Open-access Práticas de avaliação psicológica em suspeitas de abuso sexual infantil intrafamiliar no contexto do judiciário do estado do Rio de Janeiro

Psychological assessment practices in cases of suspected intrafamilial child sexual abuse in the context of the judiciary power in the state of Rio de Janeiro

Les pratique s de l’évaluation psychologique en cas de suspicion d e violence sexuel intrafamilial chez l’ enfant dans le contexte judiciaire de l’état de Rio de Janeiro

Prácticas de evaluación psicológica en presuntas víctimas de abuso sexual infantil intrafamiliar en el Poder Judicial del estado de Río de Janeiro

Resumo:

O artigo apresenta os resultados da pesquisa que investigou as práticas em avaliação psicológica realizadas pelos psicólogos forenses do judiciário fluminense nos processos judiciais envolvendo suspeita de abuso sexual infantil intrafamiliar. Foram realizadas entrevistas qualitativas com quatro analistas judiciários do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) e duas psicólogas peritas judiciais. A partir da análise de conteúdo de Bardin, emergiram três categorias: avaliação psicológica: percepções e recursos; perícias psicológicas em casos de abuso sexual infantil intrafamiliar; e dificuldades dos psicólogos forenses no contexto do TJRJ. Concluiu-se que as práticas avaliativas são diversas e que há pouca abertura por parte dos psicólogos forenses e da instituição judiciária fluminense para a utilização de instrumentos psicológicos além das entrevistas. O espaçamento temporal entre a ocorrência da violência e a perícia, o alto volume de trabalho e os curtos prazos processuais foram complicadores referidos por todos os participantes.

Palavras-chave:  abuso sexual infantil; perícia judicial; psicologia forense; avaliação psicológica

Abstract:

This study investigated the practices in Psychological Assessment carried out by Rio de Janeiro judiciary forensic psychologists in judicial proceedings involving suspected intrafamilial child sexual abuse. For that, six forensic psychologists linked to the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro were interviewed. Participants included four judicial analysts occupying positions of psychologists and two psychologists who are judicial experts. Based on Bardin’s content analysis, three categories emerged. Psychological Assessment: perceptions and resources; psychological expertise in cases of intrafamilial child sexual abuse and difficulties faced by forensic psychologists in the context of the Court of Justice. We found diverse evaluative practices and scarce spaces for the use of psychological instruments besides interviews. The temporal spacing between the occurrence of violence and expertise, the high volume of work, and the short procedural deadlines configured complicating factors according to all participants.

Keywords:  child sexual abuse; judicial expertise; forensic psychology; psychological assessment

Résumé :

L’article expose les résultats de la recherche qui a enquêté sur les pratiques d’évaluation psychologique réalisées par des psychologues légistes de la justice de Rio de Janeiro dans le cadre de procédures judiciaires impliquant des violences sexuels intrafamiliaux présumés chez des enfants. Des entretiens qualitatifs ont été réalisés avec quatre analystes judiciaires du Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) [Cour d’Appel de l’État de Rio de Janeiro] et deux psychologues judiciaires experts. De l’analyse de contenu de Bardin, trois catégories ont émergé : évaluation psychologique : perceptions et ressources ; expertise psychologique dans les cas de violence sexuel intrafamiliaux chez les enfants ; et difficultés des psychologues judiciaires dans le cadre du TJRJ. Nous concluons que les pratiques évaluatives sont diverses et qu’il y a peu d’ouverture pour l’utilisation d’instruments psychologiques en dehors des entretiens. L’espacement temporel entre la survenance de la violence et l’expertise, le volume de travail important et les courts délais de procédure ont été des facteurs de complication mentionnés par tous les participants.

Mots-clés :  Violence sexuelle chez l’enfant; expertise judiciaire; psychologie judiciaire; l’évaluation psychologique

Resumen:

Este artículo expone los resultados de la investigación que tuvo como objetivo conocer las prácticas de evaluación psicológica realizadas por psicólogos forenses del Poder Judicial de Río de Janeiro en procesos judiciales que involucran a presuntas víctimas de abuso sexual infantil intrafamiliar. Se realizaron entrevistas cualitativas a cuatro analistas judiciales del Tribunal de Justicia del Estado de Río de Janeiro (TJRJ) y dos peritos psicólogos judiciales. Del análisis de contenido de Bardin surgieron tres categorías: evaluación psicológica: percepciones y recursos; pericia psicológica en casos de abuso sexual infantil intrafamiliar; y dificultades de los psicólogos forenses en el contexto del TJRJ. Se concluyó que las prácticas evaluativas son diversas y que hay poco espacio para el uso de herramientas psicológicas más allá de las entrevistas. El espaciamiento temporal entre la ocurrencia de la violencia y la pericia, el alto volumen de trabajo y los cortos plazos procesales fueron los factores de complicación mencionados por todos los participantes.

Palabras clave:  abuso sexual infantil; pericia judicial; psicología forense; evaluación psicológica

Introdução

O abuso sexual infantil (ASI) é um fenômeno de extrema complexidade, que pode ser entendido como uma das mais graves formas de violação de direitos humanos e exige uma abordagem multidisciplinar (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2020 ). Há um agravo no impacto da violência quando ela ocorre no seio familiar, sobretudo se após a revelação a criança for desmentida e/ou não forem tomadas providências para interromper a violência (Almeida-Prado, 2018 ; Almeida-Prado & Pereira, 2008 ; Fuks, 2010 ). Isso posto, são urgentes intervenções terapêuticas e judiciais com a finalidade de cessar o abuso e tratar a criança e sua família.

Não obstante a gravidade dos casos, o psicólogo na interface com a justiça estará às voltas com as características intrínsecas ao contexto jurídico. Como exemplos, dilemas éticos que envolvem violação de direitos humanos, relações fortemente pautadas em hierarquia, ritos e a linguagem própria dos operadores jurídicos. À vista disso, o psicólogo deverá lançar mão do seu conhecimento teórico-técnico e possuir ética e discernimento crítico para analisar as demandas jurídicas, reconhecer os limites do alcance da ciência psicológica com vistas a auxiliar a tomada de decisão dos operadores jurídicos.

Pesquisas indicam que a demanda do judiciário para perícias psicológicas de crianças vítimas ultrapassa a capacidade de atendimento dos psicólogos inseridos ou vinculados no quadro técnico do Poder Judiciário, ou seja, há grande volume de pedidos e baixo quantitativo de profissionais (Pelisoli & Dell’Aglio, 2015 ; Rovinski & Pelisoli, 2019 ). Dessa forma, é crescente que psicólogos com diversas especializações e atuantes em diversos setores (clínica, saúde, educação) realizem avaliações a pedido de atores jurídicos para contribuir em tomadas de decisão em processos envolvendo ASI (Pelisoli & Dell’Aglio, 2015 ). São escassas as pesquisas empíricas sobre as condições laborais desses profissionais para realizar essas avaliações, especialmente no judiciário fluminense. Tendo em vista a relevância que os operadores jurídicos atribuem ao trabalho pericial do psicólogo em casos que envolvam violação de direito de crianças e adolescentes, compreendemos a importância de mapear as condições laborais de psicólogos do sistema de justiça, dadas as particularidades do contexto social, cultural e político de cada estado brasileiro.

Este artigo é parte de amplo estudo intitulado “Práticas de avaliação psicológica em casos de suspeita de ASI intrafamiliar no contexto do judiciário do estado do Rio de Janeiro” no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Trata-se de estudo de natureza qualitativa mediante pesquisa de campo de alcance exploratório. A pesquisa investigou as práticas em avaliação psicológica realizadas pelos psicólogos forenses do judiciário fluminense nos processos judiciais envolvendo suspeita de ASI intrafamiliar.

Considerações sobre avaliação psicológica

Em recente pesquisa documental sobre as infrações éticas dos psicólogos ocorridas no período de 2010 a 2018, observou-se que 31,7% das infrações eram decorrentes de transgressões e equívocos no campo da avaliação psicológica, como facilitar a aplicação de testes psicológicos por não psicólogo, irregularidades no processo avaliativo e laudos mal elaborados (Costa, Gomes, Costa, Lima, & Melo, 2021 ). Do mesmo modo, Shine ( 2009 ) propõe que são frequentes as falhas na elaboração de documentos psicológicos, resultando em advertências e representações (denúncias éticas) nos conselhos de psicologia. Portanto, a escrita de documentos psicológicos é um aspecto sensível na categoria. Assim, é relevante considerar a implicação que o campo da avaliação psicológica (AP) possui para a valorização da psicologia diante de outras áreas, pois compreendemos que documentos psicológicos mal elaborados expõem o psicólogo responsável pelo documento e a categoria profissional como um todo, além de acarretar prejuízos para os indivíduos envolvidos no processo avaliativo.

A prática avaliativa é fundamental para o psicólogo independentemente do contexto de atuação, pois previamente a qualquer intervenção psicológica é necessária uma análise do indivíduo ou de um grupo. Por esse motivo, o campo da AP trata-se de uma área de formação básica composta por diversas disciplinas associadas a outros conhecimentos da psicologia: psicopatologia, psicologia do desenvolvimento, processos psicológicos básicos, entre outras áreas (Nunes et al., 2012 ). São observadas sérias lacunas entre a formação e a qualificação dos profissionais que atuam no campo de AP, seja na docência, seja na prática profissional (Borsa & Segabinazzi, 2017 ). São mencionados outros complicadores: insuficiente carga horária nas disciplinas; falta de qualificação dos professores; visão desatualizada e fragmentada, reduzindo o processo de AP à aplicação e correção de testes psicológicos (Borsa & Segabinazzi, 2017 ; Wechsler, Hutz, & Primi, 2019 ).

Segundo a Resolução nº 09/ 2018 (CFP, 2018 , p. 2):

Avaliação Psicológica é definida como um processo estruturado de investigação de fenômenos psicológicos, composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas.

A Resolução nº 06/ 2019 , que orienta sobre a elaboração de documento escritos, caracteriza a AP por uma:

ação sistemática e delimitada no tempo, com a finalidade de diagnóstico ou não, que utiliza de [ sic ] fontes de informações fundamentais e complementares com o propósito de uma investigação realizada a partir de uma coleta de dados, estudos e interpretação de fenômenos e processos psicológicos.

(CFP, 2019 , p. 2)

São entendidos como fontes fundamentais: testes psicológicos aprovados pelo CFP, entrevistas psicológicas, anamnese, protocolos, registros de observação do comportamento obtidos individualmente ou em grupo. Já as fontes complementares indicadas são: documentos técnicos, tais como protocolos ou relatórios produzidos em equipes multiprofissionais, técnicas, e instrumentos não psicológicos, mas que possuam respaldo no Código de Ética do Psicólogo e na literatura científica (CFP, 2018 ). Apesar da gama de ferramentas disponíveis para utilizar na AP, pesquisadores apontam que a entrevista é o instrumento de coleta de dados mais privilegiado (Pelisoli & Dell’Aglio, 2015 ; Nunes, Lourenço, & Teixeira, 2017 ). Não é consenso entre os psicólogos a necessidade de utilizar testes psicológicos na AP. De acordo com o CFP ( 2019 ), uma grande quantidade de profissionais não refere suas práticas como avaliação psicológica pelo fato de não utilizarem testes psicológicos.

No contexto da Justiça, o termo perícia psicológica é utilizado para designar a AP solicitada por autoridade com prerrogativa legal (delegado, promotor público e juiz). Apesar de a AP realizada no contexto clínico e na perícia judicial terem pontos convergentes, a principal distinção entre essas duas modalidades de AP encontra-se no motivo pelo qual a perícia foi solicitada (Rovinski & Pelisoli, 2019 ).

O psicólogo na interface com a Justiça

O termo psicologia jurídica é amplo e abrange o trabalho do psicólogo na interface com a Justiça e o campo do Direito, especialmente no processo de problematização, negociação e argumentação para contribuir na proposição e no acompanhamento das leis (Bicalho, 2016 ). A inserção do psicólogo nas instituições de justiça no Brasil ocorreu antes mesmo de sua regulamentação enquanto profissão, sobretudo na área criminal e com adolescentes infratores da lei (Lago, Amato, Teixeira, Rovinski, & Bandeira, 2009 ; Rovinski, 2017 ). Na literatura nacional, constata-se a confusão entre os termos psicólogo jurídico e psicólogo forense, pois diversas vezes esses termos são utilizados como sinônimos. A expressão “forense” é relacionada a fórum: “antigo local da Roma Antiga onde os cidadãos resolviam disputas, semelhante ao que hoje seriam os tribunais” (Rovinski, 2017 , p. 416). Assim a avaliação psicológica, nesse contexto, chama-se avaliação psicológica forense ou perícia psicológica.

Pesquisas em psicologia forense consideram que o profissional deve ter, além dos conhecimentos relativos ao campo da avaliação psicológica, competências e habilidades teórico-técnicas específicas para a atuação em perícias psicológicas (Cruz, 2020 ; Rovinski, 2017 ; Rovinski & Pelisoli, 2019 ; Shine, 2005 ). Destacamos algumas delas: ter capacidade para ler e analisar determinantes legais que se relacionam à demanda de avaliação psicológica; compreender os ritos processuais e o funcionamento do sistema legal buscando adequar a linguagem teórico-técnica da psicologia ao contexto forense; ter capacitação nos diversos métodos de avaliação da saúde mental no contexto forense, atentando-se para a validade das informações encontradas; ter capacidade para examinar as especificidades da AP no contexto forense, como destinatário, voluntariedade, objetivos da AP, autonomia, dinâmica da relação entrevistador e entrevistado e alinhamento do tempo do processo avaliativo com os prazos judiciais; reconhecer os limites éticos da sua atuação profissional e da ciência psicológica para responder à demanda legal etc.

Em levantamento sobre as condições de trabalho de psicólogos e assistentes sociais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) realizado no ano de 2012 por Santos e Darós ( 2016 ), foram apresentados alguns aspectos importantes sobre a rotina laboral desses profissionais, entre elas: sobrecarga de trabalho; adoecimento físico e psíquico; necessidade de realização de novos concursos; desarticulação com outros dispositivos da rede de proteção; “falta de tempo para uma escuta que potencialize os sujeitos a buscarem soluções para os seus conflitos, para além da dimensão diagnóstica/avaliativa” (p. 345); e maior espaçamento de tempo para atendimento aos usuários.

A temática relativa à produtividade perpassa significativamente o contexto laboral no TJRJ, exigindo que psicólogos analistas judiciários do TJRJ se posicionem sobre as especificidades do trabalho da psicologia nesse contexto e sobre as questões éticas implicadas na lógica produtivista quando se trata de processos judiciais envolvendo crianças e famílias. O Provimento n. 24/ 2019 é o documento oficial da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro (CGJERJ, 2019 ) que regulamenta a produtividade dos analistas com especialidade de psicólogo, de assistente social e de comissário de justiça. Observa-se que o analista judiciário-psicólogo possui, além das atividades relativas às perícias psicológicas e estudos dos casos, também atividades administrativas inerentes às demandas institucionais.

Pesquisadores assinalam que as imposições da instituição judiciária relativas à produtividade dos psicólogos analistas judiciários acabam por gerar sobrecarga psíquica e favorecer o adoecimento destes profissionais (Santos & Darós, 2016 ). Esse cenário nos remete ao trabalho de Enriquez ( 1997 ). O autor salienta que a violência institucional é despercebida em nossa sociedade devido ao caráter protetor e formador que é atribuído às instituições. Os indivíduos que conseguem ter clareza sobre a realidade conflituosa imposta pelos mecanismos institucionais acabam sendo fragilizados pela própria tomada de consciência; e ainda em muitas circunstâncias os outros membros da instituição tendem a fragilizá-lo ainda mais para evitar questionamentos, ou seja, entrar em contato com a realidade imposta pela instituição e por suas hierarquias mais altas (Enriquez, 1997 ).

Refletimos que a complexidade das relações institucionais já demanda que o profissional lide com mobilizações afetivas que poderão interferir nas suas práticas. Além de consistente formação teórico-técnico, o profissional também precisará ter recursos emocionais para lidar com o contexto laboral, especialmente as relações entre seus pares e as camadas mais altas da hierarquia institucional. Nessa perspectiva, ponderamos que o trabalho que envolve casos de extrema violência, como é o caso de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, poderá ser mais uma sobrecarga psíquica para o psicólogo forense, visto que este terá que lidar com casos hediondos e, por isso, mobilizantes afetivamente.

O psicólogo forense diante da suspeita de abuso sexual infantil intrafamiliar

Amendola ( 2009 ) problematiza sobre os diversos termos e conceitos utilizados na literatura para designar o fenômeno do ASI. A problemática não reflete apenas a questão da terminologia, mas também denota uma questão epistemológica para abordar o fenômeno, uma vez que envolve ideologias e opiniões individuais e culturais. Neste trabalho optamos pela utilização do termo “abuso sexual infantil”, uma vez que este é comumente utilizado em normativas técnicas no campo da Psicologia (CFP, 2020 ) e por pesquisadores da área (Almeida-Prado, 2018 ; Rovinski & Pelisoli, 2019 ).

Entre as consequências mais recorrentes da violência estão: transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, suicídio, promiscuidade sexual, prejuízos no desempenho acadêmico, fugas do lar, comportamentos disruptivos, dificuldades com a imagem corporal, uso abusivo de substâncias psicoativas, enurese e encoprese, transtornos dissociativos, transtornos de personalidade borderline , transtornos de ansiedade, transtornos de déficit de atenção e sintomas psicossomáticos (Habigzang, Koller, Azevedo, & Machado, 2005 ; Schaefer, Donat, & Kristensen, 2018 ). Além disso, distúrbios alimentares em mulheres (obesidade, anorexia e bulimia) e prejuízos significativos na maturidade sexual, dificultando o desenvolvimento harmonioso da própria sexualidade e, ainda, grande indisponibilidade para envolvimento afetivo-sexual, em razão da dificuldade de confiança e segurança na vinculação com outros parceiros (Almeida & Pereira, 2008 ).

Almeida-Prado e Féres-Carneiro ( 2005 ) elucidam, a partir da perspectiva psicanalítica, que posteriormente à situação traumática, a reação dos adultos de referência será decisiva para o restabelecimento emocional da criança vítima. Caso a criança seja desmentida pelo meio familiar quando revelada a situação traumática, ela se sentirá impedida de sustentar sozinha as percepções a respeito de si mesma diante da violência que foi vivenciada. Nessas circunstâncias, a criança sente-se confusa quanto às suas percepções e emoções com relação a si própria e ao meio circundante, devido à sua condição de vulnerabilidade e dependência do meio familiar. Sozinha, ela não para é capaz de elaborar a situação traumática, que permanece como fonte de angústia. Logo, a imagem de si e do meio circundante, que se apresenta incapaz de acolher suas angústias, fica distorcida e comprometida, interferindo na percepção da realidade (Almeida-Prado & Pereira, 2008 ). O descrédito dos adultos pode ser expresso por meio de incompreensão, desqualificação do sofrimento da vítima ou até mesmo o silêncio diante da violência (Ferenczi, 2011 ). Assim sendo, em famílias com dinâmicas abusivas, as crianças não estão submetidas apenas ao abusador, mas sim a adultos abusadores, incapazes de oferecer meio protetor que possibilite o pleno desenvolvimento da criança.

O abuso sexual pode funcionar como regulador de conflitos nessas famílias, uma vez que a criança fica como depositário das tensões e do desequilíbrio emocional e sexual dos parceiros conjugais (Furniss, 1993 ). Corroborando essa perspectiva, Thouvenin ( 1997 ) destaca que o segredo do incesto contém a proibição de verbalizar os fatos e, assim, pensar sobre eles, o que remete aos silêncios e à dificuldade de comunicação que se dão nas famílias com dinâmica relacional abusiva.

Em pesquisas relativas à dinâmica familiar em casos de ASI e aos aspectos observados em processos judiciais, foram indicados fatores de risco verificados nessas famílias: pai e/ou mãe negligenciados na infância em suas famílias de origem; uso abusivo de álcool e/ou outras drogas; falta de comunicação entre os membros da família; dificuldades conjugais, autoritarismo; altos níveis de estresse; desemprego; instabilidade financeira ou pobreza; mãe com postura passiva ou ausente; famílias isoladas com escassos vínculos extrafamiliares; pais que sofrem de transtornos psiquiátricos; e histórico de abuso sexual em gerações anteriores (Habigzang et al., 2005 ; Rovinski & Pelisoli, 2019 ).

Ressaltamos que os impasses na comunicação com famílias com dinâmica abusiva poderão ser repetidos na situação de perícia psicológica. Com isso, o profissional deverá ter clareza dos mecanismos conscientes e inconscientes em jogo, caso contrário, podem ser feitos conluios (inconscientes) com os envolvidos, prejudicando sobremaneira a perícia psicológica e, portanto, as decisões judiciais posteriores (Almeida-Prado & Pereira, 2008 ; Almeida- Prado, 2018 ). Logo, o profissional deve considerar os intensos sentimentos ambivalentes, até mesmo disruptivos, vivenciados pela criança e a interferência disso para revelar as situações traumáticas. Nessas circunstâncias, a criança acaba por ser a porta-voz da dinâmica disfuncional familiar e, na ausência de adultos protetores à sua volta, culpabilizada pelas situações decorrentes da revelação. Outrossim, o ambiente acolhedor e protetivo oferecido pelo examinador para a criança será fundamental ao processo de perícia psicológica, haja vista a dificuldade no estabelecimento de vínculos suficientemente protetivos que esses infantes vivenciam no seio familiar.

Pesquisadores indicam alguns objetivos das perícias psicológicas em suspeitas de ASI. Tais objetivos são: avaliar a capacidade geral da criança para testemunhar sobre uma experiência traumática que ela possa ter vivenciado; avaliar o impacto de experiências abusivas na saúde mental da criança ou adolescente; discutir o nexo causal da hipótese da violência e o impacto na saúde mental (Rovinski & Pelisoli, 2019 ; Aznar-Blefari, Schaefer, Pelisoli, & Habigzang, 2021 ). Não há um indicador único que determine se a criança foi abusada sexualmente ou não, logo são indicadas análises abrangentes que incluam diferentes domínios de avaliação (Aznar-Blefari et al . , 2021 ; Schaefer; Donat; Kristensen, 2018 ).

Em pesquisa empírica com 95 psicólogos brasileiros que atuam em situações de ASI, Pelisoli e Dell’Aglio ( 2015 ) identificaram que grande parte dos profissionais envolvem apenas mãe e criança no processo de AP, sendo que em apenas pouco mais da metade dos casos o abusador é entrevistado. Em grande parte dos casos, a entrevista é o único instrumento utilizado, o que aponta a necessidade de instrumentalização dos profissionais na AP, visto que a riqueza no processo de AP é justamente a possibilidade de diversificar recursos e fontes de informações (Pelisoli & Dell’Aglio, 2015 ). Outro aspecto sensível na utilização de instrumentos psicológicos no contexto forense é que estes são escassos. Assim sendo, deve haver cautela na aplicação de ferramentas utilizadas no contexto clínico para avaliações forenses (Rovinski & Pelisoli, 2019 ).

Tendo em vista a complexidade das perícias psicológicas, especialmente nos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, nos indagamos: como ocorre o processo de AP desses casos no TJRJ? Quais ferramentas são utilizadas ao longo do processo? Quais os impasses e especificidades desses processos judiciais? Além disso, conhecer os aspectos avaliados pelos psicólogos forenses nos casos envolvendo suspeita de ASI na família fomentaria a construção de instrumentos psicológicos voltados para o contexto da justiça.

Método

Participantes

Participaram da pesquisa um total de seis entrevistados, quatro mulheres e dois homens, com idades entre 34 e 66 anos. Todos com nível superior em psicologia e residentes no estado do Rio de Janeiro (ERJ). Não foi utilizado como critério o tempo de experiência no contexto do TJRJ, logo temos um participante do primeiro concurso para o TJRJ, e os outros cinco entraram na instituição a partir de 2010.

Existem diferenças dos vínculos profissionais desses dois grupos de participantes. Os analistas judiciários-psicólogos foram aprovados em concurso público do TJRJ e possuem vínculo empregatício de servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro. Assim, eles têm função, carga horária de trabalho e salário estabelecidos pelo TJRJ. O outro grupo é de psicólogas peritas judiciais vinculadas aos Serviços de Perícia Judicial do TJRJ (Sejud) que não possuem vínculo empregatício com a instituição, ou seja, sua carga horária e seu rendimento salarial são variáveis, pois dependem do número de perícias realizadas para o TJRJ.

Os critérios de inclusão de participantes nesta pesquisa consistem em: estar devidamente registrado no Conselho Regional de Psicologia; ser analista judiciário, cargo de psicólogo, do TJRJ atuante nas equipes técnicas da instituição ou ser psicólogo perito cadastrado no Sejud do TJRJ; atuar obrigatoriamente em processos judiciais que envolvam suspeita de ASI intrafamiliar; ter realizado no último ano pelo menos duas perícias psicológicas em processos judiciais envolvendo suspeita de ASI intrafamiliar; e concordar com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) deste estudo.

Instrumento

Como instrumento de investigação, realizou-se uma entrevista individual com roteiro semiestruturado. A primeira parte do instrumento é composta por questionário abordando informações biográficas no que diz respeito: ao perfil do sujeito (sexo, idade, estado civil, local de moradia); à formação e nível de especialização; por último, à atuação no contexto laboral forense (enquadramento funcional, local de atuação, tempo dedicado ao trabalho, faixa salarial). Na segunda parte desse roteiro, as questões a serem levantadas estarão divididas em cinco eixos principais: (1) concepções sobre AP; (2) sistematização do processo de AP; (3) competências necessárias para o atendimento de ASI intrafamiliar; (4) indicadores e características investigadas dos infantes; e (5) dificuldades encontradas na AP nesses casos.

Procedimentos de coleta de dados e cuidados éticos

O projeto deste estudo foi aprovado pela Plataforma Brasil sob os registros CAAE 47313021.3.0000.8137 e número do parecer 4.815.687. O recrutamento dos participantes ocorreu virtualmente por meio de seleção voluntária, utilizando a técnica de amostragem em bola de neve – snowball (Yin, 2016 ). Os indivíduos que aceitaram participar do estudo foram contactados pela pesquisadora executante com o intuito de marcar data e horário para a realização da entrevista por meio da plataforma de videoconferência Zoom. Os nomes apresentados nos resultados são fictícios com vistas a proteger o sigilo dos participantes.

Procedimentos de análise de dados

Os dados coletados nas entrevistas foram integralmente transcritos a fim de transformá-los em dados textuais, incluindo tanto a linguagem verbal quanto manifestações como hesitações, risos e silêncios (Bardin, 2016 ). Além disso, para material de análise e interpretação dos dados foram utilizados, além das entrevistas transcritas, revisão de documentos oficiais do site TJRJ (resoluções, cartilhas, atos normativos) e ainda a experiência profissional do pesquisador.

Os dados coletados nas entrevistas foram submetidos ao método da análise de conteúdo na vertente categorial temática, conforme proposto por Bardin ( 2016 ). Foi realizada uma “leitura flutuante” (Bardin, 2016 , p. 126) do material das entrevistas, assim o pesquisador entra em contato com as impressões e orientações a partir dos textos das entrevistas, além disso são formuladas hipóteses/objetivos e a preparação do material a ser analisado. Posteriormente foram separadas em unidades de registro temáticas os fragmentos textuais, visando atribuir “núcleos de sentido” entre os fragmentos. Dessa maneira, foram agrupados e relacionados os dados significativos, resultando nas categorias de análise definidas a posteriori . As categorias foram nomeadas como: (1) Avaliação psicológica: percepções e recursos, desdobrando na subcategoria Elaboração de documentos; (2) Perícias psicológicas em casos de ASI intrafamiliar; e (3) Dificuldades dos psicólogos forenses no contexto do TJRJ.

Resultados e discussão

Avaliação psicológica: percepções e recursos

Essa categoria abarca as percepções que os entrevistados apresentam sobre a avaliação psicológica e os recursos utilizados. Discutimos a sistematização do processo avaliativo no contexto da justiça e as diferenças entre AP clínica e AP forense. É desdobrada em uma subcategoria que aborda a elaboração de documentos psicológicos decorrentes das perícias psicológicas.

Em relação à percepção sobre a avaliação psicológica, os participantes compreendem que a demanda dos operadores jurídicos nem sempre é tão clara, cabendo-lhes apresentar perspectivas que ampliem o entendimento de cada caso e auxiliem na tomada de decisão judicial. Apesar de os participantes reconhecerem a função pericial do psicólogo, demonstram cautela sobre a utilização do termo avaliação. Em face à cultura institucional do judiciário, o psicólogo forense se vê muitas vezes atravessado pelas relações de poder na instituição, gerando uma insegurança sobre os desdobramentos das tomadas de decisões dos atores jurídicos, procurando ampliar a avaliação à promoção da saúde.

O meu foco maior na questão da avaliação das pessoas que passam por mim não é [pausa] estritamente a avaliação. A avaliação acaba sendo, ficando em segundo plano porque é o que eu tenho que fazer. Eu não posso fingir que eu não tô ali pra, pra [pausa] servir ao poder, né? Mas eu tento promover a saúde dessas pessoas ou tentar ajudar de alguma maneira essas pessoas que estão ali . (Helena – analista judiciária)

Helena, que justifica o trabalho no contexto do judiciário – “pelo menos promover os encaminhamentos que se fizerem necessários” –, reconhecendo os limites da sua atuação, deixando para fora do âmbito judicial a promoção de saúde. Nesse sentido, observamos que a percepção sobre a avaliação psicológica é percebida como secundária dado o poder da cultura institucional do judiciário.

No contexto do Rio de Janeiro, a atuação da psicologia jurídica no TJRJ é fortemente marcada por correntes teóricas da psicologia social (Altoé, 2001 ), corroborando as narrativas das participantes que elegem a psicologia social como abordagem teórica norteadora das suas práticas, inscrevendo as suas práticas predominantemente sob a ótica social e política.

Justamente porque a minha abordagem parte de uma psicologia social jurídica eu entendo que todas as interações humanas têm algumas nuances. Elas partem de um contexto, de uma conjuntura que é psicológica, porque o psicológico na verdade é psicossocial. A psicologia é social porque o ser humano é um animal social e político [risos] . Então a avaliação psicológica é isso, é você avaliar, compreender [pausa] os fenômenos psicológicos considerando que eles são sociais e descrever essa compreensão a partir de referenciais teóricos e éticos da nossa profissão . (Rita – analista judiciária)

A falta de padronização de procedimentos é particularmente evidente em suspeitas de ASI, conforme observado em estudo anterior (Pelisoli & Dell’Aglio, 2015 ). Três participantes (dois analistas judiciários e uma perita extraquadro) mencionaram não diferenciar a sistematização quando há a suspeita de ASI de outros casos que envolvam outras violências. Os três participantes em termos gerais começam com a leitura dos autos processuais, traçam roteiro, iniciam as entrevistas pelos adultos e posteriormente com as crianças. Os profissionais que atenderam a criança e a família também são contactados pelos psicólogos forenses. Em contrapartida, duas participantes (uma analista judiciária e uma perita extraquadro) afirmaram que, ao receber um processo judicial com suspeita de ASI intrafamiliar, no planejamento da perícia psicológica, optam por estratégias para examinar a dinâmica da família como um todo. Observamos que a temática de ASI intrafamiliar aparece em todas as varas (família, criminal ou infância e juventude), mas tais suspeitas possuem proporções diferentes no processo judicial, dependendo da vara.

Salientamos que este estudo foi realizado após a implementação da Lei n. 13.431/2017, que estabelece o Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes vítimas e testemunhas de violência (Brasil, 2018 ). Apesar dos esforços para diminuir a quantidade de entrevistas da criança no sistema de justiça, observamos que esta problemática ainda é recorrente no judiciário fluminense. Foi explicitado pelos participantes que não é raro a criança ter passado por diversas intervenções com profissionais diferentes ao longo do sistema de justiça. Esse tema é frequentemente apontado pela literatura (Rovinski & Pelisoli, 2019 ; Aznar-Blefari et al. , 2021 ). A revitimização e o desgaste emocional causado pelo percurso da criança e da família ao longo do processo judicial são fatores importantes a serem considerados no planejamento da perícia psicológica, segundo os participantes. A urgência, os prazos processuais e os repetidos relatos em diversos dispositivos do sistema de justiça foram assinalados por todos os entrevistados. “ O estudo não pede que você entreviste as pessoas. Ele pede que você dê uma resposta técnica. Aí nós utilizamos a metodologia que achamos que é mais adequada para dar aquela resposta técnica ” (Gabriel – analista judiciário).

O termo “estudo”, ao ampliar demasiadamente as possibilidades de intervenções técnicas, parece valorizar a autonomia do psicólogo. Entretanto, os parâmetros que orientarão as práticas avaliativas dos psicólogos forenses no contexto do TJRJ parecem confusos, o que poderá favorecer equívocos técnicos e até mesmo éticos. Tais equívocos também se dão sobretudo pela grande demanda e restrição de tempo para realizar as avaliações. Conforme o Provimento n. 24/ 2019 , que regulamenta a produtividade dos analistas judiciários (CGJER, 2019 ), o documento fruto da intervenção do psicólogo é concebido como manifestação técnica. Desse modo, “estudo” diz respeito à manifestação da psicologia com os parâmetros estabelecidos pelo psicólogo analista judiciário para responder à demanda jurídica. No referido provimento, os termos “estudo”, “parecer técnico” e “manifestação técnica” são utilizados como sinônimos, além de não haver diferenciação sobre as práticas da psicologia e de outras áreas.

A partir da perspectiva de Gabriel e outra participante, compreendemos que, tendo em vista o volume de processos e as diversas intervenções ao longo da rede, poderá haver profissionais que optem por apoiar suas avaliações em estudos prévios de outros profissionais, evidenciando que não desenvolvem novos contributos ao processo de avaliação. Logo, a perícia psicológica da situação de violência se daria pela perspectiva de outros profissionais.

Então, assim, pra não reeditar, não, não fazer com que a criança conte de novo aquela história, se não apareceu nas entrevistas, eu vou me apoiar no que já existe, no que foi ouvido anteriormente. Então vou me apoiar em todo, todo material que já tem ali dentro do processo… material técnico que já tem ali no processo e nas minhas entrevistas . (Carla – perita externa)

Mas aí eu entro em contato com os profissionais que já fizeram o atendimento e eu procuro saber a opinião técnica deles, tento estabelecer uma outra análise, avançar numa outra análise com as informações que esses profissionais já atenderam . (Gabriel – analista judiciário)

É possível constatar que, se por um lado os procedimentos adotados por Gabriel oferecem maior celeridade ao andamento do processo judicial, por outro lado refletimos sobre os eventuais prejuízos de tais práticas. Levantamos a hipótese de que possam promover distorções e reforçar aspectos que foram percebidos por outros profissionais da rede, que, tal como os entrevistados, estão envoltos na precariedade de recursos, grande volume de demandas e urgências processuais.

Em relação aos recursos utilizados, os entrevistados são unânimes em citar as entrevistas, os desenhos, os recursos lúdicos (massinha, brinquedos, jogos, baralhos), observação e os contatos institucionais, como referido anteriormente. Esse dado corrobora a literatura, que indica ser a entrevista o instrumento privilegiado pelos profissionais no processo avaliativo (Nunes et al., 2017 ; Pelisoli & Dell’Aglio, 2015 ). Todos os participantes convocam o acusado para as perícias, exceto em casos que o réu esteja preso. Nessas circunstâncias, conforme orientação do TJRJ, o réu preso só poderá ser atendido pela equipe técnica da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Quatro participantes informaram realizar visita domiciliar junto ao serviço social como recurso nas perícias.

Apenas uma participante (Ana – perita externa) indicou fazer uso de instrumentos padronizados (testes psicológicos e métodos projetivos e expressivos) em suas perícias psicológicas. A participante fez referência ao grau de complexidade inerente aos casos envolvendo abuso sexual infantil intrafamiliar, a especificidade do vínculo com o examinado e a urgência nas intervenções. Por esse motivo, faz consultas de avaliação com menor intervalo de tempo (mais vezes na semana) e entende ser imprescindível utilizar diferentes métodos e técnicas nas perícias psicológicas.

A cultura institucional também não parece demonstrar abertura para introduzir tais instrumentos na rotina laboral dos psicólogos forenses, cabendo ao profissional buscar por conta própria capacitação e aquisição dessas ferramentas. Contudo, a literatura também indica a escassez de instrumentos psicológicos padronizados voltados ao contexto forense (Rovinski & Pelisoli, 2019 ), do mesmo modo para o público infantojuvenil em condições de vulnerabilidade. “ Olha . . . [tom de ênfase] não faço porque… acho que pelo volume de trabalho, pelos prazos, pela ‘pressa’ [faz aspas com as mãos] , pela urgência, e eu acho que também pela cultura institucional ” (Rita – analista judiciária).

Em síntese, observamos que as percepções dos participantes sobre avaliação psicológica são diversas, dependendo da abordagem teórica do profissional e das especificidades do local de atuação dentro do TJRJ. Por conseguinte, a sistematização e os recursos nos quais os participantes embasam suas avaliações são predominantemente leitura dos autos processuais, entrevistas com os adultos e entrevistas lúdicas com as crianças.

Elaboração de documentos psicológicos no contexto forense

Considerando a Resolução n. 06/2019 (CFP, 2019 ), que institui regras para elaboração de documentos psicológicos, o laudo psicológico é o documento fruto do processo de avaliação psicológica, diferenciando-se de outros documentos como relatório e parecer psicológico. Cinco participantes utilizaram o termo “relatório psicológico” ao se referirem aos documentos produzidos nas perícias psicológicas. Apenas uma participante (Ana – perita externa) nomeou como laudo psicológico a produção fruto da perícia.

Os participantes afirmaram não utilizar citações diretas dos avaliados, uma vez que relatos descontextualizados poderiam trazer interpretações equivocadas dos operadores jurídicos. Houve discordâncias sobre colocar referências bibliográficas nos documentos, apesar de ser uma orientação da recente Resolução n. 06/2019 (CFP, 2019 ).

Eu já tive uma experiência muito negativa com essa coisa, antes mesmo da resolução, de psicólogo citando bibliografia em relatório e laudo, que a pessoa cita lá alguns autores, que é uma leitura na verdade… vamos combinar assim, né? A pessoa, é claro, que ela faz um recorte de alguns autores para ela tentar expor uma conclusão da avaliação que faz. Em contrapartida, quem tem um assistente técnico também vai lançar mão de uma outra bibliografia, então já vira uma discussão, quase acadêmica, dentro do processo, em que o processo parou porque o juiz ficou até incapaz de decidir . (Bruno – analista judiciário)

Um aspecto relevante a ser considerado foi o entendimento dos participantes que seus documentos poderiam ser contestados por outros profissionais. Ana e Bruno se referem às práticas de assistentes técnicos contratados pelas partes envolvidas para analisar os documentos dos psicólogos peritos, sendo necessárias cautela e precisão na elaboração dos documentos. Dessa forma, compreendemos que a relação entre psicólogos peritos e assistentes técnicos é um aspecto sensível nas perícias psicológicas, especialmente pela lógica do Direito ser predominantemente adversarial e fomentar disputas (Rovinski & Pelisoli, 2019 ). Pelo relato de experiência de Bruno, entendemos que o clima adversarial se repetiu na relação entre perito e assistente técnico que rivalizavam a partir das referências bibliográficas no campo da psicologia. Tais situações remetem questões técnicas e éticas importantes a serem consideradas, especialmente por causar prejuízos para todos os envolvidos. Refletimos sobre o fato de os psicólogos forenses referirem seus documentos como relatórios psicológicos por não compreenderem suas práticas no campo da avaliação psicológica.

Perícia psicológica em casos de abuso sexual infantil intrafamiliar

Essa categoria abrange as especificidades das perícias psicológicas em casos de suspeita de ASI intrafamiliar. Serão discutidas as competências necessárias dos psicólogos em face às especificidades das famílias em contexto de ASI intrafamiliar. Em seguida, trataremos quais os indicadores e características examinadas pelos psicólogos forenses nas crianças e nas famílias nesses casos.

No que diz respeito às competências e habilidades necessárias para atuação em suspeitas de ASI intrafamiliar, os aspectos mais referidos pelos participantes foram: ética, empatia para acolher esses indivíduos sem julgamentos e ter distanciamento necessário para evitar avaliações tendenciosas nos casos. Enquanto competências técnicas, foram mencionadas por parte dos participantes: disposição para capacitação contínua, conhecimentos sobre psicologia do desenvolvimento, alienação parental, psicodinâmica do ASI e psicopatologia e, por fim, conhecimentos sobre os ritos processuais. A maior parte dos participantes mencionou como competência fundamental a neutralidade e a imparcialidade nas perícias psicológicas que envolvem ASI intrafamiliar.

Como forma de adquirir algumas das competências mencionadas, todos os participantes mencionaram os espaços de reflexão como relevantes para a atuação nesse contexto. Quatro participantes fizeram referência à própria psicoterapia como espaço de elaboração e meio de fortalecer seus recursos emocionais para lidar com a gravidade dos casos. Em concordância com os achados de Santos e Darós ( 2016 ) sobre as condições laborais das equipes técnicas do TJRJ, os participantes desta pesquisa também mencionaram a relevância dos espaços de reflexão, junto aos pares, em supervisões e discussões de equipe. Nesse mesmo sentido, a maioria dos participantes mencionou a interlocução com a área acadêmica.

O profissional às voltas com violências impensáveis corre o risco de se refugiar em preconcepções, ideologias ou até mesmo de negar a violência. Nessa perspectiva, Bruno menciona as diferentes identificações que podem trazer prejuízos ao trabalho com esses casos:

Facilidade de a gente se identificar com os casos de família e ainda mais se houver uma situação de violência contra a criança, e de caráter sexual. Então assim, [pausa] a tendenciosidade. . . A se alinhar a algumas das pessoas envolvidas, até daquele que é acusado de ser o abusador. Às vezes você não se identifica com a vítima, mas daquela que acusa ou daquele que acusa ou com aquele que é acusado. Enfim. Então tem um aspecto aí emocional, inconsciente, que é muito forte, que acho que atinge a todos invariavelmente. Então eu vejo juízes muito tomados… por essas questões, e advogados e psicólogos e assistentes sociais . (Bruno – analista judiciário)

No que concerne às competências técnicas relativas a áreas da psicologia, a maior parte dos participantes mencionou temáticas inerentes à psicologia jurídica, entre elas: psicodinâmica do abuso sexual, alienação parental e falsas memórias. Duas participantes (uma analista judiciária e uma perita externa) também mencionaram psicologia do desenvolvimento. Apenas uma participante (Ana) fez referência a competências do campo da avaliação psicológica e instrumentos psicológicos. A maior parte dos entrevistados omitiu habilidades e competências inerentes ao campo da avaliação psicológica. Tais dados também refletem as lacunas na formação dos profissionais no que concerne ao campo da AP e ao manejo de métodos e técnicas para AP, conforme apontam os estudos (Borsa & Segabinazzi, 2017 ; Nunes et al., 2012 ).

O espaçamento temporal da notícia de violência até o momento da audiência e a repetição do relato da criança foram aspectos mencionados por todos os participantes desta pesquisa. Existe vasta literatura nos diversos campos de conhecimento sobre os danos que o próprio sistema de justiça poderá causar nas crianças e adolescentes vítimas, contribuindo tanto para posturas de retratação da violência (Rangel, 2011 ; Rovinski & Pelisoli, 2019 ) quanto para a criação de falsas memórias, haja vista a repetição de entrevistas com diferentes profissionais (Feix & Pergher, 2010 ; Köhnken, Manzanero, & Scott, 2015 ). A Lei nº 13.431/2017 tipifica, em seu art. 4: “IV – violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização” (Brasil, 2018 ).

Em relação aos aspectos analisados nas perícias psicológicas que envolvem suspeitas de ASI intrafamiliar, os indicadores e características investigados nas crianças dependerão da natureza do processo judicial, do espaçamento temporal, da demanda jurídica e da especificidade da vara na qual o psicólogo forense atua.

Quatro participantes (três analistas judiciários e uma perita externa) mencionaram que a transgeracionalidade é um aspecto recorrente observado nas perícias psicológicas envolvendo ASI intrafamiliar:

A gente entende que esse impacto [pausa] a primeira vítima aí é a criança ou o adolescente, mas a família também acaba sendo vitimada. A família acaba recebendo esse estigma. Muitos dos casos que eu atendi, a gente observa que a criança acabou rompendo um ciclo ali de violência que vinha ocorrendo nessa família. Uma questão transgeracional . (Helena – analista judiciária)

As narrativas das participantes aludem à carga emocional que pode permear o relato da criança nas perícias psicológicas, haja vista que a denúncia da violência poderá expor um segredo familiar que mobilizará angústias impensáveis, e não postas em palavras, por todos os membros da família. Nesse sentido, defendemos a importância do alinhamento entre intervenções judiciais e terapêuticas, visto que a revelação da violência poderá mobilizar sentimentos intensos de culpa e medo.

Compreendemos que as práticas avaliativas dos participantes são diversificadas, de modo que os indicadores mais examinados nas perícias envolvendo suspeitas de ASI variam de acordo com o local de atuação do profissional, a abordagem teórica do profissional e as limitações inerentes ao contexto laboral.

Dificuldades enfrentadas pelos psicólogos forenses

Essa categoria abrange as dificuldades enfrentadas pelos participantes nas perícias psicológicas. Discutiremos os complicadores inerentes ao contexto forense que interferem no trabalho dos participantes. Exporemos brevemente quais melhorias os participantes entendem como necessárias para o trabalho nesse contexto.

A urgência para realizar as perícias psicológicas foi o principal complicador referido por todos os participantes. Os entrevistados também mencionaram: limitações do espaço físico para atender as crianças e famílias; escassez de recursos ofertados pela instituição para atendimento de crianças e adolescentes; grande volume de trabalho; acúmulo de funções técnicas e administrativas; e impasses nas relações com operadores do direito. Tais impasses se referem ao desconhecimento dos operadores sobre os limites da ciência psicológica para atestar a ocorrência da violência sexual, além das relações hierárquicas e verticalizadas entre operadores jurídicos e as equipes técnicas.

Constatamos diferenças significativas entre os dois grupos de participantes que compõem este estudo (peritos externos e analistas judiciários com cargo de psicólogos). Compreendemos que tais diferenças se devem ao vínculo de trabalho, tendo em vista que os peritos externos não estão diretamente submetidos às relações institucionais do TJRJ. Por esse motivo, os peritos externos não acumulam funções técnicas e administrativas, pois a atuação profissional é pontual em processos judiciais encaminhados pela instituição.

O prazo, a falta de um espaço adequado. Na infância, a gente tinha um espaço que foi a gente que criou, um espaço mais lúdico. Fomos nós que pegamos, arrasta daqui, puxa dali, e eu levo um brinquedo, a assistente social leva outro, a psicóloga leva outro, e a gente foi criando. Agora na criminal eu não tenho esse espaço para a criança. Além dessa questão do prazo de 30 dias, que eu acho um absurdo, tem também a falta de instrumento. Porque quando eu entrei eu falei: Ah! Quando é que vão chegar os nossos instrumentos? “Ah, se quiser você compra” [riso melancólico] . Foi assim . (Helena – analista judiciária)

Helena faz referência à carência de condições para atender crianças e adolescentes, considerando as especificidades desse público. Nessas circunstâncias, cabe ao profissional prover recursos próprios para realizar o trabalho pericial, que abrange não apenas os materiais lúdicos utilizados para ajudar na vinculação com a criança, mas também instrumentos psicológicos para compor as entrevistas na perícia psicológica. Refletimos que, se por um lado as condições específicas de desenvolvimento são reconhecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por outro lado não são providos recursos que favoreçam a expressão das crianças no ambiente judiciário. Ponderamos a cultura adultocêntrica que permeia a instituição judiciária cuja expectativa é que a criança se manifeste majoritariamente pelo discurso, assim como os adultos. Nos casos com crianças menores (pré-escolares), a dificuldade aumenta, visto que elas estão iniciando o processo de aquisição da linguagem. Ao final da sua narrativa, Helena expõe sua frustração perante as condições oferecidas pela instituição.

No que se refere às dificuldades específicas dos analistas judiciários, além da urgência em realizar as perícias, todos os participantes analistas judiciários citaram o intenso volume de trabalho juntamente ao acúmulo de funções técnicas e administrativas, corroborando o estudo de Santos e Darós ( 2016 ).

Mas é muito desafiador, viu, Raquel? Porque é muito trabalho, e às vezes as reuniões que seriam delegadas para estudo de caso ou de temas, meio que são substituídas por pautas administrativas. Porque ainda tem esse desafio de trabalhar no judiciário, na nossa equipe a gente faz de tudo um pouco, a gente não faz só “ciência” [faz aspas com as mãos] [risos] , a gente não faz só avaliação psicológica, a gente não faz só o que é técnico, a gente faz o que é técnico e o que é administrativo porque a gente não tem um técnico administrativo, não tem um técnico judiciário, a gente não tem um estagiário, então a gente faz absolutamente de um tudo na equipe . (Rita – analista judiciária)

A gente tenta fazer esses exercícios constantes de autorreflexão. . . a gente não se deixar levar pela. . . pela pressão, né? Pela carga emocional que alguns conteúdos têm . (Felipe – analista judiciário)

Os participantes afirmaram reconhecer a relevância das discussões de equipe para os trabalhos na instituição. Todavia, para os analistas judiciários, o tempo destinado ao estudo e discussões de caso é atravessado por demandas burocráticas, administrativas e questões institucionais. Assim, ao referir “a gente não faz só ‘ciência’”, Rita, de forma chistosa, aponta a distância entre o que se concebe da cientificidade na avaliação psicológica daquilo que é possível fazer diante das limitações da prática na instituição judiciária. Nesse mesmo sentido, Felipe expõe a sobrecarga psíquica suscitada pelos conteúdos examinados nas perícias psicológicas dentro da instituição. Dessa maneira, compreende-se que esses profissionais não estão às voltas apenas com a gravidade dos casos, mas também com os entraves impostos pelo contexto laboral.

Ao tratar sobre suas práticas, os participantes fizeram alusão às questões políticas da instituição, sobretudo nas construções das normativas internas do tribunal. Ressaltamos que a pressão por produtividade e por responder a demandas complexas de forma urgente compõe a precarização de vínculos trabalhistas (Santos & Darós, 2016 ). Observamos o desgaste emocional dos participantes analistas judiciários quando foram abordadas questões específicas do contexto laboral. Constatamos afetos de indignação, frustração e animosidade com relação ao funcionamento do sistema judiciário.

Como é que você vai fazer para viabilizar que essa lei entre em ação? Igual aconteceu na infância, os prazos foram reduzidos, mas a equipe que já era reduzida continuou reduzida para dar conta de um volume absurdamente grande de demanda. E… a canetada foi dada, mas ninguém para pra fazer uma avaliação mais aprofundada, um estudo efetivo. Pra ver o que pode, o que precisa ser feito pra que a lei entre em vigor efetivamente. Só assim: não, entra em vigor a partir de tal data, e acabou! (Helena – analista judiciária)

Apesar da boa vizinhança que eu tenho com os operadores de direito, de conseguir dialogar com boa parte deles que se dispõe a dialogar também. . . É, eu tenho muita reserva em relação ao judiciário assim. Na verdade, uma certa [pausa] frustração com o aparelho judiciário. Então eu não sei. Talvez os operadores da parte do direito… sei lá, deveriam ser menos doutrinários, né? E se abrir também de uma forma mais . . . horizontal aos outros campos de conhecimento . (Bruno – analista judiciário)

Helena manifesta indignação ao tratar sobre a construção das leis e a sua efetivação. A participante exprime a idealização daquilo que é esperado da equipe técnica e o distanciamento do que realmente pode ser feito por esses profissionais, isto é, as condições oferecidas pela instituição. Cabe considerar um agravante: casos que tramitam no judiciário envolvem dinâmicas perversas que englobam gravíssimas violências em diversos níveis (físico, psicológico, social etc.), sobretudo ao envolver crianças, adolescentes e famílias.

As narrativas de Helena e Bruno abordam também os impasses na comunicação entre os psicólogos forenses e os operadores do direito. Compreendemos que a indignação de Helena também se refere à falta de escuta da própria instituição com relação às condições laborais dos profissionais. Entende-se que os analistas judiciários também estão implicados na efetivação das leis, pois, perante os usuários, esses profissionais representam o sistema judiciário, conforme observado por Bicalho ( 2016 ). Concomitantemente, Bruno admite transitar suficientemente bem com os operadores do direito, mas distingue que apenas parte deles estão dispostos ao diálogo. Apesar de Bruno mencionar êxito na criação de estratégias para dialogar na interface com o direito, o participante também coloca em palavras sua frustração perante o aparelho judiciário. A fala desses participantes vai ao encontro do que propôs Enriquez ( 1997 ) ao tratar sobre os aspectos relacionais que permeiam as instituições.

Notamos que as dificuldades nas perícias psicológicas também se relacionam ao funcionamento institucional. Sendo assim, podemos refletir que os complicadores do contexto laboral sobrepõem as dificuldades do manejo nos casos de suspeitas de abuso sexual infantil intrafamiliar. Se, por um lado, as perícias psicológicas proporcionam maior autonomia para os profissionais escolherem as ferramentas para a avaliação, por outro, o enquadre institucional parece impor limitações nessas escolhas.

No contexto do TJRJ, a instituição exige alguns requisitos básicos para cadastro como perito externo, por exemplo, curso de capacitação em perícia judicial com duração de 21 horas 1 . Entretanto, tendo em vista a complexidade dos casos e do contexto forense, ponderamos sobre os prejuízos da atuação de peritos externos insuficientemente capacitados para avaliar suspeitas de ASI intrafamiliar.

O contexto da justiça ele não tem, para o psicólogo ele não tem regulamentação com relação a procedimentos, então a forma do fazer da perícia é discricionário. Eu posso fazer observando, fazer entrevistando, eu posso fazer com instrumentos de domínio público, com testes científicos. Eu tenho autonomia de como fazer. E ainda que eu entenda, porque a resolução fala sobre isso, a avaliação psicológica é um conjunto de técnicas e testes que você pode escolher a qual método você melhor se adapta. Mas pensando isso no contexto da avaliação compulsória, eu acho um risco . (Ana – perita externa)

A participante explicita a carência de maior regulação do CFP para a atuação do psicólogo no contexto forense. Ressaltamos a inexistência de estudos que tracem o mapeamento do perfil dos peritos externos que atuam no TJRJ. Se, por um lado, é um nicho de trabalho que apresenta avanços significativos, por outro lado, parece haver desconhecimento de quais são as práticas avaliativas realizadas por peritos externos.

Por fim, refletimos os danos acarretados por uma lógica produtivista aplicada em perícias judiciais de casos complexos para suprir o baixo quantitativo de profissionais e alto volume de trabalho. Entre as mudanças enfatizadas pelos participantes estão: a oferta de recursos materiais e espaço físico, o reconhecimento das especificidades da ciência psicológica, diálogos mais horizontais entre a psicologia e o direito e a atuação mais próxima dos conselhos de psicologia para as especificidades da atuação do psicólogo em perícias judiciais.

Considerações finais

A definição de AP é ampla, conforme as resoluções técnicas do CFP preconizam. A normativa enfatiza a autonomia do profissional para escolher os procedimentos técnicos mais indicados para o contexto da avaliação. A partir das entrevistas qualitativas, observamos que parte dos participantes utiliza o termo avaliação com ressalvas, pois ainda vem associado como um meio de rotular ou restringir o sujeito avaliado a perspectivas estritamente biológicas, dentro de uma classificação nosológica. A narrativa dos participantes aponta para o entendimento da AP relacionada à extração da verdade de um sujeito para o operador jurídico. Há grande preocupação dos profissionais em realizar intervenções que promovam mudanças subjetivas dos avaliados, visando dirimir os danos causados por um processo judicial. Os participantes são enfáticos ao referir a importância da ética e da imparcialidade na avaliação, pois os casos envolvendo crimes contra crianças possuem significativa carga afetiva.

No que diz respeito à utilização de instrumentos psicológicos, nota-se desconhecimento sobre as potencialidades e os limites dessas ferramentas para a maior parte dos participantes. A cultura institucional não parece reconhecer a necessidade da utilização desses instrumentos nas perícias psicológicas, cabendo ao profissional, caso escolha utilizá-los, usar seus próprios recursos para compra do material.

Apesar de a Resolução n. 09/2018 (CFP, 2018 ) ser enfática ao abordar a autonomia do profissional na escolha dos procedimentos psicológicos para realizar a avaliação psicológica, no contexto forense, as determinações institucionais atravessam a escolha dos recursos da AP. A imposição da instituição em cobrar produtividade e desconhecer as particularidades da psicologia foram entraves referidos pela maior parte dos participantes. Com isso, as necessidades inerentes a cada caso específico acabam ficando em segundo plano, sobretudo pelo altíssimo volume de trabalho e curtos prazos judiciais. Assim, problematizamos as interferências que as demandas de produtividade poderiam causar na qualidade das avaliações.

Entendemos que são necessários mais estudos que possibilitem conhecer as práticas e a realidade desses profissionais a nível nacional. Tais estudos contribuiriam para que o CFP elaborasse normativas a fim de fornecer maiores orientações para a atuação do psicólogo no contexto forense. Enfatizamos a carência de normativas específicas para a atuação do psicólogo em perícias judiciais; em contrapartida, pesquisas evidenciam o alto índice de representações éticas de profissionais que atuam nesse campo (Borsa & Segabinazzi, 2017 ; Costa et al., 2021 ; Shine, 2009 ). Outrossim, são necessários estudos que possibilitem maior conhecimento sobre a relação dos psicólogos com os operadores jurídicos, pois há importante diferença entre o que é esperado pelos operadores jurídicos do trabalho do psicólogo e as (im)possibilidades da ciência psicológica na investigação da ocorrência de crimes.

Tendo em vista os prejuízos causados pela violência sexual em crianças e adolescentes, são urgentes estratégias que articulem diversos setores para intervirem de formas mais efetivas e protetivas para essas crianças. Indagamo-nos sobre as condições de trabalho de psicólogos forenses em outros estados brasileiros, sobretudo no interior do país. São necessárias novas pesquisas que possibilitem o conhecimento da realidade laboral desses profissionais a fim de possibilitar projetos que articulem as intervenções judiciais com as terapêuticas, especialmente nos casos de violência intrafamiliar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2023
  • Aceito
    12 Set 2023
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