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Menos acidentes, mais mortes. A mecanização agrícola nos canaviais brasileiros e seus reflexos sobre os trabalhadores, no período de 2012 a 2020

Fewer accidents, more deaths. Agricultural mechanization in Brazilian sugarcane plantations and its effects on workers from 2012 to 2020

Resumo

A expansão do uso de máquinas no campo tem promovido alterações no mundo do trabalho canavieiro. Frente a este cenário, lança-se a questão: Como se comportam os acidentes de trabalho e as mortes na realidade mecanizada dos canaviais brasileiros? Predominantemente quantitativa, a investigação que subsidia este texto se vale de dados secundários levantados junto à Plataforma Smartlab e a bases oficiais do governo ligadas ao mercado de trabalho formal (RAIS). Os resultados indicam que o conjunto de atividades agrícolas (manuais e mecanizadas) experimentou queda na incidência de acidentes de trabalho, mas não apresentou redução da taxa de mortes relacionadas ao trabalho. Como resultado, a letalidade foi ampliada no período demonstrando a preservação da superexploração dos trabalhadores. Espera-se que este texto possa lançar luz sobre os desdobramentos gerados pelo processo de mecanização agrícola, no que diz respeito a saúde e segurança dos canavieiros.

Palavras-chave:
Mecanização agrícola; Cana-de-açúcar; Saúde do Trabalhador; Acidentes de Trabalho; Mortes

Abstract

The expansion of the use of machines in the field has promoted changes in the world of sugarcane work. Faced with this scenario, the question arises: How do work accidents and deaths behave in the mechanized reality of Brazilian sugarcane plantations? Predominantly quantitative, the research that supports this text uses secondary data collected from the Smartlab Platform and official government databases, linked to the formal labor market (RAIS). The results indicate that the set of agricultural activities (manual and mechanized) experienced a decrease in the incidence of work accidents, but did not show a reduction in the rate of work-related deaths. As a result, lethality increased in the period, demonstrating the preservation of the overexploitation of workers. This text is expected to shed light on the consequences generated by the agricultural mechanization process regarding the health and safety of sugarcane workers.

Keywords:
Agricultural Mechanization; Sugar Cane; Worker’s Health; Work Accidents; Deaths

Introdução

O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo, cerca de 38% das áreas com plantação estavam localizadas em seu território em 2020 (FAO, 2022FAO - FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. FAOSTAT: cana-de-açúcar plantada. Roma, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.fao.org/faostat/es/#data/QCL >. Acesso em: 01 jul. 2022.
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). Neste mesmo ano foram produzidas, aproximadamente, 657 milhões de toneladas de cana-de-açúcar nos seus mais de 10 milhões de hectares.1 1 UNICA - UNIÃO DA INDÚSTRIA DE CANA-DE-AÇÚCAR. Evolução da produção de cana-de-açúcar, açúcar e etanol safras 2006/07 a 2019/2020. Disponível em: <http://unicadata.com.br/>. Acesso em: 01 jul. 2022.

A lavoura canavieira passou por um novo processo de expansão a partir dos anos 2000, chegando a dobrar suas áreas de plantação. Um dos pontos que marcaram esse período foi a mecanização dos processos de produção, mais especificamente os ligados à etapa do plantio e da colheita (Barreto; Thomaz Junior, 2020BARRETO, M. J.; THOMAZ JÚNIOR, A. As transformações do trabalho na produção da cana-de-açúcar: a realidade entre o visível e o invisível. Geosul, Florianópolis, v. 35, n. 76, p. 471-496, 2020. DOI: 10.5007/2177-5230.2020v35n76p471
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). O avanço da mecanização nos canaviais foi tão intenso que, na safra 2019/20, mais de 90% da colheita foi realizada por máquinas - ante 24% na safra 2007/08 (Gomes; Walter, 2023GOMES, M.; WALTER, A. Impactos de mudanças tecnológicas e organizacionais nas condições de trabalho no setor canavieiro brasileiro: uma análise de 2000 a 2019. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, DF, v. 61, n. 2, 2023. DOI: 10.1590/1806-9479.2021.257923pt
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).

O avanço das máquinas sobre os canaviais brasileiros possibilitou que a força de trabalho fosse fortemente reduzida, mesmo com a ampliação da área agrícola (Lima; Gonçalves; Coelho, 2023LIMA, J. R. T.; GONÇALVES, B. S.; COELHO, R. P. de S. Mercado de trabalho, incorporação das tecnologias mecânicas e o reforço das assimetrias regionais na produção canavieira brasileira: uma análise sobre o período de 2008 a 2018. Raízes: Revista de Ciências Sociais e Econômicas, [S. l.], v. 43, n. 1, p. 40-59, 2023. DOI: 10.37370/raizes.2023.v43.818.
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). Além disso, a composição desta força de trabalho se modificou, pois, à medida que o quantitativo de trabalhadores manuais foi sendo reduzido, os operadores de máquinas, por sua vez, cresceram. Dados da RAIS2 2 Informações tiradas de: RAIS/ME. Relatório anual de informações sociais. 2022. Disponível em: <http://bi.mte.gov.br/bgcaged/rais.php>. Acesso em: 22 jun. 2022 apontam que, em 2008, existia uma proporção de 92% de trabalhadores manuais para 8% de trabalhadores da mecanização. Já em 2020, essa proporção se alterou, chegando a 69% de trabalhadores manuais para 31% de operadores de máquinas agrícolas.

A realidade mecanizada dos canaviais proporciona alterações que não se limitam apenas ao nível das ocupações do setor, pois o trabalho no mundo canavieiro é marcado pela forte exposição dos trabalhadores à superexploração (Silva; Bueno; Melo, 2014SILVA, M. A. M.; BUENO, J. D.; MELO, B. M. de. Quando a máquina “desfila”, os corpos silenciam: tecnologia e degradação do trabalho nos canaviais paulistas. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 4, n. 1, p. 85-115, 2014.). Trabalhos como o de Leite et. al. (2018LEITE, M. R. et al. O trabalho no corte de cana-de-açúcar, riscos e efeitos na saúde: revisão da literatura. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 52, n. 80, 2018.) e de Silva et. al. (2021SILVA, C. P. et al. Condições de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e repercussões sobre a saúde dos canavieiros. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 46, 2021.) levantam uma série de estudos - por meio de revisões de literatura - que evidenciam os vários riscos e agravos à saúde a que os trabalhadores canavieiros estão expostos ou sofrem na sua jornada laboral. Scopinho et. al. (1999SCOPINHO, R. A. et al. Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-açúcar. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 147-161, 1999.), ao investigarem a incorporação de tecnologias mecânicas nos canaviais - ainda em uma fase embrionária da mecanização dos processos de trabalho da produção canavieira -, já destacavam as diferenças entre os acidentes ligados às atividades manuais e mecanizadas. Contudo, nenhum destes estudos evidenciou, quantitativamente, os acidentes de trabalho e as mortes decorrentes destes para trabalhadores manuais e da mecanização agrícola.

Diante desta lacuna investigativa, este texto lança a seguinte questão: Como se comportam os acidentes de trabalho e as mortes na realidade mecanizada dos canaviais brasileiros? Na busca por esclarecer tais questões, são apresentados, a seguir, os procedimentos metodológicos utilizados para a realização da investigação e, na sequência, os resultados sobre os acidentes e mortes ocorridos nos canaviais brasileiros.

Por fim, espera-se que o texto possibilite um melhor entendimento sobre a realidade que se deriva da mecanização dos canaviais brasileiros e seus impactos na saúde e segurança dos trabalhadores.

Procedimentos metodológicos

Predominantemente quantitativa, a investigação realizada neste estudo mobiliza dados secundários em diversas bases. O período de recorte compreendeu de 2012 a 2020. A escolha de tal período se deu tendo como critério a disponibilização dos dados pelas fontes consultadas.

Para realizar a coleta dos dados, foram utilizadas bases de dados referentes: (1) ao mercado de trabalho formal brasileiro - RAIS3 3 Instrumento utilizado pelo governo federal para coletar dados sobre o trabalho no país. Regida atualmente pelo Decreto 10.854, de 10 de novembro de 2021, tem como um dos seus objetivos prover dados para estatísticas do trabalho no ambiente nacional. Fonte amplamente utilizada para elaboração e avaliação de políticas públicas e em estudos científicos, pois possibilita realizar análises sobre: gênero, escolaridade, rendimentos, ocupações entre outras variáveis que marcam o mercado de trabalho formal do território nacional. (Relatório Anual de Informações Sociais); e (2) a acidentes e mortes decorrentes da atividade laboral, com dados disponibilizados pela Plataforma Smartlab4 4 A plataforma é fruto de uma iniciativa conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Tem o intuito de facilitar o acesso a informações sobre o trabalho no Brasil, a partir da condensação de dados oficiais provenientes do Ministério do Trabalho e Emprego, Previdência, Saúde, Direitos Humanos e da Cidadania, entre outras fontes. Disponibiliza dados sobre: trabalho escravo e tráfico de pessoas, trabalho infantil, diversidade no trabalho e saúde e segurança no trabalho. O presente artigo utilizou dados sobre os acidentes de trabalho disponibilizados pela plataforma que são oriundos do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. Disponível em: <https://smartlabbr.org/>. Acesso em: 27 jun. 2022. .

Estudar o mercado de trabalho do setor sucroalcooleiro, a partir de bases de dados, requer alguns ajustes para que a coleta dos dados possa ser realizada de forma mais representativa com a realidade. Fatores como sazonalidade, integralização vertical do complexo agroindustrial e informalidade marcam o setor e demandam escolhas metodológicas. Parte das recomendações propostas por Lima e Carvalho (2023LIMA, J. R. T.; CARVALHO, C. P. Mecanização da produção canavieira e suas alterações para o mercado de trabalho no período de 2008 a 2018. PEGADA - A Revista da Geografia do Trabalho, Presidente Prudente, v. 24, n. 1, p. 195-228, 2023.) indicam que todas as atividades econômicas que formam o setor sucroalcooleiro - cultivo de cana-de-açúcar (01.13-0), fabricação de açúcar de cana refinado (10.72-4); fabricação de açúcar em bruto (10.71-6); e fabricação de álcool (19.31-4) - devem ser consideradas na coleta dos dados, porém, para aprofundar a análise na área agrícola, foco deste trabalho, deve-se recorrer, seletivamente, às ocupações que desenvolvem processos de trabalho no ambiente agrícola do complexo agroindustrial canavieiro. Tais recomendações guiaram as buscas nas bases consultadas.

Assim, foram selecionadas seis ocupações que fazem parte da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), representativas de processos de trabalho que se desenvolvem no ambiente agrícola sucroalcooleiro e cujas atividades laborais estejam ligadas ao trabalho manual e mecanizado nos canaviais. Aqueles registrados nas ocupações “trabalhadores da cultura de cana-de-açúcar”, “trabalhador volante da agricultura” e “trabalhador agropecuário em geral”, responsáveis pela realização de trabalhos manuais na área agrícola, foram aqui agrupados e denominados de trabalhadores manuais. Já o grupo trabalhadores da mecanização foi composto pelas ocupações de “operadores de colheitadeiras”, “tratorista agrícola” e “operadores de máquinas de beneficiamento de produtos agrícolas”.

Os dados foram agrupados, consolidados em planilha eletrônica e feito uso da estatística descritiva, visando gerar inteligibilidade para o material coletado. Além de números absolutos, três indicadores foram usados nas análises: incidência de acidentes, que identifica a quantidade de acidentes pela força de trabalho para cada grupo de mil trabalhadores; mortalidade, que identifica a quantidade de mortes pelo tamanho da força de trabalho para cada grupo de 100 mil trabalhadores; e letalidade, que verifica o potencial de geração de óbitos a partir do número de mortes por acidentes registrados para cada grupo de mil trabalhadores.

Após a organização do material coletado, iniciou-se a fase de análise das informações a partir do confronto e complementaridade entre os achados provenientes das bases de dados em relação à bibliografia de referência selecionada. Isto possibilitou condensar as informações apresentadas neste texto.

Acidentes e mortes no trabalho canavieiro brasileiro entre os anos de 2012 a 2020

Entre 2012 e 2020, o setor sucroalcooleiro, somando as áreas que integram seu complexo produtivo (agrícola, indústria e administrativo), registrou 130.403 acidentes de trabalho. Este quantitativo representou, no período, 2,7% do total de acidentes de trabalho registrados no Brasil. Tais números colocaram o setor na quarta posição entre as atividades econômicas, com os maiores índices de acidentes de trabalho registrados no período. (Smartlab, 2022).

Cabe destacar que, neste intervalo de nove anos, ocorreu um movimento de redução no número absoluto de acidentes de trabalho registrados no setor. Em 2012, foram registrados, conforme dados da Tabela 1, 25.035 acidentes e, em 2020, esse número caiu para 7.863. Tais números representam uma redução na ordem de 69% no total de acidentes anotados. Dentro do complexo agroindustrial do setor sucroalcooleiro, a área agrícola possui elevada representatividade na composição dos acidentes registrados. A média anual de participação da área agrícola nos acidentes registrados no setor foi de 39% para o período analisado. Cabe destacar que com o passar dos anos essa representatividade foi reduzida, pois, em 2012, possuía 46% e teve 8 pontos percentuais reduzidos no ano de 2020, passando para 38%.

Tabela 1
Força de trabalho, acidentes e taxa de incidência do setor sucroalcooleiro, área agrícola do setor e atividades manuais e mecanizadas da área agrícola no período de 2012 a 2020

Ao observar especificamente a área agrícola do setor - locus que interessa para a investigação empreendida -, percebe-se a mesma dinâmica de redução no quantitativo de acidentes registrados, pois, em 2012, alcançou-se 11.415 registros de acidentes de trabalho das ocupações manuais e mecanizadas que desenvolvem processos de trabalho nos canaviais. Em 2020, os registros de acidentes chegaram a 2.998, representando uma redução geral de 73,74% das ocorrências. Respectivamente, nas atividades manuais e mecanizadas, esta redução foi de 77,20% e 43,36%.

Para tentar compreender esse movimento de redução dos acidentes, vamos discutir três pontos: (1) o primeiro possui relação com as transformações que os processos de trabalho dos canaviais sofreram nos últimos anos - a partir da intensificação do uso de máquinas agrícolas - e seus reflexos na força de trabalho; (2) o segundo diz respeito às fiscalizações de trabalho no setor sucroalcooleiro; e, por fim, (3) alterações nas formas de registro dos acidentes, fato que pode contribuir para uma maior subnotificação.

A forte redução de acidentes de trabalho seria explicada, em boa parcela, pela redução do emprego de trabalho vivo nas atividades de colheita e plantio ocorrida nos últimos anos. Dentro do complexo agroindustrial do setor sucroalcooleiro, a área agrícola é a detentora da maior parcela da força de trabalho (Cepea, 2018CEPEA - CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA. Mercado de Trabalho do Agronegócio Brasileiro: A dinâmica dos empregos formais na agroindústria sucroenergética de 2000 a 2016. São Paulo, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/especiaistematicos >. Acesso em: 03 mar. 2020.
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). Diante das transformações que marcaram os canaviais nas últimas décadas e, principalmente, a partir de 2007, como aponta Baccarin (2019BACCARIN, J. G. Expansão e mudanças tecnológicas no agronegócio canavieiro: impactos na estrutura fundiária e na ocupação agropecuária no estado de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2019.), a incorporação de máquinas agrícolas passou a se intensificar. Barreto e Thomaz Júnior (2020BARRETO, M. J.; THOMAZ JÚNIOR, A. As transformações do trabalho na produção da cana-de-açúcar: a realidade entre o visível e o invisível. Geosul, Florianópolis, v. 35, n. 76, p. 471-496, 2020. DOI: 10.5007/2177-5230.2020v35n76p471
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) destacam que a tecnificação da produção canavieira decorre da transformação estrutural contida na lógica do capital, que visa ampliar seu processo de acumulação, e a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto das máquinas é um dos caminhos a serem seguidos. Como exemplo desta intensificação da mecanização agrícola nos canaviais, tem-se o fato de que na safra 2019/2020 o percentual da colheita mecanizada chegou a 91,8% (Gomes; Walter, 2023GOMES, M.; WALTER, A. Impactos de mudanças tecnológicas e organizacionais nas condições de trabalho no setor canavieiro brasileiro: uma análise de 2000 a 2019. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, DF, v. 61, n. 2, 2023. DOI: 10.1590/1806-9479.2021.257923pt
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)

No período que compreende os anos de 2012 a 2020, ocorreu uma redução de aproximadamente 55% da força de trabalho que desenvolve atividades manuais nos canaviais, conforme pode ser observado na Tabela 1. O trabalho manual desenvolvido no campo, como apontam Leite et. at. (2018LEITE, M. R. et al. O trabalho no corte de cana-de-açúcar, riscos e efeitos na saúde: revisão da literatura. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 52, n. 80, 2018.), é marcado pela exposição do trabalhador a inúmeros riscos de acidentes. Consequentemente, o menor número de trabalhadores expostos às condições penosas de trabalho manual reduz a ocorrência de acidentes de trabalho típicos (cortes, mutilações e entorses de membros inferiores) e, também, de doenças do trabalho, especialmente as osteomusculares e do tecido conjuntivo.

Conforme indicado pelo Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho (Ministério da Economia, 2022MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho. Brasília, DF, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social/saude-e-seguranca-do-trabalhador/acidente_trabalho_incapacidade/arquivos/copy_of_AEAT_2021/aeat-2021 > Acesso em: 1 jul. 2023
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), os parâmetros nacionais de incidência de acidentes de trabalho a cada grupo de mil trabalhadores seriam: 16,93 (2012); 16,75 (2013); 16,25 (2014); 14,41 (2015); 14,26 (2016); 13,38 (2017), 13,97 (2018), 13,72 (2019) e 10,82 (2020). De acordo com a Tabela 1, a incidência de acidentes de trabalho nas atividades manuais da produção de cana-de-açúcar brasileira era superior aos registros nacionais até o ano de 2015. Podem ser destacados, neste período de recorte, os anos de 2012 e 2013, em que a taxa de incidência de acidentes do trabalho manual são, respectivamente; 23,49 e 20,54; valores bem superiores ao parâmetro nacional. Contudo, a incidência de acidentes no trabalho manual vai sendo reduzida ao longo dos anos, chegando a 12,03 em 2020, valor um pouco superior à incidência nacional, porém bem inferior à encontrada no início do período analisado.

Na medida em que a força de trabalho manual foi sendo reduzida, as ocupações ligadas a operação de máquinas agrícolas foi se elevando nos canaviais brasileiros. De acordo com dados de Lima e Carvalho (2023LIMA, J. R. T.; CARVALHO, C. P. Mecanização da produção canavieira e suas alterações para o mercado de trabalho no período de 2008 a 2018. PEGADA - A Revista da Geografia do Trabalho, Presidente Prudente, v. 24, n. 1, p. 195-228, 2023.), as ocupações ligadas ao trabalho mecanizado cresceram 51% entre 2008 e 2018. Tal fato fez com que a participação destas ocupações na força de trabalho agrícola do setor sucroalcooleiro passasse a ter maior representatividade. O aumento da representatividade não se limitou apenas à composição da força de trabalho, no que toca os acidentes de trabalho registrados, a participação das ocupações ligadas a mecanização agrícola dos canaviais passou a responder por quase 8% dos acidentes do setor em 2020, ante 5% em 2012.

Scopinho et. al. (1999SCOPINHO, R. A. et al. Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-açúcar. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 147-161, 1999.), ao investigarem a incorporação de tecnologias mecânicas nos canaviais, já destacavam as diferenças entre a propensão para geração de acidentes pelas atividades manuais e mecanizadas. Os autores apontaram que as atividades ligadas ao manejo de máquinas agrícolas apresentavam uma menor geração de acidentes. Os dados apresentados na Tabela 1 indicam que as atividades de trabalho mecanizadas acabam por proporcionar uma quantidade de acidentes menor para quem opera as máquinas, quando comparadas à força de trabalho manual.

Além disso, a incidência de acidentes para o grupo que opera máquinas agrícolas nos canaviais esteve abaixo das incidências nacionais para a população trabalhadora em geral durante todo o período estudado. A média da incidência de acidentes para os trabalhadores da mecanização canavieira foi de 10,76/1000, enquanto a incidência nacional apresentou média de 14,49/1000 para o mesmo período. Importante destacar que, assim como ocorreu com o trabalho manual, a incidência de acidentes do trabalho mecanizado também foi sendo reduzida ao longo do período, saindo de 12,70, em 2012, para 7,59, em 2020.

Uma possível explicação para a redução no parâmetro da incidência de acidentes do trabalho manual e mecanizado e, consequentemente, dos acidentes relacionados a estas forças de trabalho também pode ter vínculo com maiores tendimentos aos requisitos da Norma Regulamentadora do Trabalho nº 31 (NR 31) criada em 2005 e que trata da saúde e segurança do trabalho rural.

De acordo com Gomes e Walter (2023GOMES, M.; WALTER, A. Impactos de mudanças tecnológicas e organizacionais nas condições de trabalho no setor canavieiro brasileiro: uma análise de 2000 a 2019. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, DF, v. 61, n. 2, 2023. DOI: 10.1590/1806-9479.2021.257923pt
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), esta norma possibilitou aos fiscais do trabalho autuarem sistematicamente as organizações do setor. Ela foi responsável por 22% dos autos de infração registrados para o setor sucroalcooleiro entre os anos de 2000 e 2019. Além deste fato, os dados apresentados pelos mesmos autores apontam que os autos de infração emitidos para o setor foram mais intensos entre os anos de 20095 5 Importante destacar que o ano de 2009 marca a assinatura do Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar. Esse acordo reuniu o governo federal e órgãos representativos dos trabalhadores e empresariado do setor e buscou implantar condições mais decentes de trabalho nos canaviais. Destaca-se que tal medida foi motivada pela conjuntura apresentada no mercado internacional de biocombustíveis, para a melhoria dos padrões de sustentabilidade do setor brasileiro. e 2013. A partir de 2014, os autos iniciaram um processo de redução, porém mantiveram números anuais superiores aos encontrados entre 2000 e 2008. Tais números demonstram que o processo de fiscalização do trabalho foi mais intenso na década dos anos 20106 6 Cabe destacar que mesmo com números de autos de infração superiores aos da década anterior, o processo de fiscalização do trabalho passou por um declínio após o ano de 2014. Os motivos que levaram a essa atuação menos intensificada são decorrentes da crise fiscal que abateu o Estado brasileiro e reduziu os recursos para ações fiscalizatórias e reposição do quadro de fiscais do trabalho (Gomes; Walter, 2023). do que o encontrado nos anos 2000. Esta ocorrência pode ter demandado uma melhor adequação das organizações do setor e, consequentemente, ter influência sobre o número de acidentes.

Contudo, a subnotificação é outro ponto que deve ser considerado nesta análise da redução dos acidentes na área agrícola do setor sucroalcooleiro. Apesar da exigência legal de que as notificações de acidentes de trabalho devam ocorrer de forma independente ao período de afastamento, predominam na previdência social as notificações por períodos superiores a 15 dias. Para buscar reduzir a subnotificação de acidentes de trabalho, o Ministério da Saúde estabeleceu, com a Portaria n. 104, de 25 de janeiro de 2011, a Rede Sentinela em Saúde do Trabalhador. Esta ação previa um amplo rol de agravos à saúde que deveriam ser notificados pela rede pública de saúde quando eram prestados cuidados aos trabalhadores acidentados ou adoecidos. Tal política pública atacou frontalmente a subnotificação de acidentes de trabalho que exigiam afastamento por períodos inferiores a 16 dias, pois os serviços de saúde realizavam a notificação diretamente à previdência social.

No entanto, houve a revogação da Portaria nº 104/2011, no ano de 2014, por forte pressão do empresariado, substituída pela Portaria nº1.271/2014, do Ministério da Saúde, que restringiu a notificação de acidentes de trabalho pela rede sentinela em saúde do trabalhador aos casos de ocorrências fatais, de gravidade elevada e aqueles que atingiam crianças e adolescentes. Os acidentes do tipo corte, bem como a “exaustão devida ao calor e à perda hídrica (T67.3)” e a “exaustão devida ao esforço intenso (T73.3)”, que são frequentes entre trabalhadores manuais canavieiros, deixaram de ser notificados. Esta mudança na política pública, descrita por Rumin (2020RUMIN, C. R. Quando o trabalho se finda? Condições de vida e saúde de trabalhadores rurais canavieiros aposentados. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2020.) como “salubridade gerida” pode, também, ter contribuído para a redução no número de acidentes de trabalho a partir de 2014.

Outro fator que contribuiria para a queda dos registros de acidentes de trabalho seria a descaracterização do nexo causal entre o adoecimento e o trabalho, com a utilização do artigo 15 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 (Brasil, 1991BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de Julho de 1991. Dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social e dá outra providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm
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), que regulamenta a cobertura securitária da previdência social. Este artigo prevê a qualidade de segurado ao trabalhador até um ano após a interrupção do contrato de trabalho. Deste modo, após a constatação de uma doença do trabalho, poderia ocorrer a interrupção do contrato do trabalho e, em seguida, o trabalhador buscaria o amparo do artigo 15 para obter o auxílio-doença previdenciário (B.31). Esta estratégia de acesso à cobertura previdenciária nas ocasiões de adoecimento pelo trabalho violaria os direitos dos trabalhadores de contagem do tempo de serviço para a aposentadoria ao longo do período de afastamento, o direito de recolhimento do fundo de garantia por tempo de serviço neste mesmo período e, até mesmo, o tolhimento dos direitos de estabilidade de um ano no emprego, após a interrupção do auxílio previdenciário e o direito à reabilitação profissional. A descaracterização do nexo causal entre o adoecimento e o trabalho, empregando o artigo citado, contribui para a impressão falseada de melhoria das condições de trabalho a partir de uma possível redução das doenças do trabalho e foi denominada por Rumin (2020RUMIN, C. R. Quando o trabalho se finda? Condições de vida e saúde de trabalhadores rurais canavieiros aposentados. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2020.) como “tolhimento institucional”.

Observa-se, a partir do exposto, que se apoiar na subnotificação de acidentes de trabalho de menor gravidade e no tolhimento institucional do nexo causal de adoecimentos do trabalho delimita um cenário contraditório: apesar da forte redução no número absoluto, foi elevado o registro de acidentes de trabalho que exigem assistência médica reabilitadora e ocasionam incapacidade permanente, conforme demonstrado por Rumin (2020RUMIN, C. R. Quando o trabalho se finda? Condições de vida e saúde de trabalhadores rurais canavieiros aposentados. Tese (Doutorado em Ciências) - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2020.). Apesar da subnotificação e o tolhimento institucional, não estaria descaracterizada a forma destrutiva de exploração do trabalho nos canaviais brasileiros que “rouba desses homens e mulheres o pouco que lhes resta de reconhecimento social: a capacidade de prover seu sustento e de seus familiares, a capacidade de sentirem-se úteis frente a família e a sociedade” (Franco-Benatti; Navarro; Praun, 2020FRANCO-BENATTI, D. M.; NAVARRO, V. L.; PRAUN, L. Exploração e precariedade na nova dinâmica produtiva nos canaviais e a persistência do desgaste e adoecimento do trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, v. 23, n. 1, p. 29-50, jun. 2020. DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v23i1p29-50
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, p. 47). Assim, a retração nos registros de acidentes de trabalho nas atividades deve ser tomada com cautela, em virtude das modificações nas políticas públicas de notificação de acidentes de trabalho que ocorreram no período estudado.

Mortes nos canaviais

Os dados da plataforma Smartlab (2022) indicam que no Brasil, entre 2012 e 2020, foram registradas 20.119 mortes decorrentes de acidentes de trabalho. No mesmo período, o setor sucroalcooleiro registrou 548 mortes ou 2,7% do total registrado no país. Esses números colocaram o setor na terceira posição entre as atividades econômicas que mais registram acidentes fatais com a sua força de trabalho. A Tabela 2 demonstra que, no período, foram registradas em média 61 mortes por ano no setor, tendo o ano de 2013 como mais mortífero, com 85 mortes.

Tabela 2
Mortes derivadas de acidentes de trabalho do setor sucroalcooleiro, área agrícola do setor e atividades manuais e mecanizadas da área agrícola no período de 2012 a 2018

Ao direcionar a análise para os canaviais e as ocupações que desenvolvem processos de trabalho nessa esfera, evidenciou-se que as ocupações - manuais ou mecanizadas - contabilizaram, juntas, 178 mortes, número que representou 32,48% de todas as mortes do setor no período. Diferentemente do que foi observado, no mesmo período, com o registro dos acidentes, o quantitativo de mortes não apresentou uma redução linear. Os dados mostram uma dinâmica irregular nas mortes de trabalhadores agrícolas, pois existem variações entre os anos, com alterações entre crescimentos e quedas nos registros. Porém, durante o período, o menor quantitativo registrado foi de 11 mortes em 2019, e o maior foi o de 31 mortes ou 43% do total dos registros do setor no ano de 2016.

Diante deste cenário - em que os acidentes são reduzidos em uma escala linear e as mortes decorrentes deles não apresentam a mesma movimentação que indicaria melhorias nas condições de exploração dos trabalhadores -, cabe aprofundar a análise e focar nas ocupações que compõem os canaviais. A atividade manual - que possui uma representatividade média de 59% das mortes na atividade rural e 19% quando comparada ao setor total - obteve uma média de 12 mortes registradas por ano, tendo o ano de 2016 como seu maior registro, com 23 óbitos, e o menor em 2019, com seis. Já as ocupações ligadas a operação de máquinas apresentaram uma média de aproximadamente oito mortes anuais para o mesmo período, e 2013 e 2015 foram os anos de maior registro, com 13 mortes cada. O ano de 2015 foi o único em que o grupo dos trabalhadores da mecanização superou os manuais em número de mortes absolutas.

Contudo, esses dois grupos de trabalhadores - manuais e da mecanização - apresentam diferenças quanto ao tamanho da sua força e execução dos processos de trabalho, bem como, principalmente, dos riscos aos quais estão expostos nos canaviais (Silva et. al., 2021SILVA, C. P. et al. Condições de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e repercussões sobre a saúde dos canavieiros. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 46, 2021.). As alterações recentes na composição da força de trabalho canavieira, com a incorporação mais intensa de máquinas agrícolas, promove a necessidade de um comparativo entre esses grupos de trabalhadores para uma melhor compreensão das mortes decorrentes de acidentes. Para isso, iremos utilizar os indicadores de mortalidade e letalidade que ambos os grupos apresentaram no período analisado.

Para o conjunto total da população trabalhadora brasileira, as taxas de mortalidade a cada 100 mil trabalhadores foram, respectivamente: 6,56 (2012); 6,53 (2013); 6,43 (2014); 5,89 (2015); 5,57 (2016); 5,11 (2017); 5,08 (2018); 5,15 (2019); e 4,70 (2020) (Ministério da Economia, 2022MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho. Brasília, DF, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social/saude-e-seguranca-do-trabalhador/acidente_trabalho_incapacidade/arquivos/copy_of_AEAT_2021/aeat-2021 > Acesso em: 1 jul. 2023
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). Durante o período compreendido entre 2012 e 2015, a mortalidade dos trabalhadores canavieiros em atividades manuais no Brasil foi inferior aos indicadores nacionais. Em 2016, a mortalidade de trabalhadores manuais alcançou um patamar de quase o dobro dos indicadores nacionais, com 9,65 ou, aproximadamente, 10 mortes para cada 100 mil trabalhadores. A superioridade da taxa de mortalidade da atividade manual nos canaviais só foi maior que a média nacional de 2018, com uma taxa de 5,98 ante a nacional, com 5,08.

Nas atividades mecanizadas ocorreu o inverso do que foi visto com o trabalho manual, pois a mortalidade só ficou abaixo dos indicadores nacionais no ano de 2014, em que alcançou 6,04 óbitos a cada 100 mil trabalhadores. Nos anos de 2013 (12,96) e 2015 (14,02), a mortalidade de trabalhadores nas atividades mecanizadas da produção canavieira foi quase duas vezes maior que os indicadores da população trabalhadora brasileira em geral.

No Brasil, a letalidade alcançou, a cada grupo de mil trabalhadores: 3,87 (2012), 3,90 (2013), 3,96 (2014), 4,09 (2015), 3,96 (2016), 3,82 (2017), 3,64 (2018), 3,75 (2019) e 4,34 (2020) (Ministério da Economia, 2022MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho. Brasília, DF, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social/saude-e-seguranca-do-trabalhador/acidente_trabalho_incapacidade/arquivos/copy_of_AEAT_2021/aeat-2021 > Acesso em: 1 jul. 2023
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). Para os trabalhadores manuais da cana-de-açúcar, a letalidade manteve-se abaixo dos indicadores nacionais entre 2012 e 2015. Porém, em 2016 (6,60) e em 2018 (4,42), a letalidade superou esses indicadores. Cabe observar que a taxa de letalidade do trabalho manual se elevou ao longo do período analisado, pois em 2012 era de 1,37 e, em 2020, tornou-se 3,42. Mesmo com a redução da força de trabalho e dos acidentes registrados, indica-se que a atividade manual nos canaviais ficou mais letal para seus trabalhadores.

Já nas atividades mecanizadas, a letalidade foi superior aos indicadores nacionais para a população em geral ao longo de todo o período abordado. Nos anos de 2013 (10,14) e 2015 (12,43), a letalidade sofreu um forte incremento, chegando ao triplo dos indicadores nacionais em 2015. Diferentemente do que foi visto com a letalidade dos trabalhadores manuais, os da mecanização não sofreram alterações significativas de aumento ou redução, mesmo apresentando redução de 43% no número de acidentes no mesmo período.

Ressalta-se que o cálculo de letalidade e mortalidade considera o número total de acidentes notificados, dessa forma, tal fato pode aludir que os parâmetros elevados frente aos registros da população trabalhadora em geral são produzidos pela subnotificação dos acidentes de trabalho. Porém, mesmo com esta ressalva, os dados apresentados indicam que a atividade canavieira, ao reduzir seu quantitativo de acidentes, ainda assim não conseguiu este feito quanto as mortes em decorrência dos acidentes de trabalho. A incorporação das máquinas nos canaviais reduziu brutalmente a força de trabalho e a geração de acidentes, porém não melhorou as condições de trabalho, tendo em vista os indicadores de mortes não serem alterados significativamente.

O movimento de substituir o trabalho vivo pelas máquinas não suplanta as formas degradantes a que são submetidos os homens e mulheres envolvidos nos processos laborais executados nos canaviais. Antunes (2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.) destaca a “processualidade contraditória”, em que a incorporação tecnológica não ocasionaria melhorias nas condições de trabalho, mas o tornaria mais penoso para os trabalhadores rurais. Silva, Bueno e Mello (2014SILVA, M. A. M.; BUENO, J. D.; MELO, B. M. de. Quando a máquina “desfila”, os corpos silenciam: tecnologia e degradação do trabalho nos canaviais paulistas. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 4, n. 1, p. 85-115, 2014.) indicam que a mecanização dos canaviais favorece o desenvolvimento de agravos à saúde dos trabalhadores, que desenvolvem atividades manuais porque passam a desenvolver subatividades, ocupar os piores terrenos e lidar com exigências de aumento de produtividade.

Silva et. al. (2021SILVA, C. P. et al. Condições de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e repercussões sobre a saúde dos canavieiros. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 46, 2021.) destacam que a diminuição dos postos de trabalho ocasionada pela mecanização dos processos de trabalho promove uma seleção mais criteriosa dos trabalhadores que irão desenvolver atividades manuais, principalmente as ligadas ao corte. Os autores ainda destacam que a contração dos postos de trabalho e as condições encontradas no trabalho canavieiro - pagamento por produção, jornadas de trabalho elevadas, não respeito às normas trabalhistas, trabalho intensificado e exposição a elevadas temperaturas - incrementam a realidade da superexploração. O resultado é a perda precoce da capacidade produtiva (Reis, 2018REIS, T. Ceifando a cana…Tecendo a vida: Um estudo sobre o pós/trabalho nos canaviais. 2018. 206 f. Tese (Doutorado) - Curso de Doutorado em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018.) ou a morte por exaustão dos trabalhadores (Costa, 2017COSTA, C. Morte por exaustão no trabalho. Caderno Crh, Salvador, v. 30, n. 79, p. 105-120, 2017.).

A degradação da saúde no trabalho rural canavieiro também é acelerada, em virtude da polivalência exigida do trabalhador da agroindústria canavieira na atualidade. Além das atividades da colheita, trabalham no preparo de carreadores para o transporte da cana-de-açúcar, manejo de áreas de preservação permanente, replantio de falhas nos canaviais, controle de pragas, adubação manual de canaviais e atividades complementares às ações da colheita mecanizada. Anteriormente à disseminação da mecanização, havia uma clara divisão entre trabalhadores sazonais da colheita manual e trabalhadores rurais dedicados às diversificadas atividades agrícolas. Neste momento, os impactos das condições de trabalho na colheita manual são agregados ao desgaste decorrente das atividades nos tratos culturais e outras práticas agrícolas. Esta polivalência incrementaria a deterioração da maleabilidade corporal e ampliaria a exposição ao risco de acidentes que ocasionariam a morte de trabalhadores.

Outra ocorrência na realidade mecanizada dos canaviais é a concomitância de atividades entre trabalhadores rurais canavieiros e maquinário agrícola. Essa realidade também deve ser considerada como importante fator para uma maior gravidade dos acidentes, pois conforme registrado na inspeção nº 196595091 (Ministério do Trabalho e Emprego, 2011MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Morte em razão de atropelamento por carregadeira de cana durante plantio - inspeção nº 106595091. Brasília, DF: Inspeção do Trabalho, 2011. disponível em: < disponível em: http://acesso.mte.gov.br/data/files/8A7C816A4F05455D014F41C289DE4E6E/Morte%20em%20raz%C3%A3o%20de%20atropelamento%20por%20carregadeira%20de%20cana%20durante%20plantio.pdf > Acesso em: 1 jul. 2023
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, p. 1) a trabalhadora rural foi “atropelada pela máquina carregadeira de cana, que realizava manobras em marcha ré”.

A realidade do trabalho intensificado, vivenciada pelos trabalhadores manuais, também está presente na força de trabalho que opera máquinas agrícolas e influencia diretamente nas condições de segurança. Bunde e Calaça (2018BUNDE, A.; CALAÇA, M. Transformações e exclusão nas relações de trabalho no setor sucroenergético brasileiro: o caso do grupo Raízen. Revista Pegada, Presidente Prudente, v. 19, n. 3, p. 144-175, 2018. DOI: 10.33026/peg.v19i3.5517
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, p. 153) afirmam que a imposição do trabalho intensificado aos trabalhadores das atividades mecanizadas nos canaviais é “um sistema construído a partir de uma combinação entre a mecânica, a eletrônica e os sistema de informação, sendo controlado a quilômetros de distância. É fruto do desenvolvimento das forças produtivas e do aperfeiçoamento dos instrumentos de exploração da força de trabalho humana”. Por isso, é possível afirmar que a superexploração do trabalho, que historicamente atinge os trabalhadores manuais (Guanais, 2018GUANAIS, J. B. Pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira. São Paulo: Outras Expressões, 2018.), se perpetua no cotidiano das atividades mecanizadas das agroindústrias canavieiras.

O ritmo intenso imposto pelo pagamento por produtividade e as extensas jornadas ampliam o desgaste dos trabalhadores. Tal desgaste acaba por causar exposição a maiores riscos de acidentes. Contudo, a gravidade dos acidentes envolvendo máquinas agrícolas, conforme Rodrigues (2014RODRIGUES, D. A. Acidentes graves fatais no trabalho de corte mecanizado de cana-de-açúcar: o olhar através do método mapa. 2014. 209 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Medicina de Botucatu, Botucatu, 2014.) demonstra, eleva a taxa de mortalidade e, principalmente, de letalidade a patamares muito superiores aos das atividades canavieiras manuais, conforme visto na Tabela 2.

Assim, ainda que a expansão do uso das máquinas tenha reduzido o quantitativo de acidentes nos canaviais, a morte - tanto entre os que executam o trabalho manual quanto entre aqueles que executam o trabalho mecanizado - se tornou mais presente neste contexto.

Considerações finais

A sensível redução da incidência de acidentes de trabalho em todo o conjunto do setor sucroalcooleiro poderia indicar melhorias nas condições de trabalho e nas práticas preventivas em segurança ocupacional. Mesmo assim, a incidência de acidentes de trabalho manteve-se acima dos patamares nacionais ao longo de todo período, o que exigiria a ampliação das ações de proteção à saúde e assiduidade da fiscalização referente às normativas de segurança no trabalho.

Destaca-se que a mortalidade de todo o setor sucroalcooleiro não retrocedeu no período estudado, apontando para a perpetuação de riscos ocupacionais que ameaçam a vida. De forma semelhante, o conjunto de atividades agrícolas (manuais e mecanizadas) experimentou queda na incidência de acidentes de trabalho, mas não apresentou redução das taxas de mortes relacionadas ao trabalho. Como resultado, a letalidade foi ampliada no período estudado, o que ilustraria a reduzida eficácia das medidas de segurança no trabalho para preservar a vida.

O trabalho manual canavieiro continua a demonstrar sua destrutividade, como pode ser verificado nos dados apresentados. A ampliação da letalidade aponta para a preservação da superexploração dos trabalhadores em um contexto produtivo que os submete a maiores riscos.

A redução dos acidentes de trabalho nas atividades mecanizadas demonstra que os riscos anteriormente desconhecidos deste arranjo do processo produtivo gradativamente são integrados às ações de proteção aos trabalhadores. Contudo, ainda é alarmante que a mortalidade daqueles que realizam atividades mecanizadas seja superior aos parâmetros da população trabalhadora brasileira em geral, o que demanda o aprimoramento de equipamentos e procedimentos que representam risco de morte.

Cabe enfatizar que a realidade dos canaviais mecanizados não é homogênea em todo o território nacional. Existem diferenças quanto ao nível de incorporação de tecnologias mecânicas entre as regiões produtoras. Estudos futuros devem se desenvolver para aprofundar uma análise de como os acidentes e mortes decorrentes do trabalho se processam a partir destas diferenças regionais.

Por fim, o contexto exposto indicaria que não foi efetivada a proposição de que a mecanização das atividades agrícolas da cultura canavieira contribuiria para a proteção da saúde e da vida dos trabalhadores. Os dados revelaram que menos acidentes e mais mortes, portanto, sintetizam os efeitos da expansão da mecanização nos canaviais brasileiros.

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    Instrumento utilizado pelo governo federal para coletar dados sobre o trabalho no país. Regida atualmente pelo Decreto 10.854, de 10 de novembro de 2021, tem como um dos seus objetivos prover dados para estatísticas do trabalho no ambiente nacional. Fonte amplamente utilizada para elaboração e avaliação de políticas públicas e em estudos científicos, pois possibilita realizar análises sobre: gênero, escolaridade, rendimentos, ocupações entre outras variáveis que marcam o mercado de trabalho formal do território nacional.
  • 4
    A plataforma é fruto de uma iniciativa conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Tem o intuito de facilitar o acesso a informações sobre o trabalho no Brasil, a partir da condensação de dados oficiais provenientes do Ministério do Trabalho e Emprego, Previdência, Saúde, Direitos Humanos e da Cidadania, entre outras fontes. Disponibiliza dados sobre: trabalho escravo e tráfico de pessoas, trabalho infantil, diversidade no trabalho e saúde e segurança no trabalho. O presente artigo utilizou dados sobre os acidentes de trabalho disponibilizados pela plataforma que são oriundos do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. Disponível em: <https://smartlabbr.org/>. Acesso em: 27 jun. 2022.
  • 5
    Importante destacar que o ano de 2009 marca a assinatura do Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar. Esse acordo reuniu o governo federal e órgãos representativos dos trabalhadores e empresariado do setor e buscou implantar condições mais decentes de trabalho nos canaviais. Destaca-se que tal medida foi motivada pela conjuntura apresentada no mercado internacional de biocombustíveis, para a melhoria dos padrões de sustentabilidade do setor brasileiro.
  • 6
    Cabe destacar que mesmo com números de autos de infração superiores aos da década anterior, o processo de fiscalização do trabalho passou por um declínio após o ano de 2014. Os motivos que levaram a essa atuação menos intensificada são decorrentes da crise fiscal que abateu o Estado brasileiro e reduziu os recursos para ações fiscalizatórias e reposição do quadro de fiscais do trabalho (Gomes; Walter, 2023GOMES, M.; WALTER, A. Impactos de mudanças tecnológicas e organizacionais nas condições de trabalho no setor canavieiro brasileiro: uma análise de 2000 a 2019. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, DF, v. 61, n. 2, 2023. DOI: 10.1590/1806-9479.2021.257923pt
    https://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.2...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2022
  • Revisado
    31 Maio 2023
  • Aceito
    03 Jul 2023
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