Open-access Desenvolvimento e Validação Factorial da Escala de Motivos face à Parentalidade1

Desarrollo y Falidación Factorial de la Escala de Motivos ante la Parentalidad

Resumos

Ter filhos é uma decisão influenciada por vários fatores. O objetivo deste estudo foi descrever a construção e validação de um instrumento em língua portuguesa para análise dos motivos subjacentes à decisão de ter ou não ter filhos. A Escala de Motivos face à Parentalidade, construída com base numa revisão de estudos e escalas pré-existentes, foi administrada a duas amostras e alvo de análise fatorial exploratória e confirmatória. A escala final é composta por 30 itens divididos em quatro fatores: Enriquecimento Emocional, Reconhecimento Social, Interferência no Estilo de Vida e Antecipação de Problemas de desenvolvimento na criança. Todas as subescalas apresentaram bons índices de consistência interna e boa estabilidade fatorial. Considera-se que a escala aqui apresentada poderá contribuir para uma melhor compreensão da temática da decisão de ter ou não filhos.

escalas; motivação; fertilidade; tomada de decisão; crianças


Tener hijos es una decisión influenciada por varios factores. La finalidad en este estudio fue describir la construcción y validación de un instrumento en lengua portuguesa para el análisis de una categoría de factores, los motivos subyacentes de la decisión de tener hijos o no. La Escala de Motivos ante la Parentalidad, construida con base en una revisión de estudios y escalas pre-existentes, fue administrada a dos muestras y sometida al análisis factorial exploratoria y confirmatoria. La escala final está compuesta por 30 ítem, divididos en cuatro factores: Enriquecimiento Emocional, Reconocimiento Social, Interferencia en el Estilo de Vida y Antelación de Problemas en el desarrollo del niño. Todas las sub-escalas alcanzaron buenos índices de consistencia interna y buena estabilidad factorial. Se considera que la escala presentada podrá contribuir a una mejor comprensión sobre la temática de la decisión de tener hijos o no.

escalas; motivación; fertilidad; toma de decision; ninos


To have a child is considered to be a decision influenced by several factors. This paper describes the process of development and validation of an instrument in Portuguese language to analyze the motives underlying this decision. The Motives toward Parenthood Scale was developed using a revision of previous studies and instruments. Exploratory and confirmatory factor analyses were performed using different samples. The final scale is composed of 30 items and 4 factors: Emotional Enrichment, Social Recognition, Lifestyle Interference and Anticipation of Problems in the development of the child. All subscales showed good internal consistency and good factorial stability. This instrument is expected to allow for a more comprehensive analysis of the decision to have a child.

scaling (testing); motivation; fertility; decision making; children


Os índices de fertilidade têm decaído de forma gradual nos últimos anos na maioria dos países ocidentais, incluindo Portugal e Brasil. Em Portugal, de 1980 a 2009 o índice de fecundidade baixou de 2,3 filhos por mulher para 1,3, enquanto a idade da mulher ao primeiro filho aumentou de 23,6 para 28,6 (Instituto Nacional de Estatística {INE}, 2010). No Brasil, o número de filhos por mulher passou de 4,5 em 1980 para 2,5 em 1996 e para 1,8 em 2006 (Miranda-Ribeiro & Potter, 2010; Scavone, 2001). Fatores sociais e tecnológicos, como a utilização de meios contraceptivos, a influência dos movimentos feministas e democráticos no acesso à educação e ao mercado de trabalho das mulheres e mudanças nos estilos de vida podem ser apontados como razões para este declínio. Atualmente, os indivíduos podem, com maior grau de controle, decidir se querem ter filhos, quantos filhos querem e quando os querem ter. Deste modo, a decisão de ser-se pai/mãe é vista como uma decisão racional onde os prós e contras são considerados (Liefbroer, 2005). No entanto, este tema não tem sido aprofundado do ponto de vista da psicologia, sendo escassos os estudos que focalizam na análise das razões subjacentes à intenção de ter um filho. De fato, a maioria da investigação acaba por se centrar na expressão da intenção de ter um filho, negligenciando os motivos que estão na base desta decisão. Contudo, induzir motivos a partir de um comportamento observado não permite explicá-lo de forma adequada (Klein & Eckhard, 2007). Tal compreensão exige uma análise mais completa deste fenômeno, distinguindo os motivos subjacentes à intenção de ter ou não um filho, da intenção e do comportamento efetivo. Este estudo pretendeu assim contribuir para um melhor conhecimento da decisão de ter filhos, desenvolvendo um instrumento em português dos motivos para ter ou não ter um filho. Neste trabalho apresenta-se o processo de construção e validação factorial da escala de motivos face à parentalidade.

Motivações face à Parentalidade

A investigação empírica sobre este tema tem a sua origem nos estudos acerca dos valores da parentalidade para os próprios pais "Estudos sobre o valor das crianças" (Fawcett, 1988; Hoffman & Hoffman, 1973). Estes estudos assumem que ter um filho pode permitir cumprir ou atingir determinados valores ou por outro lado, limitar ou dificultar esse cumprimento. A partir desta conceitualização clássica, vários estudos procuraram analisar os fatores subjacentes à decisão de ter filhos. Enquanto uns focalizam a sua análise nos custos e benefícios que um filho pode trazer (Seaver, Kirchner, Straw, & Vegega, 1990), outros procuram analisar o papel de variáveis demográficas (nível educacional, gênero, estatuto sócio-economico) e psicológicas (atitudes de gênero, divisão do trabalho familiar, conflito trabalho-família, características relacionais) na intenção de ter um filho ou no próprio comportamento fértil (Cavalli & Rosina, 2011; Jansen & Liefbroer, 2006; Jokela, Kivimäki, Elovainio, & Keltikangas-Järvinen, 2009; Kaufman, 2000; Schneewind, 2000; Shreffler, Pirretti, & Drago, 2010; Vitali, Billari, Prskawetz, & Testa, 2009; Wilson & Koo, 2006). Outra tendência é a de analisar o papel das variáveis demográficas e psicológicas nas motivações e perceção dos custos/benefícios (Gerson, 1986; Gerson, Posner, & Morris, 1991). No entanto, poucos focalizam na identificação dos custos e recompensas que especificamente influenciam a decisão de ter ou não filhos (Liefbroer, 2005; O'Laughlin & Anderson, 2001; Stöbel-Richter, Beutel, Finck, & Brähler, 2005). De seguida, sistematizam-se alguns estudos e conceitualizações mais relevantes acerca dos motivos subjacentes à decisão de ter filhos.

Numa perspectiva cronológica, um dos primeiros estudos a referir é o estudo intercultural de Hoffman e Hoffman (1973) acerca dos valores das crianças. Os autores desenvolveram uma conceitualização de nove objetivos que os filhos poderiam ajudar a alcançar, dos quais os principais eram: laços afetivos primários; estimulação e gozo; expansão do self; obtenção de estatuto e identidade adulta; e sentimentos de competência e criatividade. Estes valores têm subjacente uma ideia instrumental da criança e podem ser agrupados em três categorias: recompensas sociais (obtenção de estatuto de adulto e conformidade a normas sociais); emocionais/psicológicas (sentimentos de competência, desenvolvimento pessoal, melhor qualidade da relação conjugal) e econômicas (os filhos podem ser cuidadores mais tarde dos próprios pais) (Liefbroer, 2005; O'Laughlin & Anderson, 2001). Fawcett (1988) na mesma linha de estudo sumariza os resultados desta abordagem referindo que as recompensas mais importantes de ter um filho são de natureza psicológica enquanto os maiores custos são de natureza financeira e perdas de oportunidades relacionadas com a carreira. Distingue assim cinco categorias de custos: econômicos diretos (alimentação, vestuário, educação); relacionados com o salário (em particular no caso feminino); custos de oportunidade (perda de tempo livre e atividades de lazer); custos psicológicos (restrição de liberdade, perda de flexibilidade, mais preocupações) e custos físicos (tarefas associadas ao cuidar de um filho).

Estas duas abordagens clássicas evidenciaram por um lado, as recompensas ou motivações para se ter um filho, nomeadamente a abordagem de Hoffman e Hoffman (1973) e por outro lado, segundo Fawcett (1988) os custos ou motivos para não se ter um filho. Contudo, ambas as conceitualizações foram derivadas num contexto social bastante diferente do actual, nomeadamente a justificação para a elaboração destas conceitualizações assentou na preocupação com o aumento da população. Procurava-se assim clarificar qual o valor dos filhos para que se pudessem encontrar alternativas a estes valores e assim reduzir a intenção de ter um filho.

Num contexto cultural distinto, Scavone (2001) procurou sistematizar teoricamente as razões associadas à opção de ter filhos, destacando causas biológicas patentes no desejo de reprodução da espécie ou continuidade da própria existência; causas subjetivas como a busca de um sentido para a vida, a necessidade de uma valorização e reconhecimento social, o amor pelas crianças e a reprodução tradicional do modelo de família de origem e ainda fatores sociais, como as condições econômicas e culturais das famílias, bem como os projetos e possibilidades profissionais. No entanto, este modelo careceu de dados empiricos para a sua sustentação.

Mais recentemente e de forma mais sucinta, Liefbroer (2005) baseando-se em algumas teorias de fertilidade, derivou uma lista de cinco possíveis custos e recompensas que considerou serem os mais relevantes. Assim, identificou as oportunidades de carreira, o poder econômico, o sentimento de segurança, a relação com o parceiro e a autonomia individual como possíveis impactos de ter um filho. Este estudo, apesar de partir de orientações teóricas estabelecidas e usar uma amostra significativa (1204 participantes) e heterogénea em termos de sexo, limitou a análise de custos e benefícios às cinco razões previamente apontadas.

Os estudos referidos até o momento são fundamentalmente dedutivos, isto é partem de uma conceitualização teórica e alguns procuram a validação empirica posterior. Contudo, uma outra possibilidade é a de analisar empiricamente os custos e beneficios partindo de um grande número de itens sobre os potenciais custos e benefícios e procurar dimensões latentes através da análise fatorial ou outras técnicas de redução de dados. Esta abordagem foi a seguida por Seaver et al., (1990) que, no sentido de evitar os julgamentos apriorísticos presentes nas anteriores conceitualizações derivadas teoricamente, desenvolveram de forma empírica a escala Parenthood Motivation Questionnaire através de um procedimento de análise fatorial. Contudo, estas análises foram efetuadas nos anos 70, o que indica que os motivos sinalizados com esta escala poderão não se adequar ao contexto atual.

Mais recentemente, O'Laughlin e Anderson (2001), também de forma empírica, e com base em itens já usados em investigações prévias, analisam motivações intrínsecas e extrínsecas e custos e recompensas associados ao nascimento de um filho. Estudaram uma amostra de estudantes universitários, maioritariamente mulheres (73%) e sem filhos (85%). As motivações intrínsecas dizem respeito a crenças internas acerca dos valores e aspectos morais de ter um filho, bem como aspectos emocionais; enquanto as motivações extrínsecas relacionam-se com a utilidade económica e de estatuto social de ter um filho. Os custos referem-se à perda de oportunidades, liberdade e tempo enquanto os benefícios referem-se a aspectos emocionais e de crescimento pessoal. Este estudo, apesar de considerar vários custos e benefícios, centrou-se apenas numa amostra de mulheres estudantes universitárias e sem filhos, limitando a compreensão do fenômeno dos motivos face à parentalidade em outros grupos e contextos.

Em português, é possivel destacar o estudo de Cunha (2007) com 1776 mulheres entre os 25-49 anos a viver em conjugalidade e com pelo menos um filho co-residente entre os seis e os 16 anos. Este estudo evidenciou seis grupos de razões para as famílias com um só filho não terem um segundo filho: constrangimentos materiais (dificuldades econômicas, de alojamento, desemprego); constrangimentos com o filho (relacionados com o crescimento do filho); equilíbrio numérico (número considerado ideal para garantir o bem-estar da família); constrangimentos pessoais e relacionais (idade avançada, falta de saúde, perturbação da relação de casal); preferência subjetiva (gostar de um filho único); e dinâmica familiar ou parental (desejo de dedicação total a um filho). Neste mesmo estudo a autora evidenciou ainda quatro possíveis funções dos filhos: função instrumental, expressiva, estatuária e afetiva. Embora alargado, o estudo de Cunha centrou-se na análise dos casais com filhos e das funções dos filhos para as mulheres, descurando quer a perspectiva dos individuos sem filhos, quer o papel dos homens neste processo.

Os estudos acerca dos motivos subjacentes à decisão de ter filhos aqui apresentados evidenciam abordagens distintas: abordagem dedutiva no caso das conceitualizações terem sido desenvolvidas teoricamente com validação empírica posterior (Hoffman & Hoffman, 1973; Fawcett, 1988; Liefbroer, 2005), ou sem ela (Scavone, 2001), ou abordagem indutiva mais (Seaver et al., 1990) ou menos abrangente (O'Laughlin & Anderson, 2001). Adicionalmente, esta revisão de estudos acerca das motivações subjacentes à decisão de ter ou não filhos denota um conjunto de fragilidades relativamente às amostra usadas, uma vez que a maioria dos estudos tem-se focado em amostras exclusivamente ou maioritariamente femininas (Cunha, 2007; O'Laughlin & Anderson, 2001) ou então em amostras de estudantes universitários (O'Laughlin & Anderson, 2001; Seaver et al., 1990). Uma exceção é o estudo de Liefbroer (2005) com jovens adultos seguidos longitudinalmente, no entanto, só foram abordados um número muito limitado de motivos.

Neste sentido, desenvolver um instrumento breve e adaptado ao contexto atual, que permita aferir, tanto os custos de ter um filho como os seus benefícios, com um grupo heterogéneo quanto ao nível educativo, estatuto parental e estatuto conjugal, junto de homens e mulheres pode permitir uma compreensão mais abrangente da temática da intenção de ter filhos. De fato, as razões apontadas para ter ou não ter um primeiro, um segundo filho ou até um terceiro filho poderão ser distintas. Como Stöbel-Richeter et al. (2005) evidenciaram, casais já com filhos manifestam maior intenção de ter filhos do que casais sem filhos, sendo que nos casais sem filhos, a mulheres manifestam maior intenção do que os homens de ter o primeiro filho. Quanto aos motivos subjacentes a esta intenção, a percepção de benefícios não parece ser afetada pela experiência de parentalidade, enquanto que a percepção de custos é superior nos indivíduos que são pais (O'Laughlin & Anderson, 2001). Ora estudos que analisam o papel do estatuto parental na motivação para ter ou não filhos são ainda escassos.

Adicionalmente, a decisão de ter um filho é essencialmente uma decisão de casal onde os motivos a favor e contra são pesados por ambos os elementos (Jansen & Liefbroer, 2006), pelo que um instrumento que permita aferir ambas as visões trará um quadro mais completo para analisar o processo de decisão na família. Investigar somente as razões e motivações das mulheres não permite compreender os processos de influência e, neste âmbito, as intenções reprodutivas dos homens têm sido bastante descuradas (Cavalli & Rosina, 2011; Rios & Gomes, 2009).

Parece assim haver a necessidade de um instrumento de análise das motivações face à parentalidade que tirando partido das vantagens dos estudos anteriores, abranja custos e benefícios, seja passível de utilização junto de homens e mulheres de diferentes meios sociais, com e sem filhos e que seja breve, de forma a poder ser facilmente aplicado em diferentes contextos. O objetivo deste estudo foi descrever a construção e validação de um instrumento em língua portuguesa para análise dos motivos subjacentes à decisão de ter ou não ter filhos.

Método

Participantes

Para participar neste estudo, os individuos deveriam ter mais de 18 anos, podendo coabitar ou não com companheiro/a. No total participaram 403 individuos (45% do sexo masculino) com a idade média de 36 anos. A maioria dos participantes (61%) é casada ou vive em união por consenso e não tem filhos (60%). Quanto a intenções futuras, 50% gostaria de ter um filho (o primeiro ou um outro). Sessenta por cento dos indivíduos possui habilitações inferiores ao 12º ano e a maioria (56%) despende 40 horas ou mais em atividade profissional, sendo que 35% despende entre 21 a 39 horas em atividade profissional. Quanto ao nível sócio-economico 33% pertence ao nível baixo, 40% ao nível médio e 26% ao nível alto.

Os participantes foram aleatoriamente divididos pelos dois estudos: redução de itens (n = 201) (estudo 1) e confirmação da estrutura da escala (n = 202) (estudo 2).

Instrumentos

Os instrumentos utilizados foram:

Questionário sociodemográfico: foram recolhidas informações relativas ao sexo, idade, estado civil, existência ou não de filhos e número de filhos, intenção de ter um (outro) filho, habilitações literárias, actividade profissional e número de horas despendidas na actividade profissional.

Versão preliminar da escala de motivos face à parentalidade: uma versão preliminar da escala de motivos face à parentalidade com 52 itens foi administrada. A escala era introduzida por um pequeno texto onde se referia à necessidade do participante definir o seu grau de concordância com um conjunto de motivos para ter e não ter um filho, independentemente do seu desejo atual. Os itens deviam ser respondidos numa escala de tipo Likert de 6 pontos de "discordo totalmente" a "concordo totalmente".

O primeiro passo para a construção deste novo instrumento compreendeu a identificação de dimensões de custos e benefícios e razões para ter ou não um filho, a partir da revisão de estudos. Seguindo as perspetivas de Liefbroer (2005) e O'Laughlin e Anderson (2001) sistematizaram-se as seguintes categorias de benefícios ou recompensas pelo facto de ter um filho: recompensas sociais (obtenção de estatuto de adulto e conformidade a normas sociais); emocionais/psicológicas (sentimentos de competência, desenvolvimento pessoal, melhor qualidade da relação conjugal) e econômicas (os filhos podem ser cuidadores mais tarde dos próprios pais), e os seguintes custos: econômicos (menor poder econômico) e perda de oportunidades profissionais e pessoais.

Seguidamente, recolheram-se itens de diferentes escalas já utilizadas em estudos publicados num total de 254 itens: Child Study Inventory (CSI) (Rabin & Greene, 1968); Value of Children Scale (VCS) (Hoffman & Hoffman, 1973); Childbearing Questionnaire (CBQ) (Miller, 1994); Parenthood Motivation Questionnaire (PMQ) (Seaver et al., 1990); Perceptions of Parenting Inventory (POPI) (Lawson, 2004); Parenting Questionnaire (O'Laughlin & Anderson, 2001); Motivation for Parenthood (Gormly, Gormly, & Weiss, 1987). Este conjunto de itens foi analisado por três investigadores em psicologia (dois seniores e um júnior) para avaliar a possibilidade da sua inclusão nas dimensões de custos e benefícios já referidas, bem como para avaliar a sua redundância semântica. A decisão de manter o item requeria o acordo mínimo entre dois juízes. No entanto, itens que não se incluíssem nas dimensões evidenciadas por Liefbroer (2005) e O'Laughlin e Anderson (2001) foram também selecionados, caso permitissem evidenciar novas dimensões. Tratando-se da primeira etapa da construção da escala em português, um procedimento menos restritivo de inclusão de itens foi considerado benéfico para a melhor compreensão do fenômeno em causa. Por essa razão, acrescentaram-se categorias relativas a desconforto físico, dificuldades de desenvolvimento da criança, custos emocionais e razões altruístas ou humanitárias na dimensão de motivos para não ter filhos e a categoria experiência da gravidez e parto, benefícios para a fratria e oportunidade de resolução de assuntos pessoais através da parentalidade na dimensão de motivos para ter filhos. Após a eliminação dos itens considerados redundantes, foram mantidos 52 itens, 31 relativos a motivos para ter filhos e 21 relativos a motivos para não ter filhos. Todos os 52 itens foram sujeitos a tradução e retroversão de inglês para português por dois investigadores com domínio nas duas línguas. Uma versão com os 52 itens foi distribuída por 8 indivíduos (sem formação em investigação) que procuraram analisar a clareza e compreensão dos itens, tendo sido efetuadas ligeiras modificações na sua redação.

Procedimento

Coleta de dados. Após o consentimento dos participantes no estudo, o questionário sociodemográfico e a escala de motivos face à parentalidade foram administrados de forma individual aos participantes.

Análise dos dados. A versão preliminar da escala de motivos face à parentalidade foi alvo de uma análise factorial em componentes principais (estudo 1) e de uma análise de validação da estrutura factorial através de procedimentos de estimação de máxima verosimilhança (estudo 2).

Considerações Éticas

Os participantes do estudo foram esclarecidos quanto aos objetivos da investigação, tendo sido informados de que a participação era voluntária e a confidencialidade e anonimato dos dados recolhidos assegurada. Aqueles indivíduos que consentiram participar preencheram o questionário na presença do investigador para que este pudesse prestar os esclarecimentos necessários.

Resultados

Redução de Itens: Estudo 1

Tendo em conta o tamanho da amostra e o facto da escala aplicada englobar dois posicionamentos distintos, um face aos motivos para ter e outro face aos motivos para não ter um filho, foram efetuadas duas análises fatoriais exploratórias, uma relativa aos motivos para ter e outra relativa aos motivos para não ter filhos.

A adequabilidade da amostra à análise factorial exploratória (componentes principais) foi verificada através do índice de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO = 0,914) e da análise da diagonal da matriz anti-imagem (> 0,83) o que sugeriu que as variáveis estavam correlacionadas e a análise factorial era fortemente recomendada (Field, 2005). Assim, os 31 itens relativos a motivações para ter filhos foram sujeitos a rotação varimax, e método de extracção dos factores por componentes principais, considerando como critério de extração de fatores um valor próprio superior a 1,5.

Da análise da escala motivos a favor da decisão de ter um filho resultaram 3 fatores com uma variância total explicada de 52,89% (20,86% no primeiro fator, 16,52% no segundo e 15,51% no terceiro).

Após análise do ponto de inflexão do gráfico scree plot verificou-se que poderia ser considerado quer uma solução em três, quer em dois fatores. Deste modo, efetuou-se também uma análise fatorial em dois fatores que explicaram 47,80% da variância (24,29% no primeiro fator e 23,51% no segundo). Uma análise dos conteúdos dos itens permitiu verificar que a solução em dois factores agregava a noção de continuidade geracional e biológica e questões relativas à pressão social ou cumprimento de expectativas sociais que, na solução em três factores, surgiam como independentes. No entanto, uma vez que estes dois aspectos se aproximam da noção de pressão externa e social e se encontravam correlacionados (r = 0,773; p < 0,001), optou-se pela solução em 2 fatores. O outro factor dizia respeito a motivos relativos a enriquecimento emocional e amor obtido com o nascimento de um filho.

Seguindo as sugestões de Costello e Osborne (2005), procedeu-se a uma seleção dos itens nesta solução em função dos seguintes critérios: comunalidades superiores a 0,400, saturação no fator pretendido superior a 0,500 e diferença de saturações desse item nos restantes fatores superior a 0,200. Quinze itens não cumpriram tais critérios e foram por isso rejeitados. Uma nova análise foi efetuada para determinar se a eliminação destes itens melhorava e simplificava a estrutura fatorial. De fato, a variância total explicada aumentou para 55,16%. O primeiro fator foi assim designado por Enriquecimento Emocional e é composto por 8 itens de motivos relacionados com manifestação de afeto e carinho e desenvolvimento e desafio pessoal (α = 0,89), enquanto o segundo fator designado Reconhecimento Social compreende 8 itens relativos a motivos de cumprimento de expectativas sociais e continuidade familiar (α = 0,87) (Tabela 1).

Tabela 1
Cargas Factoriais e Comunalidades da Subescala de Motivos para Ter Filhos

Os valores de comunalidade revelaram-se aceitáveis exceto no que se refere ao item nº 8. Contudo, uma vez que a análise do valor de alpha de Cronbach revelou uma boa consistência interna optou-se por manter este item no respectivo factor.

A análise fatorial exploratória relativa aos motivos em desfavor da decisão de ter um filho seguiu o mesmo procedimento. Mais uma vez, quer a matriz diagonal de anti-imagem ( > 0,80) quer o valor de KMO (KMO = 0,899) asseguraram a fatorabilidade dos itens. Assim, a partir dos 21 itens foram extraídos dois fatores com valor próprio superior a 1,5 com uma variância explicada de 46,02%, obtendo-se bons indicadores. Aplicando os critérios de seleção de itens anteriormente descritos, foram rejeitados 7 itens. Uma nova análise evidenciou um aumento da variância total explicada para 52,49%. O primeiro fator agregou 9 itens relativos a motivos de Interferência no Estilo de Vida pessoal, familiar e profissional atual dos indivíduos (α = 0,88), enquanto o segundo fator agregou 5 itens relacionados com Antecipação de Problemas que a criança poderia trazer à relação de casal, ao indivíduo e antecipação de dificuldades na própria educação e desenvolvimento da criança (α = 0,79), conforme verificado na Tabela 2.

Tabela 2
Cargas Factoriais e Comunalidades da Subescala de Motivos para Não Ter Filhos

Novamente um item (nº 9) apresentou uma comunalidade inferior ao aceitável, contudo dado o valor adequado do alpha de Cronbach optou-se por manter este item na dimensão a que pertencia (Interferência no Estilo de Vida).

Confirmação da Estrutura da Escala: Estudo 2

No sentido de validar a estrutura fatorial obtida no estudo 1, testou-se a mesma estrutura na amostra do estudo 2 através da modelagem por equações estruturais com o auxílio do programa Amos 18.0. Deste modo, a adequação das estruturas fatoriais encontradas no estudo 1 foi testada em uma amostra de validação através de procedimentos de estimação de máxima verosimilhança (as correlações entre itens, médias e desvio-padrão dos itens estão disponíveis sob pedido ao primeiro autor). Seguindo as recomendações de Schweizer (2010) foram utilizados os seguintes índices de ajustamento para aferir a qualidade do modelo: ratio χ2/df, o Comparative Fit Index (CFI) (Hu & Bentler, 1999), o Standardized Root Mean Squared Residual (SRMR) (Jöreskog & Sörbom, 1996) e o Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA). Um bom ajustamento é definido quando χ2/df é inferior a 2 e aceitável quando é inferior a 3. Os valores de CFI são aceitáveis quando se situam entre 0,90 e 0,95 e bons quando se situam entre 0,95 e 1,00, o SRMR deve manter-se inferior a 0,10 e valores de RMSEA inferiores a 0,08 são aceitáveis enquanto valores inferiores a 0,05 são bons (Schweizer, 2010).

Tal como no procedimento de definição de estrutura da escala, também na sua confirmação procedeu-se à testagem em separado das escalas relativas a motivos para ter e não ter um filho. Assim, em um primeiro momento testou-se um modelo dos motivos a favor de ter um filho, com as duas subescalas de 8 itens cada.

A análise da normalidades das variáveis através do coeficiente de Mardia (44,38) apontou para a falta de normalidade pelo que se procedeu à estimação dos parâmetros através do procedimento de bootstrap para 20000 amostras, tal como recomendado por Marôco (2010). Na identificação do modelo, especificou-se cada item como pertencendo a um só fator sem saturações cruzadas (de acordo com a análise exploratória) especificou-se ainda que os erros de medida eram não correlacionados. A correlação entre as duas subescalas foi estimada livremente. O modelo ajustou-se razoavelmente aos dados: χ2/df = 2,17; CFI = 0,91; RMSEA = 0,08; SRMR = 0,08. Todos os parâmetros estimados através do procedimento de bootstrap foram estatisticamente significativos (p < 0,001) e superiores a 0,50 (Figura 1).

Figura 1
Análise fatorial confirmatória da subescala de motivos para ter filhos.

Para a testagem do modelo em dois fatores relativos a motivos para não ter filhos procedeu-se à avaliação da normalidade dos dados tendo-se verificado a não normalidade (coeficiente de Mardia = 59,44), pelo que de novo se procedeu à estimação dos parâmetros através do procedimento de bootstrap.

Em um primeiro momento, obteve-se os seguintes indicadores de ajustamento: χ2/df = 2,45; CFI = 0,88; RMSEA = 0,09; SRMR = 0,06, com todos os parâmetros estimados estatisticamente significativos (p < 0,001) e superiores a 0,52 (parâmetros pattern padronizados). Os valores de CFI e RMSEA estão ligeiramente fora dos intervalos aceitáveis, pelo que se introduziu uma correlação entre dois erros de medida pertencentes ao mesmo fator (erros associados ao item 11 e 13) com vista a melhorar o modelo. De fato, a introdução desta correlação entre erros parece fazer sentido na medida em que ambos os itens dizem respeito a receios relativos a questões de saúde da criança. Após a introdução desta correlação, o ajustamento do modelo melhorou: χ2/df = 2,06; CFI = 0,92; RMSEA = 0,07; SRMR = 0,05. Todos os parâmetros mantêm-se estatisticamente significativos (p < 0,001), conforme ilustrado na figura 2.

Figura 2
Análise fatorial confirmatória da subescala de motivos para não ter filhos.

O valor de consistência interna das escalas nesta amostra de validação são bons: escala de Enriquecimento Emocional apresentou um α = 0,87, a de Reconhecimento Social α = 0,86, a Interferência no Estilo de Vida α = 0,87 e a Antecipação de Problemas α = 0,74, garantindo assim a confiabilidade dos escores produzidos pela escala. Alguns autores, no entanto, têm questionado a validade desta medida (α de Cronbach) sugerindo medidas alternativas (Marôco, 2010). Uma dessas alternativas é a medida da confiabilidade compósita (FC), cujo cálculo é relativamente simples no contexto de uma análise fatorial confirmatória. Para calcular a confiabilidade composta (FC) de cada fator, basta dividir o quadrado do somatório dos pesos fatoriais estandardizados por este mesmo valor, acrescentado do somatório dos erros ou resíduos de cada item. Valores superiores a 0,70 são indicadores de boa fiabilidade do constructo. Os fatores nesta amostra de validação apresentaram boa confiabilidade composta, com todos os fatores superiores a 0,72: FC = 0,86 para o fator de Enriquecimento Emocional, FC = 0,87 para o fator de Reconhecimento Social, FC = 0,88 para o fator de Interferência no Estilo de Vida e FC = 0,73 para o fator de Antecipação de Problemas.

Pela análise da Tabela 3 podemos verificar que os motivos mais apoiados pelos indivíduos são os motivos relacionados com o enriquecimento emocional como motivação para ter um filho, seguidos dos motivos de interferência no estilo de vida como motivos para não ter um filho. Os motivos de reconhecimento social são evidenciados de seguida e os motivos de antecipação de problemas são os menos referidos. Estes resultados verificaram-se quer na amostra do estudo 1 {F (2,35; 468,96) = 153,68; p < 0,001; ηp 2 = .44}, quer na amostra do estudo 2 {F (2,31; 463,32) = 176,88; p < 0,001; ηp 2 = .47}. Uma vez que o teste de Mauchly verificou a violação da esfericidade {estudo 1: χ2 (5) = 91,32, p < 0,05; estudo 2: χ2 (5) = 87,60, p < 0,05.} os graus de liberdade foram corrigidos segundo o critério de Greenhouse-Geisser (ε = 0,78 e 0,77 para o estudo 1 e 2, respetivamente)

Tabela 3
Média, Desvio Padrão e Consistência Interna dos Fatores nas Duas Amostras

Discussão

Este estudo desenvolveu uma escala de avaliação dos motivos para ter ou não um filho, em Língua Portuguesa, que pudesse ser aplicada tanto a homens como a mulheres, com ou sem filhos. Evidenciar as motivações subjacentes à decisão de ter (ou não) um filho pode ajudar a melhor compreender as intenções de parentalidade nos contextos de decréscimo acentuado dos índices de fertilidade, observados tanto em Portugal como no Brasil. Portugal destaca-se com um dos mais baixos índices da Europa e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Por seu lado, o Brasil também tem presenciado uma queda acentuada da fertilidade. Este fenômeno, aliás, tem vindo a caracterizar a maioria das sociedades ocidentais, pelo que possuir um instrumento de análise que permita evidenciar um leque alargado de motivos subjacentes à parentalidade poderá tornar-se extremamente útil.

A escala de motivos face à parentalidade aqui apresentada é constituída por 30 itens agrupados em quatro subescalas. Tem a vantagem de analisar simultaneamente não só os motivos a favor da parentalidade, mas também os motivos para não ter um filho. As duas subescalas apresentaram bons indicadores psicométricos de validade factorial e confiabilidade, bem como de estabilidade desta mesma estrutura fatorial, pelo que se considera poder constituir-se como um instrumento útil e fiável para a análise desta temática.

Um primeiro conjunto de razões para ter filhos são relacionadas com aspectos emocionais como dar e receber afeto e desejo de crescimento pessoal, através dos desafios que a função parental oferece. Um segundo conjunto de motivos, de natureza social e mais tradicional, relaciona-se com a conformidade a papéis sociais ou a obtenção de estatuto e reconhecimento através dos filhos. Estes dois fatores espelham bem as recompensas associadas a ter um filho sistematizadas por Liefbroer (2005). De fato, nesta sistematização evidenciaram-se três categorias de recompensas: emocionais/psicológicas; sociais e econômicas. A nossa escala agrega as duas últimas categorias numa única associada ao estatuto, mas claramente distinta da categoria emocional e psicológica. Parece, assim, que os benefícios econômicos no contexto em análise não são independentes, mas claramente associados ao reconhecimento social. Além disso, os motivos de natureza emocional são mais evocados do que os motivos de reconhecimento social, aproximando este resultado da conceitualização de Fawcett (1988), em que as recompensas mais importantes da parentalidade eram as de natureza psicológica. Estes dois conjuntos de motivos podem ainda ser comparados com as funções dos filhos, evidenciadas por Cunha (2007), nomeadamente as funções afetivas e expressiva próximas da escala de enriquecimento emocional, e as funções estatuárias e instrumentais próximas da escala de reconhecimento social. Tal como no estudo de Cunha, as funções afetivas e expressivas no nosso estudo, tendem a ser mais referidas do que as funções estatuárias e instrumentais.

As interferências no estilo de vida atual são motivos para não ter um filho, nomeadamente interferências na liberdade, autonomia, carreira profissional e estabilidade financeira. Um segundo conjunto de razões está associado a dificuldades antecipadas na educação e desenvolvimento da criança e à antecipação de problemas na relação conjugal, embora seja menos valorizado. O primeiro conjunto de motivos reenvia aos custos de oportunidade salientados por vários autores como Fawcett (1988), Liefbroer (2005) ou Scavone (2001). O segundo conjunto de motivos, contudo, parece relativamente distante das anteriores conceitualizações sobre este tema. Se, por um lado, agrega razões relativas a interferências na relação conjugal, que já tinham sido referidas por Liefbroer, por outro, sistematiza motivos adicionais que não tinham sido encontrados em estudos anteriores. Os motivos associados à antecipação de problemas são menos referidos para a decisão de não ter filhos do que os motivos relacionados com a interferência no estilo de vida. Esta interferência inclui também os custos econômicos, que, contrariamente a outras sistematizações, não se agrupam de forma independente, mas estão associados aos custos de oportunidade. Deste modo, parece que os fatores econômicos, quer como motivos para não ter filhos, quer como motivos para ter filhos, não são vistos como independentes, mas como associados a outros motivos. Esta associação tem a vantagem de mostrar claramente o papel funcional dos aspectos econômicos na sociedade atual enquanto fator de reconhecimento profissional e social e manifestação de estatuto. Parece assim que os custos econômicos de ter um filho são associados aos custos de carreira e estilo de vida, enquanto a análise dos benefícios econômicos de ter um filho os associa aos benefícios de prestígio e reconhecimento de estatuto.

Considerações Finais

Este estudo desenvolveu uma escala que reúne simultaneamente motivos relativos à decisão de ter ou de não ter um filho. Esta escala é adaptada para casais e indivíduos, homens e mulheres, com e sem filhos e foi construída junto de indivíduos que exercem vários papéis, isto é o familiar e estudantil ou profissional, característica da maioria das famílias nas sociedade contemporâneas. Atualmente, ter um filho não é uma atividade de tempo inteiro, uma vez que a maioria dos indivíduos apresenta outros investimentos, para além do parental. Inclusive o papel de gênero feminino, que tradicionalmente prescrevia o cuidado dos filhos como a principal tarefa da mulher na família, tem sofrido mudanças profundas, sendo que atualmente a maioria das mulheres acumula responsabilidades familiares e profissionais. Ora, também o papel de gênero masculino tem sofrido mudanças: para além do esperado envolvimento no mercado de trabalho, espera-se dos homens uma participação mais ativa na vida familiar (Souza & Benetti, 2009). No entanto, estas novas configurações não têm sido abrangidas pelos estudos anteriores que não se focalizaram em indivíduos que desempenham diversos papéis adultos. Para responder a este desafio, a escala aqui apresentada baseia-se sobre amostras diversificadas em termos de gênero, estatuto parental (existência ou não de filhos) e estatuto socioeconômico, providenciando uma base heterogénea de testagem do instrumento. Foi também desenvolvida combinando uma exaustiva recolha e análise de itens, com procedimentos de análise fatorial exploratória e confirmatória em duas amostras independentes. No entanto, considera-se que a validade da escala deverá ser testada noutras amostras onde seja possível diferenciar o papel das motivações, da intenção e do comportamento efetivo, tal como sustentado por Klein e Eckard (2007). Contudo, esta escala já permite analisar a combinação de motivos entre os dois elementos do casal, indo ao encontro do argumento de Cavalli e Rosina (2011) e Jansen e Liefbroer (2006) de que uma análise da decisão de ter um filho só é completa se considerar ambos os elementos do casal. De fato, se atualmente nos encontramos na transição para um novo modelo de paternidade assente na equidade de responsabilidades parentais, como defende Scavone (2001), é imprescindível aceder aos motivos de ambos os elementos de um casal nesta tomada de decisão. Também Miller (1994), considera que a passagem dos desejos de ter ou não um filho para as intenções, implicam a consideração de fatores contextuais como as intenções do parceiro.

Apesar das potencialidades da escala aqui apresentada é importante referir que a mesma deverá ser alvo de estudos que testem outros tipos de validade, para além da validade de conteúdo e de estrutura interna, nomeadamente validade concorrente e de constructo. Nesse sentido outros instrumentos relacionados com as motivações para ter ou não ter filhos poderão ser usados. Um exemplo poderão ser estudos focalizados na generatividade. A generatividade, segundo Erikson, manifesta o desejo de se deixar um legado social e de guiar os outros, estando relacionado com o estatuto parental, uma vez que a parentalidade constitui uma das forma de expressão mais comum da generatividade. Com o intuito de relacionar o conceito de generatividade, estatuto parental e atitudes ambientais, Milfont e Sibley (2011) encontraram evidência que a generatividade prediz atitudes pró-ambientais (generatividade ambiental) tal como o estatuto parental prediz maiores preocupações ambientais (pais têm maiores preocupações do que os não pais) (Milfont, Harré, Sibley, & Duckitt, 2012). Deste modo, estudos que analisem generatividade, estatuto parental e motivação para ter ou não filhos poderão contribuir para reforçar a validade da escala.

Sumariamente, os resultados obtidos neste estudo demonstram que a escala de motivos face à parentalidade possui boas propriedades psicométricas. É uma escala com uma estrutura estável que permite avaliar de modo fiel os motivos de mulheres e homens para ter ou não um filho. Demonstrou-se ainda capaz de enriquecer a análise dos motivos, através do surgimento de um fator relativamente novo face às escalas anteriores (antecipação de problemas) e permite perceber melhor o papel funcional do fator econômico associado aos motivos de reconhecimento e integração social. As subescalas encontradas, para ambas as decisões de ter ou não ter filhos, sistematizam ainda um conjunto de motivos mais relacionados com aspectos emocionais e um conjunto de motivos de natureza mais social. Apesar de, como defendiam Hoffman e Hoffman (1973), ter um filho poder ter um valor universal e essencialmente instrumental, esta configuração particular dos motivos face à parentalidade permitirá uma análise mais diferenciada e próxima do fenômeno das intenções de parentalidade em contextos específicos.

Marisa Matias é doutora pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Anne Marie Fontaine é Professora Catedrática da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.

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  • 1
    Artigo derivado da Tese de Doutorado da primeira autora, sob orientação da segunda, defendida no Programa Doutoral em Psicologia da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Universidade do Porto, em 2012. Apoio: Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/35963/2007)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2013

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2012
  • Revisado
    14 Set 2012
  • Aceito
    14 Nov 2012
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