Resumo
Nas últimas décadas o capitalismo passou por diversas transformações na esfera produtiva e tecnológica, sejam essas relacionadas às novas tecnologias em áreas de comunicação e informação, ou à infraestrutura dos sistemas de informação, inovações na inteligência artificial, empresas digitais e de plataforma. Todas essas mudanças vêm moldando a forma pela qual a acumulação de capital opera e também a relação entre os países dentro da hierarquia interestatal. Partindo de elaborações teóricas clássicas e atuais sobre a dependência latino-americana - e com foco nas transformações produtivas e tecnológicas -, este trabalho visa a investigar como a dependência do continente se apresenta atualmente diante desta nova conjuntura e quais suas diferentes formas de manifestação. Os resultados do trabalho apontam para o quadro em que, enquanto países centrais, e alguns emergentes como a China, avançam na fronteira destas novas tecnologias, outros, como os latino-americanos, permanecem na mesma posição histórica de fornecedores de matérias-primas e também na posição mais recente de consumidores destas novas tecnologias. A partir das elaborações teóricas sobre a dependência e da investigação das transformações em curso, busca-se demostrar como tais transformações relacionam-se ao desenvolvimento histórico do capitalismo em que novos atores (como a China), ao adentrar cada vez mais na fronteira do desenvolvimento tecnológico e aproximar-se dos países latino-americanos, assumem uma posição relevante na definição do quadro da dependência do continente.
Palavras-chave
Dependência; Tecnologia; América Latina; China
Abstract
In recent decades, capitalism has undergone several transformations in the productive and technological sphere, whether related to new technologies in the areas of communication and information, or to the infrastructure of information systems, innovations in artificial intelligence, digital and platform companies. All these changes have been shaping the way in which capital accumulation operates and also the relationship between countries within the interstate hierarchy. Starting from classic and current theoretical elaborations on Latin American dependence - and focusing on productive and technological transformations - this work aims to investigate how the continent's dependence currently presents itself in this new situation and what its different forms of manifestation are. The results of the work point to the situation in which, while central countries, and some emerging countries such as China, advance at the frontier of these new technologies, others, such as Latin Americans, remain in the same historical position as suppliers of raw materials and also in the most recent position of consumers of these new technologies. Based on theoretical elaborations on dependence and the investigation of ongoing transformations, we seek to demonstrate how such transformations are related to the historical development of capitalism in which new actors (such as China), as they increasingly enter the frontier of development technology and getting closer to Latin American countries, assume a relevant position in defining the continent's dependency framework.
JEL: F50, F59.
Keywords
Dependency; Technology; Latin America; China
1 Introdução
As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas por uma série de dinâmicas no capitalismo contemporâneo, entre elas: o acirramento da competição interestatal; as rápidas transformações em setores de alta tecnologia, como de Inteligência Artificial e novos sistemas de tecnologia da informação e comunicação (TIC), bem como da economia digital e de empresas de plataforma; a ascensão da China e de sua posição econômica global no comércio e na corrida tecnológica; as disputas entre EUA e China.
Tais dinâmicas deste início de século operam em meio ao aprofundamento de contradições que marcaram o desenvolvimento histórico do capitalismo, como a degradação ambiental (e agora a crise climática) e a manutenção da desigualdade socioeconômica, seja entre as classes sociais, seja entre os países, em uma espécie de hierarquia em que a posição periférica de diversos países permanece como uma característica marcante.
A manutenção da hierarquia entre os países e a permanência da posição periférica apresentam-se como manifestações concretas do desenvolvimento do capitalismo e estão inscritas no estabelecimento do mercado mundial. Na leitura apresentada por Leite (2017)LEITE, Leonardo de Magalhães. Capital no mundo e o mundo do capital: uma reinterpretação do imperialismo a partir da Teoria do Valor de Marx. Tese (Doutorado)-Universidade Federal Fluminense, 2017., a partir de Marx (1981) “o mercado mundial é a totalidade do modo capitalista de produção, o que significa que ele é muito mais do que a esfera da circulação de mercadorias em escala mundial. Ele é a lei do valor em escala global [...]” (Leite, 2017LEITE, Leonardo de Magalhães. Capital no mundo e o mundo do capital: uma reinterpretação do imperialismo a partir da Teoria do Valor de Marx. Tese (Doutorado)-Universidade Federal Fluminense, 2017., p. 48).
Em um mercado mundial consolidado e desenvolvido, o capitalismo contemporâneo, neste início de século, caracteriza-se pela manutenção de uma hierarquia que, embora tenha permitido casos de ascensão, perpetua posições desiguais em termos de países centrais e periféricos.
No caso da América Latina, de acordo com Bértola e Ocampo (2019)BÉRTOLA, Luis; OCAMPO, Jose Antônio. O desenvolvimento econômico da América Latina desde a Independência. Alta Editora, 2019., é possível afirmar que nenhum dos países do continente conseguiu alcançar níveis de vida, educação, competitividade e desenvolvimento tecnológico suficientemente homogêneo e elevados a ponto de serem considerados desenvolvidos. Ao longo dos anos observa-se a persistência da pobreza e da desigualdade, mesmo que essa realidade não tenha impedido a região de crescer e em alguns casos melhorar condições de vida e de desenvolvimento humano. Ainda assim, a estagnação econômica, as dificuldades de industrialização e modernização tecnológica, a manutenção do perfil primário-exportador na inserção internacional e a desigualdade permanecem como características imutáveis do continente latino-americano. Como teorizou Furtado (1992)FURTADO, Celso. Brasil, a construção interrompida. 1992. sobre o subdesenvolvimento, os aumentos de produtividade e a assimilação de novas técnicas não conduziram os países latino-americanos à homogeneização social.
Por outro lado, seguindo uma trajetória bastante distinta da América Latina, alguns países asiáticos, como a Coreia do Sul e a China, apresentaram avanços substanciais nas últimas décadas, superando, em muitos sentidos, os desafios do subdesenvolvimento. No caso da China, observa-se uma trajetória de rápida expansão em termos de industrialização e modernização tecnológica que coloca o país hoje como um dos maiores parceiros comerciais de diversos países e como a segunda maior economia do mundo, expandindo cada vez mais suas relações com países centrais e periféricos, inclusive com a América Latina.
A manutenção da posição periférica da América Latina suscitou reflexões teóricas importantes formuladas por autores latino-americanos, no quadro do debate sobre o desenvolvimento e sobre a dependência na região. Em Celso Furtado, por exemplo, como afirmam Manzatto e Saes (2020), a noção de dependência pode ser encontrada ainda em obras dos anos 50. Já na década de 1960, interpretações sobre a dependência latino-americana aparecem, agora formuladas de maneira ampla, como na teoria marxista da dependência, a partir de Ruy Mauro Marini e outros.
Mais de meio século desde as formulações iniciais sobre a dependência, a dificuldade da América Latina em avançar em termos econômicos e sociais ainda desperta a reflexão sobre os desafios do desenvolvimento e a manutenção desta posição.
Desde as primeiras formulações sobre a dependência latino-americana o capitalismo passou por diversas transformações que moldaram o processo autoexpansivo de valorização do capital, como as transformações relacionadas à ampliação dos mecanismos de acumulação financeira, por exemplo, uma marca fundamental deste tempo histórico.
Transformações importantes também aconteceram na esfera produtiva, relacionadas às novas tecnologias e nos processos manufatureiros, que ganham cada vez mais importância atualmente, tais como: o avanço das transformações nos setores de alta tecnologia, de comunicação e informação, as mudanças na infraestrutura dos sistemas de informação, a ascensão das chamadas Big Techs, as inovações da inteligência artificial, as empresas digitais e de plataforma.
Estas mudanças vêm moldando a forma através da qual a acumulação de capital opera e a relação entre os países dentro da hierarquia interestatal. Enquanto países centrais, e alguns emergentes, como a China, avançam na fronteira destas novas tecnologias, outros, como os latino-americanos permanecem na mesma posição histórica de fornecedores de matérias-primas, e agora também como consumidores destas novas tecnologias.
Diante dessa conjuntura e partindo de elaborações teóricas clássicas e atuais sobre a dependência, procura-se neste trabalho investigar como a dependência latino-americana se apresenta atualmente e quais suas diferentes formas de manifestação, com foco nas transformações produtivas e tecnológicas. A partir das elaborações sobre a dependência, procuraremos investigar como tais transformações relacionam-se ao desenvolvimento histórico do capitalismo em que novos atores, como a China, ao adentrar cada vez mais na fronteira do desenvolvimento tecnológico e aproximar-se dos países latino-americanos, assumem uma posição relevante na definição do quadro da dependência do continente.
O artigo está dividido da seguinte forma: além desta Introdução na seção 2 resgatamos algumas interpretações sobre a dependência, bem como algumas interpretações sobre as novas formas de dependência; na seção 3 apresentamos as formulações sobre a dependência e seus mecanismos de operação recentes, procurando mostrar a participação da China nesse contexto e como um ator relevante na reprodução desses mecanismos; na seção 4 apresentamos as conclusões.
2 Dependência: interpretações e novas determinações
Ainda nos anos 40 do século XX, a partir da crítica às teorias liberais de comércio internacional, Raul Prebisch (1946) formula o conceito de centro-periferia, que aparece pela primeira vez segundo Couto (2007)COUTO, Joaquim Miguel. O pensamento desenvolvimentista de Raúl Prebisch. Economia e Sociedade, 2007. em 1946, no texto “Memoria de la Primeira Reunión de Técnicos sobre Problemas de Banca Central del Continente Americano”. Nesse texto Prebisch afirma que: “Os Estados Unidos, a meu ver, desempenham ativamente o papel de centro cíclico principal, não só no continente, mas em todo o mundo; e os países latino-americanos estão na periferia do sistema econômico (...)” (Prebisch, 1946, apud Couto, 2007COUTO, Joaquim Miguel. O pensamento desenvolvimentista de Raúl Prebisch. Economia e Sociedade, 2007., p. 48).
Nesse contexto, Prebisch defende ainda a existência de um único movimento econômico cíclico que se divide distintivamente segundo o centro e a periferia. (Couto, 2007COUTO, Joaquim Miguel. O pensamento desenvolvimentista de Raúl Prebisch. Economia e Sociedade, 2007.). A partir da ideia de ciclo único, a concretização da noção de sistema de relações econômicas internacionais (denominado centro-periferia) apareceria de forma mais acabada em 1949 no texto clássico de Prebisch, “O manifesto latino-americano”, onde o autor elucida a distribuição desigual do progresso técnico desse sistema e o papel da desigualdade nas relações de troca comerciais entre centro e periferia. (Prebisch,1949PREBISCH, Raul. (1949). O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus principais problemas. In: BIELSHOWSKY, R. Cinquenta anos de pensamento da Cepal. Editora Record, 2000.).1 (1) Para Paulani (2022), Prebisch inaugura o que pode ser classificada como uma teoria “original” da dependência, inscrita nos marcos da Cepal, e derivada da posição primário-exportadora dos países periféricos. Nessa teorização o benefício para a acumulação dos países centrais decorre das relações comerciais caracterizadas pelas trocas desiguais, que permitem a transferência de parcelas de valor que deveriam permanecer na periferia.
Na esteira das formulações teóricas do estruturalismo latino-americano, Celso Furtado irá desenvolver sua própria teorização acerca dos desafios do desenvolvimento do continente, ressaltando o conceito de subdesenvolvimento, que, para o autor, não seria apenas uma etapa do desenvolvimento, necessária ao processo de formação das economias capitalistas modernas, mas sim um processo particular, resultante da entrada de empresas capitalistas modernas em estruturas arcaicas, como as latino-americanas. (Furtado, 1961FURTADO, Celso (1961). Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto; Centro Internacional Celso Furtado, 2009.).
Furtado formula uma noção de dependência, segundo Manzatto e Saes (2021)MANZATTO, Rômulo; SAES, Alexandre Macchione. Celso Furtado, intérprete da dependência. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 78, p. 182-205, abr. 2021., ainda antes dos anos 60, mesmo que o conceito não tivesse sido amplamente apresentado por este autor, como será em trabalhos posteriores. No livro “A Operação Nordeste” (1959) Furtado afirmaria que “as relações econômicas entre uma economia industrial e economias primárias tendem sempre a formas de exploração”, destacando uma “tendência das economias industriais [...] a inibir o crescimento das economias primárias” (Furtado, 1959FURTADO, C. (1959). A Operação Nordeste. In: FURTADO, C. O Nordeste e a saga da Sudene: 1958-1964. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2009. p. 29-71. (Arquivos Celso Furtado, 3)., apud Manzatto; Saes, 2021MANZATTO, Rômulo; SAES, Alexandre Macchione. Celso Furtado, intérprete da dependência. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 78, p. 182-205, abr. 2021., p. 176).
Ainda nessa obra Furtado explica que o processo de desenvolvimento econômico do Brasil nas décadas anteriores avançou no sentido de uma maior articulação entre as diferentes regiões do país, tendo como centro gravitacional do processo a região centro-sul, impulsionada externamente pelas exportações de café. Para Furtado esse tipo de desenvolvimento ocorria a partir da reprodução do “mesmo esquema de divisão geográfica do trabalho que viciaria todo o desenvolvimento da economia mundial, com suas metrópoles industrializadas e colônias produtoras de matérias-primas”.
A formulação de Celso Furtado sobre a dependência ganharia contornos mais elaborados a partir dos anos 60, no contexto do golpe no Brasil e da crise do desenvolvimentismo do país. O exílio no Chile aparece como um momento importante em que o autor avança na elaboração de sua concepção de dependência. Essa concepção passa pela formulação de novas determinações da dependência, no contexto da presença das multinacionais e a importação de padrões produtivos e de tecnologias estrangeiras, impondo desafios relacionados agora não apenas a especialização primária, mas a uma industrialização que se dá reproduzindo a dependência, agora na forma de controle de tecnologia e remessa de lucros, além do endividamento externo e mudanças nos padrões de consumo e avanço da modernização.
Na obra, “Os ares do mundo”, (1991), Furtado afirma que,
Esse processo de modernização engendrava uma dependência cultural que condicionava a estrutura econômico-social. A industrialização tardia se realizava no quadro dessa dependência. Ao contrário a industrialização clássica, na qual a produção manufatureira assumia a forma de um fluxo de inovações e disputava os mercados à produção artesanal, na industrialização tardia o produto manufaturado local concorre com o importado, frequentemente de melhor qualidade. Daí que as técnicas utilizadas sejam, de alguma forma, predeterminadas. Por conseguinte, a dependência tecnológica não é mais do que um aspecto da dependência cultural (Furtado, 1991, p. 35).
No livro “A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina” (1973) Furtado afirma:
Intentaremos captar o fenômeno do subdesenvolvimento no quadro da história contemporânea: como consequência da rápida propagação de novas formas de produção, a partir de um número limitado de centros irradiadores de inovações tecnológicas, em um processo que tendeu à criação de um sistema econômico de âmbito planetário. Desta forma, consideraremos o subdesenvolvimento como uma criação do desenvolvimento, isto é, como consequência do impacto em muitas sociedades, de processos técnicos e de formas de divisão do trabalho irradiados do pequeno número de sociedades que se haviam inserido na revolução industrial na fase inicial desta, ou seja, até fins do século passado. As relações que se estabelecem entre esses dois tipos de sociedades envolvem formas de dependência que tendem a autoperpetuar-se. Essa dependência apoiou-se, inicialmente, num sistema de divisão internacional do trabalho que reservava para os centros dominantes as atividades produtivas em que se concentrava o progresso tecnológico; em fase subsequente ela teve como ponto de apoio principal o controle, por grupos integrados nas economias dominantes, daquelas atividades produtivas, instaladas nas economias dependentes, em que mais significativa é a assimilação dos novos procedimentos técnicos (Furtado, 1973FURTADO, Celso. A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina. 1973.).2 (2) Segundo Paulani (2022), as concepções de Furtado sobre a dependência, principalmente em suas formulações mais contemporâneas, relacionam-se também às questões ligadas as relações financeiras que se estabelecem entre as periferias e o centro, como relações de dependência originadas do acúmulo de dívidas e a remuneração de fatores e propriedade de capital monetário.
Nos anos 60, a partir de um referencial teórico distinto das análises estruturalistas, a noção de dependência avança, agora fundada no aprofundamento da teoria marxista e a partir de autores como Ruy Mauro Marini (2005MARINI, R. M. (1973). Dialética da dependência. In: TRESPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (Org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.), Teotônio dos Santos (1970) e Vania Bambirra (1978).3 (3) Como se sabe, no contexto dos anos 60 e ainda dentro da Cepal, outras formulações sobre a dependência aparecem, como aquela formulada por Cardoso e Faletto em “Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica”, cuja abordagem aproxima-se mais da perspectiva weberiana que marxista.
Como afirma Carcanholo (2013)CARCANHOLO, M. O atual resgate crítico da teoria marxista da dependência. Trabalho, Educação e Saúde (on line), v. 11, n. 1, p. 191-205, 2013., a teoria marxista da dependência é
o termo pelo qual ficou conhecida a versão que interpreta, com base na teoria de Marx sobre o modo de produção capitalista, na teoria clássica do imperialismo e em algumas outras obras pioneiras sobre a relação centro - periferia na economia mundial, a condição dependente das sociedades periféricas como um desdobramento próprio da lógica de funcionamento da economia capitalista mundial (Carcanholo, 2013CARCANHOLO, M. O atual resgate crítico da teoria marxista da dependência. Trabalho, Educação e Saúde (on line), v. 11, n. 1, p. 191-205, 2013., p. 192).
A partir desta perspectiva, o desenvolvimento latino-americano, nos quadros do capitalismo, só pode ocorrer em uma série de limitações e de uma forma específica, que reproduz a própria dependência, a partir da operação de mecanismos estruturais.
A partir das formulações de Marini (2005MARINI, R. M. (1973). Dialética da dependência. In: TRESPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (Org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.) a troca desigual se estabelece como mecanismo fundamental nas relações entre as nações e ocorre: a partir da diferença de produtividade, em que nos mesmos setores de produção, ao operar com preços de produção diferentes, as nações industriais (ao imporem preços acima dos valores) apropriam-se de mais-valia extra nas nações periféricas; e entre setores de produção diferentes, onde o poder de monopólio leva as nações centrais a capturarem parte do valor gerado nas economias dependentes. (Marini, 2005MARINI, R. M. (1973). Dialética da dependência. In: TRESPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (Org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.; Paulani, 2022PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022.).4 (4) Segundo Paulani (2022), nos textos posteriores de Marini (1995) a globalização e o comércio intrafirmas levaram a uma homogeneização da produtividade do trabalho devido a padronização tecnológica. Dissiparam-se a partir daí aquelas condições (anteriormente formuladas pelo autor) para a troca desigual como elemento fundante das relações de dependência. Estas agora inscrevem-se muito mais no acirramento da concorrência entre os capitais, a partir da superioridade dos países centrais em monopolizar tecnologias e controlar a transferência de atividades menos rentáveis para países atrasados (Paulani, 2022).
Como se sabe, segundo Marini, para compensar a troca desigual impõe-se nos países latino-americanos um mecanismo no nível da produção interna, qual seja, a superexploração do trabalho, ou seja, a remuneração por salário inferior ao valor da força de trabalho. Assim, Marini entende a “dependência como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência” (Marini, 2005MARINI, R. M. (1973). Dialética da dependência. In: TRESPADINI, R.; STÉDILE, J. P. (Org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005., p. 54).
Ao longo das últimas décadas, desde as primeiras formulações sobre a dependência, o capitalismo passou por diversas transformações que alteraram os mecanismos por meio dos quais as relações de dependência se estabelecem, ainda que a hierarquia entre os Estados tenha se mantido. O avanço dos mecanismos de acumulação financeira, a expansão da globalização e da divisão internacional do trabalho, as transformações produtivas e tecnológicas, são algumas marcas das últimas décadas que transformaram estas relações, embora não eliminando as diferenças entre as nações.
Grande parte destas transformações tem início a partir dos anos 70, momento em que são rompidas grande parte das estruturas que permitiram certa estabilidade no sistema internacional desde o pós-guerra, abrindo caminho para uma nova divisão internacional do trabalho, para a expansão das grandes empresas transnacionais e a propagação dos instrumentos de acumulação financeira.
A partir dos desafios enfrentados pela economia dos EUA em sustentar a posição do dólar e da própria supremacia da economia americana, medidas adotadas como o fim do lastro em dólar, o fim dos controles de capitais e a política do dólar forte, tiveram consequências fundamentais para desestruturação do regime monetário até então vigente, criando um ambiente internacional marcado pelos processos de expansão financeira e desequilíbrio macroeconômico. Segundo Tavares e Melin, (1997)TAVARES, M. da Conceição; MELIN, Luis E. Pós-escrito 1997: a reafirmação da hegemonia norte-americana. In: TAVARES, M. C.; FIORI, J. L. (Org.). Poder e dinheiro. Uma economia política da globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1997. p. 55-86. a partir daí, o capital financeiro “tem voado para todos os portos num jogo de cassino em que ganhadores e perdedores só têm contribuído para reforçar a posição financeira do dólar” (Tavares; Melin, 1997TAVARES, M. da Conceição; MELIN, Luis E. Pós-escrito 1997: a reafirmação da hegemonia norte-americana. In: TAVARES, M. C.; FIORI, J. L. (Org.). Poder e dinheiro. Uma economia política da globalização. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1997. p. 55-86., p. 63). A mudança deste ambiente institucional é marcada por um amplo deslocamento do capital produtivo dos países centrais para alguns países periféricos, principalmente asiáticos, o que levou a uma reconfiguração no capitalismo ao nível global.
Observa-se também a expansão de grandes corporações transnacionais que, segundo Serfati (2008)SERFATI, C. Financial dimensions of transnational corporations, global value chain and technological innovation. Journal of Innovation Economics & Management, n. 2, p. 35-61, 2008., apresentam-se não só como maiores e mais internacionalizadas, mas possuem uma categoria própria, atuando como centros financeiros com atividades industriais e avançando na criação de novos produtos financeiros e inovações tecnológicas, em busca da expansão do valor para seus acionistas (Serfati, 2008SERFATI, C. Financial dimensions of transnational corporations, global value chain and technological innovation. Journal of Innovation Economics & Management, n. 2, p. 35-61, 2008.).
Segundo Paulani (2022)PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022. uma das marcas fundamentais do capitalismo contemporâneo é justamente a ampliação dos mecanismos de acumulação financeira. Segundo a autora, a financeirização, a partir de Chesnais (2016), “refere-se ao caráter pervasivo das características do capital portador de juros identificadas por Marx na seção V do Livro III de O Capital. Elas devem ser tomadas em combinação com as implicações do elevado grau de centralização/concentração de capital hoje existente[...]” (Paulani, 2022PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., p. 84).
A partir destas amplas transformações observadas no capitalismo ao longo das últimas décadas, segundo Paulani, a dependência está atualmente assentada não apenas nas novas determinações impostas pela globalização (Fiori, 1995FIORI, J. L. A globalização e a novíssima dependência. In: FIORI, J. L. Em busca do dissenso perdido. Rio de Janeiro: Insight, 1995. p. 215-229.) e pela ampliação dos mecanismos de acumulação financeira, mas também nas transformações relacionadas a atualização do progresso tecnológico que surge a partir da terceira revolução industrial (baseada nas tecnologias de informação e comunicação, eletrônica e internet) e coloca novas formas de acumulação de capital, baseadas não apenas na financeirização, mas também no rentismo. Segundo Paulani,
Para nós, no entanto, a financeirização é apenas a expressão mais evidente de um processo de acumulação que se tornou rentista, entendido este último termo como o predomínio dos ganhos que derivam da simples propriedade do capital (juros, renda absoluta, renda diferencial, renda de monopólio e dividendos) sobre os ganhos que derivam do funcionamento do capital (lucro e super lucro). Enquanto para os primeiros os fluxos de rendimentos existem como direitos e assentam-se na mera propriedade do ativo (capital monetário, terra, ações), para os segundos os rendimentos aparecem como resultado da produção de valor novo e da acumulação de valor excedente, que a operação do capital produz. [...] A novidade, que aprofunda as contradições sistêmicas, está na combinação de uma série de elementos que fazem com que os ganhos que derivam da mera propriedade tenham importância crescente frente àqueles que derivam do processo de acumulação. Além da onipresença do capital portador de juros, temos ainda, dentre os mais relevantes, um tipo moderno de renda absoluta, que vem se tornando cada vez mais importante, a renda do conhecimento, típica das mercadorias-conhecimento, e as rendas de monopólio, oriundas da importância também crescente das marcas (Paulani, 2022PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., p. 85).
Nesse sentido, as transformações no processo de acumulação de capital relacionam-se a mudanças importantes que permitem a ampliação do espaço para a acumulação do tipo rentista. Elas estão ligadas não apenas a acumulação financeira em si, mas também as transformações produtivas, dentro do que vem sendo definido como a indústria 4.0, ou “terceira revolução industrial”. Estas mudanças relacionam-se à indústria baseada nas tecnologias de informação e comunicação - TICs, na eletrônica e na Internet (Paulani, 2022PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022.).
Segundo a autora, as consequências dessas transformações reforçam os traços da dependência que já operavam anteriormente, tais como “o aumento da concentração no que diz respeito aos processos decisórios, ao andamento do progresso técnico e à escala do capital propriamente dita, uma estrutura produtiva cada vez mais segmentada”. Alia-se ainda um espraiamento universal da utilização dos produtos 4.0 típicos, que se tornam insumos indispensáveis a praticamente qualquer tipo de produção” (Paulani, op. cit.). Assim, segundo a autora,
Assentada na internet das coisas, na inteligência artificial, na computação em nuvem e na robótica, a quarta revolução tem como indiscutíveis protagonistas as mercadorias-conhecimento [...] produzidas, regra geral, por gigantes corporativos, cuja operação é em tudo facilitada por mercados desregulados e finanças desreguladas. [...] Quando alinhamos, a partir das definições de dependência original [...] os canais principais por meio dos quais os ganhos materiais são transferidos dos países do centro para os da periferia, percebemos um movimento que sai das relações comerciais e adentra as relações que envolvem pagamento a fatores de produção e, num segundo momento, mas fazendo parte desse mesmo tipo de pagamento, passamos para relações tipicamente rentistas, pois o valor é transferido agora não a título de remuneração do capital produtivo que funcionou e produziu valor novo, valor excedente e lucro, mas pura e simplesmente como pagamento aos proprietários do capital monetário.
[...] as relações comerciais voltam a ser elemento importante de transferência de valor para os países do centro, mas por razões que extrapolam a questão dos termos de troca e têm que ver com a natureza rentista do atual processo de acumulação. Trata-se do pagamento das mercadorias-conhecimento, que é tipicamente pagamento de renda. Em outras palavras, nesses casos, mesmo que as relações de troca se deem aos preços de produção, estará havendo transferência de valor dos países menos avançados para os mais avançados, já que estes últimos detêm as novas tecnologias e são remunerados por essa propriedade. Há, além disso, a renda da marca, também embutida nos preços de muitos bens, fazendo deles preços de monopólio e configurando a troca desigual (incluindo-se igualmente aqui os pagamentos para licença de uso da marca, como é típico dos processos de franchising) (Paulani, 2022PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., p. 91-92).
A importância da argumentação de Paulani está, a nosso ver, na busca pelo entendimento da influência das transformações tecnológicas em curso (e seus impactos nos processos produtivos) nas relações de dependência. A acumulação financeira em si é um elemento fundamental da dependência atual e está imbricado nesses novos mecanismos de trocas desiguais. Este movimento foi analisado por Paulani (2004) e Amaral (2006)AMARAL, Marisa Silva. A investida neoliberal na América Latina e as novas determinações da dependência. Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal de Uberlândia, 2006.. Aqui, dentro do escopo específico deste trabalho, nos interessa investigar a esfera das transformações tecnológicas que estão imbricadas no processo de acumulação de capital e geração do valor recentes e seus impactos nas relações de dependência, bem como a entrada de novos países nessa dinâmica, como a China.
A manutenção da hierarquia entre os Estados, baseada em relações de troca desiguais entre países do centro e periferia, passam atualmente pela capacidade de alguns capitais de alguns países em liderar a corrida tecnológica, avançando da capacidade de inovar e ampliar seus rendimentos, a partir do desenvolvimento tecnológico e de sua difusão nos países periféricos.
Segundo relatório na Unctad (2023)UNCTAD. Chapter II - Moving fast with frontier technologies. Technology and Innovation Report, 2023., as novas tecnologias de fronteira5 (5) Essas tecnologias incluem, segundo relatório da Unctad, 17 pontos: a Industria 4.0 (Inteligência artificial, Internet das Coisas, Big Data, tecnologia Blockchain, tecnologia de quinta geração, impressão tridimensional, robótica, tecnologia de drones); Verde (fotovoltaica solar, energia solar concentrada, biocombustíveis, biogás e biomassa, energia eólica, hidrogênio verde, veículos elétricos); e Outras (Nanotecnologia, edição de genes) (Unctad, 2023). registraram um enorme crescimento nas últimas duas décadas: em 2020, o valor total do mercado era de US$ 1,5 bilhões e em 2030 pode atingir US$ 9,5 bilhões. Cerca de metade deste último destina-se à Internet das coisas (IoT), que abrange uma vasta gama de dispositivos em vários setores. Estas tecnologias são fornecidas principalmente por alguns países, nomeadamente pelos Estados Unidos, China e países da Europa Ocidental. Para estas novas tecnologias, o chamado panorama do conhecimento é dominado pelos Estados Unidos e pela China, com uma quota combinada de 30% das publicações globais e quase 70% das patentes. (Unctad. Technology and Innovation Report, 2023UNCTAD. Chapter II - Moving fast with frontier technologies. Technology and Innovation Report, 2023.).
Ainda segundo a Unctad, apesar do crescimento das novas tecnologias, ainda existe uma concentração considerável nos mercados de tecnologias de ponta. Os principais fornecedores de tecnologia são, em sua maioria, empresas da China, dos Estados Unidos e de alguns outros países desenvolvidos, com pouca participação dos países em desenvolvimento. (Unctad, Policy Brief, n. 109, 2023UNCTAD. Policy Brief, n. 109, Jun. 2023.).
Como afirma Majerowicz (2022)MAJEROWICZ, E. A disputa Sino-Americana nas tecnologias da informação e comunicação. In: A CHINA no capitalismo contemporâneo. Editora Expressão Popular, 2022. nos últimos anos observa-se um amplo processo de digitalização da economia e da vida social em geral, com a ascensão das plataformas e a automação baseada em inteligência artificial. Estas mudanças vêm influenciando a reestruturação manufatureira que vem ocorrendo nos países e indústrias com base em tecnologias digitais e tem sido a base para as disputas tecnológicas entre as grandes potências, como EUA e China. Nesse contexto, novas tecnologias como semicondutores, infraestrutura de telecomunicações móveis (5G) e inteligência artificial são chaves para o sistema tecnológico atual.
Como afirma Morozov (2010) já há algumas décadas a difusão da tecnologia fez com que não se possa analisá-la em si mesma, mas sim como um campo em disputa em que geopolítica, finança global, consumo e apropriação corporativa devem ser levados em conta. Empresas de grande porte, principalmente americanas, mas não apenas, dominam o setor. As Big Techs e outras empresas de compartilhamento, por exemplo, tem um grande poder de mercado, avançando principalmente na captura de dados em diversos países. Segundo o autor, “é bem provável que a luta global pelos dados e pela supremacia da inteligência artificial, mais uma vez, ajude a cristalizar a verdade que muitos teóricos da dependência [...] entenderam há muito: quem domina a tecnologia mais avançada também domina o mundo” (Morozov, 2010).
Segundo Majerowicz (2022)MAJEROWICZ, E. A disputa Sino-Americana nas tecnologias da informação e comunicação. In: A CHINA no capitalismo contemporâneo. Editora Expressão Popular, 2022., as plataformas tecnológicas globais representam cada vez mais um bloco poderoso com interesses mercantis e amplo poder. Dentro desse sistema existe uma forte concentração em países e empresas, em alguns segmentos como os produtores de IA e os produtores de semicondutores. Os Estados Unidos têm um poder estrutural no desenvolvimento dessas tecnologias, como semicondutores, mas outros países, como a China, conseguiram avançar em segmentos intermediários importantes desse sistema.
A partir de Majerowicz (2022)MAJEROWICZ, E. A disputa Sino-Americana nas tecnologias da informação e comunicação. In: A CHINA no capitalismo contemporâneo. Editora Expressão Popular, 2022. é possível perceber que, ao mesmo tempo, em que há uma forte concentração nos nódulos mais valorizados desse sistema, a própria concentração depende da disseminação e pulverização dos semicondutores e dispositivos eletrônicos na economia, na sociedade civil e no governo e nas infraestruturas tradicionais de outros países. O que vem ocorrendo com relação às novas tecnologias é uma disputa em curso entre EUA e China no campo do sistema de TIC, com os EUA assumindo um poder estrutural e a China tentando avançar no desenvolvimento de tecnologias e na vinculação de seus próprios padrões tecnológicos. O espraiamento desse sistema vai ocorrendo de forma controlada, com forte controle dos nexos fundamentais, com forte domínio dos nódulos mais complexos (EUA), mas, ao mesmo tempo as “as etapas produtivas mais simples e intensivas em trabalho não qualificado [sejam] deslocadas para toda e qualquer parte do globo onde haja vantagens de custos” (Majerowicz, 2022MAJEROWICZ, E. A disputa Sino-Americana nas tecnologias da informação e comunicação. In: A CHINA no capitalismo contemporâneo. Editora Expressão Popular, 2022., p. 217).
A disputa entre Estados Unidos e China assume um quadro em que,
as transformações em curso apontam para o aprofundamento da concorrência tecnológica entre EUA e China, com o significativo reposicionamento americano, assentando o entendimento de que o caminho inevitável para manter sua supremacia tecnológica é o salto para frente, empurrando a fronteira tecnológica. [...] Ademais, constitui-se enquanto uma disputa ferrenha pelos mercados e infraestruturas dos demais países, em especial, daqueles periféricos, os quais se inserem enquanto consumidores de tecnologia - o que, em geral, tende a aumentar suas distâncias tecnológicas em relação ao centro e dar propulsão global à segunda onda de modernização baseada nas TIC. [...] As ramificações e consequências desse processo no aprofundamento da dependência dos países receptores desses pacotes, altamente integrados às infraestruturas críticas governamentais e civis, quando não militares, são ainda incalculáveis (Majerowicz, 2022MAJEROWICZ, E. A disputa Sino-Americana nas tecnologias da informação e comunicação. In: A CHINA no capitalismo contemporâneo. Editora Expressão Popular, 2022., p. 230).
Outro aspecto relacionado às transformações tecnológicas recentes e ao processo de difusão e espraiamento das novas tecnologias, e que aponta para o estabelecimento de novas relações de dependência, diz respeito ao que vem sendo chamado por alguns autores como colonialismo de dados. Segundo Couldry e Mejias (2019)COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises A. The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism (Culture and Economic Life). 1. ed. Stanford University Press, 2019. no capitalismo contemporâneo grandes empresas buscam expandir-se para países periféricos para ter acesso a dados. O que se entende por dados são fluxos de informações que passam da vida humana em todas as suas formas para infraestruturas de coleta e processamento. Eles estão ligados a dois elementos essenciais: a infraestrutura externa na qual ele é armazenado; e a geração de lucro para a qual está destinado. (Couldry; Mejias, 2019COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises A. The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism (Culture and Economic Life). 1. ed. Stanford University Press, 2019.).
Segundo os autores, empresas como Apple, Microsoft, Samsung, e também empresas que constroem ambientes baseados em computador, plataformas e ferramentas que permitem conectar e usar o mundo online, incluindo nomes conhecidos, não apenas norte-americanos, mas também chinesas, como Alibaba, Baidu, Facebook, Google e WeChat, além de corretores de dados e organizações de processamento de dados, como Acxiom, Equifax, Palantir e TalkingData (na China), coletam, agregam, analisam e vendem dados de todos os tipos, enquanto também apoiam outras organizações em seus usos de dados. Segundo os autores:
But until recently, this expansion has been based on the exploitation of human production through labor relations, as classically theorized by Marx, resulting in the ever-greater transformation of physical nature as an input to capitalism. But the appropriation of human life in the form of data (the basic move that we call data colonialism) generates a new possibility: without ending its exploitation of labor and its transformation of physical nature, capitalism extends its capacity to exploit life by assimilating new or reconfigured human activities (whether regarded as labor or not) as its direct inputs. The result, is the expansion of the practical scope of capitalist exploitation, but in ways that can be linked back to Marx’s own sense of capitalism’s expansionary potential. In this emerging form of capitalism, human beings become not just actors in the production process but raw material that can be transformed into value for that production process. Human life, in the form of profitably abstracted data, becomes more like the seed or manure that Marx noted became factors of capitalist production, having once just been part of human beings’ cycle of interaction with the land. This transformation of human life into raw material resonates strongly with the history of exploitation that preceded industrial capitalism - that is, colonialism (Couldry; Mejias, 2019COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises A. The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism (Culture and Economic Life). 1. ed. Stanford University Press, 2019., p. 17).
3 América Latina, dependência e o papel do capital chinês
No quadro das transformações tecnológicas recentes, como visto, países como Estados Unidos e China avançam na corrida pela inovação tecnológica e sua incorporação nos processos produtivos, mediante esforços estatais de investimento e o surgimento de diversas empresas, como as Big Techs, as empresas digitais e empresas de plataforma.
Os países da América Latina vêm se inserindo de maneira ampla nessa nova economia tecnológica e digital. Entretanto, a manutenção de estruturas produtivas internas em geral ainda muito concentradas na produção de artigos primários para exportação, aliada a dificuldade de industrialização e modernização, vem fazendo com que o continente acabe por se inserir apenas como consumidor e importador de produtos e serviços tecnológicos e digitais, sendo receptor de investimentos diretos estrangeiros de empresas ligadas às novas tecnologias. Tal quadro vem somar-se a uma posição dos países do continente de receptores de capitais financeiros internacionais, no quadro mais amplo do neoliberalismo e da financeirização.
A manutenção de estruturas produtivas incompletas ou inexistentes fez com que o continente ficasse atrás de países tradicionalmente avançados, e também da China, posicionando-se muito mais como um receptor e comprador dos produtos e serviços tecnológicos do que um desenvolvedor de tecnologias, o que, segundo procuramos argumentar aqui, acaba por reeditar a posição de dependência.
Nas últimas décadas, a América Latina não conseguiu crescer de maneira a atender as demandas econômicas e sociais internas. Os países do continente em geral apresentaram taxas de crescimento baixas (média de 2,37% ao ano entre 2000 e 2022), acompanhando a média de crescimento da economia mundial (média de 2,9% ao ano), e em alguns momentos crescendo abaixo desta última (WorldBank Database, 2023WORLDBANK Database, 2023.). O continente cresceu bem menos que a região asiática, por exemplo, que demonstrou forte crescimento nos últimos 22 anos (quase 6% ao ano). O mesmo pode ser visto com relação ao PIB per capita da região, que cresceu bem abaixo do crescimento do mesmo em outras regiões, como mostra o Gráfico 1.
América Latina e Caribe: Exportações (a) e importações (b) totais para o mundo (milhões de dólares) e % de produtos primários e manufaturados (1995-2021)
As baixas taxas de crescimento econômico e do PIB per capita do continente refletem a dificuldade dos países em transformar suas estruturas produtivas na direção de atividades mais complexas, que geram mais renda e exportações de maior valor agregado. Desde o início do século XXI o continente apresenta uma estrutura produtiva pouco avançada em termos industriais. O setor secundário representou, entre 2001 e 2022, cerca de 30% do PIB, enquanto o setor primário cerca de 7% do PIB e o setor terciário, de serviços, já é o mais importante, respondendo por quase 70% do PIB. (WorldBank Database, 2023WORLDBANK Database, 2023.). Como apontou Hiratuka (2018)HIRATUKA, C. Changes in the Chinese development strategy after the global crisis and its impacts in Latin America. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-25, 2018., na América Latina os investimentos em infraestrutura, por exemplo, ficaram bem abaixo de outros países em desenvolvimento, como a China e a Índia. (Hiratuka, 2018HIRATUKA, C. Changes in the Chinese development strategy after the global crisis and its impacts in Latin America. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-25, 2018.).
Apesar da estrutura produtiva desenvolver-se na direção dos serviços, a inserção externa latino-americana permanece fortemente concentrada na exportação de produtos primários e na importação de artigos industrializados, tal como ocorria em períodos anteriores. Do total exportado pelo continente para o mundo em 2021, 50% eram de produtos primários e apenas 8% foram de artigos manufaturados. Em alguns países a pauta exportadora é ainda mais concentrada em produtos primários. No caso das importações, a participação dos produtos manufaturados é alta, representando quase 70% do total importado em 2021.
Na esteira de uma pauta comercial muito dependente das exportações de artigos primários, a América Latina importa muitos produtos industrializados e, cada vez mais, de maior valor agregado. Alguns destes produtos são aqueles relacionados às novas tecnologias da informação e comunicação (TIC). Segundo dados da UnctadStat (2023)UNCTAD Stat. 2023. as importações latino-americanas de bens TIC vêm aumentando nos últimos anos. Cada vez mais a China aparece como um dos principais vendedores deste tipo de produto para o continente, como mostra o Gráfico 3.
América Latina - Importações totais mundiais de TIC* (eixo esquerdo, milhões de dólares) e % da China e EUA no total (eixo direito)
Mapa - Projetos e Investimentos de empresas chinesas na América Latina (lado esquerdo) e Brasil (lado direito) em setores de tecnologia no âmbito da Digital Silk Road (2023)
O continente latino-americano é um grande receptor de investimentos estrangeiros diretos (IEDs). Em 2022, a América Latina e o Caribe receberam US$ 224,579 bilhões de IEDs, um aumento de 55,2% em relação a 2021 e o valor máximo registrado até agora, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) de 2023.Os IEDs dirigidos à América Latina estão ligados a setores tradicionais, como de recursos naturais, mas nas últimas décadas outros setores vêm liderando, como de serviços, que recebeu 54% dos IDES em 2022, e de manufatura (30% em 2022). Segundo relatório da Cepal a receita gerada pelo estoque de IDE é um dos componentes que impactam negativamente a conta corrente do Balanço de Pagamentos da América Latina. A balança corrente da balança de pagamentos do continente apresenta um déficit desde 2010. Em 2022 o déficit atingiu 2,6% do PIB e a balança de rendimentos foi a maior componente do déficit, como tem acontecido historicamente, com um total de 3,3%. Dentro dos rendimentos, o déficit correspondente às receitas do IED representou 2,1% do PIB. (Cepal, 2023CEPAL. La inversión extranjera directa en América Latina y el Caribe. 2023.).
Segundo dados da Cepal, em 2022, Estados Unidos e União Europeia foram os maiores investidores na região, com 38% e 17% respectivamente de IEDs. A China representou 3% dos IEDs que chegaram à América Latina. Embora represente pouco comparado aos demais países, nos últimos anos a China vem se aproximando cada vez mais da América Latina. Os dados do Ministério do Comércio da China informam que do total de IEDs chineses no mundo em 2010, 15,31% foram destinados à América Latina, em 2017 a porcentagem foi de 8,89%, acompanhando uma redução geral dos IEDs chineses a partir de 2016. (MOFCOM).
Nas últimas décadas as relações entre a América Latina e a China aprofundaram-se substancialmente, seja com relações aos investimentos chineses na região, seja com relação ao aprofundamento do comércio e as mudanças no perfil deste comércio, como analisado por Hiratuka (2018)HIRATUKA, C. Changes in the Chinese development strategy after the global crisis and its impacts in Latin America. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-25, 2018. e Barbosa (2020)BARBOSA, A. F. A ascensão chinesa, as transformações da economia-mundo capitalista e os impactos sobre os padrões de comércio na América Latina. Revista Tempo do Mundo, Ipea, n. 24, p. 135-173, 2020..
Segundo a base de dados Dussel Peters Monitor de IEDs (2023), entre 2001 e 2022, as empresas chinesas investiram um total de US$ 184.619 bilhões na América Latina. Em 2022 foram cerca de 12 bilhões. As empresas chinesas estão presentes em praticamente todos os países da América Latina em setores como mineração, energia, eletrônicos, químico, financeiro e outros. O setor de energia representa 34,33% deste total de investimentos, o de mineração 15,4% e o setor de telecomunicações representa 2,72%. (Dussel Peters Monitor, 2023DUSSEL PETERS MONITOR, 2023.).
A ampla participação dos investimentos chineses em setores de energia e mineração reflete a disponibilidade de recursos que o continente dispõe e também sua estrutura produtiva ainda bastante especializada nesse tipo de recurso. Ainda assim, a disponibilidade de um amplo mercado consumidor e a expansão de setores como de serviços, além de amplas parcelas da população residindo nas grandes cidades, tem feito com que o continente venha recebendo investimentos em setores mais diversos, enquanto amplia sua demanda por artigos tecnológicos e de TIC.
Como aponta Hiratuka (2018)HIRATUKA, C. Changes in the Chinese development strategy after the global crisis and its impacts in Latin America. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-25, 2018. as mudanças ligadas ao estabelecimento de um novo padrão de crescimento na China tiveram impacto nas relações do país asiático com a América Latina. Além da manutenção das relações comerciais, há uma ampliação da presença dos Investimentos Diretos, cada vez mais diversificados. Além dos tradicionais setores ligados à mineração e energia, os sectores de infraestrutura e das atividades da indústria transformadora (como em segmentos de telecomunicações, transportes e construção) vem crescendo em importância. Segundo Hiratuka, neste novo perfil de relacionamento haveria um potencial para o surgimento de novas oportunidades para a América Latina, com os investimentos provenientes de fontes chinesas podendo ter influência positiva no desenvolvimento de infraestruturas e atividades industriais latino-americanas. No entanto, ressalta o autor, esse efeito positivo pode não se concretizar, caso não esteja articulado com uma estratégia clara de desenvolvimento dos próprios países da América Latina. (Hiratuka, 2018HIRATUKA, C. Changes in the Chinese development strategy after the global crisis and its impacts in Latin America. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-25, 2018.).
O fato é que após quase quarenta anos desde o início da abertura, a China passa por importantes transformações que a posicionam como um pólo de avanços tecnológicos. Para alguns autores, a China estaria atualmente em um “ponto de virada estrutural” (Naughton, 2018NAUGHTON, B. The Chinese economy: adaptation and growth. 2nd ed. Cambridge, MA; London: MIT Press, 2018.), que acompanha o esgotamento do ciclo de rápido crescimento anterior, e a partir do qual o país enfrenta a necessidade de transitar do que seria um modelo de alto crescimento para um modelo de alta qualidade. Todas essas mudanças conduzem à necessidade da China de transitar de uma economia de manufatura baseada na produção de bens finais para a produção de artigos de alto conteúdo tecnológico, o que requer um recalibramento do investimento doméstico, que sairia da infraestrutura e da indústria pesada para uma economia baseada no “soft innovation” e na ampliação do consumo (Naughton, 2018NAUGHTON, B. The Chinese economy: adaptation and growth. 2nd ed. Cambridge, MA; London: MIT Press, 2018.).
Estas mudanças estruturais ligadas a um novo padrão de crescimento, ou ao menos a um esgotamento do padrão anterior, conduzem, por sua vez, a mudanças na projeção econômica global da China. Observa-se o direcionamento do excesso de poupança para os investimentos no exterior, que passam a ocupar um papel crescente, não apenas a partir de empresas estatais, mas também privadas, direcionados a setores diversos, com as empresas chinesas buscando expertise no exterior por meio de fusões e aquisições. (Ribeiro, 2022RIBEIRO, V. L. A expansão chinesa recente: estado, capital e acumulação em escala global. In: A CHINA no capitalismo contemporâneo. Editora Expressão Popular, 2022.).
Assim, o avanço tecnológico aparece como uma marca e um dos grandes desafios atuais da China no sentido de uma mudança estrutural (Naughton, 2018NAUGHTON, B. The Chinese economy: adaptation and growth. 2nd ed. Cambridge, MA; London: MIT Press, 2018.; Majerowicz; Medeiros, 2018MAJEROWICZ, E.; MEDEIROS, C. A. Chinese industrial policy in the geopolitics of the information age: the case of semiconductors. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, 2018.). A importância da China hoje nos setores de tecnologia de ponta é visível, seja através do crescimento das empresas chinesas em alguns segmentos de produtos de tecnologia, informação e comunicação, como a fabricação de smartphones, notebooks e outros, como também por meio do avanço em tecnologias de infraestrutura digital, como o 5G.
Ainda que a China esteja distante na fabricação de alguns segmentos e produtos de alta tecnologia, por outro lado o país avança na expansão de outros segmentos e produtos, como a Inteligência Artificial (IA), a infraestrutura de redes, as empresas digitais e de plataforma, que representam hoje parte importante do mercado mundial.
Segundo Webb (2019)WEBB, Amy. The big nine: how the tech titans and their thinking machines could warp humanity. New York: PublicAffairs, 2019. as maiores empresas de Inteligência Artificial no mundo atualmente são a Google, Amazon, Apple, IBM, Microsoft e Facebook nos Estados Unidos, e as chinesas Baidu, Alibaba e Tencent. Estas nove empresas juntas têm um valor de mercado de cerca de US$ 4,9 trilhões.
Como aponta Seoane (2021)SEOANE, Maximiliano V. Chinese and U.S. AI and cloud multinational corporations in Latin America. 2021. quando se fala nos investimentos de empresas transnacionais do setor de tecnologia em todo o mundo é importante considerar que os países da América Latina vem sendo um espaço importante onde as empresas de grandes nações competem e exportam suas tecnologias, como a de Inteligência Artificial, por exemplo, e outras. Segundo o autor, a proliferação dos aparelhos digitais fez com que fosse criado um mercado para venda de produtos e serviços nos países latino-americanos e periféricos em geral. Ao mesmo tempo que se apresentam como mercado de consumo, esses países também são espaços onde se disponibilizam recursos fundamentais para as empresas de tecnologia, como a infraestrutura de energia, necessária para o armazenamento e processamento (em data centers, por exemplo), e os próprios dados em si, uma mercadoria central para as empresas de tecnologia. Assim, empresas transnacionais, principalmente americanas (como a Amazon e a Microsoft) mas também chinesas (Huawei), estão construindo redes globais onde esses data centers se instalam, muitas vezes em países periféricos como os latino-americanos. Segundo Seoane (2021)SEOANE, Maximiliano V. Chinese and U.S. AI and cloud multinational corporations in Latin America. 2021., a América Latina não consegue competir na fronteira das novas tecnologias digitais, como a IA, mas possui muitas empresas e indivíduos capazes de produzir recursos essenciais para a base econômica da IA, como os dados, que são processados pelas grandes empresas.
É nesse sentido que cada vez mais se observa a presença das empresas estrangeiras, principalmente norte-americanas, como as famosas Big Techs, Facebook, Amazon. Mas também observam-se empresas chinesas, em menor medida, segundo Seoane (2021)SEOANE, Maximiliano V. Chinese and U.S. AI and cloud multinational corporations in Latin America. 2021., mas que também fornecem produtos e serviços de infraestrutura digital, centros de armazenamento em nuvem, como a Huawei e outras empresas que atuam no campo da infraestrutura para serviços digitais, como data centers, cabos de fibra ótica, tecnologia para cidades inteligentes e para câmeras de segurança, com forte presença na América Latina. Além destas, outras empresas digitais chinesas de vendas e comercialização como a Alibaba, ou a Tencent, e empresas do ramo de plataforma, como a Didi, também atuam na América Latina.
Dados relacionados à disponibilidade de produtos tecnológicos e capacidade de inovação demonstram que a China vem se aproximando cada vez mais dos países avançados, como os EUA e se distanciando de países periféricos. Os dados da Unctad (2023)UNCTAD. Chapter II - Moving fast with frontier technologies. Technology and Innovation Report, 2023. específicos para o setor de TIC mostram que, embora diversos países tenham ampliado a oferta de serviços e produtos relacionados à economia digital e de TIC, existem diferenças quanto a capacidade de pesquisa e desenvolvimento e atividade industrial, como mostra a Tabela 1.
Países selecionados - Índice de capacidade de uso, adoção e adaptação de tecnologias de ponta (2021)
A Tabela apresenta o índice que avalia, segundo a Unctad, a prontidão de um país para usar, adotar e adaptar tecnologias de ponta. O índice é composto por índices de implantação de TIC, habilidades, atividade de P&D, atividade industrial e acesso a financiamento. Na tabela é possível observar que a China e os EUA têm o índice geral alto (1 e 0,7) e também índices altos ligados à pesquisa e desenvolvimento e atividade industrial. No caso do índice baixo da China ligado a TIC, a explicação deve-se ao tamanho da população e a ainda disparidade quanto ao acesso de usuários de internet, por exemplo. Os países da América Latina selecionados aparecem com índices baixos, e muito distantes da China e dos EUA, principalmente aqueles relacionados à Pesquisa e Desenvolvimento e capacidade de atividade industrial.
Segundo Hillman (2022)HILLMAN, Jonathan E. A rota da seda digital: o plano da China de conectar o mundo e dominar o futuro. Editora Vestígio, 2022. nos últimos anos a China avançou na fabricação e na exportação de sistemas de comunicação cada vez mais rápidos e com maior alcance e capacidade de transmissão. Se há algumas décadas o país importava muitos produtos tecnológicos, hoje ela é uma fabricante e fornecedora. Em 2017, segundo o autor, satélites especiais para realização de videoconferência intercontinental por criptografia quântica foram utilizados pelos chineses, o que representa um passo fundamental para construir uma rede invulnerável a ataques cibernéticos. Em 2018 empresas chinesas, como a Huawei e a Vodafone, avançaram na tecnologia 5G. Hoje a Huawei tem fábricas em mais de 170 países e está presente na América Latina há duas décadas.
Outras empresas chinesas, como a Hengtong, atuam como importantes fornecedoras de cabos submarinos de fibra óptica essenciais para o transporte de dados. Em 2018, segundo Hillman, a Hengtong vendeu 10 mil km de cabos submarinos de fibra óptica para sistemas que transportam a maioria dos dados internacionais. O Grupo Hengtong fabrica 15% da fibra óptica do planeta e é um dos maiores fornecedores de cabos submarinos pelos quais são transmitidos 95% dos dados internacionais. Outras empresas chinesas ligadas às novas tecnologias, como em setores de vigilância, que incluem câmeras de alto teor tecnológico e uso de inteligência artificial, vem aparecendo como grandes fornecedoras em todo o mundo. A empresa chinesa Hikvision e a Dahua produzem cerca de 40% das câmeras de vigilância do mundo. Já o Beidou, sistema global de navegação por satélite da China fornece cobertura em mais de 165 maiores capitais do mundo, enquanto a China Telecom e China Unicom são grandes companhias de telecomunicações estatais que estão presentes na Ásia, África e América Latina. (Hillman, 2022HILLMAN, Jonathan E. A rota da seda digital: o plano da China de conectar o mundo e dominar o futuro. Editora Vestígio, 2022.).
Segundo Hillman (2022)HILLMAN, Jonathan E. A rota da seda digital: o plano da China de conectar o mundo e dominar o futuro. Editora Vestígio, 2022. estaria em curso uma disputa entre EUA e China em terceiros mercados, com ecossistemas digitais concorrentes, cada um com seus equipamentos e padrões. Nessa disputa, no caso da China, o país avança a partir do fornecimento de novas tecnologias em países do terceiro mundo, através da difusão da infraestrutura digital, que pode ser analisada a partir de quatro camadas, analisadas pelo autor: as redes sem fio,6 (6) Um ponto interessante sobre a questão das redes e da infraestrutura digital é que existe uma dimensão física para que o digital avance. A nuvem, por exemplo, tem um elemento tangível que consiste em centros de dados e cabos de fibra ótica. os dispositivos conectados à internet, backbone de rede e os satélites. Estas camadas envolvem IA, aplicações de big data (megadados) e outras tecnologias estratégicas.
Como explicitado na segunda seção deste trabalho, quando se fala no sistema amplo de tecnologia da informação e comunicação a ideia é que os países e empresas posicionam-se para difundir (ainda que de forma restrita) as tecnologias, de modo a gerar efeitos de rede, ou seja, quando um serviço ou produto se torna mais valioso a partir de sua maior utilização. No caso das empresas chinesas, assim como de outras empresas ocidentais, a ideia é que os mercados emergentes possam turbinar seus efeitos de rede. Segundo Hillman (op. cit.), quanto mais pessoas utilizando redes 4G e 5G da Huawei na África e América Latina, mais se cria efeito de rede. Com isso a China vai desenvolvendo e expandindo sua tecnologia e com isso cria mercados, fazendo com que o país possa definir padrões para próximas ondas de tecnologia de comunicações, aumentando ainda mais seus efeitos de rede (Hillman, 2022HILLMAN, Jonathan E. A rota da seda digital: o plano da China de conectar o mundo e dominar o futuro. Editora Vestígio, 2022.).
A expansão dos investimentos e das redes chinesas ganhou importantes contornos dentro do chamado “Digital Silk Road (DSR)”, um ramo específico no âmbito do mais amplo Belt and Road Initiative, criado em 2013 pelo presidente Xi Jinping.
Segundo Law (2023)LAW, Maj Neil. China’s digital influence in Latin America and the Caribbean. Implications for the United States and the region. Journal of Indo-Pacific Affairs, Sept./Oct. 2023. e Ellis (2022)ELLIS, Evan R. China’s digital advance in Latin America. Centro de Estudios Estratégicos del Ejército del Peru, 2022. a Rota da Seda Digital (DSR) representa a faceta digital da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) e comporta todo o espectro da interconectividade mundial, abrangendo mecanismos físicos e digitais para facilitar a conexão. Isso abrange equipamentos tradicionais ou infraestrutura pesada, como cabos de fibra óptica, servidores, torres de quinta geração (comumente chamadas de 5G), redes e satélites.
Segundo Malena (2021)MALENA, Jorge. The extension of the digital silk road to Latin America: advantages and potential risks. Council on Foreign Relations, 2021. Available at: https://cdn.cfr.org/sites/default/files/pdf/jorgemalenadsr.pdf?_gl=1*h4k8to*_ga*MjIzMTU4ODcwLjE2OTA4Mjg4MTU.*_ga_24W5E70YKH*MTY5MDgzMTM5MS4yLjAuMTY5MDgzMTM5MS4wLjAuMA.
https://cdn.cfr.org/sites/default/files/...
por meio do Digital Silk Road, as empresas chinesas têm a chance de acelerar seus planos de crescimento, aproveitando o apoio do Estado à medida que se expandem globalmente. Por meio do DSR, os gigantes da tecnologia chinesa recebem assistência para expandir ainda mais na região asiática e também na África e América Latina. Para o autor, muitos países em desenvolvimento receberam bem o DSR, dado que muitas economias emergentes carecem de tecnologia básica de telecomunicações e precisam de atualizações significativas de infraestrutura para atingir um estágio em que possam ter redes 4G e 5G.
A partir dos dados disponíveis na plataforma China Connects, do International Institute for Strategic Studies (IISS) é possível mapear a presença das empresas chinesas ligadas às novas tecnologias na América Latina, no âmbito da Digital Silk Road, com dados disponíveis desagregados por empresas, países e projetos de investimentos. Como mostra a Figura 1 as empresas chinesas estão presentes em diversos países, realizando projetos de prestação de serviços e investimentos nos setores tecnológicos.
Os dados disponíveis na plataforma IISS representam desde investimentos de empresas chinesas em áreas como infraestrutura de 5G e Data Centers, até a atuação de serviços de empresas de e-commerce, fibra óptica, tecnologia de rede e tecnologia de satélite. Aparecem ainda projetos realizados por empresas chinesas na América Latina ligados a venda de tecnologia para smart cities e instalação de câmeras digitais. Contam ainda nesses dados alguns projetos de cooperação e transferência de tecnologia realizados pela China em parceria com empresas e governos locais, embora sejam minoria. A maior parte dos projetos estão relacionados a produtos e serviços de telecomunicações e fibra óptica. O Quadro 1 apresenta uma lista de alguns destes projetos detalhados por países latino-americanos selecionados.
Projetos/investimentos de empresas chinesas na América Latina (países selecionados) no âmbito da Digital Silk Road
No contexto da Digital Silk Road e da presença das empresas chinesas na América Latina, algumas empresas se destacam, seja por atuarem ativamente na expansão da infraestrutura para redes digitais, seja pelo avanço em setores de tecnologia de ponta, como inteligência artificial. A análise mais específica da atuação destas empresas pode ajudar na investigação sobre as novas relações de dependência do continente e o papel do capital chinês.
Empresas como a Huawei, Alibaba e a Tencent (as duas últimas consideradas gigantes na área de IA) e a Didi, esta última ligada ao setor de economia de plataforma e compartilhamento de veículos, têm tido uma forte atuação na América Latina nos últimos anos, como mostra a Tabela 2.
A Huawei, empresa fundada em 1987 por Ren Zhengfei em Shenzhen, fornece equipamentos de rede para operadoras de telecomunicações e desde sua criação investe em Pesquisa e Desenvolvimento, sendo hoje uma empresa inovadora, liderando em algumas áreas, como o 5G. (Seoane, 2021SEOANE, Maximiliano V. Chinese and U.S. AI and cloud multinational corporations in Latin America. 2021.). A internacionalização da empresa começou na década de 1990 e hoje ela opera em mais de 170 países, com um valor de capitalização de mercado semelhante ao das principais empresas de tecnologia dos EUA. A empresa diversificou as áreas de negócios, como o mercado de eletrônicos de consumo e a unidade de negócios em nuvem, a Huawei Cloud.
Na América Latina, a Huawei começou a abrir subsidiárias há cerca de duas décadas, tendo assim conhecimento dos mercados locais e uma rede de parceiros e clientes. Segundo Seonae (op. cit.), ao contrário dos concorrentes dos EUA, a Huawei Cloud lançou centros de dados em mercados menores, como Chile e Peru, ambos países que se juntaram recentemente à Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI). A empresa possui atualmente cinco Data Centers na América Latina: no Chile, em Lima, Peru, em Buenos Aires e em São Paulo.
Segundo a base de dados Dussel Monitor, entre 2001 e 2022 os investimentos da Huawei na América Latina somaram um valor de US$ 2165,2 dólares, o que representa 1,17% dos IDEs totais chineses na América Latina. Segundo Malena (2021)MALENA, Jorge. The extension of the digital silk road to Latin America: advantages and potential risks. Council on Foreign Relations, 2021. Available at: https://cdn.cfr.org/sites/default/files/pdf/jorgemalenadsr.pdf?_gl=1*h4k8to*_ga*MjIzMTU4ODcwLjE2OTA4Mjg4MTU.*_ga_24W5E70YKH*MTY5MDgzMTM5MS4yLjAuMTY5MDgzMTM5MS4wLjAuMA.
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no Brasil, por exemplo, a Huawei entrou em 1996 e se tornou a maior fornecedora de equipamentos de rede do país em 2014 e seguiu ampliando o fornecimento da tecnologia 5G no país. A empresa também se tornou importante no México, onde atuou junto ao governo na construção da maior rede Wi-Fi pública da América Latina.
A partir da base de dados do IISS observa-se a forte presença da Huawei nos países da América Latina. No Brasil registram-se 15 projetos/investimentos, principalmente para instalação de infraestrutura digital 5G, telecomunicações, instalação de fibra óptica e tecnologia para smart city. A presença da Huawei também é observada na Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, Trinidad e Tobago, Guiana, Suriname, Colômbia e vários países da América Central (IISS, 2023INTERNATIONAL INSTITUTE FOR STRATEGIC STUDIES (IISS).China Connects, 2023.).
Segundo relatório anual da Huawei de 2022, nesse ano a receita anual da empresa atingiu CNY 642.338 milhões, um aumento ano a ano de 0,9%. Nas Américas, segundo o relatório, os negócios de operadoras cresceram de forma constante à medida que o tráfego de dados aumentou e os clientes aceleraram a implementação de redes 5G e ópticas, investindo mais nessas áreas. Os chamados negócios corporativos também cresceram de forma constante, liderando o desenvolvimento digital, inteligente e de baixo carbono em várias indústrias. Em 2022, a receita desta região foi de CNY 31.898 milhões, que representa 5% da receita total da empresa (Huawei, 2022).
A empresa chinesa de tecnologia Tencent é hoje uma das dez empresas mais valiosas do mundo e uma das maiores empresas no ramo de Inteligência Artificial. Segundo Jia et. al. (2018)JIA, Kai; KENNEY, Martin; ZYSMAN, John. Global Competitors? Mapping the internationalization strategies of Chinese digital platform firms. SSRN Electronic Journal, 2018. a empresa começou através da aplicação de engenharia reversa de aplicativos de mensagens instantâneas, como o ICQ e cresceu rapidamente diversificando-se em jogos, dispositivos móveis, mídia social e, eventualmente, sistemas de pagamento para smartphones. Na China ela representa o que seria uma soma de Facebook, Instagram, Whatsapp, Nintendo, Shopify, Netflix, Spotify, Slack e PayPal.
Devido em grande parte às suas operações de jogos, a Tencent é a mais globalizada de todas as empresas de plataforma chinesas, tendo participações em quase todas as importantes empresas globais de jogos.
Os investimentos da Tencent na América Latina ainda são pequenos, segundo os dados do IISS e do Dussel Monitor, mas já são observados em países como Brasil, Argentina e Colômbia. Na Argentina, a startup de banco digital Uala recebeu investimentos de US$ 150 milhões da Tencent para expansão em 2018. No Brasil, a Tencent Holdings pagou US$180 milhões por uma participação minoritária não divulgada na empresa brasileira de tecnologia financeira Nu Pagamentos AS (Nubank).
Outra empresa importante chinesa da área digital, tecnologia e vendas é a Alibaba. Trata-se de uma empresa de comércio digital que tem um poderoso sistema de pagamentos que proporciona um enorme fluxo de caixa, conferindo a ela, segundo Jia et. al. (op. cit) algumas das características de um banco. Segundo Kai Jia, as receitas da Alibaba para o ano fiscal de 2018 foram de quase US$ 40 bilhões, com lucros de US$ 11 bilhões. Como no caso da Tencent, a empresa está experimentando taxas de crescimento de aproximadamente 50% ao ano. A Alibaba também está investindo fortemente no exterior, particularmente em nações vizinhas, incluindo Ásia e Índia, ao mesmo tempo em que compra empresas de tecnologia menores nos Estados Unidos e na Europa. Uma parte particularmente importante de seus investimentos está no setor financeiro, uma vez que tenta unir um sistema de pagamento global. (Jia et al., 2018JIA, Kai; KENNEY, Martin; ZYSMAN, John. Global Competitors? Mapping the internationalization strategies of Chinese digital platform firms. SSRN Electronic Journal, 2018.).
Na América Latina a Alibaba investiu no Brasil, Argentina, Suriname e Panamá, nas áreas de e-commerce, concorrendo com gigantes ocidentais como Amazon, e também em serviços de nuvem. A Alibaba Cloud, braço de computação em nuvem da Alibaba Group passou a oferecer seus serviços no Brasil, representada pela empresa brasileira de computação em nuvem UOL Diveo como seu parceiro no país.
Ainda dentro do contexto das empresas digitais e tecnológicas chinesas, mas dirigida especificamente dentro da chamada “empresa de plataforma”, um caso importante é o da empresa chinesa Didi. A empresa é a maior plataforma de transporte móvel da China, fornecendo mais de 7,43 bilhões de viagens para 450 milhões de usuários em mais de 400 cidades em todo o país. Fundada em 2012, a Didi imitou o modelo de negócios da Uber e chegou a comprar a Uber na China, subsidiando motoristas e passageiros em um esforço para conquistar o mercado o mais rápido possível. (Kai Jia, 2018).
A partir de 2016 a Didi começou a se globalizar investindo em países da Ásia (Índia) e na América Latina, em 2017, ao adquirir no Brasil a 99 Táxi, um aplicativo brasileiro de táxi e carona atualmente bastante difundido. No México a Didi adaptou seu próprio aplicativo ao mercado local, lançando um serviço especializado. A empresa opera atualmente em duas cidades e planeja se expandir em todo o México. A Didi também iniciou esforços para expandir para o Chile, Peru e Colômbia (Malena, 2021MALENA, Jorge. The extension of the digital silk road to Latin America: advantages and potential risks. Council on Foreign Relations, 2021. Available at: https://cdn.cfr.org/sites/default/files/pdf/jorgemalenadsr.pdf?_gl=1*h4k8to*_ga*MjIzMTU4ODcwLjE2OTA4Mjg4MTU.*_ga_24W5E70YKH*MTY5MDgzMTM5MS4yLjAuMTY5MDgzMTM5MS4wLjAuMA.
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).
Como afirma Paulani (2022)PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., no contexto da discussão sobre a dependência 4.0 e os novos mecanismos de transferência de valor via renda da periferia para o centro, um exemplo ocorre justamente dentro da chamada “economia de plataforma”, que opera através de serviços cognitivos e digitais, em detrimento dos meios de produção físicos, como máquinas e equipamentos. Segundo a autora, neste campo observa-se a presença em muitos setores de gigantes corporativos, naquilo que já vem sendo chamado na literatura de “uberização” do processo de trabalho. No caso da empresa Uber, segundo Paulani, embora não exista um tempo de trabalho necessário para a produção de cada acesso adicional, um preço é gerado e tem que ser pago, ou a plataforma não é liberada para uso. A substância desse “preço” é pura renda, devida aos proprietários da plataforma. No caso da Uber é uma empresa transnacional baseada em São Francisco, Califórnia, “que captura como renda parte substantiva do tempo de trabalho de motoristas em todo o mundo, que flui em direção aos Estados Unidos e vão fomentar a acumulação da gigante americana ou o luxo suntuário de seus controladores e de suas oligarquias burocráticas” (Paulani, 2022PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022.). No caso da empresa 99 Táxi, que opera basicamente no mesmo modelo de negócio, seria a empresa chinesa Didi que captura a renda a partir de suas operações na América Latina.
4 Conclusões
Este trabalho buscou discutir a atualidade da dependência latino-americana a partir das transformações observadas no capitalismo contemporâneo - principalmente aquelas mudanças ligadas à tecnologia - além de abordar também o papel de novos atores nesse processo (como o capital chinês).
Debater a atualidade da dependência é uma tarefa difícil, seja pela complexidade das transformações históricas do capitalismo nas últimas décadas, seja porque o conceito possui diferentes interpretações, desde suas formulações mais clássicas até as mais atuais.
Como visto, a noção de dependência aparece nos autores do estruturalismo latino-americano, como Furtado, e em autores marxistas, como Marini. Partindo de perspectivas teóricas distintas, ambos procuram analisar a posição periférica latino-americana no quadro do sistema internacional, bem como as origens e a reprodução dessa posição. O quadro histórico a partir do qual estas relações de dependência inscrevem-se altera-se ao longo do tempo, fazendo com que os mecanismos por meio dos quais as relações desiguais operam também se transformem.
Nas últimas décadas observamos uma ampla transformação nas dinâmicas produtivas e tecnológicas, bem como a ampliação do mercado mundial e da divisão internacional do trabalho. Essas transformações foram acompanhadas pelo aprofundamento dos mecanismos de acumulação financeira em todo o mundo. Desde ao menos os anos de 1980 a acumulação de capital encontra limites, que impõem, em grande parte dos países, restrições fundamentais na condução dos Estados Nacionais. O neoliberalismo é, nesse sentido, a face política dessas contradições.
A manutenção da posição periférica dos países latino-americanos é certamente o resultado desse contexto, aliada a uma dificuldade interna de construir projetos nacionais fortes que possam condensar interesses comuns de classes internas a um Estado soberano, em prol de projetos de desenvolvimento nacional. A dinâmica da dependência, nesse sentido, certamente vincula-se a uma questão não apenas econômica, mas também política e interna.
Dentro do escopo restrito deste trabalho, buscamos analisar uma dimensão econômica específica, mas não menos importante, dentro das diversas novas determinações das relações de dependência latino-americanas. A saber, as transformações tecnológicas.
A partir das formulações de Furtado (1973FURTADO, Celso. A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina. 1973.; 1992FURTADO, Celso. Brasil, a construção interrompida. 1992.) podemos perceber que nas economias latino-americanas a dependência ainda pode ser observada no controle mantido, nos mais diversos setores, por grupos integrados nas economias dominantes das atividades produtivas instaladas nas economias dependentes.
Como aponta Paulani (2022)PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., as transformações mais recentes nos processos de acumulação de capital transformam os mecanismos pelos quais operam as relações de dependência. No quadro na indústria 4.0 observa-se o aprofundamento de algumas contradições que já existiam, como o aumento da concentração no que diz respeito aos processos decisórios, ao andamento do progresso técnico e à escala do capital propriamente dita. Observa-se uma estrutura produtiva cada vez mais segmentada e um aumento da utilização dos produtos 4.0 típicos, os quais, por sua vez, se tornam insumos indispensáveis a praticamente qualquer tipo de produção.
Como vimos no quadro das transformações tecnológicas recentes, países como Estados Unidos e China avançam na corrida pela inovação tecnológica e sua incorporação nos processos produtivos, mediante esforços estatais de investimento e o surgimento de diversas empresas, como as Big Techs, as empresas digitais e empresas de plataforma.
Os países da América Latina vêm se inserindo de maneira ampla nessa nova economia tecnológica e digital. Entretanto, a manutenção de estruturas produtivas internas ainda, em geral, muito concentradas na produção de artigos primários para exportação, aliada à dificuldade de industrialização e modernização, vem fazendo com que o continente acabe por se inserir apenas como consumidor e importador de produtos e serviços tecnológicos e digitais, sendo receptor de investimentos diretos estrangeiros de empresas ligadas às novas tecnologias.
Nestas novas dinâmicas, procuramos mostrar que essas relações de dependência atuais recebem a participação de novos atores para além das economias centrais tradicionais. O maior exemplo, a China.
Embora o país asiático ainda tenha que superar uma série de desafios internos, distributivos e tecnológicos, na medida em que a China avança no sentido de uma maior modernização tecnológica e para estabelecer uma economia da inovação, ela acaba por reproduzir internamente os avanços tecnológicos e padrões de reprodução do capitalismo, se inserindo, portanto, no quadro maior das transformações do capitalismo contemporâneo. Assim, o país acaba por colocar-se em uma posição que reproduz as relações de exploração e dominação típicas dos países centrais com relação aos países periféricos como os da América Latina.
Como vimos, diversas empresas chinesas atualmente avançam no sentido de uma modernização tecnológica, seja na forma das empresas digitais e de plataforma, seja no desenvolvimento de setores estratégicos ligados às novas tecnologias de informação e infraestrutura digitais. Nesse sentido, a China vem criando uma rede localizada principalmente nos países periféricos, onde as novas estruturas se instalam e os produtos e serviços são comercializados. Enquanto a China reforça sua posição nos extratos mais avançados das cadeias - e difunde esses processos produtivos e novas tecnologias para todo o mundo -, ela reafirma sua posição vantajosa em termos da captação do valor global.
A América Latina, por outro lado, insere-se apenas como consumidora e como lócus de expansão destas infraestruturas digitais, enquanto não avança em termos de crescimento econômico, industrialização e modernização tecnológica.
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(1)
Para Paulani (2022)PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., Prebisch inaugura o que pode ser classificada como uma teoria “original” da dependência, inscrita nos marcos da Cepal, e derivada da posição primário-exportadora dos países periféricos. Nessa teorização o benefício para a acumulação dos países centrais decorre das relações comerciais caracterizadas pelas trocas desiguais, que permitem a transferência de parcelas de valor que deveriam permanecer na periferia.
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(2)
Segundo Paulani (2022)PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., as concepções de Furtado sobre a dependência, principalmente em suas formulações mais contemporâneas, relacionam-se também às questões ligadas as relações financeiras que se estabelecem entre as periferias e o centro, como relações de dependência originadas do acúmulo de dívidas e a remuneração de fatores e propriedade de capital monetário.
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(3)
Como se sabe, no contexto dos anos 60 e ainda dentro da Cepal, outras formulações sobre a dependência aparecem, como aquela formulada por Cardoso e Faletto em “Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica”, cuja abordagem aproxima-se mais da perspectiva weberiana que marxista.
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(4)
Segundo Paulani (2022)PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022., nos textos posteriores de Marini (1995) a globalização e o comércio intrafirmas levaram a uma homogeneização da produtividade do trabalho devido a padronização tecnológica. Dissiparam-se a partir daí aquelas condições (anteriormente formuladas pelo autor) para a troca desigual como elemento fundante das relações de dependência. Estas agora inscrevem-se muito mais no acirramento da concorrência entre os capitais, a partir da superioridade dos países centrais em monopolizar tecnologias e controlar a transferência de atividades menos rentáveis para países atrasados (Paulani, 2022PAULANI, Leda. A dependência revisitada: relações de troca, a fase 4.0 e o caso do Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 64, 2022.).
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(5)
Essas tecnologias incluem, segundo relatório da Unctad, 17 pontos: a Industria 4.0 (Inteligência artificial, Internet das Coisas, Big Data, tecnologia Blockchain, tecnologia de quinta geração, impressão tridimensional, robótica, tecnologia de drones); Verde (fotovoltaica solar, energia solar concentrada, biocombustíveis, biogás e biomassa, energia eólica, hidrogênio verde, veículos elétricos); e Outras (Nanotecnologia, edição de genes) (Unctad, 2023UNCTAD. Chapter II - Moving fast with frontier technologies. Technology and Innovation Report, 2023.).
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Um ponto interessante sobre a questão das redes e da infraestrutura digital é que existe uma dimensão física para que o digital avance. A nuvem, por exemplo, tem um elemento tangível que consiste em centros de dados e cabos de fibra ótica.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
05 Jan 2024 -
Aceito
22 Abr 2024