Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar as políticas de avaliação educacional, no Brasil, considerando seus efeitos sobre as condições de realização de uma Educação escolar pública democrática. Trata-se de uma pesquisa teórica, de cunho bibliográfico, que discute, primeiramente, as disposições da Constituição Federal de 1988 que possibilitam definir conceitual e juridicamente o Estado Democrático de Direito, analisando suas implicações para a Educação pública democrática. Em seguida, apresentam-se as políticas de avaliação educacional praticadas no país, considerando-se suas características gerais e suas principais incidências no campo educativo escolar. Por fim, problematizam-se as possibilidades de democratização e de realização de uma efetiva qualidade da Educação escolar no Brasil.
Política da Educação; Avaliação da Educação; Reforma da Educação; Educação Democrática
Abstract
This work aims to analyze the educational evaluation policies in Brazil, considering their effects on the conditions of accomplishment of a democratic public school Education. It is a theoretical and bibliographical research that discusses, first, the provisions of the Federal Constitution of 1988 that make possible to define conceptually and legally the Democratic State of Law, analyzing its implications with the question of democratic public Education. Then, the policies of educational evaluation practiced in the country are presented, considering their general characteristics and main incidences on the field of school Education. Finally, the possibilities of democratization and achievement of an effective quality of school Education in Brazil are problematized.
Education Policy; Education Evaluation; Education Reform; Democratic Education
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo analizar las políticas de evaluación educativa en Brasil, considerando sus efectos sobre las condiciones de realización de una Educación pública escolar democrática. Se trata de una investigación teórica y bibliográfica que discute, en primer lugar, las disposiciones de la Constitución Federal de 1988 que permiten definir conceptual y jurídicamente el Estado Democrático de Derecho, analizando sus implicaciones con la cuestión de la Educación pública democrática. En seguida, se presentan las políticas de evaluación educacional practicadas en el país, considerando sus características generales y sus principales incidencias en el campo de la Educación escolar. Finalmente, se problematizan las posibilidades de democratización y alcance de una efectiva calidad de la Educación escolar en Brasil.
Política Educativa; Evaluación Educativa; Reforma Educativa; Educación Democrática
1 Introdução
A Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.) – como expressão da reabertura política do país após a ditadura civil-militar (1964–1985) e da intensa articulação de setores organizados da sociedade – definiu o Estado brasileiro como um Estado Democrático de Direito. Sob essa concepção deveriam se consolidar os objetivos fundamentais de constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, e de afirmação de princípios e formas de organização das relações políticas, econômicas e sociais condizentes com esses objetivos.
No entanto, as transformações socioeconômicas e políticas que se desdobraram após a promulgação da Carta Magna – marcadas pela mundialização, progressiva financeirização da economia, ampliação e complexificação da dívida externa do país, reforma de Estado conforme a ideologia neoliberal entre outros aspectos – impulsionaram mudanças sociais e educacionais que dificultam, sobremaneira, a consecução dos compromissos e propósitos juridicamente delineados.
Nesse contexto, as políticas de avaliação educacional denotam a instauração da condição de “quase-mercado” no campo educativo escolar, visto que a regulação estatal não se opõe às regras e interesses de mercado, embora a criação e a manutenção desse mercado dependam do Estado. A forma de regulação educacional vinculada à condição de quase-mercado motiva a competição, a responsabilização profissional, a hierarquização de instituições e de profissionais, bem como legitima os processos formativos à disseminação de saberes básicos que ratificam posições de classe e de subordinação. Tudo isso distancia a Educação dos compromissos firmados com a transformação estrutural da sociedade brasileira ao se assumir a concepção de Estado Democrático de Direito.
Por tal, objetivamos analisar as políticas de avaliação educacional, no Brasil, considerando seus efeitos sobre as condições de realização de uma Educação escolar pública democrática. Metodologicamente, discutimos referências conceituais que contribuam para a análise dessas implicações, como os conceitos de Estado Democrático de Direito, quase-mercado e meritocracia, dentre outros, e realizamos análise documental e bibliográfica relacionada ao tema.
Para correlacionar as disposições constitucionais, relativas à consolidação das políticas de avaliação educacional externa e a seus efeitos sobre a Educação pública ao Estado Democrático de Direito, buscamos: i) analisar disposições constitucionais que possibilitam definir conceitual e juridicamente o Estado Democrático de Direito, apontando eventuais contradições; e ii) discutir características das políticas de avaliação educacional que possibilitam inferir implicações relevantes para a Educação escolar pública democrática praticada no país.
2 O Estado democrático de direito na CF 88: definições, anúncios e contradições
A Constituição da República Federativa do Brasil (CF), promulgada em 5 de outubro de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.), marcou, nas palavras de Barroso (2008)BARROSO, L. R. Vinte anos da Constituição Brasileira de 1988: o Estado a que chegamos. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da UniBrasil, Curitiba. v. 1, n. 8, p. 183-225, mar. 2008., a “[...] transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito”. A definição da concepção de Estado Democrático de Direito como orientação para a reconstrução da República Federativa do Brasil após o período da ditadura civil-militar (1964–1985) decorreu, segundo o autor, da recuperação das liberdades públicas e da instauração de um processo constituinte, marcado pela participação popular e pela abertura ao pensamento de esquerda que, finalmente, podia se manifestar livremente.
A concepção do Estado Democrático de Direito definida no Artigo 1º da Lei Magna (Brasil, 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.), conforme Silva (1988)SILVA, J. A. O Estado democrático de direito. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. v. 173, p. 15-34, jul./set. 1988., consistia em um conceito novo que supera as concepções de Estado democrático e de Estado de Direito. O Estado de direito como expressão jurídica da democracia liberal é, reconhecidamente, insuficiente no que se refere à garantia da justiça social pelo seu caráter formal. Pauta-se em princípios como o da legalidade, que submete o Estado às leis e, entre outros quesitos, garante direitos individuais. Wood (2003)WOOD, E. M. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003. explica que essa concepção de Estado, no entanto, permite a coexistência da igualdade civil com a desigualdade de classe, pois a ideia de um Estado que se pauta em regras gerais para todos está na base da livre concorrência econômica, que protege as propriedades de intervenções contrárias aos interesses das classes dominantes, o que exacerba essas desigualdades.
Uma vez que o princípio da legalidade não implica participação igualitária do povo nas decisões estatais, o Estado de direito liberal pode não ser, de fato, democrático. O Estado democrático se funda no princípio da soberania popular que “[...] impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado democrático, mas não o seu completo desenvolvimento” (Silva, 1988SILVA, J. A. O Estado democrático de direito. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. v. 173, p. 15-34, jul./set. 1988., p. 20).
O princípio da participação democrática constitui-se em uma exigência para a consolidação de direitos fundamentais, visando à justiça social. Essa participação é condição para que as leis de um país expressem a soberania popular e orientem a continuidade dos processos participativos na direção almejada. Nesse sentido, Chueiri e Godoy (2010)CHUEIRI, V. K.; GODOY, M. G. Constitucionalismo e democracia: soberania e poder constituinte. Revista Direito GV, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 159-174, jan./jun. 2010. https://doi.org/10.1590/S1808-24322010000100009
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compreendem a Constituição como uma normativa ordenadora da sociedade que exprime a manifestação da soberania popular e o poder constituinte.
Tendo em vista a necessidade de efetivar direitos contidos e historicamente expressos nas demandas sociais – e, particularmente, incorporar tanto princípios democráticos quanto do Estado de direito, no período que antecedeu a promulgação da CF 88, se assumiu a concepção de Estado Democrático de Direito. Silva (1988SILVA, J. A. O Estado democrático de direito. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. v. 173, p. 15-34, jul./set. 1988., p. 21) explica que o democrático, qualificando o Estado, implica na irradiação de seus elementos constitutivos sobre o direito, que deveria se enriquecer da percepção popular e se ajustar aos interesses coletivos, agregando o “[...] componente revolucionário de transformação do status quo”.
Essa concepção, em boa parte, expressou o novo peso das forças de esquerda organizadas na cena política brasileira, reivindicando direitos negados historicamente à maioria da população brasileira. A CF 88, qualificada como Constituição Cidadã, evidenciou o movimento plural e participativo que a constituiu, explicitando o projeto de sociedade que se pretendia instituir, nos incisos do seu Art. 3º (Brasil, 1988, n.p.): uma “sociedade livre, justa e solidária”, capaz de “garantir o desenvolvimento nacional”, consciente de que esses objetivos só seriam alcançados pela promoção da justiça social, erradicando-se “a pobreza e a marginalização”, reduzindo-se “desigualdades sociais e regionais” e promovendo-se o “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Afirma-se, por conseguinte, a valorização da diversidade étnica e cultural como traço fundante do povo brasileiro, confrontando-se preconceitos pela afirmação da pluralidade de ideias e culturas e refreando-se desigualdades regionais, econômicas, sociais, culturais e educacionais que, ainda hoje, marcam o país. As intensas desigualdades da sociedade brasileira, em particular as de classe, constituem-se, entre outras formas, em obstáculos à participação plural na consolidação de direitos.
Em grande medida, essas desigualdades se devem à atuação da burguesia brasileira que, estruturada sob a influência da colonização e da escravidão, busca manter privilégios. Segundo o autor, ela se associa, de forma subordinada, aos centros hegemônicos do capital e, por meio de ditaduras e golpes institucionais, impede avanços das lutas populares e da classe trabalhadora por direitos.
Entre outros aspectos, a ausência de uma ampla participação democrática nas práticas e relações políticas marca a mentalidade coletiva do país (Comparato, 2017COMPARATO, F. K. Os fatores estruturantes da sociedade brasileira. In: COMPARATO, F. K. A oligarquia brasileira: visão histórica. São Paulo: Contracorrente, 2017. p. 11-33.), produzindo transformações históricas que deixam à margem a maior parte da população. Na perspectiva gramsciana, Coutinho (2011)COUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil. In: COUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 35-73. defende que a escassa densidade nacional-popular da cultura brasileira se origina de processos históricos de transformação pelo alto, que se constituem em revoluções passivas, impedindo ou dificultando a participação popular em vários âmbitos da vida social e política.
No processo constituinte, determinadas forças sociais organizadas possibilitaram que fossem vislumbradas mudanças na direção de um projeto de sociedade capaz de avançar na consecução de direitos fundamentais. Desse modo, introduziu-se no texto constitucional (Brasil, 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.) um capítulo sobre direitos sociais (Educação, saúde, trabalho, previdência social entre outros), inexistente nas Constituições anteriores. Após o asseguramento desses direitos no texto constitucional, sua efetivação dependeria da consolidação de processos participativos, que tanto criariam bases para a vivência dos direitos conquistados, quanto propiciariam a aprendizagem da participação por parte de segmentos sociais originalmente excluídos de seu exercício.
No que se refere à área educacional, a CF 88 definiu princípios nos quais o direito à Educação deveria se consolidar. Assim, o princípio da “garantia da qualidade educacional”, inscrito no Art. 206 (Brasil, 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988., n.p.), deveria se vincular a outros referentes à “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, ao “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” que afirmam a valorização da diversidade. Também se afirmam a “gratuidade do ensino público” e a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (Brasil, 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988., n.p.), visando reverter a negação de direitos das classes trabalhadoras. A esses princípios somam-se a “gestão democrática do ensino público” e a “valorização dos profissionais da Educação escolar”.
Transformar princípios em processos de mudanças requer informações que orientem ações. Assim, embora não haja registro na CF 88 acerca de sistemas nacionais de avaliação educacional, nessa mesma época, iniciavam-se as primeiras experiências de avaliação em larga escala, considerando-se a necessidade de dados que orientassem ações para reverter essa negação de direitos.
O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Pública de 1º grau (Saep), cuja aplicação piloto ocorreu em dois estados da federação em 1988, forneceria, portanto, informações sobre a situação do sistema, relacionadas à universalização, eficiência e qualidade de ensino, valorização do magistério e gestão educacional (Waiselfisz, 1991WAISELFISZ, J. J. O Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Púbico de 1º grau. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, n. 4, p. 65-73, 1991. https://doi.org/10.18222/eae00419912376
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). A aplicação nacional prevista para o mesmo ano, no entanto, por falta de recursos, somente ocorreu em 1990, originando o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), cuja implantação tinha, manifestadamente, o objetivo de subsidiar o planejamento de ações que redundariam na consecução dos princípios constitucionais.
Mudanças na correlação de forças econômicas, políticas e sociais, entretanto, marcaram o período após a promulgação da CF 88, influenciando a reestruturação do Saeb e a efetivação do Estado Democrático de Direito. O potencial transformador dessa concepção, como assevera Silva (1988)SILVA, J. A. O Estado democrático de direito. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. v. 173, p. 15-34, jul./set. 1988., demandava mudanças democráticas para influir na realidade social. No entanto, um conjunto de forças conservadoras que se tornaram hegemônicas mundialmente, em consonância com as elites locais, impulsionou reformas estruturais, dificultando o avanço das forças progressistas, particularmente, na Educação.
3 Reforma do Estado e da Educação pós-CF 88: avaliação educacional como mecanismo de regulação da Educação pública
Desde o início dos anos de 1980, em um contexto de abertura política que levaria ao fim do período ditatorial, a cena política brasileira apresentava expressiva recomposição. Além da formação e do fortalecimento de movimentos sociais de novo tipo, o fim do bipartidarismo e a abertura à oficialização de novos partidos políticos possibilitaram a reorganização de forças antes relegadas à clandestinidade, bem como a oficialização partidária de novas forças formadas na contracorrente ao contexto repressivo.
Os novos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e partidos políticos de esquerda e centro-esquerda então constituídos deram novo conteúdo ao debate político-eleitoral, especialmente na retomada das eleições diretas para governadores dos estados, em 1982, e para prefeitos de capitais, em 1985, bem como na campanha pelas eleições diretas para presidência do país. A vitória eleitoral dessas forças em vários estados e capitais deu origem a novas experiências de gestão pública marcadas pelo destaque às questões da justiça social e da democratização do Estado e das relações sociais, fornecendo importante base para os embates travados na elaboração da nova Constituição e para significativas conquistas.
Com base nessas experiências, esperava-se que, após a promulgação da CF 88, o novo quadro de concepções e condições de exercício de direitos nela definido fosse progressivamente regulamentado e implantado por meio de políticas públicas orientadas para a confrontação de clivagens de desigualdades que marcavam o território e a vida econômica e social no Brasil. No entanto, as gestões presidenciais que se sucederam, na década de 1990, privilegiaram formas de regulamentação e realização de políticas públicas, bem como de participação democrática, que expressavam contenção ou regressão em relação às conquistas constitucionais.
Nesse contexto, foram criadas as primeiras políticas de avaliação em larga escala da Educação escolar que se expandiram, em sua primeira década de vigência, vinculadas ao processo de recomposição neoliberal do Estado, absorvendo e desenvolvendo funções de regulação educacional que incidiriam sobre diversos aspectos da organização do setor educacional, da oferta e da ação escolar e, por conseguinte, do trabalho escolar e docente (Basso; Ferreira; Oliveira, 2022).
Essas reformas expressam a submissão das políticas educacionais nacionais a uma agenda impulsionada por forças transnacionais. Nesse particular, Dale (2004)DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, p. 423-60, maio/ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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identifica a existência de uma Agenda Globalmente Estruturada para a Educação (AGEE), direcionada por forças econômicas mundiais, que agindo supra e transnacionalmente, orientam os sistemas educacionais de diversos países.
Conforme essa lógica, a agenda do Estado, inclusive a educacional, orienta-se em apoio ao regime de acumulação que não inibe a expansão dos serviços educacionais, visto que essa expansão pode colaborar com a legitimação do sistema. Nessas condições, as políticas educacionais reforçam desigualdades consoantes às funções desempenhadas pelas classes sociais (Dale, 2004DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, p. 423-60, maio/ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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), consolidam-se projetos educativos diferentes conforme as classes sociais, produzindo-se desigualdades de condições de realização e de qualidade dos serviços que, supostamente, seriam direitos garantidos aos cidadãos.
A influência de grupos conservadores locais, atrelados aos interesses do capital transnacional, sob a égide da fração financeira, se fez sentir na área educacional. Sob a orientação do que se denominou “Consenso de Washington”, que defendia a submissão dos países latino-americanos aos ditames do neoliberalismo, desde a década de 1990, implementou-se no Brasil ampla reforma de Estado. O programa de Estado Mínimo, liberdade mercantil e individualismo exacerbado foi assumido por diferentes governos, com conotações distintas.
As reformas de Estado, capitaneadas pelas elites locais, constituem-se em mais um processo de revolução passiva que distancia a população dos processos decisórios que orientam a vida do país. A despeito de intensas lutas impetradas por grupos que se contrapõem a essa lógica, a burguesia nacional, aliada a interesses transnacionais, conforme Behring (2008BEHRING, E. R. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008., p. 115), busca promover um ajustamento passivo “[...] dada a ausência de um projeto nacional e de um desenvolvimento efetivo das forças produtivas”. A autora entende que as mudanças realizadas no país desmantelam o setor público produtivo, sucateiam o setor público de interesse social, desequilibram o balanço de pagamento, instauram crise fiscal permanente e desemprego estrutural que representam, na realidade, uma contrarreforma de Estado, negando direitos conquistados.
É representativa do conjunto de mudanças implementadas no país a reforma administrativa do Estado dos primeiros anos do Governo de Fernando Henrique Cardoso. Vinculada a incisivo processo de privatização de empresas públicas, tal reforma definiu-se, principalmente, pela adoção da perspectiva gerencialista, referenciada em princípios e técnicas empresariais que, por visar o lucro, pensa a gestão, principalmente, em termos de racionalização de custos, otimização de meios, monitoramento de desempenhos e obtenção de resultados.
Essas políticas expressam mudanças estatais que, segundo Afonso (2010)AFONSO, A. J. Gestão, autonomia e accountability na escola pública portuguesa: breve diacronia. RBPAE, [s. l.], v. 26, n. 1, p. 13-30, jan./abr. 2010., têm sido vivenciadas, particularmente, por governos neoliberais e neoconservadores, que demonstraram especial interesse pela avaliação, levando à expansão da expressão “Estado Avaliador”. Uma vez que esses governos assumem a lógica de mercado, orientam as políticas estatais consoante mecanismos de controle das despesas públicas e de responsabilização profissional típicos dessa lógica, a avaliação privilegia o controle de resultados.
A avaliação dos serviços estatais, portanto, não se refere eminentemente à responsabilidade de produzir informações para subsidiar processos decisórios, mas ao controle de resultados e à alocação de recursos, promovendo, direta ou indiretamente, tanto a privatização quanto mudanças no papel dos governos (Souza, 2014SOUZA, L. M. Três ensaios sobre avaliação de políticas públicas. Natal: EDUFRN, 2014.). Isso redesenha o papel exercido pelo Estado na Educação e a própria noção de Educação pública, configurando-se a concepção de quase-mercado educacional: embora o Estado permaneça financiando e regulando os serviços educacionais, o setor privado expande e diversifica suas formas de atuação nesse campo, alcançando espaços ou atividades que eram de ação exclusiva da esfera pública (Souza; Oliveira, 2003SOUZA, S. Z. L.; OLIVEIRA, R. P. Políticas de avaliação da educação e quase mercado no Brasil. Educação e Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, p. 873-895, set. 2003. https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000300007
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).
A concepção de quase-mercado educacional implica mercantilização de direitos e ressignificação de valores firmados na CF 88. Reeditam-se ou se instauram novas formas de exclusão das classes trabalhadoras das escolas com base na lógica meritocrática; a lógica do custo-benefício adquire novas formas e peso na disputa das concepções e definições de qualidade educacional; a participação social reduz-se à legitimação de decisões externas às esferas participativas; as políticas de equidade resumem-se ao acesso escolar e ao combate à reprovação sem que se desdobrem, de fato, em qualidade educacional, na perspectiva socialmente referenciada.
Assim, as reformas educacionais foram convertidas em mecanismos de ajustes e de racionalização de custos e de relações, realizados por dispositivos de regulação educacional. Entre esses dispositivos estão as avaliações em larga escala e os projetos realizados por parcerias público-privado que aliam desconcentração de poderes e encargos a formas de controle flexível do trabalho escolar, induzindo à adoção de formas de gestão privada; à difusão de valores implicados com a busca da eficiência; e à cultura da avaliação de desempenhos.
Nessa perspectiva, as políticas de avaliação educacional fomentam o quase-mercado educacional e expressam, em grande medida, o projeto educacional conservador, tornando-se importante fator de regulação educacional. Entre outras funções, orientam mudanças, controlam resultados, motivam a competição e a hierarquização dos sujeitos e instituições, a responsabilização profissional e a legitimação de saberes considerados básicos à formação da classe trabalhadora, mas que ratificam sua posição de classe e de subordinação.
A cultura de avaliação de desempenhos se baseia na comparação de resultados e metas, na competitividade como fator de incremento da qualidade, na competição por recursos, na premiação dos melhores avaliados e, por conseguinte, na responsabilização de instituições e docentes pelos resultados aferidos. Esses traços se confirmam de diferentes modos nas características assumidas hegemonicamente pela gestão da Educação, em geral, e pelas funções e formas atribuídas à avaliação educacional, em particular, após a década de 1990.
O contexto de difusão do neoliberalismo e da perspectiva gerencial, como um de seus componentes centrais, legou à avaliação educacional seu perfil gerencialista. É importante lembrar que a atribuição desse sentido à avaliação em larga escala não se dá apenas à custa das medidas federais. Ao contrário, ao longo das décadas de 1990, 2000 e 2010, estados e municípios de grande porte passaram a intensificar esse perfil, seja devido à forma de utilização local dos programas federais de avaliação, seja devido à criação de sistemas próprios de avaliação que incidem restritivamente sobre o setor educacional, a escola e o processo formativo.
Tais sistemas de avaliação, sobrepostos, sobrecarregam de diferentes modos a agenda escolar, o professor e o processo formativo escolar, subsumindo-os às prescrições de tarefas de execução que rivalizam com a gestão democrática da Educação escolar, da elaboração do projeto político-pedagógico da escola e da construção do processo formativo. Os sistemas de avaliação estaduais e municipais, nesse contexto, destacam-se, ainda, pela clara e sistemática conversão da avaliação externa – realizada por agentes externos à escola ou às redes e aos sistemas educacionais – em políticas de responsabilização (Freitas, 2013FREITAS, L. C. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148 p. 348-365 jan./abr. 2013. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100018
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). Essas políticas associam exames de desempenho escolar a sistemas de bonificação que diferenciam instituições e profissionais, sancionando a quebra do princípio da isonomia da remuneração docente. Assim, intensificam-se formas de rivalidade e concorrência, entre profissionais e instituições escolares, que dispersam o trabalho coletivo no setor educacional e na ação escolar, com sérias repercussões à concepção de gestão democrática da escola pública firmada na CF 88, conforme se discute a seguir.
4 Sistemas de avaliação e suas incidências sobre a Educação pública
O período posterior à promulgação da CF 88 distanciou-se da concepção do Estado Democrático de Direito. A ofensiva das forças conservadoras hegemônicas mundialmente, a exemplo do neoliberalismo e do neoconservadorismo, influenciou a reforma educacional brasileira. Em grande medida, aspectos da Agenda Global Estruturada para a Educação (Dale, 2004DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação & Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, p. 423-60, maio/ago. 2004. https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200007
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) foram assumidos pelas forças conservadoras locais, particularmente, no que se refere às avaliações estandardizadas.
Na perspectiva da consolidação do quase-mercado educacional, as avaliações externas atuam “[...] no controle das despesas públicas, na mudança da cultura do setor público e na alteração das fronteiras entre o público e o privado” (Souza, 2014SOUZA, L. M. Três ensaios sobre avaliação de políticas públicas. Natal: EDUFRN, 2014., p. 98). Nesse cenário, a avaliação de sistemas assumiu centralidade nas políticas educacionais, desvalorizando processos e controlando resultados, supostamente, visando ao incremento da eficiência e da produtividade dos serviços, a despeito dos intensos embates políticos travados pelas forças progressistas, com avanços e recuos no projeto educacional transformador.
Após mais de trinta anos da promulgação da Constituição, é possível identificar avanços nas políticas educacionais: quase universalização do Ensino Fundamental; incremento da colaboração federativa para o desenvolvimento educacional; valorização docente consubstanciada, entre outros aspectos, por planos de carreira e piso salarial; instituição de conselhos e elaboração de projetos pedagógicos nas escolas como expressão da gestão democrática. Avanços constantemente ameaçados pelas forças ultraliberais que assumiram o poder no país e que em nome da liberdade de mercado e da redução dos gastos públicos concentra riquezas ceifando direitos duramente conquistados.
As reformas educacionais mantiveram-se orientadas pela concepção de quase-mercado, pelo aumento do controle educacional por meio de currículos nacionais, de sistemas de avaliações de larga escala e por políticas de accountability. Em detrimento do fundamento de valorização da escola pública firmado na CF 88, as políticas educacionais têm sido orientadas, entre outros aspectos, pelo princípio da accountability, atrelado à lógica de mercado.
O modelo que subsidia as políticas educacionais de cunho neoliberal promove a responsabilização dos implicados, mediante divulgação de resultados das avaliações de larga escala, comparações e hierarquização de sujeitos e instituições fomentando competição pelos parcos recursos disponíveis. Nessa perspectiva, a avaliação de sistemas repercute nas vidas dos profissionais do país, com efeitos que variam desde o constrangimento público, em função de maus resultados, às restrições salariais, sem que se atente devidamente para as complexas relações que, historicamente, influenciam os resultados educacionais.
Nessa perspectiva, Bonamino e Sousa (2012)BONAMINO, A.; SOUSA, S. Z. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 373-388, abr./jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S1517-97022012005000006
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identificaram a existência de gerações de avaliação de larga escala no Brasil, marcadas por diferentes políticas de responsabilização que repercutem no currículo e na vivência dos sujeitos escolares. Compreendem que a primeira geração se iniciou no final dos anos de 1980 e se consolidou nos primeiros anos de atuação do Saeb. O Saeb apresentava caráter amostral, tinha como principais objetivos monitorar e diagnosticar a qualidade da Educação nacional, sem, contudo, interferir, em grande medida, no cotidiano e no currículo escolar. Esse é um dos motivos que levou os sistemas estaduais e municipais de Educação a desenvolver avaliações próprias englobando todas as escolas.
A criação da Prova Brasil iniciou a segunda geração de avaliação educacional. Seu caráter censitário teria agregado ao objetivo de diagnóstico da aprendizagem certas formas de responsabilização pelos resultados educacionais, ao gerar informações sobre a qualidade do “ensino oferecido por município e escola, com o objetivo de auxiliar os governantes nas decisões sobre o direcionamento de recursos técnicos e financeiros e no estabelecimento de metas e implantação de ações pedagógicas e administrativas” (Bonamino; Sousa, 2012BONAMINO, A.; SOUSA, S. Z. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 373-388, abr./jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S1517-97022012005000006
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, p. 378). As autoras ressaltam que a divulgação de resultados foi defendida como prática que possibilitaria a comparação dos municípios e das escolas, bem como a pressão por melhoria da qualidade educacional.
Bonamino e Sousa (2012)BONAMINO, A.; SOUSA, S. Z. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 373-388, abr./jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S1517-97022012005000006
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relatam, porém, que, nessa divulgação, não eram suficientemente destacadas e problematizadas as intensas desigualdades socioeconômicas da população, as condições de precariedade de funcionamento de grande número de escolas, bem como a desvalorização dos profissionais da Educação que caracterizam a realidade de muitas instituições do país e que interferem, demasiadamente, no desempenho dos estudantes.
Apesar das críticas dirigidas às pesquisas acerca da eficácia escolar – pelo seu viés positivista e por orientarem investimentos governamentais a partir da lógica do custo-benefício, entre outros aspectos – elas demonstram a relação existente entre os resultados educacionais e as condições socioeconômicas em que são produzidos. Desenvolvendo pesquisas sobre a temática, Bonamino e Lima (2013)BONAMINO, A.; LIMA, N. C. M. Aspectos da gestão escolar e seus efeitos no desempenho dos alunos nos anos iniciais do ensino fundamental. In: MARTINS, A. M. et al. (Org.). Políticas e gestão da educação: desafios em tempos de mudança. Campinas: Autores Associados, 2013. p. 92-117. analisaram os impactos da infraestrutura e da gestão pedagógica das escolas na proficiência de estudantes da primeira etapa do Ensino Fundamental. Compreenderam, portanto, que as variáveis que mais impactam o desempenho estudantil referem-se às características familiares e dos estudantes, a exemplo do nível socioeconômico e de seus conhecimentos prévios.
Cabe atentar que muitos sistemas estaduais e municipais de Educação responsabilizam instituições e profissionais sem sequer garantir condições mínimas de infraestrutura que poderiam ser mobilizadas em favor do educando. O atrelamento das políticas educacionais à accountalibility mercantil responsabiliza profissionais e instituições por resultados sem que, em grande medida, se alterem as condições em que são produzidos.
A melhoria da qualidade educacional, na perspectiva da consolidação de direitos, requer a elevação das condições socioeconômicas da população; a efetivação de um sistema de Educação nacional que consolide o regime de colaboração entre os entes federados (Saviani, 2014SAVIANI, D. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 e a questão do Sistema Nacional de Educação. In: BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino. O Sistema Nacional de Educação: diversos olhares 80 anos após o Manifesto. Brasília, DF: MEC/SASE, 2014. p. 15-29.); investimentos na infraestrutura das escolas bem como na valorização profissional, conforme preconizam pesquisas acerca do Custo Aluno Qualidade (CAQ) e do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) (Pinto, 2006PINTO, J. M. R. P. Uma proposta de custo-aluno-qualidade na educação básica. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, [s. l.], v. 22, n. 2, p. 197-227, jul./dez. 2006. https://doi.org/10.21573/vol22n22006.18877
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); implementação das metas do Plano Nacional de Educação (PNE/2014–2024); entre outras propostas aventadas nas políticas educacionais recentes no país, mas ameaçadas pela atuação das forças conservadoras nele hegemônicas.
A despeito dessas propostas, as políticas de avaliação de larga escala têm perseguido, por variadas vias, a lógica da responsabilização. E um exemplo disto pode ser identificado na criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) que, a título de colaborar na consecução dos objetivos da Prova Brasil em 2007, passou a articular resultados das avaliações externas nacionais com dados do censo escolar, tendo em vista definir, para as redes públicas estaduais e municipais, metas quantitativas de qualidade que não expressam necessariamente melhorias substantivas na formação escolar.
Apesar de isso ter incrementado a responsabilização educacional, na concepção de Bonamino e Sousa (2012)BONAMINO, A.; SOUSA, S. Z. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 373-388, abr./jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S1517-97022012005000006
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, as formas existentes no país são consideradas brandas, visto que não fazem incidir sanções e recompensas sobre as instituições e os profissionais, conforme os resultados ou o alcance de metas. Freitas (2013)FREITAS, L. C. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148 p. 348-365 jan./abr. 2013. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100018
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, no entanto, discorda que haja responsabilização branda, pois entende que a visibilidade dos resultados pela sociedade, por si só, pode se constituir em sanção, produzindo efeitos negativos que precisam ser analisados. Para tanto, sugere a análise da experiência de outros países que implementaram essas políticas e que mostram efeitos nefastos para a população mais pobre.
É pertinente observar que a disseminação e expansão das avaliações nacionais, ao colaborarem para a difusão de culturas de avaliação que reforçam valores de competição, hierarquização e responsabilização, contribuem, por diferentes meios, com a constituição de sistemas municipais e estaduais, ainda que a forma e o caráter assumido por esses sistemas não possam ser linearmente deduzidos das ações de nível federal. A esse respeito, Bonamino e Sousa (2012)BONAMINO, A.; SOUSA, S. Z. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 373-388, abr./jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S1517-97022012005000006
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consideram que, em grande medida, os sistemas locais se diferenciam dos nacionais por formas de responsabilização marcadas por fortes sanções e recompensas que caracterizam a terceira geração de avaliações. As autoras consideram que das avaliações de segunda e terceira gerações decorrem consequências tanto simbólicas quanto materiais. Em especial, as de terceira geração envolvem sérios riscos ao currículo escolar, entre os quais destacam o perigo do professor concentrar esforços nos tópicos previstos nas avaliações, desconsiderando outros aspectos importantes, em particular, os de caráter não cognitivo.
Freitas (2012)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000200004
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assevera que essas políticas têm levado ao estreitamento curricular pela redução dos conteúdos às matrizes de avaliação, implicando, muitas vezes, a substituição de elementos necessários à análise crítica da realidade por habilidades básicas para a vida, deixando-se para o futuro a aprendizagem das demais áreas. O autor analisa que a juventude pobre depende da escola para aprender, de modo que postergar o acesso à cultura geral significa negá-lo, definitivamente.
Essa concepção reducionista impacta a concepção de qualidade educacional, distanciando-a da igualdade de direitos, do acesso das classes trabalhadoras aos conhecimentos construídos pela humanidade, da compreensão da realidade visando à transformação social. Adota a lógica do custo-benefício, tendo em vista difundir conhecimentos mínimos necessários ao capital em sua atual fase de desenvolvimento. Analisando as políticas de responsabilização no Brasil, Brooke (2013)BROOKE, N. Sobre a equidade e outros impactos dos incentivos monetários para professores. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v. 24, n. 55, p. 34-62, abr./ago. 2013. https://doi.org/10.18222/eae245520132719
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considera que existem experiências estaduais e municipais consolidadas de remuneração docente conforme o desempenho estudantil em avaliações externas. Advoga que as políticas de responsabilização tenham consequências significativas para os sujeitos e instituições, sob a alegação de que, conforme seu desenho, podem combater desigualdades sociais, pois a premiação docente estimularia a produtividade profissional. Admite que essas políticas têm sofrido intensas críticas, mas argumenta que se devem ao “caráter predominantemente doutrinário” do debate (Brooke, 2013BROOKE, N. Sobre a equidade e outros impactos dos incentivos monetários para professores. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v. 24, n. 55, p. 34-62, abr./ago. 2013. https://doi.org/10.18222/eae245520132719
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, p. 38), que impede pesquisas acerca das consequências positivas dos incentivos.
De nossa parte, entendemos que, longe de diminuir desigualdades educacionais, a premiação dos resultados, além de incentivar a meritocracia e exacerbar desigualdades, eleva a competitividade ao ponto de segregar sujeitos e instituições que não alcançaram os resultados esperados, em detrimento do direito à Educação. Ademais, como adverte Ravitch (2011)RAVITCH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Porto Alegre: Sulinas, 2011., as avaliações externas do desempenho estudantil devem ser empregadas com a finalidade de direcionar melhorias nos processos educativos, sem visar à premiação ou à punição profissional, conforme ascensão ou queda dos escores estudantis. Após atuar na implantação de sistemas avaliativos e verificar seus reais efeitos sobre os sistemas, instituições e práticas educacionais, a autora observa que os testes padronizados não são precisos, por isso não devem ser utilizados isoladamente para tomar decisões, tampouco para fins diversos daqueles para os quais foram projetados, de modo que a avaliação estudantil não deve ser utilizada para analisar a habilidade dos professores.
Apesar da expressiva presença de densas análises críticas, cresce a constituição de sistemas de avaliação externa associada à suposta melhoria da qualidade educacional, pela via da privatização da Educação, da meritocracia e da concorrência entre profissionais e instituições, por recursos e resultados. Tudo isso distancia a Educação dos princípios de igualdade para acesso e permanência na escola; pluralismo de ideias e concepções pedagógicas; valorização profissional; gestão democrática e qualidade educacional.
O acesso e a permanência escolares constituem-se em atributos da qualidade educacional, direito humano negado, historicamente, a muitos brasileiros. Embora a CF 88 acenasse para mudanças dessa realidade e o acesso à Educação básica tenha, de fato, se ampliado, ainda hoje não se garante nem a permanência, nem a aprendizagem dos estudantes, de modo que muitos apresentam trajetórias de escolarização irregulares que resultam em progressivo afastamento da escola, agravado pela pandemia no Covid-19, enquanto outros tantos permanecem na escola sem aprender.
Freitas (2007)FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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considera que isso se deve à concepção liberal de Educação que prega a igualdade no acesso escolar, mas não a igualdade de resultados. Os resultados são justificados pela ideologia da meritocracia, que, alegadamente, dependeriam do esforço pessoal, da aptidão ou dom das pessoas, transferindo-se a culpa da exclusão para os estudantes (Freitas, 2014FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação e Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez. 2014. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817
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). Desconsidera-se, assim, a desigualdade socioeconômica da população, das condições de vida dos estudantes e professores, bem como de infraestrutura escolar que exacerbam desigualdades e interferem na aprendizagem.
A desigualdade de conhecimento é reforçada pela noção de competência assumida nos currículos e avaliações nacionais. Essa noção decorre da esfera produtiva e compreende a capacidade do trabalhador mobilizar conhecimentos e habilidades para resolver problemas da produção. Seu uso no campo educativo escolar promove, segundo Pronko (2014PRONKO, M. O Banco Mundial no campo internacional da educação. In: PEREIRA, J. M. M. P.; PRONKO, M. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2014. p. 89-112., p. 107-108), “[...] o encurtamento do horizonte educacional pela sua adequação estreita ao mercado de trabalho”. Ao medir competências, as avaliações pressionam a organização dos currículos, padronizam o trabalho escolar e comprometem o princípio constitucional da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas.
Assim, cerceia-se a autonomia dos profissionais na proposição do projeto pedagógico, além de que alcançar bons resultados nas avaliações pode demandar ajustes nas concepções e ações acordadas, desvalorizando a participação da comunidade nas decisões que lhes seriam próprias. Ademais, a gestão democrática da escola pública tem sido ameaçada pela sobreposição do modelo gerencial, que reduz a participação dos profissionais à legitimação de propostas externas.
Tudo isso denuncia o processo de desvalorização profissional do magistério, frente ao avanço da lógica privada na gestão pública presente, entre outros procedimentos, na contratação de organizações não-governamentais para a condução de projetos de formação profissional, reforço escolar, preparação de estudantes para avaliações externas. Freitas (2014)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação e Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez. 2014. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817
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considera que a privatização se encontra par a par com a precarização do trabalho docente, fomentando o aligeiramento da formação, o controle e a padronização dos conteúdos e métodos por meio de apostilas, a contratação de consultorias a título de melhorar índices educacionais e o controle ideológico da escola em prejuízo dos estudantes. Freitas (2012)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000200004
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considera as escolas como patrimônio público nacional, cuja apropriação pela iniciativa privada coloca em risco a própria noção de democracia.
Somente uma Educação que possibilite a todos o acesso aos bens culturais, a participação nos processos decisórios e a compreensão da realidade social, tendo em vista sua transformação, pode reforçar os princípios de igualdade, qualidade e gestão democrática firmados na CF 88. As políticas de avaliação educacional implementadas no país, no entanto, têm desencadeado uma regulação educacional que expressa o controle flexível sobre as instâncias descentralizadas que, pouco a pouco, modifica o cotidiano e as práticas dos sujeitos, distanciando a Educação de maior justiça social, preconizada na concepção do Estado Democrático de Direito.
5 Considerações finais: restrições à democracia e regressão de direitos educacionais
A concepção de Estado Democrático de Direito estabelecida na CF 88, como expressão da conjuntura social em que se originou, trazia em si a perspectiva da garantia de direitos como condição para a construção de mudanças pautadas na justiça social, no desenvolvimento econômico equânime e na valorização humana, entre outras aspirações. A Educação, como expressão da formação humana necessária à construção desse projeto social, deveria firmar-se nos princípios de qualidade, liberdade para ensinar e aprender, pluralismo de concepções, valorização da diversidade, gestão democrática e igualdade de condições para que todos ingressem, permaneçam na escola e aprendam.
O contexto seguinte à promulgação constitucional, no entanto, foi marcado por intensos embates que expressam avanços e recuos na promoção dos princípios assumidos, com evidente hegemonia de forças conservadoras. A reforma neoliberal do Estado, envolvendo a reforma administrativa conforme o modelo gerencial, impulsionou a construção de quase-mercados educacionais, em consonância com uma agenda educacional elaborada em âmbito transnacional e assumida por grupos conservadores locais que comungam dos mesmos interesses.
Nesse contexto, difundem-se políticas de accountability mercantil, que articulam avaliações de sistemas educacionais com políticas de responsabilização profissional em detrimento dos princípios de qualidade, participação e pluralismo de ideias. A constituição de sistemas de avaliação de larga escala (nas esferas nacional, estaduais e municipais) a partir de critérios mercadológicos sustenta valores e práticas pautados na meritocracia, na concorrência e na privatização, que colaboram para a estabilidade do capital em prejuízo da esfera pública e de direitos iguais para todos.
As avaliações se pautam em currículos nacionais que difundem a noção de competência, atrelando a formação do trabalhador às demandas produtivas, enfatizando padrões minimalistas de qualidade, distanciando a Educação da perspectiva crítica, plural e direcionada à transformação das desigualdades econômicas e sociais do país. A lógica de custo-benefício e a concepção de qualidade que lhe corresponde colaboram para a minimização da formação dos estudantes e para o barateamento do trabalho docente, reeditando antigas formas de dominação de classe e exacerbando desigualdades.
Tudo isso consolida processos de controle educacional externo aos sistemas escolares, que deveriam ser o espaço por excelência da construção democrática da Educação escolar. Cabe salientar, assim, que a vivência da gestão democrática na escola pública constitui-se em condição para que os sujeitos escolares elaborem suas experiências originais de participação, entendendo-se que, conforme exercem essa condição nas esferas em que atuam, capacitam-se para defender seus direitos em esferas mais amplas. A negação da participação dos sujeitos atrelada à restrição do saber distancia, sobremaneira, a Educação dos princípios constitucionais, concorrendo decisivamente para que as noções de democracia e direito se mantenham como preceitos retóricos e artificiais.
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Dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
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Financiamento: O artigo decorre do estágio pós-doutoral realizado por Luciane Terra dos Santos Garcia, no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana - Centro de Educação e Humanidas, orientado pela Profª Drª Eveline Bertino Algebaile.
Disponibilidade de dados
Dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Maio 2024 -
Data do Fascículo
Abr 2024
Histórico
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Recebido
02 Abr 2023 -
Aceito
04 Mar 2024