY: New York Academy of Sciences .), se articula com o fenômeno da extinção dificultada para essas respostas. Diferentemente dos quadros de fobia específica, nos quais gradientes de generalização mais agudos são congruentes com comportamento de medo eliciado sob a presença do estímulo temido, o indivíduo traumatizado apresentará reações de medo para muitos estímulos relacionados ao estressor traumático original e tenderá a desprivilegiar pistas seguras.

Como a hipótese de que o estresse pós-traumático pode ocorrer porque algumas pessoas são mais condicionáveis que outras permanece não testada, a teoria do trauma se apoiou profundamente nas pesquisas de modulação do estresse em animais, presumindo que os processos de aprendizagem e memória que contribuem para o TEPT poderiam ser replicados em laboratório mediante a utilização de paradigmas aversivos, tais como o condicionamento do medo pavloviano (Maren & Holmes, 2016Maren, S., & Holmes, A. (2016). Stress and fear extinction. Neuropsychopharmacology, 41(1), 58-79. doi: 10.1038/npp.2015.180
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). A pretensa isonomia entre as respostas humanas e animais à ameaça ou experiências de dor e lesão permitiu que o trauma humano fosse inferido dos modelos do estresse animal e do condicionamento do medo. Assim, não só a experiência traumática humana passa a ser entendida como um reflexo análogo ao do animal, mas também as disciplinas do campo neurocientífico conseguiriam o trunfo de erguer uma teoria “natural” do traumatismo. Porém, o elo entre as teorias do condicionamento e a teoria do estresse traumático é ainda mais profundo. A hipótese da equivalência entre estresse animal e estresse humano expressa um acolhimento implícito e visceral do postulado evolucionário, uma vez que, a partir dele, o que é próprio ao animal será isonomicamente próprio ao humano. Com a formalização de um critério etiológico definitivo na caracterização diagnóstica, a literatura do estresse traumático proclamou os seus modelos animais para inteligibilizar os distúrbios secundários ao traumatismo (Cohen, Kozlovsky, Alona, Matar, & Joseph, 2012Cohen, H., Kozlovsky, N., Alona, C., Matar, M. A., & Joseph, Z. (2012). Animal model for PTSD: From clinical concept to translational research. Neuropharmacology, 62(2), 715-724. doi: 10.1016/j.neuropharm.2011.04.023
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; Rau et al., 2005Rau, V., DeCola, J. P., & Fanselow, M. S. (2005). Stress-induced enhancement of fear learning: An animal model of posttraumatic stress disorder. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 29(8), 1207-1223. doi: 10.1016/j.neubiorev.2005.04.010
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; Siegmund & Wotjak, 2006Siegmund, A., & Wotjak, C. T.. (2006). Toward an animal model of posttraumatic stress disorder. Annals of the New York Academy of Sciences , 1071(1), 324-334. doi: 10.1196/annals.1364.025
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; Yehuda & LeDoux, 2007Yehuda, R., & LeDoux, J. (2007). Response variation following trauma: A translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron, 56(1), 19-32. doi: 10.1016/j.neuron.2007.09.006
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).

O estresse animal

Os paradigmas de condicionamento do medo costumam ser a primeira escolha para aspectos relacionados à memória de sintomas semelhantes ao TEPT (Siegmund & Wotjak, 2006Siegmund, A., & Wotjak, C. T.. (2006). Toward an animal model of posttraumatic stress disorder. Annals of the New York Academy of Sciences , 1071(1), 324-334. doi: 10.1196/annals.1364.025
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). Eles objetivam apreender a desregulação do comportamento defensivo considerado característica transdiagnóstica subjacente ao desenvolvimento de transtornos ansiosos após a iminência de uma ameaça ambiental (Rau et al., 2005Rau, V., DeCola, J. P., & Fanselow, M. S. (2005). Stress-induced enhancement of fear learning: An animal model of posttraumatic stress disorder. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 29(8), 1207-1223. doi: 10.1016/j.neubiorev.2005.04.010
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; Kemeny, 2003Kemeny, M. (2003). The psychobiology of stress. Current directions in psychological science, 12(4), 124-129.). Como em situações de ameaça à vida especula-se que o repertório comportamental do organismo, seja ele humano ou animal, deve ser drasticamente restringido à finalidade da sobrevivência, restando assim apenas as respostas residuais ou meramente “instintivas”, a pesquisa do condicionamento deve igualmente restringir a amplitude de seu objeto: capturar o comportamento humano a partir da observação do comportamento animal. Uma resposta eficiente do organismo dependeria de os sistemas fisiológicos necessários na lida com as ameaças serem mobilizados e os sistemas fisiológicos desnecessários concomitantemente suprimidos (van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin.). Para responder a uma ameaça, o corpo pode elevar as concentrações disponíveis de glicose e preparar o organismo para uma exigência física e, ao mesmo tempo, inibir os processos fisiológicos responsáveis pelo crescimento e pela reprodução. Uma das hipóteses fundamentais da teoria neurocientífica do trauma corresponde à afirmação de que a ativação repetida e crônica de sistemas de resposta à ameaça produz efeitos fisiológicos e de saúde adversos no longo prazo (McEwen, 1998McEwen, B. S. (1998). Stress, adaptation, and disease: Allostasis and allostatic load. In S. M. McCann, J. M. Lipton, E. M. Sternberg, G. P. Chrousos, P. W. Gold & C. C. Smith (Eds.), Molecular aspects, integrative systems, and clinical advances (pp. 33-44). New York, NY: New York Academy of Sciences.).

O uso de modelos animais de doenças humanas constitui uma das principais ferramentas para a coleta de informações relevantes à compreensão de mecanismos fisiológicos e neuronais subjacentes a diversos processos de adoecimento. No TEPT, os objetivos desses modelos incluem a compreensão etiológica, a identificação de alvos para farmacoterapias e a triagem de medicamentos (Flandreau & Toth, 2018Flandreau, E. I., & Toth, M. (2017). Animal models of PTSD: A critical review. Behavioral Neurobiology of PTSD, 38, 47-68. doi: 10.1007/7854_2016_65
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). O esforço para a elaboração de matrizes translacionais e significativas resume, assim, a expectativa de aprofundar o conhecimento e propiciar meios mais efetivos de tratamento para as condições relativas à experiência humana (Richter-Levin et al., 2019Richter-Levin, G., Stork, O., & Schmidt, M. V. (2019). Animal models of PTSD: A challenge to be met. Molecular Psychiatry, 24, 1135-1156. doi: 10.1038/s41380-018-0272-5
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). Porém, devido a diversas razões, o desenvolvimento de um modelo animal para o TEPT não é uma questão trivial. O diagnóstico carece de delimitação, se sobrepõe a outros transtornos de ansiedade ou humor e, em pacientes humanos, depende substancialmente de relatos pessoais de pensamentos, sonhos e imagens, que não podem ser estudados em ratos (Cohen et al., 2012Cohen, H., Kozlovsky, N., Alona, C., Matar, M. A., & Joseph, Z. (2012). Animal model for PTSD: From clinical concept to translational research. Neuropharmacology, 62(2), 715-724. doi: 10.1016/j.neuropharm.2011.04.023
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; Spinhoven, Penninx, Hemert, Rooij, & Elzinga, 2014Spinhoven, P., Penninx, B. W., Hemert, A. M., Rooij, M., & Elzinga, B. M. (2014). Comorbidity of PTSD in anxiety and depressive disorders: Prevalence and shared risk factors. Child Abuse & Neglect, 38(8), 1320-1330. doi: 10.1016/j.chiabu.2014.01.017
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). Além disso, diversos fenômenos da experiência traumática humana, mesmo na hipótese de não serem exclusivos, parecem resistentes à investigação comportamental em animais (as memórias intrusivas e a percepção potencial de risco de vida da situação são um exemplo). Mesmo assim, diversos autores argumentaram que os distúrbios em animais submetidos a eventos aversivos imprevisíveis e incontroláveis assemelham-se aos sinais observados no TEPT, e, portanto, não seria insensato considerar um modelo animal desse transtorno, pois a aparente semelhança entre o comportamento das vítimas poderia refletir fatores etiológicos comuns (Foa, Zinbarg, & Rothbaum, 1992Foa, E. B., Zinbarg, R., & Rothbaum, B. O. (1992). Uncontrollability and unpredictability in post-traumatic stress disorder: An animal model. Psychological Bulletin, 112(2), 218-238. doi: 10.1037/0033-2909.112.2.218
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).

Em última análise, o modelo animal ideal imitaria as anormalidades fisiopatológicas e as características comportamentais do TEPT, e envolveria a exposição a eventos semelhantes a traumas (Yamamoto et al., 2009Yamamoto, S., Morinobu, S., Takei, S., Fuchikami, M., Matsuki, A., Yamawaki, S., & Liberzon, I. (2009). Single prolonged stress: Toward an animal model of posttraumatic stress disorder. Depression and Anxiety, 26(12), 1110-1117. doi: 10.1002/da.20629
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). Ele seria capaz de fornecer ao pesquisador as condições para correlacionar parâmetros anatômicos biomoleculares e fisiológicos específicos com o grau e o padrão de resposta comportamental individual (Cohen et al., 2012Cohen, H., Kozlovsky, N., Alona, C., Matar, M. A., & Joseph, Z. (2012). Animal model for PTSD: From clinical concept to translational research. Neuropharmacology, 62(2), 715-724. doi: 10.1016/j.neuropharm.2011.04.023
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). No entanto, há um debate contínuo sobre o que constitui um modelo animal válido para o TEPT e, até o momento, nenhum modelo animal amplamente aceito para esse transtorno foi estabelecido (Insel, 2012Insel, T. R. (2012). Next-generation treatments for mental disorders. Science Translational Medicine, 4(155), Artigo 155ps19. doi: 10.1126/scitranslmed.3004873
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; Kirmayer, Lemelson, & Barad, 2007Kirmayer, L. , Lemelson, R., &Barad, M. (Eds.). (2007). Understanding trauma: Integrating biological, psychological and cultural perspectives . New York, NY: Cambridge University Press .; Richter-Levin et al., 2019Richter-Levin, G., Stork, O., & Schmidt, M. V. (2019). Animal models of PTSD: A challenge to be met. Molecular Psychiatry, 24, 1135-1156. doi: 10.1038/s41380-018-0272-5
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). É verdadeiro que o diagnóstico do TEPT destaca comportamentos observáveis de forma relativamente confiável e que, tendo fornecido um horizonte para pesquisas, acaba por estimular a sensibilidade social para questões relacionadas ao trauma (Baldwin, 2013Baldwin, D. V. (2013). Primitive mechanisms of trauma response: An evolutionary perspective on trauma-related disorders. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 37(8), 1549-1566. doi: 10.1016/j.neubiorev.2013.06.004
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; Fassin & Rechtman, 2009Fassin, D., & Rechtman, R. (2009). The empire of trauma: An inquiry into the condition of victimhood. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Entretanto, se nossas noções predominantes acerca das reações ao trauma não podem explicar a variabilidade que é vista em torno desse transtorno1 1 Com base nos critérios atuais do DSM-V, especula-se que existam mais de 600 mil apresentações de TEPT possíveis (Galatzer-Levy & Bryant, 2013). , tampouco a heterogeneidade das respostas animais ao estresse é destacada pelos modelos de condicionamento regularmente operados. Essa variabilidade se manifesta tanto na comorbidade que concilia os transtornos do traumatismo com outras condições psicopatológicas, doenças físicas e sintomas clínicos inespecíficos quanto na mutabilidade da expressão sintomatológica pós-traumática típica.

Portanto, embora o conhecimento neurobiológico - e mesmo terapêutico - dos transtornos neuropsiquiátricos relacionados ao estresse dependam de modelos animais, a complexidade desses distúrbios desafia a possibilidade de modelagem experimental adequada, uma vez que apenas características psicopatológicas específicas da experiência humana podem ser isoladas e emuladas nesses modelos (Barroca, Santa, Suchecki, García-Cairasco, & Umeoka, 2022Barroca, N. C. B., Santa, G. D., Suchecki, D., García-Cairasco, N., & Umeoka, E. H. L. (2022). Challenges in the use of animal models and perspectives for a translational view of stress and psychopathologies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 140, Artigo 104771. doi: 10.1016/j.neubiorev.2022.104771
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). O desafio central para paradigmas aversivos seria, deste modo, depurar a influência de múltiplos fatores concernentes à exposição a estressores sobre a desregulação dos processos de extinção e reconsolidação de memórias (Careaga, Girardi, & Suchecki, 2016Careaga, M. B. L., Girardi, C. E. N., & Suchecki, D. (2016). Understanding posttraumatic stress disorder through fear conditioning, extinction and reconsolidation. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 71, 48-57. doi: 10.1016/j.neubiorev.2016.08.023
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). Em outras palavras, precisamos compreender como persistência, tipo e intensidade dos estímulos, contexto da exposição, idade, sexo e antecedentes genéticos do indivíduo resultam na superexpressão da resposta de medo (Barroca et al., 2022Barroca, N. C. B., Santa, G. D., Suchecki, D., García-Cairasco, N., & Umeoka, E. H. L. (2022). Challenges in the use of animal models and perspectives for a translational view of stress and psychopathologies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 140, Artigo 104771. doi: 10.1016/j.neubiorev.2022.104771
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; Careaga et al., 2016Careaga, M. B. L., Girardi, C. E. N., & Suchecki, D. (2016). Understanding posttraumatic stress disorder through fear conditioning, extinction and reconsolidation. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 71, 48-57. doi: 10.1016/j.neubiorev.2016.08.023
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; Dopfel et al., 2019Dopfel, D., Perez, P. D., Verbitsky, A., Bravo-Rivera, H., Ma, Y., Quirk, G. J., & Zhang, N. (2019). Individual variability in behavior and functional networks predicts vulnerability using an animal model of PTSD. Nature Communications, 10(1), Artigo 2372. doi: 10.1038/s41467-019-09926-z
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). A observância aos fatores de vulnerabilidade para o TEPT acrescenta variáveis importantes à compreensão do que ocorre na lacuna entre um evento traumático e a consolidação do aprendizado de medo associativo, revelando a preocupação das pesquisas recentes para com o desenvolvimento de paradigmas mais ecológicos no desenho experimental com modelos animais2 2 Richter-Levin et al. (2019) sugerem que, com alterações apropriadas em seus desenhos, os modelos animais podem vir a superar limitações atuais e se tornarem ferramentas ainda mais valiosas para o aprofundamento da compreensão de psicopatologias do espectro traumático, servindo mesmo como plataformas para o desenvolvimento de testes com medicamentos. Algumas indicações seriam a investigação combinada dos efeitos de curto e de longo prazo após a exposição a um evento aversivo; a ampliação do foco dos estudos, hoje essencialmente focado na tipologia do trauma (stress-enhanced fear learning, single-prolonged stress, submersion stress, predator odor exposure); e o exame da influência da variabilidade individual e dos fatores de risco sobre os resultados da amostra (Dopfel et al., 2019). (Barroca et al., 2022Barroca, N. C. B., Santa, G. D., Suchecki, D., García-Cairasco, N., & Umeoka, E. H. L. (2022). Challenges in the use of animal models and perspectives for a translational view of stress and psychopathologies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 140, Artigo 104771. doi: 10.1016/j.neubiorev.2022.104771
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; Careaga et al., 2016Careaga, M. B. L., Girardi, C. E. N., & Suchecki, D. (2016). Understanding posttraumatic stress disorder through fear conditioning, extinction and reconsolidation. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 71, 48-57. doi: 10.1016/j.neubiorev.2016.08.023
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; Richter-Levin et al., 2019Richter-Levin, G., Stork, O., & Schmidt, M. V. (2019). Animal models of PTSD: A challenge to be met. Molecular Psychiatry, 24, 1135-1156. doi: 10.1038/s41380-018-0272-5
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).

Aparentemente, entretanto, duas premissas implícitas impedem o enfoque cognitivo de encontrar a completa elucidação dos sintomas relacionados ao trauma (Baldwin, 2013Baldwin, D. V. (2013). Primitive mechanisms of trauma response: An evolutionary perspective on trauma-related disorders. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 37(8), 1549-1566. doi: 10.1016/j.neubiorev.2013.06.004
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). A primeira diz que os transtornos mentais mereceriam explicações estritamente mentais; a segunda, que apenas as defesas ativas representariam respostas ao trauma. Desde Cannon (1932), admitimos que as respostas ao estresse são ações de luta ou fuga mediadas pelo sistema nervoso simpático - e pesquisadores seguiram essa tendência clássica, categorizando o TEPT como um transtorno de ansiedade. Todavia, defesas mediadas pelo parassimpático também podem gerar sintomas, mesmo sendo contraintuitiva a atribuição de respostas de imobilidade ao grupo dos comportamentos de sobrevivência (Baldwin, 2013Baldwin, D. V. (2013). Primitive mechanisms of trauma response: An evolutionary perspective on trauma-related disorders. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 37(8), 1549-1566. doi: 10.1016/j.neubiorev.2013.06.004
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). Essas premissas fracassariam em explicar os mecanismos primitivos vistos nas respostas defensivas relacionadas ao trauma, uma vez que o conceito atual de estresse pós-traumático não distingue se a retomada das experiências traumáticas resulta em uma resposta de alarme de luta-fuga ou em um bloqueio dissociativo de excitação simpática. Ainda assim, Bremner e Marmar (2002Bremner, J. D., & Marmar, C. R. (2002). Trauma, memory, and dissociation. (Vol. 54). Washington, DC: American Psychiatric Pub.), e mais recentemente van der Kolk (2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin.), sugeriram haver dois subtipos de respostas ao trauma, um caracterizado por memórias intrusivas e hiperexcitação e o outro predominantemente dissociativo. O somatório de ambos os grupos englobaria as reações de luta, fuga e imobilidade nas quais, presume-se, operam sistemas neurobiológicos distintos. As circunstâncias gerais para o estabelecimento de uma teoria neurocientífica do trauma se resumem, portanto, à conjunção de uma teoria evolutiva capaz de elevar as interações cerebrais à condição de respostas “naturais” com uma teoria adaptativa reversível tantas vezes quanto possível em seu próprio contrário.

A neurobiologia do estresse traumático

O interesse em avaliar as respostas psicofisiológicas de indivíduos expostos ao trauma não é um empreendimento novo. Há mais de 70 anos, quando Kardiner (1941Kardiner, A. (1941). The traumatic neuroses of war. New York, NY: P. Hoeber.) elegeu o termo “fisioneurose” para identificar sequelas psicológicas aparentemente atreladas a marcadores biológicos em veteranos traumatizados da Segunda Guerra Mundial, conhecemos a estrutura semiológica clássica do que futuramente se denominou, na psiquiatria americana, TEPT (Everly Jr. & Lating, 1995Everly, G. S., Jr., & Lating, J. M. (Eds.). (1995). Psychotraumatology: Key papers and core concepts in post-traumatic stress. New York, NY: Springer.). Irritabilidade, comportamento de sobressalto, fixação ao trauma, reações heteroagressivas e vida onírica típica passaram a ser reconhecidamente o padrão fisiológico habitual para esse transtorno, cuja mensuração coube a certos índices quantificáveis, tais como a tensão muscular generalizada e as palpitações (Gillespie, 1942Gillespie, R. D. (1942). Psychological effects of war on citizen and soldier. New York, NY: W. W. Norton & Co.). As observações clínicas de Kardiner - e especialmente o aglomerado de características semiológicas que elas dão a conhecer - ajudaram a formular o primeiro modelo etiológico para o TEPT dedicado a explicar os sintomas psicofisiológicos do distúrbio a partir de um paradigma de condicionamento clássico.

Até aqui, percorremos a centralidade da noção de ameaça para a estruturação conceitual das teorias do condicionamento e para a anexação, no interior do campo do psicotraumatismo, da noção difusa e quantitativa do estresse (Everly Jr. & Lating, 1995Everly, G. S., Jr., & Lating, J. M. (Eds.). (1995). Psychotraumatology: Key papers and core concepts in post-traumatic stress. New York, NY: Springer.; Yehuda, McFarlane, & Shalev, 1998Yehuda, R., McFarlane, A., & Shalev, A. (1998). Predicting the development of posttraumatic stress disorder from the acute response to a traumatic event. Biological psychiatry, 44(12), 1305-1313.). Delineamos a correlação entre a significância da ameaça e a gravidade dos sintomas psicopatológicos subsequentes (Bouton & Waddell, 2007Bouton, M., & Waddell, J. (2007). Some Biobehavioral Insights into Persistent Effects of Emotional Trauma. In: Kirmayer, L., Lemelson, R. & Barad, M. (Eds.). Understanding trauma: Integrating biological, psychological and cultural perspectives. New York, NY: Cambridge University Press. pp.41-59.). Reconhecemos, finalmente, a influência organizadora dos postulados evolucionários e a coordenação entre aprendizado e extinção como um dos elementos etiológicos caracteristicamente atribuídos ao TEPT pela literatura científica (Baldwin, 2013Baldwin, D. V. (2013). Primitive mechanisms of trauma response: An evolutionary perspective on trauma-related disorders. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 37(8), 1549-1566. doi: 10.1016/j.neubiorev.2013.06.004
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; Orr et al., 2000Orr, S. P., Metzger, L. J., Lasko, N. B., Macklin, M. L., Peri, T., & Pitman, R. K. (2000). De novo conditioning in trauma-exposed individuals with and without posttraumatic stress disorder. Journal of Abnormal Psychology, 109(2), 290-298.). Chegamos, assim, ao limite da pesquisa comportamental e do modelo do estresse animal - uma fronteira intransponível não fosse a cooperação suplementar da neurobiologia, sem a qual não se teria superado o condicionamento clássico pavloviano. Essa nova coalizão de discursos procurará elucidar de que forma um organismo seria capaz de reconhecer um estímulo ameaçador e discriminá-lo de todos os outros supostamente anódinos. A resposta, localizada no aparato cerebral, reflete o projeto contemporâneo da pesquisa biológica sobre o TEPT, e converge para o que Ruth Leys (2000Leys, R. (2000). Trauma: A genealogy. Chicago, IL: The University of Chicago Press.) denominou teoria neuro-hormonal da memória3 3 Seguindo os argumentos de Allan Young (1995), Leys (2000) observou que a teoria neuro-hormonal da memória, defendida por van der Kolk (1996), é um projeto para a pesquisa biológica atual sobre TEPT. Apoiada no paradigma do choque incontrolável, essa hipótese incorpora o primeiro modelo do trauma psíquico, apoiado sobre a hipótese da prostração do sistema nervoso em decorrência do choque cirúrgico, à rede de evidências atuais do prestigioso paradigma neuroendocrinológico, aglutinando todas as manifestações do TEPT a uma mesma teoria biológica da memória (Leys, 2000). .

A compreensão do argumento de Leys exige, porém, uma excursão adicional pelos fundamentos neuropsicológicos do TEPT. Talvez a justificativa mais bem articulada para uma hipótese desse tipo tenha sido a apresentada por Lawrence Kolb (1987Kolb, L. (1987). A neuropsychological hypothesis explaining posttraumatic stress disorders. The American Journal of Psychiatry, 144(8), 989-995. doi: 10.1176/ajp.144.8.989
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), que equiparou os sintomas de medo condicionado e hiperatividade observados em animais submetidos ao choque incontrolável às manifestações fisiológicas e comportamentais de veteranos de combate - os quais preenchiam critérios para o TEPT crônico. A sugestão, portanto, era que a patogênese do TEPT pudesse ser revelada pelo paradigma do condicionamento clássico (Horton, 1995Horton, A. Neuropsychology of PTSD: Problems, Prospects, and Promises. In: Everly, Lating (Org.). Psychotraumatology: Key papers and core concepts in post-traumatic stress . New York: Springer Science+Business Media. 1995. pp. 147-155.). Kolb sugeriu que a estimulação externa excessiva poderia ter efeitos no nível neuronal por meio de experiências ambientais capazes de influenciar até mesmo o desenvolvimento funcional e anatômico do cérebro. O resultado primário da estimulação emocional excessiva seria uma espécie de degeneração “na função e talvez na estrutura da barreira neuronal cortical” (Kolb, 1987Kolb, L. (1987). A neuropsychological hypothesis explaining posttraumatic stress disorders. The American Journal of Psychiatry, 144(8), 989-995. doi: 10.1176/ajp.144.8.989
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, p. 993), sendo a sobrecarga de estímulos o resultado da superação de processos estruturais defensivos corticais relacionados à discriminação perceptiva e às respostas adaptativas eficazes para a sobrevivência pela inaptidão de um organismo humano em processar informações que sinalizam a ameaça à vida.

Portanto, o estresse incontrolável grave desencadearia uma resposta emocional primária sucedida de um ajuste condicionado imediato (Koba et al., 2001Koba, T., Kodama, Y., Shimizu, K., Nomura, S., Sugawara, M., Kobayashi, Y., & Ogasawara, T. (2001). Persistent behavioural changes in rats following inescapable shock stress: A potential model of posttraumatic stress disorder. The World Journal of Biological Psychiatry, 2(1), 34-37. doi: 10.3109/15622970109039982
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). Isso é particularmente importante, pois as observações acerca do comprometimento que certas condições imporiam pela escassez ou excesso de estímulos passariam a responder como um evento traumático externo pode impactar a biologia do organismo e produzir vestígios de memória duráveis desse evento (Bremner, 2006Bremner, J. D. (2006). Traumatic stress: Effects on the brain. Dialogues in Clinical Neuroscience, 8(4), 445-461. doi: 10.31887/DCNS.2006.8.4/jbremner
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; Brewin, 2001Brewin, C. R. (2001). Memory processes in post-traumatic stress disorder. International Review of Psychiatry, 13(3), 159-163. doi: 10.1080/09540260120074019
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; Pitman, 1989Pitman, R. K. (1989). Post-traumatic stress disorder, hormones, and memory. Biological Psychiatry, 26(3), 221-223. doi: 10.1016/0006-3223(89)90033-4
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). As alterações neuronais supostamente danosas à capacidade de aprender e autorregular as emoções sugeririam, ainda, o envolvimento de vários sistemas neurotransmissores e neuropeptídeos, incluindo os sistemas noradrenérgico, dopaminérgico, serotonérgico, benzodiazepínico, opioide e hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA).

Visto que a exigência patognômica fundamental do TEPT representa o maior desafio para a investigação biológica desta condição, a ideia de alterações sinápticas relacionadas à sensibilização neurofisiológica, ou depressões dos processos sinápticos subjacentes à habituação e percepção discriminativa - ambas levadas a cabo pelo influxo exagerado da estimulação -, de forma alguma contradiz um dos princípios dessa abordagem: a indagação de um meio pelo qual a atividade pós-evento dos hormônios responsivos ao estresse aumentaria a consolidação e o condicionamento da memória, conferindo a eventos extremamente estressantes o poder de simultaneamente produzir respostas condicionadas e lembranças patologicamente persistentes (Pitman, 1989Pitman, R. K. (1989). Post-traumatic stress disorder, hormones, and memory. Biological Psychiatry, 26(3), 221-223. doi: 10.1016/0006-3223(89)90033-4
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). Assim, Kolb pode ser considerado um precursor da matriz neurocientífica contemporânea do estresse traumático - não tanto pela raiz neurobiológica de seu modelo conceitual, uma vez que suas hipóteses funcionam por analogia à “barreira cortical de estímulos” de Freud (2010Freud, S. (2010). História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Obras Completas, Vol. 14). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) e aos estudos de Kandel (2007Kandel, E. R. (2007). In search of memory: The emergence of a new science of mind. New York, NY: W. W. Norton & Co .) de processos de aprendizagem em caracóis, mas porque seu modelo partilha do choque incontrolável enquanto paradigma fenomênico essencial da traumatização, o que o põe em linha de continuidade com a perspectiva neurocientífica. Ainda mais fundamentalmente, a obra de Kolb denuncia como o choque incontrolável instrumentaliza, pelo amparo que solicita ao conceito de estresse, uma associação incontornável da teoria do condicionamento e das disciplinas de base neurocientífica. Com efeito, a torção do choque em estresse incontrolável sugere um modelo animal comum a essas disciplinas, seja quando corrobora a equivalência entre as sequelas do comportamento de animais e de sintomas humanos, seja quando presume que estressores desencadeantes dos transtornos do trauma são incontroláveis por natureza (Bali & Jaggi, 2015Bali, A., & Jaggi, A. S. (2015). Electric foot shock stress: A useful tool in neuropsychiatric studies. Reviews in the Neurosciences, 26(6), 655-677. doi: 10.1515/revneuro-2015-0015
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; Koba et al., 2001Koba, T., Kodama, Y., Shimizu, K., Nomura, S., Sugawara, M., Kobayashi, Y., & Ogasawara, T. (2001). Persistent behavioural changes in rats following inescapable shock stress: A potential model of posttraumatic stress disorder. The World Journal of Biological Psychiatry, 2(1), 34-37. doi: 10.3109/15622970109039982
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; Philbert et al., 2011Philbert, J., Pichat, P., Beeské, S., Decobert, M., Belzung, C., & Griebel, G. (2011). Acute inescapable stress exposure induces long-term sleep disturbances and avoidance behavior: A mouse model of post-traumatic stress disorder (PSTD). Behavioural Brain Research, 221(1), 149-154. doi: 10.1016/j.bbr.2011.02.039
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; Southwick et al., 1995Southwick, S. M., Morgan, C. A., Darnell, A., Bremner, D., Nicolaou, A. L., Nagy, L. M., & Charney, D. S. (1995). Trauma-related symptoms in veterans of Operation Desert Storm: A 2-year follow-up. The American Journal of Psychiatry , 152(8), 1150-1155. doi: 10.1176/ajp.152.8.1150
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). É por esse motivo que uma revisão de literatura clínica e pré-clínica do estresse biológico relevante para o TEPT costuma revelar que vários sistemas neuroquímicos são marcadamente alterados em animais e humanos que sofreram estresse traumático (Flandreau & Toth, 2018Flandreau, E. I., & Toth, M. (2017). Animal models of PTSD: A critical review. Behavioral Neurobiology of PTSD, 38, 47-68. doi: 10.1007/7854_2016_65
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; Southwick et al., 1995Southwick, S. M., Morgan, C. A., Darnell, A., Bremner, D., Nicolaou, A. L., Nagy, L. M., & Charney, D. S. (1995). Trauma-related symptoms in veterans of Operation Desert Storm: A 2-year follow-up. The American Journal of Psychiatry , 152(8), 1150-1155. doi: 10.1176/ajp.152.8.1150
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).

Sendo assim, o estresse incontrolável poderia produzir alterações profundas em múltiplos sistemas de neurotransmissores - sugerindo não apenas que o TEPT seja um distúrbio multissistêmico, mas especialmente que a pesquisa neurobiológica revestiu a semiologia clássica das fisioneuroses com o seu aparato conceitual e metodológico. Paradoxalmente, as evidências clínicas para as disfunções neurobiológicas do TEPT se concentram em quatro grupos de funções principais alteradas que repetem rigorosamente todas as características descritas por Kolb (1987Kolb, L. (1987). A neuropsychological hypothesis explaining posttraumatic stress disorders. The American Journal of Psychiatry, 144(8), 989-995. doi: 10.1176/ajp.144.8.989
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) em suas observações com veteranos de guerra: a hiper-responsividade ao estresse, relacionada à reatividade autonômica; a hipervigilância persistente, associada às funções adrenérgica e noradrenérgicas; as possíveis dificuldades de aprendizagem e memória, deduzidas de disfunções neurobiológicas do eixo HPA; e o embotamento crônico das respostas emocionais, comumente relacionado às funções opiáceas endógenas (van der Kolk, 1989van der Kolk, B. A. (1989). The compulsion to repeat the trauma: Re-enactment, revictimization, and masochism. Psychiatric Clinics of North America, 12(2), 389-411.). Temos, portanto, a materialização da obscura sentença de Kolb (1987Kolb, L. (1987). A neuropsychological hypothesis explaining posttraumatic stress disorders. The American Journal of Psychiatry, 144(8), 989-995. doi: 10.1176/ajp.144.8.989
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) para a morte neuronal potencialmente provocada pela hiperexcitação do sistema nervoso.

A partir de então, a neurociência comportamental, a neurociência cultural, a neurociência cognitiva e todas as demais disciplinas do espectro neurocientífico confiarão em um mesmo e derradeiro princípio de que os mecanismos aos quais dedicam o seu interesse, seja ele o aprendizado do medo ou a resposta neurofisiológica do estresse, servem à única finalidade seminal da autoperpetuação, e apenas dentro da grade semântica evolucionária podem expressar a sua serventia. Isto é, os fenômenos do traumatismo capturados pelas neurociências servem à intenção redundante do organismo em prevalecer por meio da sobrevivência (Fragkaki, Roelofs, Stins, Jongedijk, & Hagenaars, 2017Fragkaki, I., Roelofs, K., Stins, J., Jongedijk, R. A., & Hagenaars, M. A. (2017). Reduced freezing in posttraumatic stress disorder patients while watching affective pictures. Frontiers in Psychiatry, 8(39). doi: 10.3389/fpsyt.2017.00039
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). Se com a teoria do condicionamento diríamos que o estresse prejudica a recuperação do trauma ao debilitar a extinção do medo (Maren & Holmes, 2016Maren, S., & Holmes, A. (2016). Stress and fear extinction. Neuropsychopharmacology, 41(1), 58-79. doi: 10.1038/npp.2015.180
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) - e que, portanto, uma forma de aprendizado capaz de fundamentar a supressão de memórias relacionadas ao trauma seria particularmente apropriada -, com a neurobiologia acrescentaremos que o hipocampo e a projeção do córtex pré-frontal para a amígdala são estruturas importantes na inibição aprendida dessas respostas (Brewin, 2001Brewin, C. R. (2001). Memory processes in post-traumatic stress disorder. International Review of Psychiatry, 13(3), 159-163. doi: 10.1080/09540260120074019
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). Isso faz do condicionamento um conhecimento de superfície; útil para informar a descrição sintomatológica, mas incapaz de elucidar a patognomia das perturbações traumáticas. A neurobiologia, por outro lado, reunirá os achados da pesquisa básica em animais e dos estudos de neuroimagem humana para descrever a própria neuroanatomia funcional envolvida no desenvolvimento do TEPT, concedendo às suas características fenomênicas um conjunto de neurocircuitos representativos e, com efeito, uma causalidade decisivamente material4 4 Por isso, a neurobiologia não é último baluarte científico capaz de elucidar as coisas que a clínica, desde o século XIX, conseguia apenas descrever e inventariar. Pois, muito do que explica a respeito do trauma, ela, na verdade, “reexplica” - com um novo vocabulário, é verdade, mas preservando uma série de premissas axiomáticas que encontraremos por todo o percurso epistemológico da investigação científica do traumatismo. (Bremner, 2006Bremner, J. D. (2006). Traumatic stress: Effects on the brain. Dialogues in Clinical Neuroscience, 8(4), 445-461. doi: 10.31887/DCNS.2006.8.4/jbremner
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; Brewin, 2001Brewin, C. R. (2001). Memory processes in post-traumatic stress disorder. International Review of Psychiatry, 13(3), 159-163. doi: 10.1080/09540260120074019
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; Resick, 2013Resick, P. (2013). Stress and trauma. London, England: Psychology Press.). Por isso, não surpreende a campanha de alguns autores do campo pelo reconhecimento de bases fisiológicas para estresse pós-traumático (van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin.).

A evolução da abordagem neurobiológica do estresse traumático em uma teoria neurocientífica do trauma envolve esse duplo processo de decomposição do estresse em elementos mínimos e pertinentes à sua natureza de estressor traumático, além de sua posterior planificação em sistemas e funções fisiológicas progressivamente mais complexas. A desregulação do sistema nervoso simpático, os sintomas psicofisiológicos frequentemente atribuíveis ao trauma severo - ou mesmo as reações hiperativas classificadas fora da extensão comportamental propriamente patológica (Southwick et al., 1995Southwick, S. M., Morgan, C. A., Darnell, A., Bremner, D., Nicolaou, A. L., Nagy, L. M., & Charney, D. S. (1995). Trauma-related symptoms in veterans of Operation Desert Storm: A 2-year follow-up. The American Journal of Psychiatry , 152(8), 1150-1155. doi: 10.1176/ajp.152.8.1150
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) -, só adquirem coerência porque concorrem para uma mesma região, habitada por receptores de catecolamina, hormônio adrenocorticotrópico (ACTH), vasopressina, epinefrina, norepinefrina e por todas as demais subunidades neuroquímicas e neuroanatômicas visíveis pela lente da pesquisa biológica do trauma - e apenas por ela capturada. Essa teoria neurocientífica, que organiza achados neurobiológicos, anexando a eles os princípios etológicos que mais ou menos explicitamente o originaram, determinará que, a partir de então, a compreensão das repercussões biológicas da violência reconhecerá os seus correlatos cerebrais por meio de alterações na fisiologia da excitação do sistema nervoso central (SNC), do sistema nervoso autônomo (SNA) e de vários efeitos de mecanismos neuroendócrinos (Bremner et al., 2003Bremner, J. D., Vythilingam, M., Vermetten, E., Adil, J., Khan, S., Nazeer, A., Afzal, N., McGlashan, T., Elzinga, B., Anderson, G. M., Heninger, G., Southwick, S. M., & Charney, D. S. (2003). Cortisol response to a cognitive stress challenge in posttraumatic stress disorder (PTSD) related to childhood abuse. Psychoneuroendocrinology, 28(6), 733-750. doi: 10.1016/S0306-4530(02)00067-7
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; Kardiner, 1941Kardiner, A. (1941). The traumatic neuroses of war. New York, NY: P. Hoeber.).

Reducionismo e fixação no projeto neurocientífico para o trauma

Que significa dizer que um determinado acontecimento, por seu início súbito, seu curso destrutivo ou pelo sentimento de impotência que produziu, seja enfim classificado como um evento traumático? O que caracteriza o trauma, e o que caracteriza um indivíduo traumatizado?

A princípio, o sujeito traumatizado é aquele em que as manobras defensivas adquiriram extrema fixidez. Sendo a memória do trauma antes de tudo uma memória corporal (Kardiner, 1941Kardiner, A. (1941). The traumatic neuroses of war. New York, NY: P. Hoeber.), codificada nas vísceras, nos distúrbios autoimunes e em perturbações músculo-esqueléticas - e se a comunicação mente-cérebro-vísceras é o “caminho real para a regulação da emoção” (van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin., p. 181), então estamos diante da necessidade de uma readaptação capaz de “liberar o sistema elementar do self no tronco cerebral e no sistema límbico do fardo de reagir a um tirânico senso de terror e à intensa excitação fisiológica que o acompanha” (van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin., p. 254). No campo dos estudos sobre o estresse traumático, a ambição pelo desenvolvimento de abordagens bottom-up5 5 Ainda que o repertório terapêutico para os transtornos do espectro traumático inclua estratégias cognitivamente fundamentadas, o modelo explicativo para a etiologia dessas condições vem sendo progressivamente reduzido à patognomia do funcionamento fisiológico, anatômico e sistêmico do aparelho nervoso (Bremner, 2006; Bremner et al., 2003; Yehuda & LeDoux, 2007). No plano das terapias cognitivas, as variações recomendadas incluem a terapia cognitivo-comportamental, EMDR e terapia de exposição, com graus de eficácia incertos para o TEPT (Kar, 2011; Richter-Levin et al., 2019; Seidler & Wagner, 2006). Em termos farmacológicos, inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) e tianeptina vêm sendo recomendados como tratamentos de primeira linha para TEPT (Bremner, 2006). para o tratamento de sintomas pós-traumáticos retrata a primazia dessas estratégias sobre aquelas apoiadas no recrutamento de capacidades cognitivas para a desmobilização de um cérebro em curto-circuito. Por essa razão, os tratamentos eficazes para o TEPT apostarão na promoção da memória e do aumento do volume do hipocampo pela promoção da neurogênese, uma vez que esta demonstrou condicionar a resposta antidepressiva adequada (Bremner, 2006Bremner, J. D. (2006). Traumatic stress: Effects on the brain. Dialogues in Clinical Neuroscience, 8(4), 445-461. doi: 10.31887/DCNS.2006.8.4/jbremner
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).

Assim, a indissociabilidade entre mente e cérebro, embora reconhecida, parece ter perdido o seu paralelismo. Nesta nova hierarquia ontológica, o cérebro, suas regiões anatômicas e substratos neuroquímicos detêm prerrogativa causal de determinação sobre os fenômenos subjetivos da mente, mas os fenômenos subjetivos não têm relevância recíproca em reconfigurar as perturbações fisiológicas e estruturas funcionais do cérebro. É por essa razão que o caminho para a recuperação do trauma será veiculado ao sistema de segurança do cérebro para a promoção de modalidades cognitivas, pois, independentemente da quantidade de discernimento desenvolvida, “o cérebro racional é basicamente impotente para convencer o cérebro emocional de sua própria realidade” (van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin., p. 107). Como um epifenômeno do cérebro racional, a subjetividade é tão frágil quanto o próprio funcionamento cortical. Se o trauma desativa as atividades executivas da camada cinzenta, ele fará o mesmo com a mente e todos os seus produtos imateriais (Fuchs, 2018Fuchs, T. (2018). Ecology of the brain: The phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford, England: Oxford University Press.).

O resultado inverso dessa formulação será que, de maneira inédita desde o século XIX, o corpo será capaz de traumatizar a superfície subjetiva do self, porém não o contrário. Dessa perspectiva, seria dispensável visitar o passado na terapia - pois, paradoxalmente, a psicoterapia deve aguardar que as condições biológicas individuais assegurem o enraizamento temporal e a segurança necessários ao trabalho top-down de ressignificação das experiências e de engajamento social. Pelo mesmo motivo, as neurociências rechaçarão a hipótese freudiana da compulsão à repetição, desidratando o seu núcleo semântico; pois, se para Freud (2010Freud, S. (2010). História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Obras Completas, Vol. 14). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) as reincidências dos sonhos traumáticos serviam a um princípio anterior e mais originário que o princípio do prazer, ainda assim a matéria de que tratavam visava obter o domínio da situação penosa geradora do produto onírico, restaurando, em última medida, o princípio geral do funcionamento psíquico e os processos de simbolização que dele decorrem. Mas se as reatuações de veteranos de guerra ou sobreviventes de catástrofes a nada servem, exceto à depreciação funcional e fisiológica do aparato cerebral, é porque na nosografia do estresse traumático a repetição está destituída de qualquer função simbolizante, não remetendo a nenhum sentido ontogenético (Leys, 2006Leys, R. (2006). Image and trauma. Science in Context, 19(1), 137-149.; van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin.). Logo, a repetição das experiências “solitárias, humilhantes e alienantes” (van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin., p. 363) do trauma só têm o poder de reforçar a preocupação e a sua própria fixação.

Portanto, o trauma psíquico levaria a distúrbios psicofisiológicos que não seriam facilmente compreensíveis apenas pelos modelos psicodinâmicos ou de condicionamento, uma vez que estes não nos fazem apreender os correlatos bioquímicos e fisiológicos da traumatização (van der Kolk, Greenberg, Boyd, & Krystal, 1985van der Kolk, B. A., Greenberg, M., Boyd, H., & Krystal, J. (1985). Inescapable shock, neurotransmitters, and addiction to trauma: Toward a psychobiology of post traumatic stress. Biological Psychiatry , 20(3), 314-325. doi: 10.1016/0006-3223(85)90061-7
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). O pesadelo traumático e as exposições aparentemente compulsivas a situações que lembram o trauma original (McNally, 2006McNally, R. J. (2006). Cognitive abnormalities in post-traumatic stress disorder. Trends in Cognitive Sciences , 10(6), 271-277. doi: 10.1016/j.tics.2006.04.007
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), carecendo supostamente de qualquer conteúdo latente, realização de desejo e significado simbólico, deveriam ser entendidos enquanto fenômenos que reeditam o evento traumático em sua literalidade (Caruth, 1996Caruth, C. (1996). Unclaimed experience: Trauma, narrative, and history. Baltimore, MA: Johns Hopkins University Press.). Não sem motivos, o TEPT foi considerado amplamente como um distúrbio da memória, uma vez que a reprodução involuntária de cenas do trauma, reportada a anomalias nas funções procedural e semântica do processamento cognitivo, apoia-se em um modelo fisiopatológico representado pela correspondência entre uma amígdala hiper-responsiva e regiões corticais pré-frontais hiporresponsivas (Mahan & Ressler, 2012Mahan, A. L., & Ressler, K. J. (2012). Fear conditioning, synaptic plasticity and the amygdala: Implications for posttraumatic stress disorder. Trends in Neurosciences, 35(1), 24-35. doi: 10.1016/j.tins.2011.06.007
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; Shin, Rauch, & Pitman, 2006Shin, L. M., Rauch, S. L., & Pitman, R. K. (2006). Amygdala, medial prefrontal cortex, and hippocampal function in PTSD. Annals of the New York Academy of Sciences, 1071(1), 67-79. doi: 10.1196/annals.1364.007
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). A ênfase da causalidade neurobiológica para as perturbações pós-traumáticas inclui a amígdala, o hipocampo e o córtex pré-frontal como as áreas cerebrais implicadas na resposta de estresse (Bremner, 2006Bremner, J. D. (2006). Traumatic stress: Effects on the brain. Dialogues in Clinical Neuroscience, 8(4), 445-461. doi: 10.31887/DCNS.2006.8.4/jbremner
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).

Essa interpretação não consiste em um desenvolvimento necessariamente especial ou intrínseco ao campo da neurobiologia do estresse (Rose & Abi-Rached, 2013Rose, N., & Abi-Rached, J. (2013). Neuro: The new brain sciences and the management of the mind. Princeton, NJ: Princeton University Press.), mas deriva de uma mesma fratura epistemológica que, no pensamento e na ciência ocidentais, originou uma divisão sistemática entre as disciplinas que lidam com a mente humana e seus produtos linguísticos, sociais e culturais, por um lado, e aquelas que intencionam elucidar a estrutura do mundo material, por outro (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. Oxford, England: Routledge.). Essa divisão foi, por algum tempo, mantida à revelia das tentativas de desenvolvimento de abordagens integrativas para a compreensão das múltiplas dimensões da existência humana (Clinchy, Sheriff, & Zanette, 2013Clinchy, M., Sheriff, M. J., & Zanette, L. Y. (2013). Predator-induced stress and the ecology of fear. Functional Ecology, 27(1), 56-65. doi: 10.1111/1365-2435.12007
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; Harvey, 1996Harvey, M. R. (1996). An ecological view of psychological trauma and trauma recovery. Journal of Traumatic Stress, 9(1), 3-23. doi: 10.1002/jts.2490090103
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; Hobfoll, 1989Hobfoll, S. E. (1989). Conservation of resources: A new attempt at conceptualizing stress. American Psychologist, 44(3), 513-524. doi: 10.1037/0003-066X.44.3.513
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). Partindo das mais variadas matrizes disciplinares, a biologia molecular, a epigenética, a neurociência, a psicologia ecológica, a linguística e a filosofia da mente começam a convergir para uma síntese simultaneamente processual, desenvolvimentista e relacional, fundamentada na quebra do monopólio discursivo do paradigma neodarwinista (Ingold & Palsson, 2013Ingold, T., & Palsson, G. (Eds.). (2013). Biosocial becomings: integrating social and biological anthropology. Cambridge University Press.).

Se a vida orgânica não é tanto a realização de formas preestabelecidas, mas o desdobramento criativo de um amplo campo de relações cujo enquadre serve à emergência dos seres e de suas formas particulares, então a evolução não está na mutação, recombinação, replicação e seleção de traços transmissíveis, mas no próprio processo dinâmico de geração e manutenção das modalidades de existência (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. Oxford, England: Routledge.; Ingold & Palsson, 2013Ingold, T., & Palsson, G. (Eds.). (2013). Biosocial becomings: integrating social and biological anthropology. Cambridge University Press.). Como a leitura da estrutura genômica depende do processo de desenvolvimento ontogenético, a separação entre filogênese e ontogênese só se sustenta sob a condição artificial de a zona de interpenetração que denominamos ambiente não constituir os próprios organismos que dela derivam. Com isso, seria preciso negar a observação de que os organismos crescem para assumir as formas que assumem, incorporando, para isso, em si mesmos as linhas de vida de outros organismos (Ingold & Palsson, 2013Ingold, T., & Palsson, G. (Eds.). (2013). Biosocial becomings: integrating social and biological anthropology. Cambridge University Press.). As formas de vida são antes resultados emergentes da auto-organização dinâmica dos sistemas de desenvolvimento que estruturas genética ou culturalmente pré-configuradas (Friston, 2009Friston, K. (2009). The free-energy principle: A rough guide to the brain? Trends in Cognitive Sciences, 13(7), 293-301. doi :10.1016/j.tics.2009.04.005
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, 2013Friston, K. (2013). Life as we know it. Journal of the Royal Society Interface, 10(86), Artigo 20130475. doi: 10.1098/rsif.2013.0475
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). Logo, a evolução é um processo da vida, a própria história derivacional das suas formas; e no centro desse processo está a ontogênese (Heyes, 2003Heyes, C. (2003). Four routes of cognitive evolution. Psychological Review, 110(4), 713-727. doi: 10.1037/0033-295X.110.4.713
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).

Ao defender que o desenvolvimento de qualquer sistema biológico ocorre não em oposição ao mundo e suas determinações materiais, mas em irrestrita consonância com seu ambiente, a perspectiva relacional do organismo recusa as formas de reducionismo idealista ou materialista que presenciamos frequentemente no construtivismo social e no materialismo de caráter eliminativista (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. Oxford, England: Routledge.). Essa racionalidade contesta que as ações do agente estejam desde sempre prescritas por formas de inteligência previamente calculadas pelo design de dispositivos, como a mente, ou de processos, como a seleção natural (Ingold & Palsson, 2013Ingold, T., & Palsson, G. (Eds.). (2013). Biosocial becomings: integrating social and biological anthropology. Cambridge University Press.). A emergência de uma concepção de processo evolutivo ecológico, conduzido não por estruturas informacionais apriorísticas, mas pelas histórias de vida dos próprios agentes biológicos ao longo de suas linhas de devir, coincide com a superação das dicotomias organismo/ambiente e filogênese/ontogênese. Apesar das capacidades persuasivas da psicofarmacologia, da genômica psiquiátrica, da neuroplasticidade e dos dispositivos de neuroimagem, através dos quais o aparato neurocientífico ingressou no debate da vida cotidiana, novos estilos de pensamento sensibilizam as neurociências para a necessidade de expansão de suas ferramentas explicativas para além do projeto reducionista (Rose & Abi-Rached, 2013Rose, N., & Abi-Rached, J. (2013). Neuro: The new brain sciences and the management of the mind. Princeton, NJ: Princeton University Press.). A localização de processos neurais passa, assim, a se interconectar firmemente às dimensões de tempo, desenvolvimento e trocas dentro de um meio (Northoff, 2013Northoff, G. (2013). What the brain’s intrinsic activity can tell us about consciousness? A tri-dimensional view. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 37(4), 726-738. doi: 10.1016/j.neubiorev.2012.12.004
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; Shamay-Tsoory & Mendelsohn, 2019Shamay-Tsoory, S. G., & Mendelsohn, A. (2019). Real-life neuroscience: An ecological approach to brain and behavior research. Perspectives on Psychological Science , 14(5), 841-859. doi: 10.1177/1745691619856350
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).

Topologicamente, o organismo passa a ser reconhecido mais como um emaranhado de linhas entrelaçadas que como entidade discreta e limitada em oposição a um ambiente que lhe desafia (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. Oxford, England: Routledge.). A reedição indefinida do script da traumatização individual, típica da fixação ao trauma, reivindicaria, portanto, a admissão de descrições fenomênicas, da mesma maneira com que reconhece a circularidade da liberação endógena de opioides, abstinência e hiper-reatividade mediada por hipersensibilidade do SNC (Everly Jr. & Lating, 1995Everly, G. S., Jr., & Lating, J. M. (Eds.). (1995). Psychotraumatology: Key papers and core concepts in post-traumatic stress. New York, NY: Springer.; Fuchs, 2018Fuchs, T. (2018). Ecology of the brain: The phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford, England: Oxford University Press.). Do contrário, as reações de entorpecimento após o trauma em humanos, correspondentes à depleção de catecolaminas seguida do choque inevitável em animais (van der Kolk et al., 1985van der Kolk, B. A., Greenberg, M., Boyd, H., & Krystal, J. (1985). Inescapable shock, neurotransmitters, and addiction to trauma: Toward a psychobiology of post traumatic stress. Biological Psychiatry , 20(3), 314-325. doi: 10.1016/0006-3223(85)90061-7
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), representariam uma hipótese puramente neurocientífica para a analgesia induzida por estresse. Nesse caso, reforçada pela pesquisa do estresse animal e pelo neodarwinismo ortodoxo, essa formulação da hiper-reatividade garantiria uma explicação estritamente biológica para o complexo comportamento de reexposição voluntária ao trauma, fornecendo uma proposição que, muito embora pareça complementar ao conceito psicodinâmico convencional de tentativa de domínio do significado psicossocial do trauma, na verdade efetua a definitiva subordinação de seus pressupostos pela reificação da causalidade biológica no centro dos distúrbios relacionados ao trauma (van der Kolk, 1989van der Kolk, B. A. (1989). The compulsion to repeat the trauma: Re-enactment, revictimization, and masochism. Psychiatric Clinics of North America, 12(2), 389-411.). Ocorre, no entanto, que, ao reduzir a complexidade do sofrimento traumático a seus componentes moleculares, o modelo neurocientífico consagrou justamente um trauma sem sujeito: descorporificado, no plano fenomênico; antiecológico, no plano da fisiologia6 6 A elaboração de abordagens ecológicas da experiência traumática humana que considerem não somente as perturbações neurobiológicas, sistêmicas e funcionais do aparato nervoso, mas também as condições fenomênicas do desenvolvimento individual, parece ser a tarefa central para a promoção de paradigmas realmente transdisciplinares e comprometidos com o acolhimento das expressões do sofrimento traumático em suas múltiplas formas de descrição (Fuchs, 2018; Hobfoll, 1989, 2004). Isso começa pela formatação de designs mais ecológicos dos modelos experimentais (Barroca et al., 2022; Careaga et al., 2016; Richter-Levin et al., 2019;). (Fuchs, 2018Fuchs, T. (2018). Ecology of the brain: The phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford, England: Oxford University Press.).

A partir da aposta na literalidade dos produtos traumáticos (Caruth, 1996Caruth, C. (1996). Unclaimed experience: Trauma, narrative, and history. Baltimore, MA: Johns Hopkins University Press.), essa teoria reassimilou os fenômenos do traumatismo a uma estrutura epistemológica de causalidade estritamente fisicalista e, por isso, de alguma maneira talvez obscura, o trauma das neurociências, embora revestido de toda a densidade tecnológica do século XXI, parece cada vez mais caminhar em direção ao trauma cirúrgico do século XVII. Porém, se nele ainda podemos vislumbrar referências sutis à fragmentação sensoperceptiva (Janet, 1889Janet, P. (1889). L’Automatisme psychologique: essai de psychologie experimentale sur les formes inferieures de l’activite humaine. Paris, France: F. Alcan.), à barreira cortical de estímulos (Freud, 2010Freud, S. (2010). História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (Obras Completas, Vol. 14). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), ou à estimulação emocional excessiva (Kolb, 1987Kolb, L. (1987). A neuropsychological hypothesis explaining posttraumatic stress disorders. The American Journal of Psychiatry, 144(8), 989-995. doi: 10.1176/ajp.144.8.989
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), tidas eventualmente por pré-científicas pela perspectiva do estresse traumático (Fuchs, 2018Fuchs, T. (2018). Ecology of the brain: The phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford, England: Oxford University Press.), talvez seja porque as teses psicodinâmicas que o estabeleceram preservam uma parcela da sua influência epistêmica e se constituem, ainda hoje, como um importante edifício conceitual do campo. Talvez, ainda, a compreensão do processo histórico de corporalização do trauma, pelo qual ele teve desapropriada a sua função comunicativa e foi, enfim, extraído da subjetividade, responda a um projeto ainda mais ambicioso que intenciona alcançar os fenômenos humanos por uma racionalidade científica quantificável, cristalina, matemática, e, por isso, propriamente inumana (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. Oxford, England: Routledge.).

Considerações finais

Nos últimos 50 anos, presenciamos o surgimento de uma perspectiva neuromolecular do cérebro, através da qual a estrutura e o funcionamento cerebral e do sistema nervoso central tornaram-se compreensíveis como processos materiais de interação entre moléculas. Esse processo foi fundamental para a consolidação de crenças contemporâneas, como a noção de que a mente e a cultura se prestariam à nítida visualização por técnicas de imageamento cerebral, uma vez que qualquer produto da existência humana teria o seu correlato indispensável em elementos naturais com propriedades biofísicas, químicas e elétricas. Dessa racionalidade surge uma teoria neuro-hormonal da memória traumática (Leys, 2000Leys, R. (2000). Trauma: A genealogy. Chicago, IL: The University of Chicago Press.), cujos precursores foram a pesquisa animal do condicionamento do medo e a perspectiva quantificável - mas simultaneamente intangível - do estresse.

O modelo do trauma na teoria do condicionamento clássico adotou o exemplo prototípico da predação, por meio do qual um estímulo ambiental gera uma mobilização do organismo (Rau et al., 2005Rau, V., DeCola, J. P., & Fanselow, M. S. (2005). Stress-induced enhancement of fear learning: An animal model of posttraumatic stress disorder. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 29(8), 1207-1223. doi: 10.1016/j.neubiorev.2005.04.010
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). Em outras palavras, uma ameaça conduz a uma resposta de medo, e este comportamento defensivo reflete um gradiente que corresponde tanto à distância geográfico-temporal quanto ao nível de percepção da ameaça entre o predador e sua presa (Rau & Fanselow, 2007Rau, V., & Fanselow, M. S. (2007). Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In L. Kirmayer, R. Lemelson & M. Barad (Eds.), Understanding trauma: Integrating biological, psychological and cultural perspectives (pp. 27-41). New York, NY: Cambridge University Press .). O TEPT representaria uma falha na descontinuação das reações fisiológicas e psicológicas outrora recrutadas na situação traumática, da qual o resultado é o alargamento da generalização das respostas de medo (Rothbaum & Davis, 2003Rothbaum, B. O., & Davis, M.. (2003). Applying learning principles to the treatment of post-trauma reactions. In J. A. King, C. F. Ferris & I. I. Lederhendler (Orgs.), Roots of mental illness in children (pp. 112-121). New York, NY: New York Academy of Sciences .).

Há, entretanto, pelo menos dois problemas na adoção do comportamento animal para a inferência das reações de estresse humanas. O primeiro é que o exame do funcionamento dos sistemas adaptativos não consegue reproduzir o funcionamento cerebral em contextos culturalmente significativos (Chiao, 2009Chiao, J. Y. (2009). Cultural neuroscience: A once and future discipline. Progress in Brain Research, 178, 287-304. doi: 10.1016/s0079-6123(09)17821-4
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; Kirmayer et al., 2007Kirmayer, L. , Lemelson, R., &Barad, M. (Eds.). (2007). Understanding trauma: Integrating biological, psychological and cultural perspectives . New York, NY: Cambridge University Press .); o segundo é que a nosologia traumática foi integralmente elaborada sobre o comportamento antipredação, isto é, sobre a resposta inadequada do sistema de aprendizagem do medo (Rau & Fanselow, 2007Rau, V., & Fanselow, M. S. (2007). Neurobiological and neuroethological perspectives on fear and anxiety. In L. Kirmayer, R. Lemelson & M. Barad (Eds.), Understanding trauma: Integrating biological, psychological and cultural perspectives (pp. 27-41). New York, NY: Cambridge University Press .). Porém, ao excluir o padrão comportamental de predadores, esse modelo evolutivo deixa de explicar suficientemente o processo de traumatização que incide não sobre a presa ou a vítima, mas sim aquele que acomete os próprios algozes (Fassin & Rechtman, 2009Fassin, D., & Rechtman, R. (2009). The empire of trauma: An inquiry into the condition of victimhood. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Apesar de a ativação excessiva ou inapropriada de respostas de medo poder levar ao desenvolvimento de disfunções comportamentais em mamíferos, a generalização destes distúrbios até a patogênese de psicopatologias traumáticas em humanos pode resultar em uma equivalência simplória (Chiao, 2009Chiao, J. Y. (2009). Cultural neuroscience: A once and future discipline. Progress in Brain Research, 178, 287-304. doi: 10.1016/s0079-6123(09)17821-4
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; Cohen et al., 2012Cohen, H., Kozlovsky, N., Alona, C., Matar, M. A., & Joseph, Z. (2012). Animal model for PTSD: From clinical concept to translational research. Neuropharmacology, 62(2), 715-724. doi: 10.1016/j.neuropharm.2011.04.023
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). A partir da neurobiologia, esse argumento se consolidará com a sentença de que pessoas traumatizadas levam mais tempo para retornar seus hormônios do estresse aos limiares normais, enquanto elevam desproporcionalmente a sua concentração em resposta a estímulos anódinos ou levemente estressantes (van der Kolk, 2016van der Kolk, B. A. (2016). The body keeps the score: Brain, mind and body in the healing of trauma. New York, NY: Penguin.).

Os mecanismos neurocomportamentais que subjazem a resposta biológica ao trauma estarão, a partir de agora, revestindo as teses da teoria do condicionamento clássico com uma tecnocracia que resultará em uma blindagem de suas premissas epistemológicas, tornando toda a teoria do trauma que ela apoia significativamente insensível a contestações por disciplinas e práticas que lhe são estrangeiras ou que utilizam diretrizes epistêmicas outras (Vidal & Ortega, 2020Vidal, F., & Ortega, F. (2020). Being brains: making the cerebral subject. Bronx, NY: Fordham University Press.). É por essa razão que, seguindo os desenvolvimentos do reducionismo materialista após o entusiasmo que sucedeu a década do cérebro, Thomas Fuchs (2018Fuchs, T. (2018). Ecology of the brain: The phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford, England: Oxford University Press.) decretou haver pouco espaço para um papel causal da subjetividade no mundo e, embora o fenômeno da consciência não possa ser refutado, ele deve ao menos permanecer impotente como um subproduto do cérebro.

Esta tese, fundamentada sobre a partição dualista de uma subjetividade sem corpo e sem mundo, por um lado, e de um universo material fisicamente reduzido, por outro, explica a opção da neurobiologia por um elemento transcendente e virtual que recapitula a essência de seus propósitos. O estresse (traumático) ofereceu os meios para o projeto neurocientífico avançar sobre a cidadela da mente, assim como o fizera com a substância do corpo. Não porque tudo o que for virtual favoreça o raciocínio psicodinâmico, mas porque a subjetividade rematerializada na figura de catecolaminas, endorfinas, e nas regiões neuroanatômicas é em si mesma uma subjetividade fisicalizada, e assim, confinada às novas regras de formação que prescrevem supostamente as coisas do mundo físico. Ela é, como diria Mountcastle (1998Mountcastle, V. (1998). Perceptual science: the Cerebral Cortex. Cambridge, MA: Harvard University Press.), uma propriedade emergente do cérebro.

No limite, portanto, se pode conjecturar que, para essa abordagem teórica, o trauma humano equivale precisamente ao trauma do próprio sistema nervoso - e não a um traumatismo incidente sobre uma pessoa integral e subjetivada. Por extensão, afirmaríamos que esse trauma do aparato neuronal permanece sendo um trauma biológico - efeito da decomposição do mecanismo de resposta do perigo (fight-flight-freeze) em mecanismos hierarquizados de sobrevivência separados, externamente, pelo grau de ameaça à vida e, internamente, pelo recrutamento distinto de estruturas cerebrais e seus respectivos funcionamentos fisiológicos. Isso revogaria, com efeito, a passagem histórica da antiga traumatologia médica para o trauma psicológico, reassimilando a experiência traumática estritamente à dimensão objetiva da fisicalidade. Como a maneira como compreendemos e visualizamos os transtornos relacionados ao trauma tem implicações mais ou menos diretas sobre nossos modelos de intervenção, podemos interrogar se a redução do sofrimento traumático a um trauma neuronal não constitui uma decisão eminentemente ética.

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  • Young, A. (1995). The harmony of illusions: Inventing post-traumatic stress disorder. Princeton, NJ: Princeton University Press .
  • 1
    Com base nos critérios atuais do DSM-V, especula-se que existam mais de 600 mil apresentações de TEPT possíveis (Galatzer-Levy & Bryant, 2013Galatzer-Levy, I. R., & Bryant, R. A. (2013). 636,120 ways to have posttraumatic stress disorder. Perspectives on Psychological Science, 8(6), 651-662. doi: 10.1177/1745691613504115
    https://doi.org/10.1177/1745691613504115...
    ).
  • 2
    Richter-Levin et al. (2019Richter-Levin, G., Stork, O., & Schmidt, M. V. (2019). Animal models of PTSD: A challenge to be met. Molecular Psychiatry, 24, 1135-1156. doi: 10.1038/s41380-018-0272-5
    https://doi.org/10.1038/s41380-018-0272-...
    ) sugerem que, com alterações apropriadas em seus desenhos, os modelos animais podem vir a superar limitações atuais e se tornarem ferramentas ainda mais valiosas para o aprofundamento da compreensão de psicopatologias do espectro traumático, servindo mesmo como plataformas para o desenvolvimento de testes com medicamentos. Algumas indicações seriam a investigação combinada dos efeitos de curto e de longo prazo após a exposição a um evento aversivo; a ampliação do foco dos estudos, hoje essencialmente focado na tipologia do trauma (stress-enhanced fear learning, single-prolonged stress, submersion stress, predator odor exposure); e o exame da influência da variabilidade individual e dos fatores de risco sobre os resultados da amostra (Dopfel et al., 2019Dopfel, D., Perez, P. D., Verbitsky, A., Bravo-Rivera, H., Ma, Y., Quirk, G. J., & Zhang, N. (2019). Individual variability in behavior and functional networks predicts vulnerability using an animal model of PTSD. Nature Communications, 10(1), Artigo 2372. doi: 10.1038/s41467-019-09926-z
    https://doi.org/10.1038/s41467-019-09926...
    ).
  • 3
    Seguindo os argumentos de Allan Young (1995Young, A. (1995). The harmony of illusions: Inventing post-traumatic stress disorder. Princeton, NJ: Princeton University Press .), Leys (2000Leys, R. (2000). Trauma: A genealogy. Chicago, IL: The University of Chicago Press.) observou que a teoria neuro-hormonal da memória, defendida por van der Kolk (1996van der Kolk, B. A. (1996). Trauma and memory. In B. A. van der Kolk , A. McFarlane & L. Weiseah (Eds.), Traumatic stress: The effects of overwhelming experience on mind, body, and society (pp. 279-303). New York, NY: Guilford Press .), é um projeto para a pesquisa biológica atual sobre TEPT. Apoiada no paradigma do choque incontrolável, essa hipótese incorpora o primeiro modelo do trauma psíquico, apoiado sobre a hipótese da prostração do sistema nervoso em decorrência do choque cirúrgico, à rede de evidências atuais do prestigioso paradigma neuroendocrinológico, aglutinando todas as manifestações do TEPT a uma mesma teoria biológica da memória (Leys, 2000Leys, R. (2000). Trauma: A genealogy. Chicago, IL: The University of Chicago Press.).
  • 4
    Por isso, a neurobiologia não é último baluarte científico capaz de elucidar as coisas que a clínica, desde o século XIX, conseguia apenas descrever e inventariar. Pois, muito do que explica a respeito do trauma, ela, na verdade, “reexplica” - com um novo vocabulário, é verdade, mas preservando uma série de premissas axiomáticas que encontraremos por todo o percurso epistemológico da investigação científica do traumatismo.
  • 5
    Ainda que o repertório terapêutico para os transtornos do espectro traumático inclua estratégias cognitivamente fundamentadas, o modelo explicativo para a etiologia dessas condições vem sendo progressivamente reduzido à patognomia do funcionamento fisiológico, anatômico e sistêmico do aparelho nervoso (Bremner, 2006Bremner, J. D. (2006). Traumatic stress: Effects on the brain. Dialogues in Clinical Neuroscience, 8(4), 445-461. doi: 10.31887/DCNS.2006.8.4/jbremner
    https://doi.org/10.31887/DCNS.2006.8.4/j...
    ; Bremner et al., 2003Bremner, J. D., Vythilingam, M., Vermetten, E., Adil, J., Khan, S., Nazeer, A., Afzal, N., McGlashan, T., Elzinga, B., Anderson, G. M., Heninger, G., Southwick, S. M., & Charney, D. S. (2003). Cortisol response to a cognitive stress challenge in posttraumatic stress disorder (PTSD) related to childhood abuse. Psychoneuroendocrinology, 28(6), 733-750. doi: 10.1016/S0306-4530(02)00067-7
    https://doi.org/10.1016/S0306-4530(02)00...
    ; Yehuda & LeDoux, 2007Yehuda, R., & LeDoux, J. (2007). Response variation following trauma: A translational neuroscience approach to understanding PTSD. Neuron, 56(1), 19-32. doi: 10.1016/j.neuron.2007.09.006
    https://doi.org/10.1016/j.neuron.2007.09...
    ). No plano das terapias cognitivas, as variações recomendadas incluem a terapia cognitivo-comportamental, EMDR e terapia de exposição, com graus de eficácia incertos para o TEPT (Kar, 2011Kar, N. (2011). Cognitive behavioral therapy for the treatment of post-traumatic stress disorder: A review. Neuropsychiatric Disease and Treatment, 7(1), 167-181. doi: 10.2147/NDT.S10389
    https://doi.org/10.2147/NDT.S10389...
    ; Richter-Levin et al., 2019Richter-Levin, G., Stork, O., & Schmidt, M. V. (2019). Animal models of PTSD: A challenge to be met. Molecular Psychiatry, 24, 1135-1156. doi: 10.1038/s41380-018-0272-5
    https://doi.org/10.1038/s41380-018-0272-...
    ; Seidler & Wagner, 2006). Seidler, G. H., & Wagner, F. E. (2006). Comparing the efficacy of EMDR and trauma-focused cognitive-behavioral therapy in the treatment of PTSD: A meta-analytic study. Psychological Medicine, 36(11), 1515-1522. doi: 10.1017/S0033291706007963
    https://doi.org/10.1017/S003329170600796...
    Em termos farmacológicos, inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS) e tianeptina vêm sendo recomendados como tratamentos de primeira linha para TEPT (Bremner, 2006Bremner, J. D. (2006). Traumatic stress: Effects on the brain. Dialogues in Clinical Neuroscience, 8(4), 445-461. doi: 10.31887/DCNS.2006.8.4/jbremner
    https://doi.org/10.31887/DCNS.2006.8.4/j...
    ).
  • 6
    A elaboração de abordagens ecológicas da experiência traumática humana que considerem não somente as perturbações neurobiológicas, sistêmicas e funcionais do aparato nervoso, mas também as condições fenomênicas do desenvolvimento individual, parece ser a tarefa central para a promoção de paradigmas realmente transdisciplinares e comprometidos com o acolhimento das expressões do sofrimento traumático em suas múltiplas formas de descrição (Fuchs, 2018Fuchs, T. (2018). Ecology of the brain: The phenomenology and biology of the embodied mind. Oxford, England: Oxford University Press.; Hobfoll, 1989Hobfoll, S. E. (1989). Conservation of resources: A new attempt at conceptualizing stress. American Psychologist, 44(3), 513-524. doi: 10.1037/0003-066X.44.3.513
    https://doi.org/10.1037/0003-066X.44.3.5...
    , 2004Hobfoll, S. E. (2004). Stress, culture, and community: The psychology and philosophy of stress. New York, NY: Springer .). Isso começa pela formatação de designs mais ecológicos dos modelos experimentais (Barroca et al., 2022Barroca, N. C. B., Santa, G. D., Suchecki, D., García-Cairasco, N., & Umeoka, E. H. L. (2022). Challenges in the use of animal models and perspectives for a translational view of stress and psychopathologies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 140, Artigo 104771. doi: 10.1016/j.neubiorev.2022.104771
    https://doi.org/10.1016/j.neubiorev.2022...
    ; Careaga et al., 2016Careaga, M. B. L., Girardi, C. E. N., & Suchecki, D. (2016). Understanding posttraumatic stress disorder through fear conditioning, extinction and reconsolidation. Neuroscience & Biobehavioral Reviews , 71, 48-57. doi: 10.1016/j.neubiorev.2016.08.023
    https://doi.org/10.1016/j.neubiorev.2016...
    ; Richter-Levin et al., 2019Richter-Levin, G., Stork, O., & Schmidt, M. V. (2019). Animal models of PTSD: A challenge to be met. Molecular Psychiatry, 24, 1135-1156. doi: 10.1038/s41380-018-0272-5
    https://doi.org/10.1038/s41380-018-0272-...
    ;).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2023
  • Aceito
    13 Abr 2023
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