Open-access O conceito de pobreza na abordagem das necessidades humanas

The concept of poverty in the Human Needs Approach

Resumo

A pobreza é frequentemente estudada com base em uma única dimensão, predominantemente representada pela renda. Mas existem outras dimensões relevantes nas discussões sobre o tema, como estar bem nutrido, estar bem abrigado, ter boa saúde e participação na sociedade, entre outras. Uma abordagem que pode auxiliar a sustentar esta concepção multidimensional para a pobreza é a abordagem das necessidades humanas. Assim sendo, neste trabalho, objetiva-se apresentar o quadro evolutivo dessa abordagem a fim de estabelecer um conceito multidimensional para a pobreza. Por meio de uma análise teórica, ao longo deste estudo, demonstrou-se que a abordagem das necessidades humanas é marcada por uma variedade de interpretações. A abordagem evoluiu para incorporar aspectos que, se não forem satisfeitos, limitam e impedem as pessoas de usufruírem de uma vida digna. Portanto, em oposição à ideia fundamentada estritamente na renda, a pobreza passa a ser entendida como não satisfação das necessidades.

Palavras-chave:
Renda; Dimensões; Necessidades humanas; Pobreza multidimensional; Não satisfação das necessidades

Abstract

Poverty is often studied on the basis of a single dimension, predominantly represented by income. But there are other relevant dimensions in the discussions about the theme, such as, to be well nourished, to be well-sheltered, and to have good health, participation in society, among others. An approach which can help to sustain this multidimensional conception of poverty is the approach to human needs. Thus, this paper aims to present the evolutionary framework of this approach in order in order to establish a multidimensional concept for poverty. Through a theoretical analysis, throughout this study, it has been shown that approach to human needs is marked by a variety of interpretations. The approach has evolved to incorporate aspects that, if they are not satisfied, limit and prevent people from enjoying a decent life. Therefore, in opposition to the idea strictly based on income, the poverty is understood as non-satisfaction of needs.

Keywords:
Income; Dimensions; Human needs; Multidimensional Poverty; Non-satisfaction of needs

1 Introdução

O pensamento predominante sobre a pobreza a classifica como insuficiência de rendimentos abaixo de um nível mínimo aceitável. Nesta visão, a renda é a variável-chave utilizada na sua mensuração. Todavia, esse enfoque tem sido questionado por uma literatura mais recente. A renda é importante, porém, existem outras dimensões não menos relevantes que têm sido negligenciadas nas análises sobre pobreza.

A renda é uma variável crucial na análise da pobreza, pois possibilita adquirir cestas de consumo e, com isso, permite que, secundariamente, outras dimensões da pobreza sejam atendidas, por exemplo, a posse de bens básicos. No entanto, certas dimensões correm o risco de nunca serem completamente satisfeitas, como possuir uma boa oferta de água potável, rede de esgoto e coleta de lixo.

Segundo Alkire et al. (2015), essas ideias ganharam repercussão na década de 1970, com a abordagem das necessidades básicas. A partir deste período, autores como Streeten (1981) e Stewart (1995) se dedicaram ao estudo das necessidades, não somente na dimensão biológica ou de sobrevivência dos seres humanos, mas relacionadas à remoção das privações que impedem o acesso à educação, aos serviços de saúde, à água potável, entre outras. A partir daí, a literatura sobre o tema evoluiu e passou a incorporar necessidades materiais e não materiais, tais como autonomia e participação política (Stewart, 2006).

O debate sobre o tema extrapolou o meio acadêmico, uma vez que a abordagem das necessidades humanas básicas como estratégia de desenvolvimento e redução da pobreza passou a ser recomendada por organizações internacionais, dentre elas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT). No quadro teórico e empírico, de acordo com Stewart (2006), a abordagem1, influenciou a visão sobre o desenvolvimento humano, mediante os sucessivos relatórios de desenvolvimento humano, elaborados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A ferramenta metodológica mais conhecida oriunda desta abordagem2 é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Como situação oposta ao desenvolvimento humano, está a condição de pobreza humana. Assim, recorrentemente, essa abordagem tem sido citada pela literatura sobre pobreza. Em geral, interpretações específicas da abordagem são utilizadas sem considerar sua evolução teórica. Segundo Alkire et al. (2015), alguns estudos unidimensionais aproveitam a abordagem para focar a quantidade mínima de recursos para satisfazer necessidades. Todavia, outros estudos fundamentam-se em estágios específicos para a constituição de um conceito multidimensional, como citado em Salama e Destremau (1999). Poucos trabalhos sobre pobreza exploram a abordagem considerando seu quadro evolutivo, conforme fazem Bagolin e Ávila (2006). Desta maneira, neste artigo, segue-se a mesma linha de pensamento desses últimos autores, procurando aprofundar e acrescentar discussões ao debate.

Diante dessas constatações, a primeira hipótese deste trabalho é que a pobreza pode ser compreendida, além da renda, observando-se aspectos multidimensionais. Isto porque a visão baseada em uma única dimensão, isto é, a unidimensional, pode gerar resultados que representam apenas parte dos requerimentos dos indivíduos, o que pode comprometer a formulação de políticas públicas de combate à pobreza.

A segunda hipótese deste trabalho é que a abordagem das necessidades humanas básicas constitui-se em um corpo teórico consistente com este pensamento. A pertinência dessa abordagem para a conceituação da pobreza multidimensional foi questionada por Sen (1990). A abordagem foi acusada de recair no fetichismo das commodities. Neste sentido, este trabalho visa apresentar a diversidade desta abordagem em distintos estágios, bem como as defesas às críticas recorrentes.

Assim sendo, por meio deste trabalho pretende-se expor o pensamento multidimensional sobre pobreza com base em discussões teóricas sobre o tema. Logo, objetiva-se apresentar o quadro evolutivo da abordagem das necessidades humanas, com o intuito de estabelecer um conceito multidimensional para a pobreza. Para tanto, será discutida esta vertente teórica, que pode sustentar o estabelecimento deste conceito.

O trabalho está estruturado em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Na segunda seção, apresentam-se as limitações da visão unidimensional. Na terceira seção, enfatiza-se o primeiro estágio da abordagem das necessidades humanas, suas limitações e contribuições. Além disso, apresenta-se a evolução da abordagem no seu segundo estágio até chegar ao terceiro estágio, em que as necessidades são concebidas de forma mais ampla. Por fim, na quarta seção, discute-se a importância da abordagem para a construção de um conceito multidimensional de pobreza.

2 As limitações da abordagem unidimensional da pobreza

A pobreza é frequentemente estudada com base em uma única dimensão relacionada à insuficiência de renda (ou recursos monetários). Esta visão é chamada de unidimensional e, de acordo com Laderchi, Saith e Stewart (2003), foi introduzida no final do século XIX e início do século XX, sustentada pelo pensamento microeconômico das preferências do consumidor e pelo critério de maximização de utilidades3. Nela, o enfrentamento da pobreza pode estar fortemente vinculado ao desempenho da economia; logo, pode estar mais a cargo do mercado que do Estado.

Admite-se que a dimensão monetária seja um importante componente da pobreza; no entanto, entende-se que ela fornece apenas uma imagem parcial. Privações de boa saúde, longevidade, educação e participação no processo de tomada de decisões na comunidade, por exemplo, não podem ser captadas somente pelo nível de renda. A pobreza humana abrange a carência de oportunidades e possui um caráter multidimensional relacionado a um conjunto de critérios (Sen, 1997).

Um exemplo ressaltado por Sen e Klksberg (2010) envolve as crianças sujeitas à morte prematura. Esta situação não reflete apenas a insuficiência de renda, mas também saúde pública, condição nutricional inadequada, deficiência de seguridade social, carência de responsabilidade social e de cuidados de governança. Na prática, os indicadores monetários refletem apenas recursos privados, o que pode acarretar um favorecimento a políticas voltadas para a geração de renda privada em detrimento de serviços públicos.

O suprimento efetivo de grande parte das necessidades dos seres humanos depende do fornecimento de serviços públicos. Segundo Streeten (1981), os seres humanos tratados simplesmente como consumidores, sejam ricos ou pobres, não são tão efetivos no suprimento das necessidades nutricionais e da saúde. A maneira como a renda adicional é obtida pode gerar variados efeitos nutricionais.

Nesse sentido, a orientação monetária torna-se incompleta. Isso ocorre porque as pessoas podem utilizar a renda adicional para consumir produtos com baixo valor nutricional, por exemplo. Além disso, a maneira como a renda é auferida pode afetar negativamente a nutrição4 (Streeten, 1979).

O objetivo de suprimento das necessidades requeridas pelas pessoas pode não ser plenamente alcançado por redistribuição de renda ou pelas respostas proporcionadas pelo mercado. Assim, acredita-se que uma maneira mais adequada de estudar a pobreza é por meio da agregação de um conjunto de dimensões além da monetária. Esta forma de pensamento visa fornecer subsídios para o seu diagnóstico e para que o seu enfrentamento seja realizado.

Dessa maneira, a pobreza pode ser classificada como multidimensional, dado que é permeada por um conjunto de dimensões monetárias e não monetárias que a compõem. Baseando-se neste aspecto, é importante discutir a abordagem das necessidades humanas na formação de um conceito multidimensional para a pobreza. Segundo Silva et al. (2017), a abordagem apresenta conceitos distintos nas mais diversas áreas. Desse modo, nas próximas seções, serão apresentadas algumas das formas de interpretação desta abordagem.

3 A abordagem das necessidades humanas e suas distintas interpretações

De acordo com Streeten (1981), a abordagem das necessidades humanas é marcada por uma variedade de interpretações. Uma primeira interpretação associa a ideia de necessidades a uma quantidade mínima específica de alimentos, roupas, abrigo, água e saneamento que é necessária para prevenir problemas de saúde e subnutrição.

A abordagem também é frequentemente interpretada de maneira subjetiva como a satisfação dos consumidores. Essa interpretação é comum entre os economistas neoclássicos, que entendem seu atendimento como o suprimento de renda necessário para a compra de bens e serviços básicos (Streeten, 1981).

A grande limitação da compreensão de necessidades vistas como preferências se dá em virtude das diversas formas de culturas, assim como das heterogeneidades pessoais. Como os seres humanos são diferentes entre si, essas necessidades precisam ser atualizadas e especificadas de maneira distinta, coerentes com as diferentes situações e de acordo com necessidades particulares. Entretanto, segundo Gasper (1996), ainda que esta corrente possua suas limitações, ela se constitui em um avanço e fornece um contrapeso à ideologia do homem econômico, baseada no livre mercado.

De acordo com Gasper (1996), na análise normativa das necessidades, é preciso ter em mente que preferências e necessidades são conceitos distintos. O discurso em torno das necessidades normativas surge da rejeição do mercado como agente principal para priorizar itens, como saúde, alfabetização e habitação para todos, explorando seu aspecto universal estendido a todos os indivíduos, independente da renda auferida.

Ao rejeitar o pressuposto de racionalidade ilimitada dos consumidores, é possível obter uma interpretação mais intervencionista, denominada paternalista. Neste caso, as autoridades públicas devem não apenas tomar decisões em torno da oferta de serviços públicos como oferta de água, saneamento e educação, mas “também orientar o consumo privado, à luz de considerações públicas” (tradução nossa)5 (Streeten, 1981, p. 26).

Gasper (1996) aponta para uma discussão instrumental. Assim sendo, geralmente identificam-se os pré-requisitos para vários tipos e níveis de capacidades, como, por exemplo, os pré-requisitos para a saúde mental e física. Nesse sentido, as necessidades são vistas como requisitos para se atingir determinados fins. Com isso, é possível assinalar os determinantes do bem-estar, o que é útil para os interesses práticos ao especificar requisitos prioritários justificados.

As necessidades podem ser compreendidas com base em aspectos normativos e éticos, e os seus pré-requisitos devem estar associados à prioridade. Baseando-se neles, são estabelecidas alegações que a comunidade política deve assegurar aos indivíduos para o atendimento de suas necessidades. Isso é importante, uma vez que permite variações consideráveis na definição de necessidades prioritárias, de acordo com diferentes contextos materiais e culturais; porém, dentro de um quadro comum e sistemático.

Streeten (1981) acrescenta uma interpretação próxima a essa, vinculada à definição sociopolítica que associa a satisfação das necessidades aos direitos humanos. Para tanto, enfatiza os aspectos não materiais envolvidos no processo, como autonomia e liberdade. Nesta interpretação, as necessidades não materiais são entendidas como fins. Tais necessidades são distintas dos meios materiais para a sua satisfação, ou seja, das necessidades materiais.

São evidentes as diversas formas de interpretação da abordagem. Na mesma linha de raciocínio, Bagolin e Ávila (2006) a classificam sinteticamente em três estágios distintos, em que se destacam: no primeiro, as necessidades vitais ou de sobrevivência; no segundo, a abordagem das necessidades básicas; e, no terceiro, a nova teoria das necessidades humanas. Estes estágios serão apresentados nas próximas seções.

3.1 Primeiro estágio: necessidades vitais ou de sobrevivência

De acordo com Bagolin e Ávila (2006), no primeiro estágio, as necessidades são classificadas como requisitos espontâneos e naturais. As necessidades são vistas como requerimentos para a sobrevivência, e sua satisfação concede potencialidades aos seres humanos.

Dentro deste estágio, pode-se destacar a visão de David Wiggins6. Conforme Wiggins (1998), existem semelhanças entre os conceitos de necessidades e desejos. Entretanto, eles são conceitos diferentes. É possível desejar algo sem necessitar, assim como é possível necessitar de alguma coisa sem desejar. As necessidades de uma pessoa não dependem somente do funcionamento da sua mente, mas dos aspectos concretos que a afetam.

Segundo Alkire (2006), Wiggins argumenta que as necessidades vitais devem ser priorizadas em relação a outros desejos e necessidades não vitais. Por isso, primeiramente, o autor define as necessidades que ele qualifica como absolutas. As necessidades absolutas são aquelas que, se não forem atendidas prioritariamente, podem causar graves danos, comprometendo a própria sobrevivência do indivíduo.

Quando o autor prioriza as necessidades vitais, na verdade, ele está propondo uma hierarquização das necessidades. O pensamento que daí resulta é o de observar o grau de importância das necessidades, para que aquelas mais urgentes possam ser atendidas.

Para o entendimento do conceito de necessidades absolutas, Wiggins e Dermen (1987) supõem uma necessidade x, que pode ser entendida como saneamento, habitação ou vestuário, por exemplo. Com base no conceito de necessidade absoluta, uma pessoa necessita absolutamente de x, se e somente se ela necessitar instrumentalmente7 de x para evitar danos à sua sobrevivência (Wiggins, 1998).

Assim sendo, uma pessoa necessita absolutamente de x, se e somente se ela ficar prejudicada se ficar sem x. As necessidades absolutas são pré-requisitos para que as pessoas vivam uma vida ilesa.

O discernimento sobre o quanto a satisfação da necessidade é importante pode ser feito pela avaliação do dano ou sofrimento causado, caso a pessoa fique sem aquilo que necessita. Por meio desta caracterização, é possível classificar as necessidades em absolutas8 ou não.

As necessidades básicas também assumem a forma relativa em relação a alguma conta do bem-estar, à cultura e à compreensão individual, e às possibilidades viáveis no momento9. Segundo Alkire (2006), esse relativismo implica que a abordagem das necessidades básicas de Wiggins só possa ser especificada muito localmente e em relação a algum tempo particular. Por isso, elas não são factíveis de serem vinculadas a um conjunto de metas globais.

Dessa maneira, ainda que reconheça que a insatisfação das necessidades causa danos, o autor define necessidades relativamente aos objetos de necessidade. As necessidades são descritas como um estado de dependência em relação a ser ou não ser prejudicado. Para Alkire (2006), essa especificação é pouco satisfatória.

Ao tratar de necessidades vitais ou de sobrevivência, segundo Pereira (2006), isto ignora a importância das necessidades. Assim sendo, outras necessidades que são relevantes para o bem-estar humano são desconsideradas, por não se enquadrarem na categoria de provocar graves danos caso não sejam atendidas. A ideia de provocar sérios prejuízos ou graves danos deixa margem para a ênfase no conceito de necessidades fisiológicas. Vistas como necessidades naturais, é possível traçar um paralelo estreito entre a ideia de necessidades e a dimensão biológica por trás dela.

A visão de necessidades naturais ou de sobrevivência reduz a exigência sobre as necessidades básicas, pois, desse modo, as necessidades não se diferem muito das necessidades animais, e sua satisfação pode ser realizada com o mínimo possível. Obviamente, não somente as necessidades de sobrevivência são importantes.

Neste estágio, a interpretação de pobreza ficou restrita à insatisfação das necessidades naturais e de sobrevivência. Logo, não se abre espaço para o acréscimo de dimensões mais abrangentes da vida humana. Streeten (1981) reconhece que essa interpretação é limitada. Apesar disso, segundo o autor, abre-se espaço para importantes questões, como a forma de prover recursos para que essas necessidades sejam satisfeitas.

3.2 Segundo estágio: abordagem das necessidades básicas

A abordagem das necessidades básicas marca o segundo estágio da abordagem das necessidades humanas, nos termos utilizados por Bagolin e Ávila (2006). Neste estágio, cabe ressaltar as contribuições de Paul Streeten e Frances Stewart10. Segundo Bagolin e Ávila (2006), o segundo estágio representou uma operacionalização amplificada do primeiro estágio.

Conforme Streeten (1981), a discussão sobre necessidades básicas iniciou-se na década de 1950. Neste período, o crescimento econômico era enfatizado como forma de erradicar a pobreza, cujo pensamento estava embasado na curva de Kuznets (1955). De acordo com essa ideia, na fase inicial do desenvolvimento, as rendas per capita seriam incrementadas, a desigualdade cresceria sob a penalidade do aumento da pobreza de alguns indivíduos. Para atender à curva em forma de U invertido, logo depois, o crescimento da renda seria acompanhado de aumento da igualdade, com uma consequente redução da pobreza. No entanto, não foi isso que se verificou.

Nas décadas de 1950 e 1960, os países em desenvolvimento adotaram estratégias de crescimento e industrialização. Embora em alguns termos isso tenha sido bem-sucedido (como o crescimento da industrialização e a melhora de alguns indicadores sociais), gerou setores privilegiados e economicamente modernos convivendo com o restante da economia em situação de baixa renda e baixo investimento. Segundo Stewart (2006), em geral, a incidência da pobreza absoluta permaneceu elevada11.

Streeten e Burki (1978) destacam que as altas taxas de crescimento não surtiram o efeito esperado na redução da pobreza nos países em desenvolvimento. De acordo com os autores, o crescimento econômico contribuiu muito pouco para a diminuição da pobreza que atingia as massas populacionais.

Em relação a esta afirmação, é necessário destacar que, segundo Deaton (2017), o argumento de que o crescimento econômico beneficia somente os ricos é um argumento equivocado. Quanto a isso, o autor lembra que o declínio do crescimento econômico está associado ao aumento da desigualdade, haja vista que provoca a expansão da renda das pessoas que ocupam “o topo da pirâmide distributiva”.

Por sua vez, a visão dos teóricos das necessidades básicas é que o crescimento econômico, por si só, não conduz à automática diminuição da pobreza12 das massas populacionais. Este pensamento é que motivou o surgimento da abordagem das necessidades básicas. Assim, o crescimento econômico é uma condição necessária, mas não é suficiente para a solução dos problemas relacionados à pobreza.

A partir da preocupação central com a remoção das privações que afligiam as massas populacionais, estratégias de desenvolvimento e redução da pobreza passaram a ser recomendadas por organismos internacionais como a OIT e o Banco Mundial (Silva et al., 2011).

Para Stewart (1989), a falha do sistema econômico e social em proporcionar condições de vida mínimas para as pessoas levou o reconhecimento de que era preciso priorizar o acesso a bens e serviços básicos. Dessa forma, na década de 1970, iniciou-se o debate da abordagem das necessidades básicas, voltado para o desenvolvimento. Essa ideia foi compartilhada por economistas, filósofos e defensores dos direitos humanos13.

Com base nesta abordagem, o objetivo do desenvolvimento é expandir de maneira sustentável o nível de vida da população pobre. Isso deve ser feito de maneira eficaz para que os seres humanos possam desenvolver plenamente o seu potencial. Para que isso ocorra, é necessária a satisfação das necessidades básicas das pessoas mais pobres.

Embora o debate acadêmico em torno da abordagem tenha persistido, a ideia de necessidades básicas dominou as estratégias políticas de desenvolvimento dos países por um breve período de tempo. As mudanças políticas, especialmente pela motivação neoliberal centrada nas preferências (que se baseiam em recursos monetários) levaram ao rápido abandono das estratégias, já no início dos anos 1980 (Stewart, 2006).

No meio acadêmico, o debate prosseguiu. Na visão de Stewart (1989), o pressuposto inicial da abordagem implica que todos os membros da sociedade tenham suas necessidades satisfeitas em um nível mínimo. Nesse sentido, Streeten (1979) acrescenta que o objetivo desta linha de pensamento é proporcionar oportunidades para o pleno desenvolvimento dos indivíduos.

Uma estratégia baseada na abordagem das necessidades básicas visa aumentar e redistribuir a produção de maneira a erradicar as privações oriundas da falta de bens e serviços básicos. Um problema notável que daí surge refere-se à definição das necessidades básicas, pois os padrões e os objetivos sociais variam muito. O ranking de bens e serviços básicos é muito diverso e não há critérios objetivos para a sua definição. As necessidades podem variar consoante o clima, a região geográfica e o período analisado.

Por isso, Stewart (1995) determina que as necessidades básicas devam se referir aos bens e serviços básicos úteis para o alcance de uma vida decente. De maneira geral, a abordagem defende um nível de vida minimamente decente em termos de saúde, nutrição e alfabetização, entre outros fatores. Bens e serviços como alimentos e serviços de saúde são vistos como meios para a constituição de uma vida minimamente decente. Sob este raciocínio, os indivíduos que não possuem esses requerimentos garantidos podem ser classificados como pobres em função de não terem o atendimento de suas necessidades básicas e prioritárias.

Deste modo, as necessidades básicas são definidas com base em um padrão de vida mínimo necessário para que, prioritariamente, as pessoas pobres, possam se desenvolver na sociedade. Isto inclui requerimentos mínimos de consumo de alimentos, habitação e vestuário, e acesso a serviços essenciais como oferta de água potável, saneamento, saúde, educação e transporte. Ao priorizar o atendimento às necessidades básicas das pessoas, foca-se na distribuição apropriada de bens e serviços entre os seres humanos para que possam usufruir de um nível de vida decente (Stewart, 2006).

Esta abordagem também engloba necessidades não materiais. As necessidades não materiais são relevantes porque se relacionam com o atendimento dos direitos humanos. Além disso, elas são úteis para a satisfação das necessidades materiais. As necessidades não materiais incluem a autodeterminação, a autoconfiança, a participação dos trabalhadores e cidadãos na tomada de decisões que afetam sua identidade nacional e cultural. De acordo com Stewart (1989), entre os aspectos não materiais está a liberdade.

Com base nesta visão, argumenta-se que o pobre não necessita apenas de renda, mas de bens e serviços básicos. A renda monetária não é suficiente para assegurar o acesso a todos os bens e serviços essenciais. Elementos importantes como serviços de saúde, educação e boa oferta de água não dependem somente de renda privada, ainda que a renda seja vista como um meio para adquirir necessidades básicas.

A utilização da renda ou do Produto Interno Bruto (PIB) per capita é controversa na medida em que ignora que um subconjunto de bens e serviços pode ser classificado como mais básico que outro. Segundo Stewart (1995), a visão das necessidades básicas parte do pressuposto que alguns bens são mais importantes que outros. Tais bens são substanciais para os seres humanos. Ainda que os bens e serviços necessários para uma vida decente variem entre indivíduos e sociedades, sua hierarquia permanece.

Então, as necessidades podem ser classificadas de forma hierárquica. No nível mais baixo, estão as necessidades que devem ser supridas sob pena de colocar em risco a sobrevivência humana. O nível seguinte circunda as necessidades de sobrevivência, que se baseiam em um mínimo de água potável, comida, habitação e proteção contra doenças fatais. No próximo nível, as necessidades básicas se relacionam com a sobrevivência produtiva continuada, que inclui a proteção contra doenças debilitantes, mais alimentos e educação. No último nível, as necessidades não materiais são acrescentadas, como a participação no processo de tomada de decisões (Streeten; Burki, 1978).

Com base nesta hierarquia, as sociedades podem definir sua própria cesta de bens e serviços básicos. Claramente, as listas variarão de sociedade para sociedade. Os países em desenvolvimento, por exemplo, preferirão concentrar-se nos bens e serviços que afetam a sobrevivência. Outros podem acrescentar aquelas necessidades que afetam a sobrevivência produtiva. Diante disso, é possível se concentrar em vários núcleos de necessidades básicas para fins de planejamento.

A abordagem define três características básicas comuns de serem enfatizadas como saúde, nutrição e educação. Isso ocorre, primeiramente, porque se pretende atingir um consenso universal de necessidades humanas; porque são vistas como características prioritárias e precondições para uma vida plena; porque são relativamente mais fáceis de serem mensuradas. O indicador de saúde mais utilizado é a expectativa de vida. A educação é mensurada com base na taxa de alfabetização. Por último, é incluída a má nutrição infantil, como uma medida inversa do grau de nutrição (Stewart, 1995).

Em um quadro evolutivo da abordagem das necessidades básicas, ela visa priorizar o atendimento às necessidades das pessoas mais pobres e não apenas com o intuito de aumentar a produtividade, mas com o objetivo de melhorar as condições de vida. A abordagem volta-se para a correção da privação absoluta, que é mais grave nos países onde a pobreza absoluta é maior.

Mais que isso, a abordagem defende não somente o fornecimento de bens e serviços pelo mercado, mas, substancialmente, o fornecimento de serviços públicos como saneamento, abastecimento de água, educação e saúde. As necessidades podem ser definidas em termos das características dos bens ou serviços (como valor calórico) em vez de serem determinadas em detrimento das commodities e seu preço. Necessidades básicas também podem ser concebidas em termos gerais e, neste ponto, podem ser compostas por necessidades materiais e não materiais.

Como os conceitos são abrangentes, Streeten e Burki (1978) destacam que o problema que circunda as estratégias sobre necessidades básicas não é conceitual, e sim operacional. O principal problema diz respeito ao quadro político em que as estratégias são implementadas. Por conta das questões operacionais, na interpretação prática da abordagem, o enfoque primário se dá nos bens e serviços materiais.

Alguns propositores da abordagem concordam que a lista das necessidades não pode ser formulada de maneira arbitrária. Por isso, Stewart (2006) cita algumas maneiras de distinguir as necessidades essenciais. Isto pode ocorrer de maneira participativa, em que as pessoas elegem suas necessidades; de forma consultiva, em que os governos é que elegem as necessidades básicas; e de acordo com a definição de qualidade de vida, determinando os bens e serviços necessários para isto.

Esta última forma de se pensar, fundamenta os requerimentos necessários para uma vida plena (full life), propostos por Fei, Ranis e Stewart (1985 apud Stewart, 2006). Uma vez que as necessidades básicas são requisitos para uma vida plena, pode-se compor um vetor de características de vida plena, incluindo saúde, educação, participação, emprego, direitos políticos e todos os bens e serviços necessários para a realização de um nível minimamente aceitável das características de vida plena. Vale ressaltar que a definição destas características comporta uma variedade de abordagens, que vão desde a maneira participativa até outras maneiras normativas.

De acordo com este raciocínio, pode-se concluir que, se o indivíduo não satisfaz um nível minimamente aceitável para o alcance de uma vida plena, pode ser considerado pobre. Apesar disso, ainda que haja uma conotação mais ampla de necessidades neste estágio que no primeiro, as necessidades humanas ficaram restritas ao exercício prático. Por esse motivo, a implementação de políticas públicas em decorrência dessa ideia esteve mais vinculada à posse de commodities.

3.2.1 Algumas críticas à abordagem das necessidades básicas

Segundo Bagolin e Ávila (2006), este estágio da abordagem das necessidades humanas é criticado, visto que seu conceito foi reduzido às questões operacionais. Isso causa um problema no que se refere à formulação de políticas públicas, uma vez que elas ficam atreladas às melhorias em termos de posse de commodities. As críticas mais usuais são: as necessidades são definidas somente em termos de commodities; as commodities são avaliadas como se representassem o mesmo valor para todos os indivíduos; o conceito de necessidades básicas parte de requerimentos mínimos; a concentração no espaço das mercadorias desconsidera as desigualdades; as necessidades de commodities são interpretadas independentemente de características individuais, assim como das circunstâncias externas que as envolvem.

A abordagem das necessidades básicas é acusada de voltar-se para o fetichismo das commodities. Isso ocorre porque enfoca alguns bens e serviços, pormenorizando outros requisitos importantes para a qualidade de vida. Sen (1990) retrata que a abordagem das necessidades básicas enfrenta incertezas na própria definição de necessidades básicas. As definições originais normalmente as retratam em termos de necessidades mínimas de commodities essenciais como alimento, vestuário e habitação. Essa é a definição mais habitualmente utilizada pela literatura.

Dessa forma, Sen (1990) conclui que a abordagem recai no fetichismo das commodities. Por conseguinte, o resultado em termos de necessidades básicas está comprometido pela variabilidade da conversão destas commodities em potencialidades. Por exemplo, as necessidades em termos de alimentos e nutrientes para proporcionar ao indivíduo a potencialidade de estar bem nutrido podem variar de pessoa para pessoa. Então, algumas pessoas podem requerer mais nutrientes que outras para atingirem o estado de nutrição, haja vista que isso depende de características particulares como metabolismo, gênero, idade, entre outras.

Em defesa da abordagem das necessidades básicas, Stewart (2006) reconhece que a abordagem tem sido acusada de ser materialista e paternalista - por enfatizar as necessidades materiais de consumo dos pobres. No entanto, segundo a autora, a abordagem é complexa e engloba necessidades materiais e não materiais, ainda que, na prática, ela se atenha a uma lista de requerimentos específicos. De uma maneira ou de outra, conforme Stewart (1995), a crítica em torno das necessidades básicas é incorreta, pois o objetivo de se atingir uma vida plena envolve importantes meios para a qualidade de vida.

Streeten (1981) chama a atenção para o fato de existirem diversas formas de interpretação da abordagem das necessidades humanas em seus respectivos estágios. Por isso, é preciso situá-la antes de prosseguir com as críticas.

A grande questão que envolve a literatura sobre as necessidades básicas é o aspecto empírico. As necessidades não materiais são mais difíceis de serem mensuradas. Além disso, as bases de dados existentes, na maioria dos países, limitam essa operacionalização. Outra questão refere-se à própria hierarquização no interior da abordagem. É natural que, se as necessidades fisiológicas não estejam atendidas, elas sejam priorizadas em relação às demais. Além disso, diante de recursos limitados, é comum que as necessidades dos mais pobres sejam posicionadas à frente dos outros indivíduos. O problema é que isso, de uma maneira ou de outra, diminui a importância das demais necessidades, incluindo as necessidades não materiais.

Não se pode homogeneizar a população estudada, daí a relevância de empregar níveis hierárquicos das necessidades, ainda que sejam escolhidos de forma intuitiva, nos termos utilizados pela abordagem. Por outro lado, há que se reconhecer que, diante de uma limitação de dados, é muito melhor que a análise esteja centrada em necessidades mínimas que simplesmente na renda. Mais precisamente, diante de uma limitação de recursos, é mais plausível que as políticas se voltem para aquelas pessoas em maior situação de vulnerabilidade do que para ninguém.

Além disso, ao mesmo tempo em que Amartya Sen critica a abordagem, ele demonstra alguma afinidade com ela. Segundo Cocker (1992), essa abordagem é atrativa para Amartya Sen, em primeiro lugar, pela rejeição do crescimento econômico como condição suficiente para o desenvolvimento, uma vez que, na visão das necessidades básicas, o desenvolvimento é uma questão de bem-estar humano. O crescimento econômico é um meio indispensável, porém não se constitui um fim em si mesmo. Quando a abordagem é centrada apenas no crescimento econômico, é inevitável que a prosperidade seja reduzida aos seus aspectos estritamente materiais.

Por conta das limitações enfrentadas, ainda que algumas defesas sejam plausíveis, duas novas abordagens emergiram. A primeira constitui-se no terceiro estágio da abordagem das necessidades humanas, que será apresentado na sequência. A segunda trata-se da abordagem das capacitações de Amartya Sen, que se constitui em um aparato teórico particular que foge do escopo da abordagem das necessidades humanas e, por isso, não será discutido neste trabalho.

3.3 Terceiro estágio: nova teoria das necessidades humanas

Por tudo que foi discutido, vale recordar que o intuito deste artigo é demonstrar que a pobreza pode e deve ser estudada com base em múltiplas dimensões e que existe uma literatura da qual é possível extrair este conceito. Neste caso, a abordagem das necessidades humanas permite avançar em relação ao estudo da pobreza e do bem-estar com base em uma única dimensão monetária, à medida que ela denota que as necessidades dos seres humanos se situam além da renda.

Com relação ao terceiro estágio da abordagem das necessidades humanas, ele é conduzido por autores como Len Doyal e Ian Gough14. Estes autores têm influência marxista15 e partem do contraste entre as necessidades humanas e as necessidades do capital16.

Para o estudo das necessidades humanas, o terceiro estágio também parte da rejeição do utilitarismo na análise do bem-estar. Normalmente, as necessidades são tratadas como sinônimas de preferências. Sob essa ótica, argumenta-se que elas podem ser satisfeitas apenas por meio de reflexos de consumo.

Diante disso, Doyal e Gough promovem uma distinção entre necessidades e preferências. Por esse motivo, a teoria desenvolvida por esses autores pode ser classificada como uma abrangente teoria normativa na análise da pobreza multidimensional. As preferências dos indivíduos, por si só, são vistas como insuficientes e inconsistentes com os requerimentos de bem-estar social. Com isso, a visão baseada em necessidades sociais ratifica que é necessária a formulação de políticas públicas para a satisfação de necessidades que podem não ser atendidas somente por meio da aquisição de cestas de consumo.

Nesta corrente, as necessidades se referem a uma categoria particular de objetivos universalizantes. A diferenciação entre necessidades básicas e preferências ou desejos pode ser traçada com base na proposição de sérios prejuízos à vida material e à atuação dos seres humanos enquanto indivíduos bem informados e críticos.

Estes prejuízos são aspectos negativos que, de alguma forma, afetam o desenvolvimento físico e social das pessoas na sua capacidade de participação ativa e crítica. Consequentemente, as necessidades humanas se relacionam ao fato de evitarem prejuízos sérios e prolongados, e sua satisfação constitui-se em requisito para isso (Doyal; Gough, 1991; Gough, 2001a).

Está clara a evolução da abordagem das necessidades humanas. Todavia, neste ponto, o terceiro estágio, nos termos empregados por Bagolin e Ávila (2006), se aproxima do primeiro ao diferenciar necessidades e preferências, baseando-se na noção de sérios prejuízos ou de graves danos. Em contrapartida, neste estágio a ideia de necessidades é mais ampla e contempla claramente necessidades não materiais ao se referir à participação ativa e crítica dos indivíduos.

Então, a nova teoria das necessidades humanas de Doyal e Gough (1991) baseia-se na ideia ampla de necessidades que são concebidas de modo objetivo e universal. O aspecto objetivo diz respeito ao fato de serem independentes de preferências ou desejos. O aspecto universal implica que as pessoas, independentemente de posição geográfica e cultural, são dotadas de necessidades básicas comuns. Dessa maneira, a insatisfação das necessidades básicas causa os mesmos prejuízos aos indivíduos de distintas culturas ou localidades.

As necessidades universais, na visão de Doyal e Gough (1991), não variam, ainda que sua satisfação possa assumir variadas formas. Os autores associam o desenvolvimento de uma vida digna ao atendimento das necessidades humanas, comuns a todos os indivíduos em toda parte.

Por tudo isso, este estágio pode ser classificado congênere à definição apresentada por Gasper (1996) na Seção 2, inserido na interpretação de necessidades voltadas para os aspectos normativos e éticos, entre os quais os pré-requisitos para as necessidades devem estar associados ao status de prioridade. Baseando-se neles, são estabelecidas alegações que a comunidade política deve assegurar aos indivíduos, para o atendimento de suas necessidades básicas. Assim, as necessidades prioritárias são definidas de acordo com diferentes contextos materiais e culturais, mas em meio a um quadro comum.

Os autores identificam as necessidades humanas básicas universais classificadas como saúde física (physical health) e autonomia (autonomy). A saúde física é essencial para a capacidade de agir e participar. A autonomia refere-se à capacidade de fazer escolhas e à forma como se deve proceder para fazê-las. Estas necessidades básicas são compartilhadas por todas as pessoas.

Conforme Gough (2001a), as necessidades básicas são precondições universais para a participação nas diversas formas de vida. Segundo Pereira (2006), estas necessidades básicas são requisitos para a obtenção da participação social. Desta forma, a saúde física é destacada como necessidade básica por ser um requisito para a vida humana. Na mesma linha, a autonomia pode ser concebida como necessidade básica, uma vez que permite livrar os seres humanos das diversas formas de opressão.

A saúde física é importante, pois, quanto maior o seu nível, maior a esperança e a qualidade de vida. Além disso, a satisfação desta necessidade básica é útil para propiciar às pessoas a participação social. A participação é um item fundamental para libertá-las da opressão e da pobreza. Para o desenvolvimento do potencial dos indivíduos, é preciso que sejam livres para participar e influenciar as formas de vida, sem que haja limitações de suas escolhas (Doyal; Gough, 1991).

Embora a saúde física seja citada como condição para o desenvolvimento dos indivíduos, de acordo com Pereira (2006), a saúde física se situa como uma necessidade natural que abrange todos os seres vivos, ou seja, não é específica dos seres humanos. Classificada como uma necessidade natural ou biológica, a saúde não diferencia os seres humanos dos animais. Este diferencial só ocorre na maneira de satisfazê-la, o que requer provisões dotadas de conteúdo humano e social.

Por isso, é justificável a introdução do outro componente das necessidades humanas, isto é, a autonomia. Caso contrário, este estágio das necessidades humanas recairia nos mesmos princípios que nortearam o primeiro estágio da abordagem.

A autonomia também se relaciona com a liberdade dos indivíduos e centra-se na capacidade de escolha e ação. É a autonomia que concede aos seres humanos a capacidade de escolher seus objetivos e crenças, situá-los e usufruí-los.

A satisfação das necessidades básicas é uma condição para a participação nos grupos sociais. Além de propiciar a participação, a satisfação das necessidades básicas promove a participação crítica. Esta forma de participação envolve a capacidade dos seres humanos de situarem sua forma de vida, criticá-la e atuar para mudá-la. Este nível de participação é mais dinâmico e requer maior autonomia crítica (Doyal; Gough, 1991; Gough, 2001a).

A autonomia crítica origina-se de níveis elevados de autonomia. Por conseguinte, implica não somente na capacidade de criticar, como também na habilidade de alterar as regras culturais dentro das quais o indivíduo se integra. Nesse sentido, a autonomia é indicada como uma necessidade específica dos seres humanos que os diferencia substancialmente dos demais seres vivos. A autonomia crítica fornece às pessoas a autonomia de agência (Doyal; Gough, 1991).

Quando as necessidades básicas não são atendidas, causam sérios prejuízos aos indivíduos. Estes prejuízos afetam sua condição de agente. A capacidade de agência permite ao indivíduo o reconhecimento sobre si mesmo e sobre os demais indivíduos. Assim, confere às pessoas sua atuação como atores sociais. Isto se refere à sua capacidade de escolha e decisão enquanto seres críticos, além de propiciar a participação social.

Deste conceito, Doyal e Gough (1991) ressaltam o que intitulam de ótimo de participação. Relacionado à criticidade, está o que os autores chamam de ótimo crítico, que permite que os indivíduos questionem e busquem ativamente por alternativas que resultem na melhoria de vida e cultura.

Sobre a capacidade de agência, Gough (2001a, p. 6) ressalta que, “isto é prejudicado, vamos dizer, por doença mental grave, habilidades cognitivas pobres e oportunidades bloqueadas para se envolver na participação social” (tradução nossa)17. Assim, uma situação de deficiência na saúde mental implica no comprometimento da racionalidade de ação do indivíduo.

A capacidade de agência do indivíduo também é afetada por sua capacidade cognitiva, que se traduz na destreza para o entendimento e interpretação das regras impostas pela sociedade. Por fim, quando as oportunidades de participação estão bloqueadas, isto limita que os indivíduos ocupem papéis ativos, bem como o acesso aos meios e objetivos para sua realização.

3.3.1 A satisfação das necessidades humanas

O terceiro estágio da abordagem das necessidades humanas enfatiza necessidades básicas comuns a todos os indivíduos, em todos os tempos e em toda parte. Apesar disso, segundo Gough (2001a), a satisfação destas necessidades não é uniforme, porque existem diversas formas pelas quais as necessidades podem ser atendidas.

Isso é exemplificado por Doyal e Gough (1991) quando os autores lembram que todas as pessoas possuem necessidades de alimentação e moradia. No entanto, essas necessidades não são satisfeitas da mesma forma. Existem inúmeras formas de cozinhar, vários tipos de abrigos e todos eles podem ser capazes de atender, de alguma forma, certos requerimentos específicos.

Ao reconhecer este fato, os autores estão assumindo que a satisfação das necessidades básicas pode ser relativa e varia proporcionalmente à cultura, à localização geográfica e à sociedade em que se vive. Assim sendo, é possível encontrar um componente absoluto nesta abordagem no que se refere à saúde física e à autonomia, e um componente relativo, no que diz respeito à forma de satisfação destas necessidades.

Os autores evidenciam muitos satisfadores18 (satisfiers), isto é, atividades, bens e serviços, medidas políticas que são utilizadas para atender às necessidades básicas. Estes satisfadores são encontrados em toda parte e são relevantes para a melhoria da saúde física e da autonomia. Por isso, os autores listam o que denominam de satisfadores universais.

Já que esses satisfadores contribuem para a saúde física e a autonomia, também podem ser chamados de necessidades intermediárias. Nesse sentido, as necessidades intermediárias “[...] são essenciais à proteção da saúde física e da autonomia e à capacitação dos seres humanos para participar o máximo possível das suas formas de vida e culturas” (Pereira, 2006, p. 75).

Por conta do componente relativo que está presente na satisfação das necessidades, há o reconhecimento que os satisfadores universais podem ser insuficientes para representar todos os contextos. Algumas comunidades podem requerer satisfadores específicos para melhorar adversidades nas condições de vida das pessoas que as compõem. Ainda assim, os autores listam onze satisfadores de caráter universal: alimentação nutritiva; água potável; habitação adequada; ambiente de trabalho desprovido de riscos; ambiente físico saudável; cuidados de saúde apropriados; proteção à infância; relações primárias significativas; segurança econômica; educação apropriada; e segurança no planejamento familiar, na gestação e no parto.

Alguns destes satisfadores universais podem assumir a forma relativa no seu atendimento, em razão de estarem sujeitos às características individuais, circunstâncias climáticas, econômicas e sociais. Contudo, Doyal e Gough (1991) chamam atenção para satisfadores que, se não forem atendidos, resultarão em prejuízos físicos e mentais às pessoas independentemente do contexto em que vivem. Estes satisfadores incluem garantia de abrigo e proteção contra riscos de intempéries e epidemias, saneamento adequado e ausência de superlotação na moradia.

Além disso, cabe destacar que dois satisfadores são específicos para o atendimento das necessidades de mulheres e crianças, reconhecendo que estas duas categorias estão em situação de maior vulnerabilidade. Estes satisfadores são apenas em parte universais, já que não afetam diretamente todos os seres humanos. Para as crianças, a proteção à infância significa conceder uma infância segura no desenvolvimento da sua autonomia e da personalidade. Para as mulheres, a segurança no planejamento familiar, na gravidez e no parto relaciona-se ao fato de conceder a elas autonomia para dominarem sua vida reprodutiva, além de capacitá-las sobre si mesmas e seu entorno. Isto lhes proporciona formas de participação social.

Em resumo, os autores reconhecem que alguns grupos demandam requerimentos particulares para atingir o atendimento da saúde física e da autonomia que são absolutas e universais, e propiciam a participação nas esferas da vida, bem como a libertação das diversas formas de opressão, entre elas, a pobreza. Os satisfadores universais ou necessidades intermediárias, então, têm a função de possibilitar o atendimento das necessidades universais e podem ser classificados de maneira universal. Portanto, eles assumem a forma absoluta ou de maneira específica, assumem a forma relativa de acordo com as particularidades dos indivíduos em questão. De uma forma ou de outra, as necessidades intermediárias também requerem satisfadores específicos para seu atendimento.

Para que ocorra a otimização das necessidades básicas, a sociedade deve produzir recursos suficientes para que as pessoas obtenham níveis básicos de saúde física e autonomia. Além disso, é necessário assegurar a reprodução biológica e socialização das crianças. Outro requisito importante para a otimização é a transmissão cultural de conhecimentos e valores que são cruciais para a reprodução social. Ademais, é preciso que haja algum sistema de autoridade democrático (Pereira, 2006).

Nesse sentido, as necessidades básicas listadas por Doyal e Gough (1991) devem ser atendidas mediante a coletividade através do envolvimento de poderes públicos, adicionando-se a participação da sociedade, fato que já foi abordado por autores do segundo estágio. Assim, saúde física e autonomia, enquanto necessidades básicas universais, devem se consolidar como direitos de todos indistintamente.

Esta visão das necessidades básicas fornece uma conotação complexa para o conceito de pobreza, relacionado não somente à insuficiência de renda, mas a um conjunto de fatores que limitam a vida dos indivíduos. É notório que a dimensão econômica está presente na abordagem como uma necessidade intermediária, sob a denominação de segurança econômica. Por isso, nesta abordagem, a renda é vista como um meio para se atingir outros fins. Neste caso, para o alcance de necessidades básicas que propiciarão a participação social e a libertação dos indivíduos.

A segurança econômica é substancial para garantir o desenvolvimento da autonomia individual, sob a pena colocar em risco a capacidade de participação dos indivíduos. Apesar da sua importância, a renda não é apontada sozinha como requisito necessário e suficiente para o bem-estar, como faz a abordagem tradicional sobre pobreza. A segurança econômica é somente uma necessidade intermediária associada a várias outras que também são fundamentais.

Ao contrário do que acontece no segundo estágio, no terceiro estágio, a ideia de necessidades não visa privilegiar em primeiro lugar, as pessoas pobres. A larga conotação de saúde física e autonomia é estendida, em primeira instância, a todos os indivíduos independentemente da condição social.

Os autores, de certa forma, mantêm a hierarquia das necessidades básicas quando apresentam a saúde física como condição mais básica para que possa existir participação. Entretanto, eles contornam o peso da hierarquização quando agregam a autonomia que difere os homens dos animais e quando assumem que estes dois conjuntos de necessidades são universais e devem ser atendidos para proporcionar aos seres humanos o desenvolvimento de uma vida digna.

Doyal e Gough (1991) listam necessidades básicas e intermediárias universais, mas eles deixam espaço para as devidas adaptações em virtude das divergências pessoais, regionais, culturais e temporais, quando assumem a existência de satisfadores específicos que variam entre as pessoas.

Assim sendo, esta visão se difere do enfoque tradicional, no qual a pobreza se restringe a um problema pessoal que reflete a fraqueza do indivíduo (Pereira, 2006). Abre-se espaço para o papel do Estado e da sociedade neste meio.

As necessidades intermediárias, por exemplo, podem ser fornecidas dentro da família ou da coletividade, o que exige um Estado apoiado por poderes coercitivos e por legitimidade territorial. Isso porque nem todas as necessidades intermediárias se restringem à aquisição de cestas de consumo, e nem todos os indivíduos conseguem realizá-las facilmente. Então, o Estado é necessário para o fornecimento e seleção de políticas viáveis para o atendimento das necessidades19, especialmente daquelas que não podem ser supridas imediatamente no mercado (Gough, 2001a). Pode-se concluir que é preciso que haja o atendimento das necessidades humanas e a concretização de direitos para o consequente abandono da condição de pobreza.

4 A abordagem das necessidades humanas e o estudo da pobreza multidimensional

A maior parte das análises sobre pobreza fundamenta-se na renda como variável chave e eleita melhor proxy para o bem-estar. De fato, este é um importante indicador que reflete os padrões de consumo dos indivíduos, entre outros aspectos. Além disso, a análise unidimensional torna mais fácil o exercício empírico de mensuração da pobreza. Contudo, dimensões da pobreza, como saneamento, condições de trabalho, saúde e participação na comunidade, podem não ser capturadas pela renda monetária. Portanto, as análises teóricas e empíricas precisam se atentar para esse conjunto de dimensões.

Nesse sentido, a abordagem das necessidades humanas agrega ao estudo da pobreza, ao fornecer uma evolução teórica coerente com o estudo da pobreza na sua multidimensionalidade. Qualquer que seja o estágio estudado, a abordagem das necessidades humanas é relevante para a constituição do conceito da pobreza.

No entanto, o primeiro estágio pode não representar com confiabilidade as dimensões da pobreza, uma vez que estas dimensões também não podem ficar restritas aos requisitos naturais. As necessidades dos seres humanos são muito mais amplas que as necessidades dos animais. Logo, o estudo da pobreza deve levar em consideração esta questão. A situação de pobreza não pode ficar limitada apenas àquelas necessidades que colocam em risco a sobrevivência.

O segundo estágio, ainda que hierarquize as necessidades, é mais plausível que o primeiro. Tendo em vista que empiricamente é muito difícil mensurar as necessidades não materiais, o segundo estágio, pela razoabilidade das defesas apresentadas pelos autores à crítica de fetichista, já pode ser considerado um progresso na teorização e mensuração da pobreza. O objetivo de se atingir uma vida plena é importante para a qualidade de vida. Ademais, o reconhecimento que o crescimento econômico é importante, mas não é condição suficiente para o bem-estar é útil para evidenciar as outras dimensões da pobreza, além da econômica; e para a promoção do processo de desenvolvimento.

Não se pode negar, que a ideia mais ampla de necessidades foi apresentada no terceiro estágio. A teoria é mais complexa e mais abrangente ao considerar a existência de necessidades humanas comuns a todos os indivíduos em toda parte. Este critério é útil para a análise empírica, especialmente quando o objetivo é a comparação internacional.

Traduzida como o não atendimento às necessidades humanas, a pobreza multidimensional pode ser entendida como empecilho ao desenvolvimento e bem-estar dos indivíduos. Partindo do pressuposto de que as condições de vida dos indivíduos pobres podem e devem ser melhoradas, o atendimento otimizado às necessidades básicas torna-se uma proposição essencial. Este aspecto se assemelha à ideia de desenvolvimento humano, onde a pobreza, segundo, Fahel et al. (2016) representa uma negação de oportunidades básicas.

Deste modo, pode-se concluir que o pensamento em torno das necessidades humanas constitui-se em um avanço na análise da pobreza por se desvincular da visão que deixa a critério do mercado a resolução do problema da pobreza. Por conseguinte, de acordo com Ávila e Bagolin (2014), uma maneira de estudar a pobreza multidimensional é a partir da não satisfação de necessidades básicas. Quando as necessidades são compreendidas de forma abrangente, reconhece-se que os seres humanos possuem necessidades comuns, embora algumas requeiram soluções específicas. Essas necessidades não se restringem à dimensão econômica e, à medida que avançam para a complexidade, precisam do Estado para o seu atendimento.

No exercício empírico, é preciso reconhecer que as necessidades intermediárias apresentadas no terceiro estágio, são mais fáceis de serem mensuradas. Uma vez que elas permitem a satisfação das necessidades básicas, tornam um bom critério de ser empregado para mensurar a pobreza multidimensional em termos de necessidades humanas insatisfeitas. É relevante acrescentar ainda que, por mais que os autores citem satisfadores ou necessidades intermediárias de escopo universal, eles abrem espaço para que o pesquisador, durante a operacionalização, adicione satisfadores específicos para adequação à realidade pesquisada.

Há que se acrescentar que os autores também não listam níveis de cortes para diferenciar situações de privação daquelas de não privação em todas as necessidades intermediárias. Os autores do terceiro estágio discutem alguns níveis de corte, mas não os retratam fielmente para todas as necessidades. Uma necessidade intermediária para a qual há sugestão de um nível de corte é a alimentação nutritiva. Neste caso, o nível de corte pode ser baseado nos valores energéticos apontados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) que é de três mil calorias ao dia para os homens e duas mil para mulheres. De certo modo, isto deixa outra margem para que sejam aplicados os níveis de cortes que o pesquisador julgar adequado.

Em síntese, os estágios que constituem a abordagem das necessidades humanas denotam a evolução teórica e podem ser aproveitados para a análise da pobreza multidimensional. Na verdade, esses estágios ajudam a constituir o aparato teórico para a conceituação da pobreza multidimensional. O segundo e, mais precisamente, o terceiro estágio podem ser empregados para este fim.

Todavia, apesar do pragmatismo da abordagem, é importante notar que sua operacionalização é alvo de controvérsias. Em geral, nos trabalhos empíricos, estão presentes indicadores que refletem apenas necessidades materiais. Entretanto, isso não significa que as necessidades não materiais sejam irrelevantes. Este fato reflete que tais necessidades são difíceis de serem mensuradas.

Ainda que não incluam dimensões não materiais de pobreza, estudos como os de Neder, Lacerda e Rodrigues (2010) e Silva e Neder (2010), mostram que o ranking dos indicadores de baseados na renda é muito distinto dos indicadores multidimensionais. Isto aponta para o fato que a identificação das pessoas pobres é diferente, conforme a abordagem empregada, e tem importantes implicações para a formulação de políticas públicas.

Assim, é inegável que a abordagem baseada na renda seja vantajosa por ser sintética, de fácil comparação e por refletir padrões de consumo. Por outro lado, o conceito de pobreza multidimensional extraído da abordagem das necessidades humanas fornece uma discussão ampla para a pobreza. Ao mudar o enfoque da análise unidimensional para a multidimensional, muda-se também quem são os pobres. Além disso, a ênfase nas necessidades humanas fornece informações sobre quais são as dimensões que concentram maiores privações, o que é útil para a formulação de políticas públicas.

Ademais, a análise da pobreza multidimensional incorpora a própria renda monetária como importante dimensão da pobreza, somando-se a outras dimensões não menos relevantes para caracterização das condições de vida. Por esse motivo, argumenta-se que o conceito de pobreza multidimensional oriundo da abordagem das necessidades humanas é mais abrangente, ainda que sua operacionalização seja complexa e que, frequentemente, recaia em reducionismo.

5 Considerações finais

Com base na discussão realizada, notou-se que a abordagem das necessidades humanas é marcada por uma diversidade de interpretações. Nos diferentes estágios, estas interpretações evoluíram de modo que se pode traçar um quadro evolutivo da abordagem das necessidades humanas.

A hierarquização das necessidades é um ponto comum em todos os estágios apresentados. No primeiro estágio, enfatiza-se a priorização da satisfação das necessidades que podem causar graves danos. No segundo estágio, prioriza-se, no quadro empírico, a satisfação das necessidades materiais das pessoas mais pobres. Por sua vez, no terceiro estágio, apresenta-se a saúde física como condição mais básica para a promoção da participação. Apesar disto, o segundo e o terceiro estágios contornam a atenção dada à hierarquização ao incorporarem em suas análises, respectivamente, as necessidades não materiais e a autonomia, comuns a todos os indivíduos como pré-requisitos para uma vida plena.

No exercício empírico, uma vez que as necessidades não materiais e a autonomia são de difícil mensuração, elas costumam ficar de fora das análises. Assim, é preciso um maior esforço empírico ao operacionalizar a abordagem, pois o quadro teórico é coerente com o desenvolvimento de uma vida digna aos seres humanos em todos os aspectos e em qualquer parte. Apesar disto, diante da limitação de dados e de recursos, é mais plausível que a análise esteja centrada em necessidades, ainda que essencialmente materiais.

Conforme foi visto, o segundo, e especificamente o terceiro estágio são mais adequados para o estabelecimento de um conceito multidimensional para a pobreza, baseado em outras dimensões além da renda que afetam o bem-estar das pessoas. Portanto, em sentido amplo, a pobreza pode ser conceituada como a não satisfação de necessidades humanas.

Por meio desta constatação, destaca-se o papel do Estado no combate à pobreza, uma vez que, se mesmo a renda pode não ser plenamente adquirida por meio dos instrumentos de mercado, as demais dimensões da pobreza correm o risco de nunca serem resolvidas com este mecanismo. Portanto, fazem-se necessárias políticas públicas efetivas como instrumentos de satisfação das necessidades humanas.

  • (1)
    Juntamente com os trabalhos do economista Amartya Sen.
  • (2)
    E também a abordagem de Amartya Sen (Stewart, 2006).
  • (3)
  • (4)
  • (5)
    “Also guide private consumption in the light of public considerations (for example through counterpressures to advertisers or food subsidies)”.
  • (6)
    Bagolin e Ávila (2006) destacam ainda autores como Marcuse (1938), Maslow (1943; 1954), Taylor (1943; 1959), Fromm (1932), Fitzgerald (1977) e Springborg (1981).
  • (7)
    “It is necessary, things being what they actually are, that if I am to avoid harm then I have x” (Wiggins, 1998, p. 10).
  • (8)
    Outro termo utilizado pelo autor para qualificar as necessidades absolutas é necessidades entrencheds, como os alimentos. Envolve as leis da natureza e os fatos ambientais invariáveis.
  • (9)
  • (10)
    Bagolin e Ávila (2006) ressaltam também Mouly e Kuznin (1978) e Ul Haq (1980).
  • (11)
    Como exemplo, pode-se citar o caso do Brasil. A pobreza absoluta medida pela renda e a desigualdade social permaneceu elevada nesse período.
  • (12)
    O crescimento pode ser considerado pró-pobre, por exemplo, se as pessoas pobres forem beneficiadas em termos absolutos. Este fato pode ser refletido por uma medida apropriada de pobreza (Ravallion; Chen, 2003).
  • (13)
  • (14)
    Bagolin e Ávila (2006) destacam ainda a contribuição de outros autores como Max-NeeF (1989; 1991; 1992), Gasper (1996; 2004) e Hamilton (2003). Isto pode ser conferido em Bagolin e Ávila (2006).
  • (15)
    “Para eles, ‘é inquestionável que Marx acreditava na existência de necessidades humanas objetivas’, principalmente quando se referia a um conjunto de injunções sofridas, coletivamente, pela classe trabalhadora [...]” (Lukes, 1991, p. 12 apud Pereira, 2006, p. 34).
  • (16)
    Mesmo que o capital não seja uma entidade como as pessoas, ele pode ser associado à qualidade realista.
  • (17)
    This is impaired, we go on to say, by severe mental illness, poor cognitive skills, and by blocked opportunities to engage in social participation”.
  • (18)
    Tradução baseada em Pereira (2006).
  • (19)
    Para diminuir a primazia do capital sobre as necessidades, os sistemas de bem-estar (welfare) são importantes. Com eles, é possível favorecer as necessidades humanas, as necessidades do capital ou fornecer combinações entre ambas. Gough (2001b) sugere que é certo que o Estado capitalista é mais propício à satisfação das necessidades humanas que o capitalismo desregulamentado, ainda que o resultado disto seja indeterminado quando não há maiores informações sobre as políticas de Estado.
  • JEL: I30, I32, I39.

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  • EDITOR RESPONSÁVEL PELA AVALIAÇÃO
    Carolina Troncoso Baltar

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2018
  • Aceito
    04 Mar 2024
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