Resumo
Objetivo
Compreender as experiências e as práticas alimentares a partir do diagnóstico de câncer. Método: Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, do tipo metassíntese qualitativa. Utilizou-se a diretriz ENTREQ como protocolo, tendo como pergunta norteadora: “Quais são as experiências e as práticas alimentares de indivíduos após o diagnóstico de câncer?”. A busca foi realizada nas bases de dados Lilacs, Pubmed, Embase e Food Science and Techonology, a partir da combinação de palavras-chave relacionadas à alimentação e nutrição, ao adoecimento por câncer e à pesquisa qualitativa, publicados entre 2015 e 2020, em português, inglês e espanhol.
Método
Foram encontrados 414 artigos e excluídos 396, após leitura dos títulos e resumos. Além dos 18 artigos potenciais, foram incluídos cinco artigos de outras fontes, totalizando 23. Foram identificadas três categorias empíricas: ruptura da trajetória alimentar e estratégias de adaptação; reconstrução da identidade; e vicissitudes da comensalidade.
Conclusões
As perdas relacionadas à alimentação impactam na existencialidade do ser, na expressão da identidade e nas relações sociais, podendo levar ao isolamento e a desritualização da alimentação. As mudanças físicas podem levar a distúrbios de imagem corporal e sofrimento psíquico. Em decorrência dos sintomas de impacto nutricional, a família é o suporte emocional para reorganização da alimentação.
Palavras-Chave:
Alimentação; Câncer; Sobrevivência; Comensalidade; Metassíntese
Abstract
Objective
To understand the experiences and eating practices from the diagnosis of cancer.
Method
This is a bibliographic research, of the qualitative meta-synthesis type, using the ENTREQ guideline as a protocol, with the guiding question: “What are the experiences and eating practices of individuals after being diagnosed with cancer?”. The search was carried out in the Lilacs, Pubmed, Embase and Food Science and Techonology databases based on the combination of keywords related to food and nutrition, illness from cancer and qualitative research, published between 2015 and 2020, in Portuguese, English and Spanish.
Results
414 articles were found and 396 were excluded after reading the titles and abstracts. In addition to the 18 potential articles, 5 articles from other sources were included, totaling 23. Three empirical categories were identified: disruption of the food trajectory and adaptation strategies; reconstruction of identity; and vicissitudes of commensality.
Conclusions
Losses related to food impact the existentiality of being, the expression of identity and social relationships, which can lead to the isolation and de-ritualization of food. Physical changes can lead to body image disorders and psychological distress. Due to the symptoms of nutritional impact, the family is the emotional support for the reorganization of food.
Keywords:
Feeding; Cancer; Survival; Commensality; Meta-synthesis
Introdução
O campo científico da Nutrição discute, majoritariamente, os aspectos nutricionais e sanitários dos alimentos, com foco nos seus processos fisiológicos e patológicos (PACHECO, 2008PACHECO, S. S. M. O hábito alimentar enquanto um comportamento culturalmente produzido. In: FREITAS, M.C.S.; FONTES, G.A.V.; OLIVEIRA, N. (Org.). Escritas e narrativas sobre alimentação e cultura. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 217-238.). A presença de desnutrição nos pacientes com câncer e sua compreensão a partir das alterações metabólicas da doença e dos efeitos das diversas modalidades de tratamento já são bem descritas na literatura, com diversas recomendações para sua identificação e manejo por meio de intervenções nutricionais (HORIE et al., 2019HORIE, L.M. et al. Diretriz BRASPEN de terapia nutricional no paciente com câncer, BRASPEN J, Vol. 34 (Supl 1), p. 2-32. 2019.; ARENDS et al., 2017ARENDS, J. et al. ESPEN expert group recommendations for action against cancer-related malnutrition. Clinical Nutrition, v. 36, p.1187 - 1196. 2017.).
Além dos mecanismos fisiológicos, alguns estudos ampliam essa descrição para os impactos dos fatores sociais e o olhar pela perspectiva socioantropológica sobre a desnutrição do paciente com câncer (FONTAS, 2014FONTAS M. et al. Perspective socio-anthropologique de la prise en charge de la dénutrition du malade cancéreux [Socio-anthropological perspective of the under nutrition care of cancer patients]. Bull Cancer, v. 101, n. 3, p. 258-65, Mar 2014. French. doi: 10.1684/bdc.2014.1905.; LOCHER et al., 2009). Sob essa ótica, se faz necessário elucidar alguns conceitos e compreensões relacionados à alimentação e nutrição incorporados neste trabalho.
A alimentação deve ser compreendida como um ato cultural, simbólico e psicológico que, portanto, engloba os domínios do comportamento, da cultura, da sociedade e da experiência (BARCELLOS, 2017BARCELLOS, G. O banquete da psique: Imaginação, cultura e psicologia da alimentação. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. 179p.; CROTTY, 1993CROTTY, P. The value of qualitative research in Nutrition. Annual Review of Health Social Science, v.3, n.1, p. 109 – 118. 1993.). O ato alimentar está relacionado à identidade social do indivíduo e possui um significado que deve ser compreendido pelo profissional por meio de uma abordagem humanista (FREITAS et al., 2008FREITAS, M.C.S. et al. Uma leitura humanista da nutrição. In: FREITAS, M.C.S., FONTES, G.A.V., OLIVEIRA, N. [orgs]. Escritas e narrativas sobre alimentação e cultura [on-line]. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 207-215. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/9q/12>. Acesso em 19/08/2020.).
Nas relações humanas, o alimento é transformado em comida, por meio da culinária, momento em que ele se desloca do plano da natureza para adentrar o plano da cultura (WOORTMANN, 2013WOORTMANN, E.F. A Comida como Linguagem. Habitus, v. 11, n. 1, p. 5-17. 2013. doi: http://dx.doi.org/10.18224/hab.v11.1.2013.5-17). A comida, portanto, é transformada e diferenciada culturalmente, sendo um reflexo da estrutura social de um grupo, recriadora de uma identidade de origem, além de um meio para manifestação de emoções, significados e identidade (LEONEL; MENASCHE, 2017; MINTZ, 2001MINTZ, S.W. Comida e antropologia: uma breve revisão. RBCS, v. 16, n.47, p.31-41. 2001.).
Comer ou o ato de comer ultrapassa a função de nutrir para sobreviver. Funciona como indicador de status, classe social, lazer e sociabilidade; essa última, por intermédio da refeição, ato social que consiste na reunião de indivíduos para compartilhar a alimentação, permitindo o exercício da comensalidade (LEONEL; MENASCHE, 2017). A comensalidade tem a ver com a natureza social do comer e da alimentação. As escolhas e os hábitos alimentares são partes da totalidade cultural (CONTRERAS; GRACIA, 2011; WOORTMANN, 2013WOORTMANN, E.F. A Comida como Linguagem. Habitus, v. 11, n. 1, p. 5-17. 2013. doi: http://dx.doi.org/10.18224/hab.v11.1.2013.5-17). Assim, comer é um comportamento simbólico e cultural, tanto no aspecto fisiológico como no espiritual e na memória afetiva (CONTRERAS; GRACIA, 2011).
A alimentação é um direito humano capaz de potencializar e construir o ser humano em suas diversas dimensões, sejam elas orgânicas, psicológicas, intelectuais e espirituais. O ato alimentar é um componente histórico e dinâmico, que acompanha ritos de passagem, assume sentidos e está envolto em um complexo processo social, econômico, político e ecológico (LEONEL; MENASCHE, 2017LEONEL, A. et al. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação – Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 3-13. 2017. Disponível em: http://www3.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistacontextos/wp-content/uploads/2017/07/contextos-v5n2.pdf. Acesso em: 18 out. 2020.; CARVALHO; LUZ; PRADO, 2011CARVALHO, M.C.V.S.; LUZ, M.T.; PRADO, S.D. Comer, alimentar e nutrir: categorias analíticas instrumentais no campo da pesquisa científica. Ciência & Saúde Coletiva, v.16, n. 1, p.155-163. 2011.).
Além dessa necessidade de se ampliar o olhar sobre o fenômeno da alimentação, a compreensão sobre a sobrevivência ao câncer também carece de um olhar sob a perspectiva socioantropológica. Nessa frente, os primeiros estudos foram realizados por Fitzhugh Mullan, na década de 1980. O autor propõe a compreensão desse fenômeno para além dos desfechos de vida ou morte, aprofundando essa experiência como uma longa jornada, abrangendo além dos impactos clínicos da doença e tratamento, os impactos emocionais e sociais ao longo de todo um processo, que se inicia no diagnóstico e ocorre até o final da vida (MULLAN, 1985MULLAN, F. Seasons of survival: Reflections of a physician with cancer. New England Journal of Medicine, v. 313, n.4, p. 270-273. 1985. doi: 10.1056/NEJM198507253130421.). Trata-se de um processo dinâmico que envolve incertezas. Em termos individuais, compreende uma experiência de mudanças, com aspectos positivos e negativos que podem afetar toda a vida do indivíduo e sua família. Ao longo do tempo, a definição de sobrevivente ao câncer foi ampliada, passando a considerar cuidadores e familiares (HEBDON; FOLI; MCCOMB, 2015HEBDON, Megan; FOLI, K; MCCOMB, S. Survivor in the cancer context: a concept analysis. Journal of Advanced Nursing, [S.L.], v. 71, n. 8, p. 1774-1786, 5 mar. 2015. Wiley. http://dx.doi.org/10.1111/jan.12646.).
A partir dessa compressão a respeito da sobrevivência ao câncer, é possível refletir sobre os processos que envolvem a alimentação durante toda a trajetória da doença, dando a devida atenção aos processos emocionais e sociais envolvidos no ato alimentar de indivíduos sobreviventes do câncer. Para tanto, se faz necessário o desenvolvimento de estudos sobre a área da alimentação que ultrapassem a dimensão biofisiopatológica e alcance todas as fases da sobrevivência.
Os estudos qualitativos na área de oncologia, por focarem na compreensão das experiências dos pacientes sob diversas vertentes interpretativas (KERR et al., 2018), possibilitam a interpretação das relações, crenças, percepções e opiniões que os seres humanos tecem a respeito de como pensam, sentem e vivem (MINAYO, 2014MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (SP): Hucitec, 2014. 393p.), sendo indicados para o alcance dessa dimensão mais ampla do viver. Por meio de narrativas, é possível acessar os domínios socioculturais relacionados à alimentação, permitindo compreender como as escolhas alimentares estão incorporadas dentro das práticas culturais (GREENHALGH, 2016GREENHALGH, T. Cultural contexts of health: the use of narrative research in the health sector. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe, 2016. (Health Evidence Network Synthesis Report, n. 49). Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK391071).
Além das pesquisas qualitativas primárias, as metassínteses qualitativas também possuem essa capacidade, ampliando o alcance das pesquisas originais. Há um aumento do interesse por sínteses qualitativas, devido ao reconhecimento da necessidade de acrescentar evidências sobre as percepções dos envolvidos (SOUSA; WAINWRIGHT; SOARES, 2019SOUSA, M.S.A.; WAINWRIGHT, M.; SOARES, C.B. Sínteses de Evidências Qualitativas: guia introdutório. Bol. Inst. Saúde, v.20, n. 2, p. 7-22. 2019.).
Diante do exposto, este trabalho tem como objetivo compreender, por meio de uma metassíntese qualitativa, as experiências e as práticas alimentares após o diagnóstico de câncer.
Método
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, do tipo metassíntese qualitativa. Esses estudos visam realizar sínteses de múltiplos estudos qualitativos, reunir dados de diferentes contextos, gerar novos modelos teóricos ou conceituais, identificar lacunas de pesquisa e fornecer evidências para o desenvolvimento, implementação e avaliação de intervenções em saúde (SOUSA; WAINWRIGHT; SOARES, 2019SOUSA, M.S.A.; WAINWRIGHT, M.; SOARES, C.B. Sínteses de Evidências Qualitativas: guia introdutório. Bol. Inst. Saúde, v.20, n. 2, p. 7-22. 2019.).
Para realização do protocolo de buscas e redação desta metassíntese, utilizou-se a diretriz ENTREQ (TONG et al., 2012TONG, A. et al. Enhancing transparency in reporting the synthesis of qualitative research: ENTREQ. BMC Med Res Methodol., v. 12, n. 181, p. 1-8. 2012. doi: 10.1186/1471-2288-12-181.), estabelecendo-se como pergunta norteadora “Quais são as experiências e as práticas alimentares de indivíduos após o diagnóstico de câncer?”
Realizou-se uma busca nas bases de dados Lilacs, Pubmed, Embase e Food Science and Techonology a partir da combinação de palavras-chave relacionadas à alimentação e nutrição (diet, food, nutrition, feeding e feeding behavior), ao adoecimento por câncer (neoplasm, cancer, malignant, tumor e oncology) e à pesquisa qualitativa (qualitative research, qualitative contente analysis, personal narrative e narrative medicine).
Os critérios de inclusão para seleção dos artigos foram: artigos originais empíricos, com abordagem qualitativa ou mista, que tratassem das experiências de pacientes adultos ou idosos com câncer e/ou cuidadores desses pacientes acerca da alimentação, publicados nos últimos 5 anos e nos idiomas português, inglês e espanhol. Além dessa seleção, foram incluídos artigos provenientes do número especial da revista Anthropology of Food (v. 12, 2017), por não estarem nas bases de dados pesquisadas, mas terem grande relevância para análise da temática.
Para organização dos achados, foi utilizado o gerenciador de referências Zotero®. Dois revisores avaliaram os artigos de forma independente e a seleção final foi baseada em consenso. Todos os artigos que cumpriram com os critérios determinados foram incluídos.
Os dados compilados para a análise temática foram organizados no Microsoft Excel®. Após codificação e comparação entre os estudos, os temas centrais empíricos emergentes foram analisados em forma de categorias, conforme as orientações preconizadas (GREENHALGH, 2016GREENHALGH, T. Cultural contexts of health: the use of narrative research in the health sector. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe, 2016. (Health Evidence Network Synthesis Report, n. 49). Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK391071). Quatro revisores avaliaram de forma independente as categorias em termos do seu respectivo escopo e definição. As discordâncias foram solucionadas por consenso. Os principais referenciais teóricos que apoiaram essa análise foram obras que discutem a alimentação sob a perspectiva das ciências sociais (VIANA et al., 2020VIANA, M. R. et al. Comida, filosofia e ciência: existencialidade da comida e racionalidade nutricional. In: BARCELLOS, D. M. N. et al. (orgs.). Consumos alimentares em cenários urbanos - múltiplos olhares. Rio de Janeiro: EdUERJ; Gramma, 2020. p. 288-298.; GREENHALGH, 2016GREENHALGH, T. Cultural contexts of health: the use of narrative research in the health sector. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe, 2016. (Health Evidence Network Synthesis Report, n. 49). Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK391071; LIMA; NETO; FARIAS, 2015LIMA, R.S.; NETO, J.A.F.; FARIAS, R.C.P. Alimentação, comida e cultura: o exercício da comensalidade. Demetra, v. 10, n. 3, p. 507-522. 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/demetra/article/viewFile/16072/13748. Acesso em 05 out. 2020.; FONTAS, 2014; WOORTMANN, 2013WOORTMANN, E.F. A Comida como Linguagem. Habitus, v. 11, n. 1, p. 5-17. 2013. doi: http://dx.doi.org/10.18224/hab.v11.1.2013.5-17; CONTRERAS; GARCIA, 2011CONTRERAS, J.; GARCIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2011. 496p.; BARCELLOS, 2017BARCELLOS, G. O banquete da psique: Imaginação, cultura e psicologia da alimentação. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. 179p.; HUBERT, 2001HUBERT, A., Alimentation et Santé : la Science et l’imaginaire. Anthropology of Food, [S.I] v.0, 2001. OpenEdition. https://doi.org/10.4000/aof.1108).
Por se tratar de uma revisão de literatura, não houve necessidade de submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, conforme prevê a Resolução CNS 466/12.
Resultados e Discussão
O processo de busca resultou em 414 artigos, sendo 43 duplicados e excluídos. Após leitura de título e resumo, foram selecionados 18 artigos potenciais para a pesquisa. Além desses, cinco artigos provenientes de outras fontes (dois da revista Anthropology of Food (v. 12, 2017) e três oriundos das referências dos artigos dessa revista) foram incluídos, conforme descrito anteriormente. Todos os 23 artigos foram considerados elegíveis após leitura integral do texto e foram incluídos nesta metassíntese, de acordo com fluxograma apresentado pela Figura 1.
Fluxograma de inclusão e exclusão dos artigos, adaptado de acordo com o PRISMA Flow Diagram (MOHER et al., 2009)
Observou-se que a maioria dos estudos tiveram como participantes pessoas com câncer de cabeça e pescoço (cinco artigos) e em estágio avançado ou em cuidados paliativos (oito artigos). A maioria dos estudos foi desenvolvida no Reino Unido (cinco artigos). O Quadro 1 descreve as principais características dos artigos analisados.
A partir dos resultados dos estudos analisados, identificou-se três categorias empíricas: (1) Ruptura da trajetória alimentar e estratégias de adaptação, (2) Reconstrução da identidade, (3) Vicissitudes da comensalidade.
Ruptura da trajetória alimentar e estratégias de adaptação
Ao se deparar com um diagnóstico de câncer, sobreviventes tendem a experienciar um processo de ruptura de sua trajetória alimentar, atribuindo novos sentidos à alimentação e criando diferentes estratégias de adaptação. Essa ruptura surge a partir da perspectiva do câncer como uma doença que ameaça a vida, ameaçando, portanto, a trajetória biográfica e a autoidentidade do indivíduo (KERR et al., 2018KERR, A. et al. The sociology of cancer: a decade of research. Sociology of Health & Illness, v. 40, n.3, p. 552–576. 2018.).
Fontas (2017), em seu trabalho com pacientes com câncer de pulmão, utiliza a noção de trajetória alimentar de Jean-Pierre Corbeau (CORBEAU, 2007CORBEAU, J. P. Trajectoires sociales de pathologies alimentaires. In: BOËTSCH, G.; HERVÉ, C.; ROZENBER, J. J. Corps normalisé, corps stigmatisé, corps racialisé. Bruxelles: De Boeck, 2007. p. 249-271.) para designar o peso dos eventos biográficos nas práticas e comportamentos alimentares dos indivíduos. A autora identificou quatro tipos de rupturas relacionadas à trajetória alimentar: a ruptura voluntária, onde ocorre uma seletividade alimentar, na qual os pacientes optam pelo consumo de alimentos considerados “antipromotores” do câncer; a ruptura cirúrgica, que ocorre após a realização do tratamento cirúrgico; a ruptura quimioterápica, que ocorre após a administração da primeira dose de quimioterapia, momento de desenvolvimento de náuseas e vômitos e, a ruptura quimioterápica reforçada, caracterizada pelo aumento progressivo das situações de desconforto por um período de aproximadamente duas semanas após a quimioterapia.
De acordo com Hubert (2001), a absorção de alimentos não depende simplesmente das suas qualidades nutricionais, mas de todos os atributos que a imaginação coletiva é capaz de lhe conferir. Além disso, a autora destaca o aspecto fundamental da relação entre o ser humano e o alimento por meio da sua dimensão simbólica e imaginária.
Em estudo com pacientes com câncer avançado sob cuidados paliativos exclusivos no Brasil e em Portugal, identificou-se que os sentidos e significados da alimentação estão associados à vida. A interrupção da dieta em decorrência da doença indica para os pacientes e familiares uma aproximação com a morte (COSTA; SOARES, 2016COSTA, M.F.; SOARES, J.C. Alimentar e Nutrir: Sentidos e Significados em Cuidados Paliativos Oncológicos. Rev. Bras. Cancerol., v. 62, n. 33, p. 215-24. 2016. doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2016v62n3.163). De forma similar, em mulheres com câncer de ovário e obstrução intestinal maligna recebendo nutrição parenteral, a nova via alimentar é vista como uma possibilidade de vida, como um meio de manter-se com disposição recebendo os nutrientes necessários para a sobrevivência (SOWERBUTTS et al., 2019).
Nesse sentido, comer assume o significado de acesso a uma fonte de energia para permanecer vivo, se tornando obrigação, na esperança de impedir a perda de peso e a morte. Comer, então, pode se tornar uma tarefa sem prazer ou apetite, numa luta pela sobrevivência (STRASSER et al., 2007STRASSER, F. et al. Fighting a losing battle: eating-related distress of men with advanced cancer and their female partners. A mixed-methods study. Palliative Medicine, v. 21, p. 129-137. 2007.).
As estratégias de adaptação alimentar dizem respeito a todos os meios implementados pelos pacientes e seus familiares para possibilitar a alimentação após o diagnóstico de câncer até o término do tratamento. Pacientes com câncer de pulmão em tratamento quimioterápico com compostos de platina frequentemente apresentam sintomas como náuseas, vômitos e distúrbios sensoriais, o que impulsiona uma reorganização com os alimentos. Esses pacientes encontraram estratégias de cunho organizacional, referentes as tarefas domésticas relacionadas à alimentação e ao contexto das refeições; estratégias nutricionais, referentes ao consumo de determinados alimentos para evitar a perda de peso e, estratégias de adaptação sensorial, referentes ao manejo da disgeusia (FONTAS, 2017FONTAS, M. Manger après le diagnostic d’un cancer. Anthropology of Food, [S.I] v.12, 2017. OpenEdition. https://doi.org/10.4000/aof.8244).
A disgeusia, caracterizada pela alteração do paladar, é um sintoma de impacto nutricional que acomete pacientes com os mais diversos diagnósticos e fases da sobrevivência, variando seu grau de incômodo (BOMBEN et al., 2019; KRISTENSEN et al., 2019; SANDMAEL et al., 2019; BELQAID et al., 2018BELQAID K, et al. Dealing with taste and smell alterations-A qualitative interview study of people treated for lung cancer. PLoS One, [S.L], v.13, n. 1. 23 jan. 2018. doi: e0191117. doi: 10.1371/journal.pone.0191117.; VANCE et al., 2017; BURDEN et al., 2016BURDEN, S. T. et al. An exploration of food and the lived experience of individuals after treatment for colorectal cancer using a phenomenological approach. Journal Of Human Nutrition And Dietetics, [S.L.], v. 29, n. 2, p. 137-145, 26 jan. 2015. Wiley. http://dx.doi.org/10.1111/jhn.12291.; DE VRIES et al., 2016VRIES, Y. C. et al. The impact of chemosensory and food-related changes in patients with advanced oesophagogastric cancer treated with capecitabine and oxaliplatin: a qualitative study. Support Care in Cancer, v.27, n.4, p. 3119-3126. 2016. doi: 10.1007/s00520-016-3128-z.; HOPKINSON, 2016HOPKINSON, J.B. Food connections: a qualitative exploratory study of weight- and eating-related distress in families affected by advanced cancer. European Journal of Oncology Nursing, [S.L.], v. 20, p. 87-96, fev. 2016. Elsevier BV. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejon.2015.06.002.; KWOK; PALERMO; BOLTONG, 2015). Nos casos de maior sofrimento, o indivíduo se questiona sobre a decisão de ter iniciado o tratamento, caso soubesse dos distúrbios quimiossensórios que o acometeriam (DE VRIES et al., 2016).
Mudanças nas preferências alimentares também foram mencionadas, em um processo de redescoberta alimentar, com a necessidade de preparações com sabores mais ou menos intensos, levando a adição ou exclusão de condimentos, sal e açúcar em uma tentativa de compensar as mudanças quimiossensórias. Tais mudanças são um desafio para os(as) parceiros(as) e para a família dos pacientes, que tiveram de levar em consideração as preferências alimentares alteradas durante as compras e o preparo das refeições, exigindo uma adaptação de caráter organizacional (DE VRIES et al., 2016).
Em pacientes com câncer de cabeça e pescoço, os novos sentidos atribuídos à alimentação durante o tratamento oncológico estão relacionados às perdas adquiridas ao longo do caminho, sejam elas psicológicas, físicas ou emocionais relacionadas ao ato alimentar (JUÁREZ; GARCÍA; CIPRIANO-CRESPO, 2017). Além de disgeusia, é comum a presença de dor, náusea, sialorreia, alterações do olfato, disfagia e xerostomia (SANDMAEL et al., 2019; ALBERDA et al., 2017ALBERDA, C. et al. Nutrition Care in Patients with Head and Neck or Esophageal Cancer: the patient perspective. Nutrition In Clinical Practice, [S.L.], v. 32, n. 5, p. 664-674, 25 ago. 2017. Wiley. http://dx.doi.org/10.1177/0884533617725050.). Para esses pacientes, as modificações alimentares se iniciam com a alteração da consistência dos alimentos e uso de suplementos alimentares, com posterior incapacidade total de deglutição e colocação de sonda alimentar. Ao refletir sobre o curso do tratamento, os participantes questionaram sua capacidade de absorver as informações pré-tratamento sobre os efeitos colaterais relacionadas à alimentação e nutrição (SANDMAEL et al., 2019).
De acordo com Barcellos (2017), o trato oral é uma complexa máquina de sentir, na qual, a partir das papilas, glândulas salivares, sensores e toda estrutura fisiológica, é possível ser capaz de diversas ações como mastigar, lamber, degustar, deglutir e saborear. É na boca que somos capazes de sentir a comida: consistências, texturas e sabores. Para o autor, “com o gosto capturamos e incorporamos a alma do que está ali em contato conosco” (p. 41). Assim, indivíduos com câncer que apresentam disgeusia e disfagia deixam de passar pela fase oral do ato alimentar, perdendo a capacidade de experienciar todas as sensações envolvidas por meio da boca. Como afirmam Contreras e Garcia (2011), o alimento possui uma presença essencialmente física e os sentidos humanos são o meio de interação entre o indivíduo e a comida.
Em pacientes com câncer colorretal em uso de estoma, descobrir a melhor forma de seu manejo requer adaptação por meio de modificação dietética, principalmente no que diz respeito a ingestão de fibras, café e alimentos picantes. Além de aprender com as experiências de outros pacientes e buscar por informações, um meio de adaptação foi desenvolvido em um processo de tentativa e erro (BURDEN et al., 2016).
Pacientes com câncer de ovário em uso de nutrição parenteral também experienciam a sensação de perda. Embora conscientes da função nutricional da nova via alimentar, apresentam perda emocional, visto que a ingestão alimentar via oral é associada à normalidade (SOWERBUTTS et al., 2020).
Tanto para os pacientes com câncer de cabeça e pescoço, como para as mulheres com câncer de ovário, uma das estratégias utilizadas para lidar com a perda foi fantasiar sobre as comidas que eles não eram mais capazes de comer (SOWERBUTTS et al., 2020; MCQUESTION; FITCH; HOWELL, 2011MCQUESTION, M.; FITCH, M.; HOWELL, D. The changed meaning of food: Physical, social and emotional loss for patients having received radiation treatment for head and neck cancer. European Journal of Oncology Nursing, v. 15, n. 2, p. 145-151. 2011.), corroborando com Hubert (2001), que destaca o quanto os seres humanos precisam da imaginação para seu bem-estar físico e psicológico.
A perda do prazer em comer atinge pacientes com diversos tipos de câncer e em diferentes fases da sobrevivência. Como consequência, comer se torna uma prática diária, uma obrigação que exige treinamento; nesse sentido, observa-se uma perda dos aspectos culturais relacionados a satisfação em alimentar-se, com a comida assumindo o papel de alimento, sendo utilizada exclusivamente para o fornecimento de nutrientes (BOMBEN et al., 2019; KRISTENSEN et al., 2019; ALBERDA et al., 2017; DE VRIES et al., 2016; HOPKINSON, 2016HOPKINSON, J.B. Food connections: a qualitative exploratory study of weight- and eating-related distress in families affected by advanced cancer. European Journal of Oncology Nursing, [S.L.], v. 20, p. 87-96, fev. 2016. Elsevier BV. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejon.2015.06.002.).
Reconstrução da identidade
O diagnóstico de câncer limita a existência diária do ser, fazendo com que o sobrevivente faça uma reavaliação do seu futuro, criando um senso de liminaridade em alguns pacientes (KERR et al., 2018KERR, A. et al. The sociology of cancer: a decade of research. Sociology of Health & Illness, v. 40, n.3, p. 552–576. 2018.). Partindo do exposto por VIANA et al. (2020)VIANA, M. R. et al. Comida, filosofia e ciência: existencialidade da comida e racionalidade nutricional. In: BARCELLOS, D. M. N. et al. (orgs.). Consumos alimentares em cenários urbanos - múltiplos olhares. Rio de Janeiro: EdUERJ; Gramma, 2020. p. 288-298. sobre o papel da comida no esboço existencial do ser, em que comer é um momento ou uma expressão dessa existencialidade, a ausência do prazer em comer e a impossibilidade em alimentar-se nas quais pacientes com câncer são acometidos leva a uma ruptura nesse processo, anulando as possibilidades do existir que ocorrem por meio da alimentação.
As rupturas da trajetória alimentar, discutidas anteriormente, contribuem para um processo de reconstrução da identidade, haja vista que comer não é uma atividade unicamente biológica, mas um fenômeno social e cultural no qual, além da ingestão de substâncias bioquímicas e macronutrientes, há a incorporação das propriedades morais e comportamentais do alimento, tornando esse processo configurador de nossa identidade cultural e individual (CONTRERAS; GARCIA, 2011CONTRERAS, J.; GARCIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2011. 496p.).
O ser humano possui a necessidade de pensar sua alimentação, traduzindo-se nas noções de ordem e organização (CONTRERAS; GARCIA, 2011CONTRERAS, J.; GARCIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2011. 496p.). Uma das maneiras de manter o controle de sua própria vida é por meio do controle da dieta, sendo o consumo alimentar um exercício de controle do corpo, da mente e da sua própria identidade (LOCHER et al., 2009).
Para algumas mulheres sobreviventes de câncer endometrial na fase pós-tratamento, muitos são os fatores relacionados ao desenvolvimento do câncer que são impossíveis de controlar, exceto a alimentação, que assume uma forma de controle individual por meio da adoção de uma rotina alimentar considerada por elas como saudável (KOUTOUKIDIS et al., 2016). Nesse sentido, a alimentação enquanto meio de controle para a prevenção do desenvolvimento de um novo câncer parte de uma noção de racionalidade pautada no paradigma mecanicista e tecnicista de prevenção e combate de doenças (KRAEMER et al., 2014KRAEMER, F.B. et al. O discurso sobre a alimentação saudável como estratégia de biopoder. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, Vol.24, n.4, p. 1337-1359. 2014.).
Para alguns sobreviventes do câncer de cabeça e pescoço com disfagia progressiva, a indicação do uso de sonda alimentar para a nutrição representou uma transição de “pessoa” para “paciente”. Isso ocorreu de forma mais significativa do que o próprio diagnóstico de câncer e o início do tratamento radioterápico, mostrando a influência da alimentação na construção e manutenção da identidade do ser (SANDMAEL et al., 2019).
Para Contreras e Garcia (2011) o sentido da comida para o indivíduo é ambivalente, sendo fonte de imenso prazer e sofrimento. Como Juárez, García e Cipriano-Crespo (2017) mostram em seu trabalho, pacientes com câncer de laringe em uso de nutrição enteral experienciam uma fome cultural, já que essas novas maneiras de “não comer” alimentam o corpo do ponto de vista nutricional, mas fornecem pouco para ajudar a saciar essa fome que a comida satisfaz.
Essa reconstrução da identidade se relaciona, também, com as alterações de autoimagem dos sobreviventes do câncer, resultantes da perda de peso e demais mudanças físicas decorrentes da doença e do tratamento. A aparência do corpo, incluindo as formas de utilizá-lo, é um dos principais marcadores de como os outros nos veem e como enxergamos o outro (LOCHER et al., 2009). Nos estudos com a população oncológica, alguns termos aparecem como substitutos do conceito de distúrbio de imagem corporal, como: angústia, perturbações, preocupações, dificuldades e insatisfação com a imagem corporal (RHOTEN, 2016RHOTEN, B.A. Body image disturbance in adults treated for cancer - a concept analysis. J Adv Nurs., v. 72, n.5, p. 1001-1011. 2016. doi: 10.1111/jan.12892.). Independente dessas várias terminologias, existem três atributos-chaves em sua definição (RHOTEN, 2016RHOTEN, B.A. Body image disturbance in adults treated for cancer - a concept analysis. J Adv Nurs., v. 72, n.5, p. 1001-1011. 2016. doi: 10.1111/jan.12892.).
O primeiro diz respeito a experiência da autopercepção de uma mudança desagradável na aparência após o diagnóstico ou tratamento do câncer. Tal mudança pode ser imperceptível para os outros, mas o sobrevivente a vivencia de forma drástica. Qualquer modalidade de tratamento que tenha como consequência uma imagem desfigurada, tem sido associada com maiores níveis de distúrbios de imagem corporal nessa população (RHOTEN, 2016RHOTEN, B.A. Body image disturbance in adults treated for cancer - a concept analysis. J Adv Nurs., v. 72, n.5, p. 1001-1011. 2016. doi: 10.1111/jan.12892.). A perda da percepção de si leva a sentimentos como o aumento da motivação, mas também de desespero e choque. Em um estudo com pacientes com câncer colorretal, identificou-se que a comparação que os pacientes faziam com seu antigo “eu” serviu de referência para a alteração da autoimagem e os entrevistados muitas vezes recorreram ao passado e quiseram revelar o que faziam ou como eram antes das mudanças (BURDEN et al., 2016).
O segundo atributo diz respeito a experiência do declínio da função física ou social após o diagnóstico e tratamento do câncer, alterando a percepção de si. Esse tipo de distúrbio de imagem corporal está associado às dificuldades em falar e comer, bem como com a realização de gastrectomia total (RHOTEN, 2016RHOTEN, B.A. Body image disturbance in adults treated for cancer - a concept analysis. J Adv Nurs., v. 72, n.5, p. 1001-1011. 2016. doi: 10.1111/jan.12892.). Carrillo e Santamaria (2018) em seu estudo com sobreviventes submetidos à gastrectomia, identificaram que as mudanças na aparência decorrentes da perda de peso levaram esses indivíduos à sensação de estarem habitando um “corpo estranho”, pertencente a outra pessoa, não a si mesmo (CARRILLO; SANTAMARIA, 2018). Já para pacientes com câncer de cabeça e pescoço, as mudanças trazem a sensação de que a boca, antes conhecida, já não seja mais sua boca, por meio da qual ocorria a fala, a respiração e a demonstração de afeto, fazendo com que esses indivíduos questionem a sua própria noção de si. Isso leva a um processo de reconstrução do “eu” (JUÁREZ; GARCÍA; CIPRIANO-CRESPO, 2017).
O terceiro atributo diz respeito ao sofrimento psicológico que pode se manifestar com a percepção da inabilidade de cooperar efetivamente, por meio da mudança no estado emocional, desconforto, comunicação do desconforto e danos. Mas nem todo indivíduo com distúrbio de imagem corporal vive o sofrimento psicológico de modo contínuo, já que este sofre influências do suporte social, local e reações de outros indivíduos às mudanças corporais (RHOTEN, 2016RHOTEN, B.A. Body image disturbance in adults treated for cancer - a concept analysis. J Adv Nurs., v. 72, n.5, p. 1001-1011. 2016. doi: 10.1111/jan.12892.). Pacientes com câncer avançado sofrem de perda de peso não intencional, que é um símbolo de fraqueza final progressiva, com consequente enfraquecimento físico e por fim, morte. É causa de emoções negativas, como raiva, medo e vergonha, levando à angústia e sofrimento existencial com consequente ruptura nos padrões de conexão física com o outro (STRASSER et al., 2007; HOPKINSON, 2016HOPKINSON, J.B. Food connections: a qualitative exploratory study of weight- and eating-related distress in families affected by advanced cancer. European Journal of Oncology Nursing, [S.L.], v. 20, p. 87-96, fev. 2016. Elsevier BV. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejon.2015.06.002.).
Conforme verificado, o distúrbio de imagem corporal é multidimensional, ultrapassando a insatisfação corporal decorrente de mudanças físicas associadas ao tratamento. Seus sintomas associados em sobreviventes do câncer incluem depressão, ansiedade e isolamento social (RHOTEN, 2016RHOTEN, B.A. Body image disturbance in adults treated for cancer - a concept analysis. J Adv Nurs., v. 72, n.5, p. 1001-1011. 2016. doi: 10.1111/jan.12892.). Assim, a ruptura da trajetória alimentar acaba expandindo o papel do alimento, onde todas as experiências diárias decorrentes dele são fundamentais no processo de interação que define a identidade desses indivíduos. Além disso, as mudanças físicas relacionadas ao peso e a alimentação são capazes de causar rupturas de conexões físicas, emocionais e sociais. Essa ruptura da conectividade mediada pela comida causa ansiedade e leva ao distress, ao sofrimento relacionado ao ato alimentar, que atinge não somente o paciente, mas também o(a) parceiro(a), ocasionando uma ruptura no relacionamento com o outro (HOPKINSON, 2016HOPKINSON, J.B. Food connections: a qualitative exploratory study of weight- and eating-related distress in families affected by advanced cancer. European Journal of Oncology Nursing, [S.L.], v. 20, p. 87-96, fev. 2016. Elsevier BV. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejon.2015.06.002.).
Vicissitudes da comensalidade
O ato de alimentar se inicia com a obtenção da comida e finaliza no seu consumo (CONTRERAS; GARCIA, 2011CONTRERAS, J.; GARCIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2011. 496p.). No meio desse processo, cozinhar exerce o papel de proporcionar a ocasião: a comensalidade, o hábito de comermos unidos, olho no olho, em um local e espaço de tempo determinados (POLLAN, 2014POLLAN, M. Cozinhar: uma história natural da transformação. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 448p.).
A etimologia da palavra comensalidade deriva do latim comensale: ação de comer junto, na mesma mesa. Ou seja, partilhar o momento das refeições (LIMA; NETO; FARIAS, 2015LIMA, R.S.; NETO, J.A.F.; FARIAS, R.C.P. Alimentação, comida e cultura: o exercício da comensalidade. Demetra, v. 10, n. 3, p. 507-522. 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/demetra/article/viewFile/16072/13748. Acesso em 05 out. 2020.). A comensalidade é considerada uma das maiores expressões de sociabilidade, sendo uma manifestação de que somos seres sociais (JUÁREZ; GARCÍA; CIPRIANO-CRESPO, 2017).
Segundo Montanari (2013)MONTANARI, M. Comida como cultura. 2ª ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2013. 207p., comer junto é típico da espécie humana. A alimentação possui papel central em festas, ritos e cerimônias em geral que denotam uma ocasião especial (CONTRERAS; GARCIA, 2011CONTRERAS, J.; GARCIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2011. 496p.). Para Barcellos (2017) o comer só cumpre seu papel quando obedece à sua necessidade ritualística intrínseca: a refeição como ritual de sociabilidade. Cabe destacar que enquanto o conceito de alimento parte da racionalidade, entendido como item comestível que fornece os nutrientes necessários à vida, a concepção de comida e alimentação expande para a subjetividade, na qual a comida assume significados e alimentar-se confere sentidos, organizando a vida social, possibilitando a expressão de um modo de vida e funcionando como meio de comunicação (CARVALHO; LUZ; PRADO, 2011CARVALHO, M.C.V.S.; LUZ, M.T.; PRADO, S.D. Comer, alimentar e nutrir: categorias analíticas instrumentais no campo da pesquisa científica. Ciência & Saúde Coletiva, v.16, n. 1, p.155-163. 2011.).
Assim, o consumo e preparo da comida são práticas sociais intrinsicamente relacionadas às tradições históricas e culturais, sendo tais práticas, um reflexo e reprodução da ordem social (GREENHALGH, 2016GREENHALGH, T. Cultural contexts of health: the use of narrative research in the health sector. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe, 2016. (Health Evidence Network Synthesis Report, n. 49). Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK391071). Um dos aspectos alimentares das experiências dos sobreviventes do câncer envolve o impacto na relação com o outro no compartilhamento das refeições (COHEN; HOARAU; LORCY, 2017COHEN, P.; HOARAU, H.; LORCY, A. Food experiences of people living with cancer: continuities and discontinuities in their local and global dimensions. Anthropology of Food, [S.I] v.12, 2017. OpenEdition. http://dx.doi.org/10.4000/aof.8284.). As dificuldades encontradas podem conduzir a um processo de “desritualização” da alimentação, desprendendo o ato de comer de sua dimensão social e cultural, onde comer sozinho representa uma experiência intensa de solidão, levando a perda de sentido e ao isolamento social (CONTRERAS; GARCIA, 2011CONTRERAS, J.; GARCIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2011. 496p.).
Pacientes com câncer de laringe relataram que o ato de se alimentar passou a exigir um maior esforço, sobrando pouca atenção às conversas à mesa e tornando esse momento exaustivo e tedioso. Além disso, esses pacientes se consideravam barulhentos no momento de comer, não podendo compartilhar da mesma comida que o restante da mesa. Acabavam por se alimentar em ritmos diferentes dos demais, fazendo com que desenvolvessem a sensação de inconveniência e sentimentos de angústia e decepção (JUÁREZ; GARCÍA; CIPRIANO-CRESPO, 2017).
Em pacientes com câncer de pulmão, foi observado um processo de dessocialização alimentar decorrente dos efeitos adversos após a quimioterapia, no qual os indivíduos recusavam convites de eventos que envolvessem comida (FONTAS, 2017FONTAS, M. Manger après le diagnostic d’un cancer. Anthropology of Food, [S.I] v.12, 2017. OpenEdition. https://doi.org/10.4000/aof.8244). O mesmo aconteceu com pacientes com câncer colorretal em uso de estoma, que relataram evitar eventos sociais envolvendo alimentos e bebidas além de viagens pelas dificuldades no manejo de odores, na disponibilidade de banheiros e na ingestão alimentar (BURDEN et al., 2016).
Sobreviventes com câncer de cabeça e pescoço em radioterapia igualmente apresentaram narrativas de como costumavam comer com outras pessoas em eventos sociais e, como esses processos se transformaram (MCQUESTION; FITCH; HOWELL, 2011MCQUESTION, M.; FITCH, M.; HOWELL, D. The changed meaning of food: Physical, social and emotional loss for patients having received radiation treatment for head and neck cancer. European Journal of Oncology Nursing, v. 15, n. 2, p. 145-151. 2011.). Também trouxeram em suas narrativas a falta que sentiam em comer alimentos específicos com determinadas pessoas ou em datas comemorativas, como o Natal (KRISTENSEN et al., 2019).
Essa falta de capacidade de consumir alimentos e refeições antes realizadas fora do lar, por exemplo, interfere no aspecto comensal do ato alimentar e pode inclusive contribuir para a redução da ingestão alimentar em pacientes com câncer (LOCHER et al., 2009). Mesmo dentro do lar, para algumas mulheres com câncer de ovário em uso de nutrição parenteral, presenciar alguém se alimentando se tornou uma situação intolerável, levando os familiares a se alocarem em um cômodo distante no momento das refeições (SOWERBUTTS et al., 2020).
De fato, o exercício da comensalidade se inicia na família, assim como a formação do paladar e gosto de cada sujeito (MATURANA, 2010MATURANA, V. Reflexões acerca da relação entre a alimentação e o homem. Revista IGT, v. 7, n. 12, p. 176-219. 2010. Disponível em: https://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=292&layout=html. Acesso em: 29 nov. 2020.). As famílias são grupos sociais que se estruturam por meio de compartilhamento e relações que envolvem alimentos. A atividade de alimentar é central para a vida familiar (DELORMIER; FROHLICH; POTVIN, 2009DELORMIER, T.; FROHLICH, K.L.; POTVIN, L. Food and eating as social practice - understanding eating patterns as social phenomena and implications for public health. Sociology Of Health & Illness, [S.L.], v. 31, n. 2, p. 215-228, mar. 2009. Wiley. http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-9566.2008.01128.x.), pois possui funções socioculturais, tais como expressar amor e carinho e representar segurança (CONTRERAS; GARCIA, 2011CONTRERAS, J.; GARCIA, M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Editora FioCruz, 2011. 496p.).
Para pacientes com câncer avançado, oferecer comida é um meio de conexão com o outro, além de representar um ato de cuidado (HOPKINSON, 2016HOPKINSON, J.B. Food connections: a qualitative exploratory study of weight- and eating-related distress in families affected by advanced cancer. European Journal of Oncology Nursing, [S.L.], v. 20, p. 87-96, fev. 2016. Elsevier BV. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ejon.2015.06.002.). Alguns cuidadores vivenciam uma ruptura nesse sentimento devido à redução da ingestão alimentar de pacientes com câncer avançado (STRASSER et al., 2007).
Os ritos familiares relacionados a alimentação possuem papel importante na construção do sujeito, carregados de sentimentos e emoções transmitidas entre gerações, representando pertencimento e continuidade (MATURANA, 2010MATURANA, V. Reflexões acerca da relação entre a alimentação e o homem. Revista IGT, v. 7, n. 12, p. 176-219. 2010. Disponível em: https://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=292&layout=html. Acesso em: 29 nov. 2020.). Para pacientes com câncer de cabeça e pescoço e esôfago, o suporte da família foi essencial durante a trajetória da doença, por meio de atitudes como cozinhar, apoiar a recomendação dietética e prover incentivo e suporte emocional (ALBERDA et al., 2017).
Para pacientes que realizaram o transplante de células-tronco hematopoiéticas, a família teve papel fundamental nas estratégias adquiridas para lidar com os sintomas de impacto nutricional, auxiliando na superação das dificuldades (BOMBEN et al., 2019). Também para os pacientes com câncer de estômago e esôfago em uso de jejunostomia, as esposas e filhos foram considerados as principais fontes de suporte social (HALLIDAY et al., 2017HALLIDAY, V. et al. Patient and Family Caregivers’ Experiences of Living with a Jejunostomy Feeding Tube After Surgery for Esophagogastric Cancer. Journal of Parenteral and Enteral Nutrition, [S.L.], v. 41, n. 5, p. 837-843. 2015. http://dx.doi.org/10.1177/0148607115604114.).
Para além da função prática em ser uma fonte de preparo de uma refeição, o apoio de membros da família na assistência alimentar é percebido pelo paciente como sentimento de cuidado, cumprindo um papel de suporte emocional (BELQAID et al., 2018). De acordo com Contreras e Garcia (2011), “a conduta alimentar diária na maioria das pessoas resulta previsível, a depender de seus padrões culturais[...] Tal regularidade é consequência de uma ordem normativa no processo de socialização[...]” (pág. 129). A partir dos resultados nesses estudos, observa-se uma imprevisibilidade no ato alimentar de pacientes com câncer em decorrência dos sintomas de impacto nutricional desenvolvidos ao longo da trajetória da doença, levando a descoberta de estratégias de adaptação a serem utilizadas pelo paciente e seus familiares em uma tentativa de manter a normalidade da vida apesar da doença e das modificações físico-químico-sensórias.
Com o objetivo de manter a rotina e normalidade, as estratégias de adaptação aplicadas pelos sobreviventes e familiares, foram orientadas: pela prática, na qual o(a) parceiro(a) buscava uma solução para o problema; pela emoção, na qual o(a) parceiro(a) lidava com a situação de uma forma mais comunicativa e cuidadosa; pela distância, na qual o parceiro não respondia ou se retirava temporariamente do momento da refeição, deixando o paciente lidar sozinho com os problemas relacionados à alimentação (OPSOMER et al., 2019OPSOMER S. et al. Couples coping with nutrition-related problems in advanced cancer: A qualitative study in primary care. Eur J Oncol Nurs., v. 37, p.76-84. 2019. doi: 10.1016/j.ejon.2018.12.006.).
Conclusões
As experiências alimentares de sobreviventes do câncer são diversas e perpassam indivíduos com variados tipos de câncer em diferentes fases da sobrevivência. As pesquisas qualitativas utilizadas nesse trabalho foram capazes de dar voz a esses pacientes por meio do uso de narrativas, onde foi possível identificar a importância da alimentação para além dos aspectos nutricionais.
As perdas relacionadas à alimentação impactam na existencialidade do ser, na expressão da sua identidade e nas relações sociais, podendo levar ao isolamento social e a desritualização da alimentação. A perda de peso e as mudanças físicas consequentes da doença e do tratamento podem levar ao desenvolvimento de distúrbios de imagem corporal e sofrimento psíquico. Em decorrência dos sintomas de impacto nutricional, há a necessidade de uma reorganização e desenvolvimento de estratégias de adaptação que possibilitem a manutenção da ingestão alimentar, sendo a família fonte de suporte emocional e social mediada pela alimentação.
As dimensões do ato alimentar (biológicas, psicológicos, simbólicas, culturais e sociais) foram acessadas por meio de narrativas, contribuindo para uma prática compreensiva e uma escuta ativa do profissional que irá receber as demandas relacionadas à alimentação e nutrição. Os dados encontrados nessa metassíntese sugerem que a pesquisa qualitativa em nutrição e câncer é campo vasto para pesquisas, encorajando a realização e reforçando a necessidade de mais estudos primários, principalmente no Brasil, onde os aspectos específicos de nossa comensalidade ainda não estão desvelados pela literatura científica.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
01 Dez 2020 -
Aceito
10 Fev 2022 -
Revisado
03 Jan 2023