Resumos
Neste trabalho procura-se documentar os processos através dos quais a formação académica avançada pode contribuir para o aprofundamento da formação cívica dos estudantes e para gerar novos polos de liderança e/ou mudança social em contextos sociais diversificados. Descreve-se o percurso do ensino da Psicologia Comunitária como formação especializada no âmbito da Psicologia e como curriculum formativo autónomo, bem como o debate sobre as competências profissionais neste domínio científico-pedagógico. Apresentam-se os resultados de um questionário sobre competências sociais e profissionais em Psicologia Comunitária e da Análise SWOT com estudantes de Mestrado e Doutoramento que serviram de base para a avaliação da formação pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (http://www.a3es.pt/pt). A análise dos resultados permite concluir que os diplomados em Psicologia Comunitária escolheram causas cívicas diversificadas nos seus percursos profissionais e que utilizam as competências formativas adquiridas no seu percurso formativo na sua prática profissional. Através da análise qualitativa dos dados recolhidos através de análise SWOT, realça-se a relevância atribuída à liberdade de escolha durante o percurso formativo e as oportunidades de contacto com realidades sociais diversificadas. A participação em contextos comunitários tem permitindo compreender melhor a complexidade da aplicação prática dos princípios, bem como do papel que pode desempenhar a investigação com base em pressupostos de relevância e utilidade para o desenvolvimento dos indivíduos, grupos e/ou comunidades.
Psicologia Comunitária; formação; Participação Cívica
With this paper we aim to document how advanced academic training may contribute towards the students' civic engagement, and to generate renovated social and community leadership in diverse social contexts. We described The development of teaching Community Psychology as a special domain within Psychological Sciences, and as an autonomous curriculum, including the debate about scientific and professional competencies in that scientific-pedagogical field. The results presented derive from a survey on social and professional competencies on Community Psychology to current students of the Master's and Doctoral Programs, which, together with the results of a SWOT Analysis, formed the basis for the curriculum evaluation by the Portuguese National Agency for Evaluation and Validation of Higher Education (http://www.a3es.pt/pt). The results indicate that the graduate students have chosen diversified civic causes in their professional careers, and they use the competencies acquired during their training in their professional affairs. The qualitative data of the SWOT Analysis emphasizes that the students consider relevant the freedom of choice during the training, and the opportunity of contact and participation within diverse social realities, that facilitate the understanding of the practical application of principles, as well as the role of research anchored in assumptions of relevance and utility for the development of individuals, groups or communities.
Community Psychology; training; Civic Participation
DOSSIÊ - EDUCAÇÃO, COTIDIANO E PARTICIPAÇÃO: DESAFIOS E CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO
José Ornelas; Maria Vargas-Moniz
Instituto Superior de Ciências Psicológicas Sociais e da Vida - Instituto Universitário. Lisboa, Portugal. Rua Jardim do Tabaco, nº 34. 1149-041
RESUMO
Neste trabalho procura-se documentar os processos através dos quais a formação académica avançada pode contribuir para o aprofundamento da formação cívica dos estudantes e para gerar novos polos de liderança e/ou mudança social em contextos sociais diversificados. Descreve-se o percurso do ensino da Psicologia Comunitária como formação especializada no âmbito da Psicologia e como curriculum formativo autónomo, bem como o debate sobre as competências profissionais neste domínio científico-pedagógico. Apresentam-se os resultados de um questionário sobre competências sociais e profissionais em Psicologia Comunitária e da Análise SWOT com estudantes de Mestrado e Doutoramento que serviram de base para a avaliação da formação pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (http://www.a3es.pt/pt). A análise dos resultados permite concluir que os diplomados em Psicologia Comunitária escolheram causas cívicas diversificadas nos seus percursos profissionais e que utilizam as competências formativas adquiridas no seu percurso formativo na sua prática profissional. Através da análise qualitativa dos dados recolhidos através de análise SWOT, realça-se a relevância atribuída à liberdade de escolha durante o percurso formativo e as oportunidades de contacto com realidades sociais diversificadas. A participação em contextos comunitários tem permitindo compreender melhor a complexidade da aplicação prática dos princípios, bem como do papel que pode desempenhar a investigação com base em pressupostos de relevância e utilidade para o desenvolvimento dos indivíduos, grupos e/ou comunidades.
Palavras-chave: Psicologia Comunitária; formação; Participação Cívica.
ABSTRACT
With this paper we aim to document how advanced academic training may contribute towards the students' civic engagement, and to generate renovated social and community leadership in diverse social contexts. We described The development of teaching Community Psychology as a special domain within Psychological Sciences, and as an autonomous curriculum, including the debate about scientific and professional competencies in that scientific-pedagogical field. The results presented derive from a survey on social and professional competencies on Community Psychology to current students of the Master's and Doctoral Programs, which, together with the results of a SWOT Analysis, formed the basis for the curriculum evaluation by the Portuguese National Agency for Evaluation and Validation of Higher Education (http://www.a3es.pt/pt). The results indicate that the graduate students have chosen diversified civic causes in their professional careers, and they use the competencies acquired during their training in their professional affairs. The qualitative data of the SWOT Analysis emphasizes that the students consider relevant the freedom of choice during the training, and the opportunity of contact and participation within diverse social realities, that facilitate the understanding of the practical application of principles, as well as the role of research anchored in assumptions of relevance and utility for the development of individuals, groups or communities.
Keywords: Community Psychology; training; Civic Participation.
Introdução
A Psicologia Comunitária emergiu nos anos sessenta do Século XX, no âmbito dos movimentos sociais e de defesa dos direitos humanos e num período pautado por significativas transformações sociais, entre as quais a maior consciência cívica e política acerca das consequências negativas das condições adversas dos contextos sociais em termos de saúde física e mental. Nessa era de inovação, estudos epidemiológicos como os de Dorenwend e Dohrenwend (1969) e de Leighton, Harding, Macklin e McMillan (1963 demonstraram a relação inversa entre as condições sociais e a emergência de problemáticas psicológicas; os trabalhos de Kurt Lewin (1946) e de Burgess e Bogue (1967) enfatizaram a relevância das variáveis ambientais na compreensão do comportamento humano, realçaram a necessidade de um debate mais aprofundado na procura de respostas alternativas e inovadoras às abordagens clínicas mais tradicionais e centradas apenas nos indivíduos (ver ALBEE, 2006 ou ORNELAS, 2008).
Uma obra de referência sobre Psicologia Comunitária foi publicada em 1977, por Julian Rappaport, da Universidade de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos, na qual propõe um novo paradigma para a intervenção em Psicologia, focalizado na mudança social, na relevância das alterações e ajustamentos de serviços em relação aos grupos e/ou populações em situação de maior vulnerabilidade e propondo estratégias de empoderamento para facilitar a participação social ativa. Com esta abordagem, a principal preocupação e objecto de estudo dos(as) Psicólogos(as) Comunitários(as) passa a ser a compreensão e intervenção nos processos que tenham maior potencialidade de melhorar o estado psicológico das pessoas nos contextos onde habitam e circulam (LEVINE, 1981).
Com base nestas premissas, a Psicologia Comunitária tem vindo a afirmar-se como um campo específico das ciências sociais e humanas, procurando incorporar a investigação e a ação focalizando-se, por um lado, na promoção da mudança, da justiça social e, por outro, no bem-estar individual e na ligação dos indivíduos com os contextos sociais e/ou comunitários (ORNELAS, 1997; NELSON; PRILLELTENSKY, 2005).
No desenvolvimento dos Curricula de formação em Psicologia Comunitária procura-se responder a um duplo desafio de preparar os futuros profissionais com um conjunto de princípios e valores e de lhes proporcionar o contacto com métodos e técnicas de investigação e programas de intervenção coerentes e alinhados com os pressupostos veiculados teoricamente (DALTON; ELIAS; WANDERSMAN, 2001; ORNELAS, 2008).
Os curricula de formação em Psicologia Comunitária como formação avançada (programas de Mestrado e Doutoramento) têm sido também ancorados pela emergência de sociedades científicas em diversos pontos no globo, a saber a Society for Community Research and Action (www.scra27.org), que se constitui como a 27ª Divisão da American Psychological Association; a European Community Psychology Association (www.ecpa-online.eu), ou a Australian Psychology Society (www.psychology.org.au), que reconhece a Psicologia Comunitária como área especializada de intervenção em Psicologia. Estes organismos estruturam também a sua investigação e intervenção em eventos científicos regulares e num número significativo de publicações científicas com revisão por pares e com fator de impacto. A nível mais local existem diversos organismos científicos que congregam docentes, investigadores e profissionais em diversos países, como a Società Italiana di Psicologia di Comunità (www.sipco.it); o reconhecimento da Psicologia Comunitária como especialidade na British Psychological Society (www.bps.org.uk), ou ainda a Sociedade Portuguesa de Psicologia Comunitária (www.sppc.pt), para citar apenas alguns exemplos.
Os avanços da investigação e a ação inspirados nos pressupostos da Psicologia Comunitária têm sido relevantes para a compreensão da complexidade dos processos de mudança social e comunitária e da importância da participação cívica das populações e dos profissionais como facilitadores desses processos, contribuindo para o aprofundamento e sustentabilidade dos percursos de mudança. Estes percursos podem ter lugar em diferentes níveis ecológicos de análise (BUTTERFOSS, 2007), que podem variar desde a análise e as implicações de enquadramentos legislativos ou regulamentares, à mudança de serviços e/ou programas, e ainda focalizada nos processos de empoderamento (ver ZIMMERMAN, 2000, ou MIGUEL; ORNELAS, In press) dos indivíduos, dos grupos, organizações ou das comunidades (ver MATTON, 2008 ou JORGE-MONTEIRO et al., 2014) e na investigação colaborativa (ver TRICKETT; ESPINO, 2004; SACCHETTO; VARGAS-MONIZ, 2011 ou ORNELAS; AGUIAR; SACCHETTO; JORGE-MONTEIRO, 2012).
A formação em Psicologia Comunitária
Neste âmbito apresenta-se um breve resumo do panorama da formação em Psicologia Comunitária no contexto português que, como disciplina de ensino-aprendizagem, tem surgido como tema introdutório ou de aprofundamento integrado na formação geral em Ciências Psicológicas. Em Portugal, iniciou-se em 1987, no ISPA-IU (Instituto Superior de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (www.ispa.pt), com a designação de Tema Aprofundado em Psicologia Comunitária, enquadrado na formação no âmbito do 4ª Ano da formação em Psicologia Clínica.
Atualmente, observa-se uma implantação significativa da disciplina no panorama da oferta formativa integrada em planos de estudos em Psicologia. Como Curricula integrais em Psicologia Comunitária existem dois em Portugal, um no ISPA-IU, com a designação Psicologia Comunitária, e outro intitulado Psicologia Comunitária e Proteção de Menores, no ISCTE-IUL (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - Instituto Universitário de Lisboa (www.iscte-iul.pt). No entanto, em diversos estabelecimentos de Ensino Superior são lecionadas disciplinas de Psicologia Comunitária, tanto a nível de 1º como de 2º Ciclo de Estudos, como nas Universidades do Porto, do Minho, do Algarve, da Beira Interior, dos Açores, na Universidade Católica de Braga, no Instituto Politécnico de Bragança, entre outros, bem como em um curso de Pós-Graduação no ISMAI - Instituto Universitário da Maia (www.ismai.pt).
No âmbito do 3º Ciclo de Estudos (Doutoramento), iniciou-se no ISPA-IU, integrado no Doutoramento em Psicologia, uma área de especialidade em 2007 e conta atualmente com 16 estudantes, havendo 2 já diplomados, sendo que 6 (33%) foram, ou são ainda, Bolseiros da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
No sentido de compreender em que medida a formação em Psicologia Comunitária tem promovido o envolvimento e a participação cívica ativa dos seus estudantes, procurou-se enquadrar esta dimensão nos objetivos gerais e específicos definidos para o Curriculum formativo, que são o aprofundamento de modelos, teorias e técnicas, e no desenvolvimento de competências coerentes com os princípios e valores em Psicologia Comunitária e estabelecer relações substantivas com a prática de intervenção e com outras áreas científicas. Pretende-se que os(as) alunos(as) sejam capazes de selecionar métodos de investigação e intervenção e tenham a capacidade de reflexão crítica acerca da aplicabilidade das teorias em Psicologia Comunitária. Procura-se a produção de inovação, resolução de problemas e análise de situações com considerações éticas. Pretende-se também que desenvolvam capacidades de comunicação e disseminação da pesquisa e adquiram autonomia e interesse pela aprendizagem ao longo da vida (ver ACEF, 2011). No que concerne aos objetivos específicos, promove-se a coerência com os valores institucionais associados ao aprofundamento do humanismo através da promoção da filosofia de empoderamento, associada à capacidade dos indivíduos e grupos de determinarem o seu percurso de desenvolvimento e o estudo sistemático de processos de renovação e recuperação de indivíduos e grupos com experiências associadas a elevados índices de vulnerabilidade e trauma (p.e. pessoas com doença mental ou sobreviventes de violência doméstica e abuso sexual).
Enfatizam-se os processos de colaboração e a construção de parcerias entre a Universidade e a comunidade que permitem a materialização de valores associados à solidariedade, pois as intervenções têm lugar junto de indivíduos ou grupos em circunstâncias de vulnerabilidade acrescida como a pobreza extrema, configurada por exemplo nas pessoas em situação de sem-abrigo.
Ao promover-se a ligação entre os modelos e as práticas específicas em contextos comunitários, procura-se que a formação dos alunos lhes proporcione capacidades para o exercício refletido e ancorado em princípios e valores de uma prática coerente e promotora da autodeterminação dos indivíduos, grupos e/ou comunidades.
A miríade de unidades curriculares disponíveis procura demonstrar que a investigação e a intervenção em contextos comunitários poderá ter uma orientação proactiva, isto é, procurando agir preventivamente, antecipando a emergência das problemáticas; ou uma orientação reativa, correspondendo à construção de serviços e sistemas com a capacidade de responder eficazmente a situações ou fenómenos sociais de elevada complexidade.
No âmbito da investigação, uma prioridade em Psicologia Comunitária é a do respeito pela dignidade e integridade dos participantes, reconhecendo a validade dos seus contributos e conhecimento adquirido com base na sua experiência, procurando que os trabalhos desenvolvidos se pautem por procedimentos rigorosos de consentimento informado e de garantia do anonimato das informações concedidas (ver ACEF, 2011).
A SCRA - Society for Community research and Action - tem, desde 1987, com Elias, Dalton e Godin, procurado coligir informações a nível internacional acerca dos programas de formação avançada em Psicologia Comunitária, tendo já sido publicados diversos relatórios (p.e. HAZEL, 2007; DZIADKOWICZ; JIMENEZ, 2009; JULIAN, 2006). Considerando que a identidade específica da Psicologia Comunitária como formação científica que procura ser coerente com uma prática profissional proactiva e orientada para a mudança social, Dalton e Wolfe (2012) sistematizaram as competências profissionais (18) em Psicologia Comunitária (Tabela 1), onde se enfatizam as características centrais que devem constar dos programas de Psicologia Comunitária e as competências para a prática profissional que se pretendem desenvolver. Embora este seja um documento ainda em desenvolvimento (WOLFE; CHIEN-SCOTT; JIMENEZ, 2013), considera-se ter um significativo potencial para suscitar o debate acerca da sua aplicabilidade à escala global, no sentido de criar um perfil científico e profissional e contribuir para a consolidação pedagógica e cívica desta área de estudos em Psicologia.
A partir deste racional ancorado em quatro pilares-base que abrangem o domínio e a capacidade de aplicação dos princípios, o desenvolvimento de programas, a capacidade de delinear e acompanhar percursos de mudança social e a investigação em contextos comunitários, foi possível sintetizar de forma criativa, mas simultaneamente objetiva uma estratégia para disseminar a Psicologia Comunitária como domínio cientifico-pedagógico e como prática profissional.
O perfil profissional do Psicólogo Comunitário que emerge desta reflexão teórico-prática é coerente com as questões acerca das quais se procura refletir neste artigo: em que medida a formação em Psicologia Comunitária fomenta a participação cívica no quotidiano dos seus estudantes e graduados? Procura-se também compreender como é que a investigação ou a Ciência Comunitária contribuem para o aprofundamento democrático e para a promoção dos Direitos Humanos e, finalmente, uma terceira questão: como pode a Psicologia Comunitária gerar polos de liderança e mudança em domínios sociais diversificados?
Considera-se que a partir deste tipo de proposta, estaremos mais habilitados a refletir com parceiros diversificados, privilegiando os falantes de língua portuguesa acerca do papel da formação em Psicologia Comunitária como instrumento inovador para a participação cívica e comunitária.
Método
Considerou-se como pertinente para documentar esta reflexão a utilização de uma estratégia eminentemente qualitativa, com componentes quantitativos, mas de carácter estritamente descritivo, por permitir o estudo mais detalhado do grupo de estudo, neste caso, os estudantes e diplomados com mestrado e/ou doutoramento em Psicologia Comunitária. Segundo Patton (1990), os métodos qualitativos assumem relevância na análise das experiências educativas, por permitirem estudar os temas com maior profundidade e detalhes, obtendo-se informações que envolvem opiniões ou relatos na primeira pessoa acerca de uma experiência específica e a análise do contexto sociopolítico em estudo (ver também LAPAN; QUARTAROLI; RIEMER, 2012, p. 5): "explicar por palavras próprias as ideias acerca de um domínio ou tema". O método qualitativo e descritivo foi também pertinente por outras duas ordens de razão, a exiguidade da amostra recolhida (N= 24) e a natureza da informação recolhida junto dos participantes (SCHENSUL, 2012), neste caso um questionário online orientado para a reflexão individual acerca do seu percurso formativo e os resultados de uma análise SWOT1 1 Método desenhado para apoiar e acompanhar a formulação e planeamento estratégico. É um processo de reflexão inclusivo e interativo que facilita o planeamento orientado para: a) os pontos fortes/ capacidades ou competências; b) os pontos frágeis no grupo e/ou organização; c) as ameaças ou constrangimentos e d) as oportunidades no contexto socioeconómico mais abrangente (DYSON, 2004). sobre a formação em Psicologia Comunitária. A estruturação do questionário online foi inspirada no enquadramento do referencial de competências para a prática da Psicologia Comunitária (DALTON; WOLFE, 2012), traduzida e adaptada para a língua portuguesa, e a análise SWOT sobre a formação em Psicologia Comunitária foi realizada num conjunto de sessões com alunos e alunas de Mestrado e Doutoramento procurando recolher testemunhos sobre o papel da formação no seu desenvolvimento pessoal. O método de análise SWOT pode ser, segundo David (2011), um instrumento relevante quando se pretende perscrutar opiniões acerca de um tema específico e organizar os resultados num conjunto estratégico coerente orientado para aspetos fortes/positivos ou negativos/fracos, conjugados com fatores internos e externos de constrangimentos e/ou oportunidades, permitindo recolher ideias e analisá-las à luz de um contexto sociopolítico mais abrangente. Considerou-se pertinente a selecção deste método, por se tratar de um exercício de reflexão crítica multidimensional, procurando associar as aprendizagens académicas, as potencialidades individuais e as oportunidades para o exercício, aplicação e/ou aprofundamento das competências e capacidades profissionais.
Para além disso, os desenhos de investigação eminentemente qualitativos são pertinentes face às características específicas da população em estudo e, ainda, como estratégia para preservar os relatos destes participantes para memória futura (BERNARD; RYAN, 2010). No presente estudo, estas considerações são relevantes, dada a natureza transitória e relativamente curta da relação pedagógica e de contacto regular da Universidade com os estudantes (4 semestres letivos no Mestrado e 2 semestres letivos no Programa Doutoral, acrescidos dos anos de tutoria individual e em grupo para a realização da tese).
Resultados
Os resultados foram estruturados de forma a proporcionar uma descrição da população em estudo e procurar responder às questões de investigação formuladas. O questionário online foi remetido a um total de 56 alunos e antigos alunos, sendo que 42 foram alunos de Mestrado e 14 de Doutoramento, sendo a taxa de resposta de 43%. Deste modo e, considerando a exiguidade da amostra, apresentam-se resultados descritivos no que concerne a sua caracterização, bem como os dados referentes às competências profissionais exercidas no domínio da Psicologia Comunitária.
Do total de respostas obtidas, (N=24), [n=11 (45,5%)] são de participantes no programa doutoral do ISPA-IU, que correspondem a 7 na fase de construção da tese, de 3 diplomados e, do Mestrado, 14 diplomados. No que concerne ao gênero, 15 participantes (63%) são do sexo feminino e 9 participantes, do sexo masculino (37%). No que concerne a faixa etária, 12 (50%) têm idades compreendidas entre os 20 e os 30 anos, 17% (4) entre os 31 e os 40 anos, 25% (6) entre os 41 e os 50 anos e, com mais de 51 anos, 2 participantes (8%). Quanto ao exercício, no momento presente, de atividade profissional na área da Psicologia Comunitária (n= 22) 92% reportam afirmativamente, estando uma pessoa a trabalhar noutra área e outra em situação de desemprego.
No que concerne às competências profissionais exercidas pelos participantes, na Tabela 2 apresentam-se os resultados para cada competência profissional, constatando-se uma diversidade de competências que são cumulativamente exercidas pelos participantes. Destacam-se, nas competências específicas, a colaboração e desenvolvimento de parcerias mencionados por 23 (95.8%) dos 24 participantes e a menos referenciada (2 participantes, 8.3%), prevenção e promoção da saúde. De notar será também que, no domínio dos princípios fundamentais, a adoção da perspetiva ecológica e da filosofia de empoderamento se destacam, sendo mencionadas por 62,5% e 70.8% dos participantes, respetivamente.
Analisando-se as competências profissionais a partir dos domínios propostos no referencial (ver Gráfico 1), reafirma-se a distribuição diversificada e um equilíbrio geral entre a aplicação dos princípios fundamentais (30.3%), o desenvolvimento de programas comunitários (26.6%) e a mudança social e comunitária (32.5%), já a investigação é proporcionalmente menos referida (10.6%).
Para a pergunta acerca da medida em que a atividade profissional permite aplicar os conhecimentos na área da Psicologia Comunitária, constata-se um resultado significativamente positivo (ver Gráfico 2), relativo aos valores de 1 a 3 na escala da Likert (correspondendo a valores mais baixos) de 2 participantes, opinando os remanescentes 22 (91.6%) que na sua atividade profissional tinham oportunidade de aplicar os conhecimentos adquiridos na área da Psicologia Comunitária, sendo que 5 (20.8%) se posicionam em 4, 6 (25%) em 5 e 11 (45.8%) em 6.
Quanto à área específica de exercício de atividade profissional, constata-se um panorama diversificado abrangendo a área da saúde, incluindo a saúde mental comunitária e a prevenção da aids, o ensino e a formação de 4 participantes em ambas as áreas, envolvendo 3 participantes na área da violência contra as mulheres, 3 na área da habitação e da investigação; áreas como a avaliação de programas e o emprego de jovens apresentam um participante e, finalmente, uma pessoa trabalha noutra área profissional e outra ainda reporta uma situação de desemprego.
No que concerne os resultados da análise SWOT da apreciação dos alunos e antigos alunos sobre a formação em Psicologia Comunitária, realça-se que referem ser uma proposta científica e pedagógica com objetivos claros e diversificados, coerentes e orientados para o desenvolvimento dos indivíduos e das comunidades ["Os temas do curriculum são relevantes para o atual contexto social... desde que comecei o Mestrado sinto que aumentei a minha cultura global pela abrangência dos temas abordados." (P6, 2012); "Percebemos logo que a PC tem aplicabilidades diversificadas" (P4, 2012); ou ainda: "Senti sempre que teria a liberdade para escolher estudar temas que fossem do meu interesse" (P2, 2012)]. Em relação à capacidade da formação para fomentar a participação cívica no quotidiano dos seus estudantes e graduados, é fomentada liberdade individual na escolha de temas de interesse - ver, p.e. "sentimo-nos livres para pesquisar, encontrar soluções e estabelecer as ligações com outros domínios científicos" (P4, 2012). No que concerne ao corpo docente, os alunos referem: "a experiência profissional, disponibilidade e acessibilidade dos professores contribui com muitos exemplos e ajudam a motivar"; "a promoção de conferências e a variedade de opções em termos de Unidades Curriculares promovem a amplitude dos conhecimentos"; e sobre a avaliação: "trabalhos em vez de exames permitem-nos ir mais a fundo nas questões..." (P8, 2012).
No domínio da investigação, propõe-se que a Ciência Comunitária contribua para o aprofundamento democrático e para a promoção dos Direitos Humanos, pelo que se considera que se devem proporcionar oportunidades de estudo autónomo e o exercício teórico-prático de competências de investigação e intervenção que, na opinião dos participantes, se configura como a "orientação positiva e inovadora para a análise das comunidades... não como uma fonte de problemas e incapacidades, mas como um contexto de recursos e soluções" (P5, 2012). O enquadramento da Psicologia Comunitária na Unidade de Investigação em Psicologia e Saúde também proporciona um melhor enquadramento da produtividade científica também reportada pelos participantes: "os conhecimentos são apresentados de forma aprofundada e baseada em investigação realizada" (P1, 2012); "há uma maturação do estudo que é exigente, mas permite aprender mais." (P4, 2012); ou ainda: "termos professores de outras Universidades nacionais e estrangeiras aumenta a nossa compreensão da abrangência e do potencial da Psicologia Comunitária" (P6, 2012).
No que se refere ao desafio de gerar polos de liderança e mudança em domínios sociais diversificados, importa realçar que os domínios temáticos de estudo que, em muitas circunstâncias, englobam componentes de ação, envolvem temas como a desinstitucionalização (VARGAS-MONIZ; BRUGES-COSTA; ORNELAS, 2013), a integração comunitária e o empoderamento de pessoas com experiência de doença mental (ORNELAS et al., 2012a e 2012b), pessoas em situação de sem-abrigo, sobreviventes de abuso sexual (MARIA; ORNELAS, 2012), violação ou violência doméstica (CARDOSO; ORNELAS, 2013), migrantes indocumentados, bem como a participação cívica e comunitária dos jovens, neste último campo realçando-se o prémio de mérito recebido por tese de mestrado (CABRAL; ORNELAS, 2012), demonstrando nestes domínios de investigação e intervenção interesse a nível nacional e internacional pela sua aceitabilidade em eventos científicos nacionais e internacionais e pela produção científica crescente publicada, por um lado, e pelas organizações que emergiram a partir destes temas e com quem se mantêm parcerias universidade/comunidade com actividade consistente e continuada de colaboração.
No que diz respeito às propostas de acção para melhorar o panorama da Psicologia Comunitária a nível nacional e internacional, coligiram-se as opiniões dos participantes na Tabela 3, que está estruturada a partir de três eixos-base: a) divulgação e disseminação; b) certificação e reconhecimento profissional e; c) ideias e inovação, sendo relevante notar que estes são os contributos diretos referidos pelos participantes, a partir do questionário online.
Considera-se assim que este conjunto de resultados proporciona um panorama geral sobre o que tem sido realizado, mas conduz à necessidade de um renovado e mais aprofundado esforço de aprofundamento e internacionalização das práticas pedagógicas em Psicologia Comunitária.
Discussão e conclusões
Retomando a primeira das questões de investigação formuladas acerca da medida em que a formação em Psicologia Comunitária proporciona oportunidades para a participação cívica no quotidiano, constata-se que a partir do perfil descritivo das competências profissionais exercidas, quando combinado com as áreas profissionais de envolvimento e ainda com a produção em termos de investigação, que há uma diversidade de causas às quais os participantes se dedicam. Valoriza-se a liberdade e a oportunidade de escolha no percurso de ensino/aprendizagem e definição dos interesses individuais ou escolhas formuladas no decurso do percurso formativo e o resultado prático desta forma de pedagogia tem como resultado prático um envolvimento ativo em causas cívicas socialmente relevantes (ver p.e. ORNELAS; VARGAS-MONIZ; DUARTE, 2010 ou NELSON; KLOSS; ORNELAS (In Press) na área da saúde mental comunitária, ou (CARDOSO; ORNELAS, 2013) na área da violência contra as mulheres, ou ainda (MARIA; ORNELAS, 2012) na prevenção do abuso sexual de crianças, sendo este resultado consistente com a reflexão de Wolfe (2014) acerca da utilidade prática da utilização intercorrente das diversas competências e a sua relevância para a afirmação da psicologia comunitária a nível local e em simultâneo na influência das políticas públicas, utilizando como exemplo o trabalho desenvolvido para reduzir as disparidades no acesso à saúde.
No que concerne a segunda questão de investigação acerca de como a Ciência Comunitária pode contribuir para o aprofundamento democrático e para a promoção dos Direitos Humanos, de acordo com Connell et al. (2013), ou Münger (2012), sobre a especificidade dos Psicólogos Comunitários como peritos cívicos, pelo seu entendimento da relevância da colaboração entre todos os intervenientes no contexto comunitário e de que a eficácia e os resultados da colaboração requerem processos planeados e deliberados, realça-se que nos resultados obtidos a competência profissional mais referenciada pelos participantes foi o trabalho em parceria e, no domínio da investigação, os estudos de Vargas-Moniz e Morgado (2012), ou Ornelas e Vargas-Moniz (2011) são também um exemplo dessa relevância, com um estudo a nível nacional da eficácia e dos resultados em Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e, ainda, Ornelas et al. (2013), que reporta um estudo colaborativo com líderes comunitários. Quanto à capacidade de gerar polos de liderança e mudança em domínios sociais diversificados que se constituiu como a terceira questão para esta reflexão, apesar dos resultados já alcançados com a criação de diversas organizações nas áreas sociais já mencionadas como a Associação para o Estudo e Integração Psicossocial para a área da Saúde Mental, a Associação de Mulheres contra a Violência, ou a Associação Portuguesa para o Estudo e Prevenção do Abuso Sexual de Crianças, há ainda um caminho a percorrer nos termos do que os participantes propõem e que se apresenta na Tabela 3, a respeito da sistematização de contributos para a construção e sustentabilidade de projetos e programas de comunitários, de promoção da integração comunitária e de maior influência nas políticas públicas. Conclui-se assim que a liberdade de pesquisa e a oportunidade de aprofundamento de estudo e de contacto com causas cívicas relevantes pode constituir-se como um valor para desenvolver ciência comunitária e lideranças renovadas em contextos e/ou situações diversificadas.
Texto recebido em 20 de maio de 2014
Texto aprovado em 1º de julho de 2014
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Formação em psicologia comunitária e os seus contributos pedagógicos para a participação cívica
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Set 2014 -
Data do Fascículo
Set 2014
Histórico
-
Aceito
01 Jul 2014 -
Recebido
20 Maio 2014