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Educação patrimonial com crianças: memórias e produção de representações sociais sobre a cidade

RESUMO

O presente texto busca contribuir para o estudo a respeito das representações sociais de crianças sobre a cidade, sendo esta compreendida como material, matriz e artefato cultural e, portanto, legítimo objeto acerca do qual diferentes grupos sociais compartilham e produzem significações. Os Centros Históricos das cidades são possuidores de objetivações pois detêm, em seus espaços, as marcas de acontecimentos históricos, evocam o passado em sua forma de organização específica e contam a memória do lugar. Especificamente, o debate apresentado pretendeu analisar as vivências de crianças no Centro Histórico de Cuiabá, considerando o espaço físico um lugar de memórias, afetos e identidade cultural, sustentado por um projeto representacional associado a diferentes e contraditórios valores historicamente constituídos. Trata-se de um estudo de caso único, ancorado na epistemologia dialógica, que tem, como sujeitos, crianças entre 7 e 11 anos, participantes de um projeto cultural. Para a produção de dados, utilizou-se uma vivência no Centro Histórico de Cuiabá, por meio de um roteiro narrativo. Os dados foram agrupados em episódios e analisados segundo a noção da análise compreensiva. As crianças deste estudo revelaram a constatação do fenômeno do esvaziamento e silenciamento do Centro Histórico e a ruptura do diálogo intergeracional, que tem impedido a reposição da memória social, sendo o Centro Histórico uma testemunha.

Palavras-chave:
Educação Patrimonial; Representações Sociais; Crianças; Centro Histórico

ABSTRACT

This text seeks to contribute to the study of children’s social representations of the city, understood as a material, cultural matrix and artifact, and therefore as a legitimate object about which different social groups share and produce meanings. Historic city centers have their own objectifications because their spaces bear the marks of historical events, evoke the past in their specific form of organization, and tell the memory of the place. Specifically, the debate presented aims to analyze the perezhivaniya of children in the Historic Center of Cuiabá, considering the physical space as a memory site, affections and cultural identity, sustained by a representational project associated with different and contradictory historically constituted values. This is a single case study, anchored in a dialogical epistemology, whose subjects are children between the ages of 7 and 11 who participate in a cultural project. The data were collected through a perezhivanie in the historic center of Cuiabá, using a narrative script. The data were grouped into episodes and analyzed according to the concept of comprehensive analysis. The children of this study revealed the phenomenon of the emptying and silencing of the Historic Center and the rupture of the intergenerational dialogue that has prevented the replacement of social memory, with the Historic Center as a witness.

Keywords:
Heritage Education; Social Representations; Children; Historic Center

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar as vivências de crianças no Centro Histórico de Cuiabá, considerando o espaço físico como um lugar de memórias, afetos e identidade cultural, sustentado por um projeto representacional associado a diferentes e contraditórios valores historicamente constituídos.

A cidade, para este estudo, é entendida como um elemento material, uma matriz cultural e um artefato legítimo, em que diferentes grupos sociais compartilham e produzem significados. Nesse contexto, o Centro Histórico da cidade desempenha um papel fundamental, pois não apenas serve como um ponto de encontro com o passado, mas também influencia a forma como os sujeitos e os grupos se posicionam no presente.

Diante desse cenário, a educação patrimonial com crianças surge como uma prática capaz de criar espaços antropológicos significativos. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan, 2014), a educação patrimonial se concentra na compreensão histórica e social do patrimônio, tanto material quanto imaterial. Ela desempenha um papel essencial na valorização e na preservação da memória, dos valores, dos costumes e dos aspectos da vida, garantindo que toda a comunidade tenha acesso ao direito à cultura e à memória.

Para além da educação patrimonial, buscou-se aporte na Teoria das Representações Sociais, que tem, como objeto de estudo, o processo de construção do conhecimento social partilhado pelo senso comum, a qual foi criada pelo saber popular e passa a ser considerada verdadeira e mutuamente aceitável por um mesmo conjunto social (Moscovici, 2013MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.). Considerando essa abordagem, especificamente nos estudos com crianças, ainda se recorre à articulação com os processos ontogenéticos para se pensar a gênese e a evolução das representações e das identidades sociais nos contextos de vida.

Essas representações sociais são anunciadas como um saber prático, uma modalidade de saber ingênuo socialmente compartilhado. Diante disso, o que se pretende investigar, por meio dos estudos em representações sociais, é a circulação do senso comum como forma de nomear, classificar e objetivar a realidade, tornando-a inteligível, previsível e familiar (Jodelet, 2001JODELET, Denise. As representações sociais um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (Org.). As representações sociais. Tradução de Lílian Ulup. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 17-44.).

Para tanto, é relevante destacar que o estudo das representações sociais sugere uma análise sobre o processo de significação tanto no eixo sincrônico como no eixo diacrônico, o que leva a ressaltar a importância das trocas sociais ao longo do tempo histórico, sendo a memória social um importante elemento para se compreender os processos de sua formação no presente.

O conjunto de representações sociais forma um projeto representacional baseado no modelo de trocas sociais proposto por Bauer e Gaskell (2008BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Social Representations: A progressive research programme for social psychology. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 38, n. 4, p. 335-353, 2008. https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2008.00374.x
https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2008...
), que envolve um triângulo representacional “Eu-Outro-Objeto” e suas extensões relacionadas ao tempo, abrangendo passado e futuro. Ele se concentra nas interações que ocorrem em momentos específicos, ancoradas em experiências passadas, e como essas interações podem moldar o pensamento social no futuro.

A elaboração de representações sociais surge da necessidade dos sujeitos e grupos de resolver o embaraço criado ao lidar com informações estranhas, tornando-as, dessa forma, familiares (Moscovici, 2013MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.). A formação de representações sociais ocorre a partir de dois processos de pensamento essenciais: objetivação e ancoragem.

O processo de objetivação, como proposto por Moscovici (2013MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.), refere-se à transformação de conceitos ou ideias em representações concretas que se assemelham à realidade, o que implica em criar uma imagem que seja uma cópia precisa da realidade. Por outro lado, a ancoragem envolve a capacidade de classificar ou nomear um objeto ou evento com base em categorias sociais preexistentes. Ao ancorar, os sujeitos relacionam um objeto a um padrão já aceito na sociedade, considerado mais apropriado.

As representações sociais construídas pelos grupos sobre os espaços são denominadas, segundo Jodelet (2002JODELET, Denise. A cidade e a memória. In: DEL RIO, Vicente; DUARTE, Cristiane Rose; RHEINGANTZ, Paulo Afonso (Org.). Projeto de Lugar: colaboração entre psicologia, arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002. p. 31-43.), de representações socioespaciais. Os elementos constitutivos dessas representações é a relação dialógica que sujeitos individuais estabelecem com seus espaços de vida, por meio de construções de sentido e significado, tanto na perspectiva da vivência imediata e/ou passada como também no valor simbólico elaborado no seio da relação dialética sujeito-território (Alba; Dargentas, 2015ALBA, Martha de; DARGENTAS, Magdalini. A study on the social representations and social memory of Brest, a French city destroyed during the Second World War. Psicologia e Saber Social, v. 4, n. 2, p. 195-206, 2015. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/psi-sabersocial/article/view/20075
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
).

O Centro Histórico de uma cidade reflete sua história cultural e as atividades desenvolvidas, representando uma expressão cultural da cidade (Conte; Freire, 2005CONTE, Cláudio Quoos; FREIRE, Marcus Vinicius de Lamônica. Centro Histórico de Cuiabá: patrimônio do Brasil. Cuiabá: Entrelinhas, 2005.). Searget (1981 apudJodelet, 2002JODELET, Denise. A cidade e a memória. In: DEL RIO, Vicente; DUARTE, Cristiane Rose; RHEINGANTZ, Paulo Afonso (Org.). Projeto de Lugar: colaboração entre psicologia, arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002. p. 31-43.) propõe a análise do ambiente construído como material, artefato e matriz, em que ele é material porque influencia as oportunidades e as limitações das ações das pessoas; é artefato, uma vez que representa a produção humana refletida em objetos, lugares e práticas sociais bem como nas relações e nos modelos culturais da época, e é considerado uma matriz, pois suas transformações podem criar novos modos de vida e interação.

O conceito de memória social recebeu atenção importante no âmbito da psicologia social. Reconhecendo o seu caráter guarda-chuva, esse conceito abriga os fenômenos da e na sociedade, contemplando aspectos do patrimônio material e imaterial presentes no cotidiano (Sá, 2015SÁ, Celso Pereira de. Estudos de Psicologia Social: história, comportamento, representações e memória. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2015.).

No que se refere à relevância da cidade no âmbito da educação, é imprescindível considerar a relação entre a cidade e as crianças, destacando-a como um elemento fundamental na formação e no desenvolvimento do modo como elas se relacionam com o mundo. Nesse contexto, a cidade é compreendida como uma “comunidade educativa” (Gómez-Granell; Vila, 2003), que não só desempenha um papel vital na construção da identidade, mas também serve como uma plataforma para a criação e o compartilhamento de significados socialmente relevantes.

Nesse contexto, pergunta-se: quais interações são produzidas quando se oportuniza vivências de crianças no Centro Histórico? Como as crianças e as infâncias são afetadas pelo apagamento da memória social de sua cidade? Quais marcas subjetivas podem ser notadas nos discursos de crianças sobre a sua relação com a cidade e seus espaços de vida?

Diante desses questionamentos, a Teoria das Representações Sociais, em conjunto com correntes de pensamento voltadas para o entendimento das realidades sociais das crianças no contexto urbano e histórico, constitui uma base teórica relevante para o estudo de fenômenos educacionais e de desenvolvimento humano.

Essa abordagem reconhece a interligação entre o sujeito e a cultura, enfatizando a importância das questões identitárias e afetivas na construção da realidade. A preservação do Centro Histórico depende da colaboração dos habitantes, especialmente das crianças, para reestabelecer a conexão entre memória e cidade, por meio do diálogo intergeracional.

Um olhar para a dimensão histórica do Centro Histórico de Cuiabá

A cidade de Cuiabá, conhecida como o Centro Geodésico da América do Sul (IBGE, 2018), possui um rico patrimônio de memória social de mais de 300 anos, com influências arquitetônicas de origem portuguesa, ibérica e norte-africana. A história desse município se relaciona com a descoberta de ouro, que atraiu migrantes para o Centro Histórico, com suas características arquitetônicas e memórias sociais (Conte; Freire, 2005CONTE, Cláudio Quoos; FREIRE, Marcus Vinicius de Lamônica. Centro Histórico de Cuiabá: patrimônio do Brasil. Cuiabá: Entrelinhas, 2005.).

Nas décadas de 1960 e 1970, a cidade passou por mudanças significativas devido aos investimentos públicos inspirados na modernização, o que gerou conflitos entre o tradicional e o contemporâneo, cuja situação afetou o Centro Histórico. A década de 1970 viu o surgimento de novos polos de desenvolvimento na cidade, como o bairro Goiabeiras, que passou por elitização; o distrito de Coxipó da Ponte, impulsionado pela universidade e indústria, e o Centro Político e Administrativo (CPA), representando a modernização (Romancini, 2005ROMANCINI, Sônia Regina. Cuiabá: paisagens e espaços da memória. 1. ed. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005.).

Na década seguinte, o Centro Histórico tornou-se palco de tensões sobre o seu significado como patrimônio cultural, com grupos divergindo entre os que defendiam a preservação e o reconhecimento da memória e aqueles que viam o tombamento como inviável em decorrência dos interesses comerciais.

De acordo com Ferreira (2017FERREIRA, Lúcia de Fátima Lobato. Ludicidade: uma reflexão sobre a brincadeira na educação patrimonial em Cuiabá-MT. Dissertação (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural) - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Cuiabá, 2017.), o processo de tombamento do Centro Histórico de Cuiabá teve início com o Processo Administrativo n.º 1.180 - T85/IPHAN, oficialmente instaurado em 25 de setembro de 1985. Posteriormente, o tombamento provisório foi efetivado em 1º de outubro de 1987, tornando-se permanente em 1988. Finalmente, a homologação definitiva ocorreu em 4 de novembro de 1992, pelo Ministério da Cultura (Cuiabá, 2010).

Durante esse processo, várias tentativas de impugnações foram realizadas. A gestão do prefeito municipal Frederico Soares de Campos submeteu recurso contra o tombamento, na tentativa de evitar a homologação, alegando que:

No afã da preservação criou-se o edital de tombamento abrangendo justamente todo o perímetro em que pulsa o comércio da cidade onde as alterações foram as mais radicais tudo por conta do respeito a um passado já destruído, gerando sim, complexos problemas a administração pública cerceada de suas atribuições. O conflito entre o antigo, que realmente não é histórico, e os objetivos modernos que são compatíveis com o desenvolvimento econômico e social da cidade, existe hoje de maneira muito séria e que nos leva a apelar por providências junto a Vossa Excelência. Cuiabá dos anos 30, que eu tenho viva na memória, existe apenas registrada nas fotografias e histórias antigas, já que seu visual colonial fora totalmente alterado, restando sim a sua construção viária irregular que lhe assegura a personalidade de cidade antiga. [...]. As casas velhas ligadas ao passado de filhos ilustres, já foram demolidas, não mais existindo para reviverem a memória daqueles que escreveram páginas brilhantes da sua história (Processo nº 1.180 - T-85. OFº GP nº 678/89 de 18/09/1989, p. 02 apudFerreira, 2017FERREIRA, Lúcia de Fátima Lobato. Ludicidade: uma reflexão sobre a brincadeira na educação patrimonial em Cuiabá-MT. Dissertação (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural) - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Cuiabá, 2017., p. 59).

Os registros das impugnações e a tentativa de evitar o tombamento do Centro Histórico de Cuiabá representam a falta de reconhecimento de uma parte da sociedade e de autoridades políticas em relação ao valor histórico desse local. A esse contexto, soma-se a percepção do centro como uma zona comercial, impulsionada por representações sociais, que enfatizam seu valor em termos de consumo e entretenimento (Zukin, 2017ZUKIN, Sharon. Patrimônio de quem? Cidade de quem? Dilemas sociais do patrimônio cultural na dimensão urbana. In: CYMBALISTA, Renato; FELDMAN, Sarah; KÜLH, Beatriz M. (Orgs.). Patrimônio Cultural: memórias intervenções urbanas. São Paulo: Annablume, 2017. p. 25-46.). Assim, o centro é, muitas vezes, visto como uma mercadoria, em detrimento de sua importância histórica.

Pesquisas anteriores realizadas pelo Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância (GPPIN/UFMT) destacam que o Centro Histórico de Cuiabá é frequentemente percebido como hostil e ameaçador, enquanto suas qualidades como local de memória são, muitas vezes, subestimadas, como evidenciado em estudos de Silva (2014SILVA, Eliza Moura Pereira da. Representações socioespaciais da cidade de Cuiabá-MT, segundo crianças. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014.), Poubel (2016POUBEL, Paula Figueiredo. Representações sociais da cidade de Cuiabá: estudo com crianças em contexto de escolas particulares. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2016.) e Cunha (2017). Essas descobertas enfatizam a necessidade de implementar iniciativas de educação patrimonial direcionadas às crianças, visando fortalecer a identidade da comunidade e da cidade por meio da apropriação do Centro Histórico.

Os resultados ressaltam a necessidade premente de desenvolver políticas de subjetividade, conforme sugerido por Tedesco (2004TEDESCO, Juan Carlos. Igualdad de oportunidades y política educativa. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 557-572, 2004. https://doi.org/10.1590/S0100-15742004000300003
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), a fim de combater o esvaziamento e o silenciamento do Centro Histórico bem como a quebra do diálogo intergeracional, que tem impedido a regeneração da memória social.

Além disso, o impacto negativo no diálogo intergeracional resulta na erosão e no afastamento da criança dos locais de memória, relegando-a a espaços privados e controlados. Conforme Choay (2014CHOAY, Françoise. Alegoria do património. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2014.), esse cenário gera efeitos prejudiciais, ao transformar o valor do patrimônio cultural em puramente econômico. Isso, por sua vez, levanta questões cruciais sobre a direção das obras arquitetônicas, o futuro das cidades e a preservação de sua memória.

Aspectos metodológicos

Este estudo abordou, como objeto de análise, a representação social das crianças sobre o Centro Histórico de Cuiabá. O desenho metodológico tem aspectos de um estudo de caso único (Marková, 2017MARKOVÁ, Ivana. Mente dialógica: senso comum e ética. Tradução de Lilian Ulup. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2017), por considerar a relação das crianças com os lugares de memória social, tendo a epistemologia dialógica Eu-Outro-Objeto interdependente no contexto sociocultural como característica principal.

O desenho metodológico desse estudo assume a perspectiva psicossocial de ênfase qualitativa, que, de acordo com Günther (2006GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa: esta é a questão? Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 22, n. 2, p. 201-209, 2006. https://doi.org/10.1590/S0102-37722006000200010
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), caracteriza-se pela compreensão dos fenômenos sócio-históricos no contexto em que ocorrem as relações sociais. Para tanto, os esforços empreendidos neste estudo têm como objetivo analisar as vivências de crianças no Centro Histórico de Cuiabá, considerando o espaço físico como um lugar de memórias, afetos e identidade cultural, sustentado por um projeto representacional associado a diferentes e contraditórios valores historicamente constituídos.

Quanto aos participantes da pesquisa, cinco crianças foram selecionadas, sendo uma menina e quatro meninos, com idade entre 7 e 11 anos, por meio da oficina “Colecionadores de Memória”, desenvolvida no projeto cultural “Cribiás 300+: por uma educação patrimonial toda nossa” (Andrade, 2021ANDRADE, Daniela Barros da Silva Freire. Projeto Cultural Cribiás 300+: Por uma Educação Patrimonial toda nossa. Lei Aldir Blanc - Seleção Pública MT Nascentes. Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer: Governo de Mato Grosso, 2021.).

A oficina aconteceu na forma de um passeio no Centro Histórico de Cuiabá, realizado em 13 de março de 2021, com aproximadamente 3 horas e 30 minutos de duração. Cabe ressaltar que esse evento ocorreu em meio às restrições sanitárias rigorosas, devido à pandemia global de covid-19, o que limitou o número de participantes da pesquisa.

Diante desse cenário, um protocolo foi implementado, visando minimizar os riscos de contágio e garantir a segurança das crianças e da equipe de pesquisa, o qual considerou os seguintes critérios: a) agrupamento de crianças da mesma família; b) manutenção de práticas de quarentena similares; c) seleção de crianças com idades entre 7 e 11 anos; d) uso de máscaras cirúrgicas e e) aplicação de álcool em gel em cada interação com objetos.

A oficina foi mediada por pesquisadores vinculados ao Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância (GPPIN), os quais também foram responsáveis pela produção das informações, o que permitiu a criação de um banco de dados abrangente e específico, composto de duas fontes principais. A primeira consistiu na utilização de uma câmera Action Cam1 1 Uma Action Cam é uma câmera digital que tem como característica a captura de imagens e vídeos em movimento. , anexada ao boné de uma das crianças, com a alternância sendo de livre escolha entre elas. A segunda fonte incluiu registros fotográficos e anotações de campo feitas pelos pesquisadores auxiliares que acompanharam o processo de pesquisa.

As crianças caminharam pelas ruas e pelos lugares do Centro Histórico, percorrendo os marcos históricos mais emblemáticos, orientadas por um roteiro narrativo (Andrade, 2017ANDRADE, Daniela Barros da Silva Freire. Rede de apoio à Infância: interfaces com a Psicologia e Pedagogia. Projeto de Extensão, Sistema de Extensão (SIEx). Coordenação de Extensão (CODEX). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2017.), que trazia uma breve história dos lugares de memória, entremeados com narrativas literárias, oferecendo às crianças um convite para o debate, a curiosidade e a reflexão, de modo a valorizar o seu processo de significação e a sua autoria infantil.

A escolha do roteiro narrativo se justifica pela ênfase na mediação com as crianças, convidando-as à curiosidade e à criatividade, além de aproveitar o imprevisto e o improviso para estimular oportunidades sociocognitivas. Nessa dinâmica, as crianças são as coautoras do roteiro, cujas ações, na cena vivenciada, são consideradas e validadas na interpretação da realidade, promovendo a criação de novas narrativas.

Assim, o roteiro narrativo foi apresentado às crianças a partir da mediação do pesquisador Jeysson Cunha, que assumiu um personagem-âncora denominado Bugrinho, em referência ao poeta cuiabano Silva Freire, imortalizado pela Academia Mato-Grossense de Letras. Ao longo do caminho, mais dois personagens-âncora foram apresentados às crianças: Luciene Carvalho2 2 Poeta mato-grossense e primeira mulher negra a assumir a presidência de uma Academia de Letras no Brasil. (interpretada pela mestra e psicóloga Naiana Gonçalves Marinho) e Zé Bolo Flô3 3 Um poeta andarilho, ícone da cultura cuiabana e conhecido por vender bolos pelo centro da cidade. Segundo as histórias contadas pelos cuiabanos, Zé Bolo Flô compunha poesias para trocá-las por comida. (interpretado pelo engenheiro civil Mateus Elias Cruz Antunes).

Ademais, o roteiro narrativo foi construído com base na técnica da narrativa encorajadora (Andrade, 2017ANDRADE, Daniela Barros da Silva Freire. Rede de apoio à Infância: interfaces com a Psicologia e Pedagogia. Projeto de Extensão, Sistema de Extensão (SIEx). Coordenação de Extensão (CODEX). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2017.), que valoriza a participação das crianças como sujeitos históricos e coparticipantes da ação e que estimula a imaginação, a criatividade e o fortalecimento dos diálogos intergeracionais. Para tanto, ele foi desenvolvido a partir dos seguintes indicadores: a) contação de histórias sobre os lugares de memória; b) consideração acerca da arquitetura e do estilo das construções; c) leitura de poemas de autoria de poetas cuiabanos que fazem referência ao pertencimento e à identidade do lugar e d) abertura à inovação e à criatividade das crianças.

A delimitação das escolhas do que foi narrado se baseou em quatro eixos principais: 1) reconhecer as crianças como atores sociais ativos no estudo; 2) promover a comunicação aberta e respeitosa com elas, incentivando a dialogicidade e uma atitude de adulto atípico; 3) enfatizar o uso das narrativas para estimular a imaginação, a criatividade e o diálogo intergeracional das crianças e 4) considerar a cidade como um espaço que contém a memória social, contribuindo para uma visão mais completa da vida urbana sob a perspectiva das crianças.

Com esse propósito, o itinerário foi dividido em duas etapas: “Pelas Minas do Cuiabá”, que abrangeu os marcos históricos mais antigos, como igrejas e casarões dos séculos XVIII e XIX, e “Entre a tradição e a modernidade”, que explorou tanto os casarões históricos quanto estruturas arquitetônicas mais contemporâneas construídas no século XX.

Alguns artefatos culturais, como uma lupa e um saquinho de pedrinhas simulando ouro, foram disponibilizados às crianças, com o propósito de promover uma abordagem participativa, de encorajar a curiosidade e a criatividade das crianças, além de ampliar as suas perspectivas e as oportunidades de aprendizado.

Ao visitar cada marco histórico, as crianças interagiam com o local de várias maneiras, demonstrando curiosidade, atenção e, por vezes, timidez. Elas também expressavam suas observações e lançavam hipóteses sobre o Centro Histórico, buscando compreender o significado do lugar. Conforme demonstrado na Figura 1, a partir das observações e videogravações do passeio pelo Centro Histórico, uma questão central emergiu: quais interações as crianças produziram?

Com base nessa questão, os episódios foram descritos e pormenorizados, contabilizando 103 fotografias e 9 vídeos com o total de 3 horas e 35 minutos de gravação. Os dados foram submetidos à análise qualitativa, empregando-se o procedimento da abordagem episódica (Pedrosa; Carvalho, 2005PEDROSA, Maria Isabel; CARVALHO, Ana Maria Almeida. Análise qualitativa de episódios de interação: uma reflexão sobre procedimentos e formas de uso. Psicologia Reflexão e Crítica, v. 18, n. 3, p. 431-442, 2005. https://doi.org/10.1590/S0102-79722005000300018
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), em que um “episódio” foi definido como uma interação social específica, no contexto do Centro Histórico, que foi recortada para análise, ou seja, um conjunto de ações que abrange gestos, falas, vocalizações, ruídos e expressões, permitindo a compreensão de significados, os quais refletem as interações das crianças com o Centro Histórico.

Figura 1:
Lógica da investigação

A seleção dos episódios levou em consideração o desfecho da cena apresentada pelas crianças, assim como a qualidade de sua participação e de seu envolvimento na atividade, quer tenha ocorrido individualmente, quer tenha sido compartilhado com o grupo de pares de crianças.

Os episódios foram submetidos à análise compreensiva (Mendes Júnior; Ferreira, 2010), que se caracteriza pela identificação dos contextos expressos pelos sujeitos. Assim, considerando que o corpus contém elementos videográficos e fotográficos, o procedimento adotado foi o de compreender as atitudes, a atividade criativa, o processo de significação, as hipóteses interpretativas e a atividade exploratória em curso sobre o Centro Histórico, produzidos pelas crianças ao longo do trajeto (Figura 1).

Ressalta-se que a construção dos episódios foi uma estratégia para identificar, a cada lugar visitado, a interação das crianças com o Centro Histórico, cujas relações estabelecidas permitiram a compreensão da potencialidade do roteiro narrativo para produzir o debate, a curiosidade e a reflexão, de modo a valorizar o processo de significação e a autoria infantil.

Dessa forma, os episódios convidam os leitores a pensarem sobre a urgência da elaboração de ações de educação patrimonial com crianças, visando à construção de políticas de subjetividades (Tedesco, 2004TEDESCO, Juan Carlos. Igualdad de oportunidades y política educativa. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 557-572, 2004. https://doi.org/10.1590/S0100-15742004000300003
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), com esforços dos poderes públicos em reconhecer a sua importância por meio de leis, portarias, decretos e ações práticas, voltados ao fortalecimento, de modo qualitativo, da participação da população na cena pública, para enfrentar o esvaziamento e o silenciamento do Centro Histórico e para interromper a ruptura do diálogo intergeracional, que tem impedido a reposição da memória social.

Resultados e discussões

Episódio 1 - O esvaziamento populacional do Centro Histórico

Este episódio inaugura o início do passeio pelo Centro Histórico, em que visitaram primeiramente a Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, seguindo posteriormente para a Igreja do Senhor dos Passos, o Museu da Imagem e do Som de Cuiabá até chegar ao Iphan. Nesse trajeto, as crianças puderam conhecer os traçados urbanos, que dão indícios de outros tempos, e a arquitetura dos casarões e dos estabelecimentos, que guardam evidências coloniais do século XVIII e XIX e exemplares dos anos 50 e 60.

As crianças, no decorrer do passeio, além de desenvolver uma atividade exploratória, cuja ação está ligada à relação dialógica entre os indivíduos e seus ambientes, atribuíam significados tanto com base em suas experiências imediatas quanto em conexão com os valores simbólicos criados na interação sujeito-território. Cabe destacar ainda que, ao explorar a cidade e interagir com sua arquitetura histórica, elas estão, de certa forma, participando desse processo de construção de sentido e significado em relação ao espaço urbano (Alba; Dargentas, 2015ALBA, Martha de; DARGENTAS, Magdalini. A study on the social representations and social memory of Brest, a French city destroyed during the Second World War. Psicologia e Saber Social, v. 4, n. 2, p. 195-206, 2015. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/psi-sabersocial/article/view/20075
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
).

Esse contexto pôde ser evidenciado quando as crianças estavam em frente ao Iphan (Figura 2), um típico casarão cuiabano, que está fechado temporariamente para reformas, onde puderam conhecer a função desse instituto, que é voltada principalmente à preservação da história e da memória. Ao considerar a dimensão do passado dos lugares, Jodelet (2017JODELET, Denise. Representações sociais e mundos da vida. Curitiba: Fundação Carlos Chagas, 2017., p. 184) destaca que “o passado da cidade repercute no sentimento identitário manifestado no presente da existência urbana”, em que os processos psicológicos atuam na construção simbólica da cidade.

Assim, as crianças interagiram com formas materiais e imateriais, as quais dialogam e são ativadas pelas memórias sociais, e, buscando compreender a realidade, exploraram o Centro Histórico de Cuiabá. De forma processual (Jodelet, 2001JODELET, Denise. As representações sociais um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (Org.). As representações sociais. Tradução de Lílian Ulup. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 17-44.), elas tatearam as portas e tentavam olhar por frestas, procurando encontrar sinais da presença de residentes. Diante do resultado negativo, os casarões fechados e sem presença humana foram significados como um lugar esquecido e abandonado, e as crianças puderam perceber o fenômeno que acomete o Centro Histórico de Cuiabá: o silenciamento histórico e cultural.

Figura 2:
Casa cuiabana sem residentes

- Ali a casa, vamos ali na casa, conhecer! (Criança 1)

- Vamos tentar entrar lá! Ali pode encontrar até ouro lá! (Criança 1)

- [Toc-Toc] Tem alguém aí? (Criança 2)

Cabe resgatar as reflexões de Marková (2017MARKOVÁ, Ivana. Mente dialógica: senso comum e ética. Tradução de Lilian Ulup. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2017) de que a presença humana é o esteio das relações sociais e potencializa a emergência e o compartilhamento de saberes. Nesse episódio, duas objetivações são destacadas pelas crianças: 1) lugar esvaziado de presença humana e 2) lugar potencialmente rico em elementos educativos. O gesto de bater na porta e a pergunta “Tem alguém aí?” revelam o fenômeno do esvaziamento das residências e o abandono das casas do Centro Histórico. Ao mesmo tempo, as crianças, inseridas na narrativa sobre a origem da cidade, a partir da exploração aurífera, assumem uma atitude de exploradoras, anunciando uma abertura para a busca ativa de riquezas, mesmo que imaginariamente.

Ao identificar o esvaziamento da presença humana no Centro Histórico, elas sentem a ruptura do diálogo devido à ausência de sentido coletivo, isto é, destituído de importância na esfera pública (Jovchelovitch, 2013JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Tradução de Pedrinho Guareschi. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.).

Episódio 2 - Escombros da casa cuiabana: exploradores e críticos

Por meio desse passeio, as crianças puderam conhecer a primeira praça de Cuiabá, atualmente denominada Praça da Mandioca, mas que antes, por volta de 1727, era chamada de Praça Real. À época, transitavam nela viajantes que estavam atrás de ouro, além de ser um espaço em que se praticava a tortura de pessoas escravizadas.

Ainda nesse trajeto, elas passaram por uma antiga residência, que possuía resquícios das construções feitas usando terra crua. Ademais, é importante destacar que a casa está em ruínas (Figura 3), possibilitando a demonstração do fenômeno que ocorre devido ao abandono do patrimônio histórico do lugar. Assim, as crianças, ao perceberem a edificação em destroços, significaram os problemas de gestão pública do lugar como falta de cuidado, isto é, ausência de consciência preservacionista.

Figura 3:
Casa em ruína

- Olha essa casa de antigamente. Está destruída! (Criança 4).

- Eles não cuidam da cidade! (Criança 2).

Em outro momento, uma criança identificou uma calculadora no chão e perguntou: “Será que quem morava aqui fazia contas?”. Diante da dualidade entre a curiosidade sobre os habitantes anteriores da casa e o desejo de explorar os escombros, o grupo se dividiu. Uma parte assumiu o papel de exploradores imaginários, atirando pedras para dentro da casa, enquanto a outra parte se concentrou em denunciar o abandono, revelando pontos de vista diferentes.

Esse episódio exemplifica como o conhecimento é construído por sujeitos e grupos por meio de um processo de diálogo que envolve três elementos da cena social: Eu-Outro-Objetivo. Portanto, as realidades são moldadas pela ética das relações sociais e da interação (Marková, 2017MARKOVÁ, Ivana. Mente dialógica: senso comum e ética. Tradução de Lilian Ulup. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2017).

A imagem da casa destruída se apresentou como uma representação clara da má gestão do poder público na preservação do patrimônio material da cidade. Gradualmente, as crianças expressaram o projeto representacional do Centro Histórico por meio das imagens de esvaziamento e abandono que identificaram.

Vale ressaltar que a análise das representações sociais requer a consideração dos processos de significação tanto no âmbito sincrônico quanto diacrônico (Bauer; Gaskell, 2008BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Social Representations: A progressive research programme for social psychology. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 38, n. 4, p. 335-353, 2008. https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2008.00374.x
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). Isso implica na importância das trocas sociais ao longo da história, com a memória social desempenhando um papel fundamental na compreensão da formação desses processos no presente.

Episódio 3: Novas ancoragens para o termo academia e a identificação com o ser imortal

Na Academia Mato-Grossense de Letras, as crianças logo deram início à exploração do espaço, cuja arquitetura traz o simbolismo de uma casa cuiabana típica de construção em taipa e adobe, telhado de tribeira, com piso de ladrilho hidráulico e janelas com acesso à rua, tendo sido a residência do Barão de Melgaço.

Nas paredes, havia fotos de homens e de bem poucas mulheres ícones da literatura mato-grossense e imortalizados(as) por suas obras. Como forma de se apropriar do espaço, as crianças sentaram-se nos cadeirões dos acadêmicos e interagiram com os instrumentos ali disponíveis. Uma delas se dispôs a tocar o piano (Figura 4), buscando deixar a sua marca.

Figura 4:
Academia Mato-Grossense de Letras

- Mas isso aqui é uma academia? (Criança 2).

- Sim, mas de estudos. Aqui as pessoas “malham” a mente (Pesquisador).

- E como faz para se tornar imortal? (Criança 3).

A pergunta lançada pela criança 3 revela a tentativa delas de se apropriarem dos elementos da memória social, ancorando-os nas suas vivências atuais. A polissemia do termo academia evidenciou novos sentidos a serem explorados pelas crianças, uma vez que provocou a compreensão do que é, o que significa a Academia de Letras e como ela reúne grandes atores sociais ao ponto de imortalizá-los.

Nesse movimento, a criança imaginou uma academia de esportes e, ao interagirem com o lugar, pôde reconhecer um novo conceito, contribuindo para a emergência de novos elementos ancorados em outro projeto representacional, conforme o esquema sugerido por Bauer e Gaskell (2008BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Social Representations: A progressive research programme for social psychology. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 38, n. 4, p. 335-353, 2008. https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2008.00374.x
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) no triângulo representacional Eu-Outro-Objeto.

Dessa vez, observa-se a dimensão cultural, representada pela Academia Mato-Grossense de Letras, tensionando o campo representacional sobre o Centro Histórico. Nesse movimento, anuncia-se outra significação para o projeto representacional, que dá contornos a esse lugar, segundo a compreensão das crianças. Desse modo, a dimensão cultural, ancorada na memória social, passa a concorrer com as imagens de esvaziamento e abandono.

Por outro lado, é importante destacar o potencial identitário inerente a esse lugar, uma vez que as crianças demonstram grande interesse na imortalidade e na exploração ativa e autoral dos elementos culturais em exposição, como o piano. Esse contexto evidencia a necessidade de desenvolver processos educativos, com o objetivo de reavivar a produção de conhecimento e a memória social, o que significa trazer novas significações e novas formas de ocupação do Centro Histórico pelas crianças, afastando práticas arbitrárias que setorizam os espaços frequentados pelo público infantil, além de promover uma abordagem mais inclusiva (Tonucci, 1997TONUCCI, Francesco. A Cidade das Crianças. Bari: Laterza, 1997.).

Episódio 4: O lugar feminino na memória social

O quarto episódio é um desdobramento da interação das crianças na Academia Mato-Grossense de Letras e na Praça Alencastro, em que a ausência do lugar feminino na memória social foi percebida por elas nesses espaços. Considerando que as representações sociais atuam como sistemas de pensamento mais amplo, que engendram a relação dos sujeitos com o mundo (Jodelet, 2001JODELET, Denise. As representações sociais um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (Org.). As representações sociais. Tradução de Lílian Ulup. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 17-44.), o gênero é uma categoria histórica que remete às relações de poder.

Tal contexto foi identificado pela criança ao perceber, na Academia Mato-Grossense de Letras, o lugar feminino na memória social. Nesse cenário, a criança visualizou um quadro de uma mulher com a saia rodada folclórica de dança siriri exposta na parede (Figura 4), que, de forma atenta, pareceu dialogar com a imagem, de maneira a buscar referências identitárias da mulher nesse espaço. Na sequência, a criança dançou, expressando um faz de conta imaginário, de modo a representar a mulher do quadro e, por fim, deparou-se com um paredão de bustos masculinos, revelando o desafio da mulher em se ver representada nesses espaços, por conta da tradição do patriarcado, que visa marcar quem deve ser lembrado no território.

Figura 5:
O lugar feminino na memória social

- Sabe aquela mulher de saia assim? Que roda assim? (Criança 1)

- Onde você viu? (Pesquisador)

- Lá naquele lugar lá (Academia Mato-Grossense de Letras) (Criança 1).

- Ah, verdade! (Pesquisador)

- Olha, que legal! [A criança sobe no palco e gira] (Criança 1).

Assim, a criança, movida pela constatação da ausência feminina na memória social do Centro Histórico, produziu um manifesto em forma de dança, inspirada no quadro da dançarina de saia rodada, em um movimento que, em si, pode ser considerado a objetivação da visibilidade social feminina no palco da Praça Alencastro, em face da ausência de referências femininas nas narrativas sobre a memória social da cidade.

No âmbito do Centro Histórico, seja no Episódio 3, seja no Episódio 4, as crianças indagam a imortalidade e a visibilidade de narrativas contra-hegemônicas de crianças, de mulheres e de outros grupos sociais invisibilizados, como negros e indígenas. Além disso, revelam as bases de um projeto representacional (Bauer; Gaskell, 2008BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Social Representations: A progressive research programme for social psychology. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 38, n. 4, p. 335-353, 2008. https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2008.00374.x
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), segundo o qual os espaços de memória social da cidade dialogam com a ideia de colonização efetivada por homens de origem europeia.

Episódio 5: O ato criativo no diálogo com a tradição

Por fim, as crianças chegaram até a Residência dos Governadores, cujo espaço abrigou a residência oficial dos governadores por volta de 1940, que apresenta o modelo neocolonial como característica arquitetônica e esteve na esteira do plano de modernização da cidade. Ele possui um amplo jardim e foi a primeira casa de Cuiabá a ter fogão a gás e piscina.

Contudo, as características desse lugar de memória remetem a um espaço privado contemporâneo: grades que cercam o ambiente, guardas para fazer a segurança e um jardim (Figura 6). De forma espontânea e autoral, as crianças desenvolveram brincadeiras entre si, em que as condições espaciais do jardim (com plantas verticais) permitiram um entretenimento livre. Nessa análise, destaca-se o potencial de autoria infantil, objetivando e ancorando seus saberes já constituídos na ocupação do espaço.

- Vamos brincar de esconde-esconde! (Criança 5)

- Podemos nos esconder ali! (Criança 3)

Figura 6:
Residência dos governadores

O potencial criativo das crianças foi evidenciado ao interagirem com a piscina da Residência dos Governadores. Nesse local (Figura 7), a interação ocorreu com manifestações lúdicas e espontâneas, tornando o espaço um lugar possível para as crianças. Logo, assumiram uma ocupação subjetiva do ambiente, expressando suas autorias infantis na apropriação do lugar (Jodelet, 2017JODELET, Denise. Representações sociais e mundos da vida. Curitiba: Fundação Carlos Chagas, 2017.).

Figura 7:
Casa dos governadores - piscina

- Ei, vamos ver a piscina? (Criança 2)

- Dentro da piscina, parece uma caverna! (Criança 2)

- Tem até uma cachoeira! (Criança 3)

- Podia pegar a mangueira para encher aqui! (Criança 2)

De modo geral, pode-se identificar o processo de significação da realidade pelas crianças, considerando tanto a sua dimensão reprodutiva de assimilação das informações históricas, anunciadas pelos adultos, quanto a dimensão criativa, a partir da qual as crianças elaboram suas hipóteses sobre o conhecimento social (Jodelet, 2017JODELET, Denise. Representações sociais e mundos da vida. Curitiba: Fundação Carlos Chagas, 2017.).

Em outra medida, ao pensar a educação patrimonial com crianças, é possível identificar pistas daquilo que elas anunciam como novas possibilidades para o estabelecimento de abordagens educacionais e de como tais vivências mobilizam seus processos identitários.

Considerações finais

No desenvolvimento deste estudo, buscou-se a fundamentação teórica na Teoria das Representações Sociais, em conjunto com os princípios dos estudos sobre a memória social e o contexto urbano da cidade. O objetivo foi analisar as vivências de crianças no Centro Histórico de Cuiabá, considerando o espaço físico um lugar de memórias, afetos e identidade cultural, sustentado por um projeto representacional associado a diferentes e contraditórios valores historicamente constituídos.

O roteiro narrativo, elaborado com base em referências culturais e projetado para oferecer às crianças uma experiência que promova a autoria, a criatividade e a participação ativa, demonstrou ser uma ferramenta valiosa para conduzir ações de educação patrimonial junto às crianças.

As análises realizadas, ao proporcionar vivências das crianças no Centro Histórico, demonstraram o potencial de participação delas como atores sociais engajados na reflexão sobre a cidade. No entanto, elas identificaram indícios de um projeto representacional orientado pelo tensionamento entre o abandono e o silenciamento de grupos minoritários e a riqueza da dimensão cultural.

Tal contexto revelou como as crianças são afetadas pelo apagamento da memória social da cidade, principalmente pela perda de referências históricas e pela ruptura do diálogo intergeracional, que tem impedido a reposição da memória social, sendo o Centro Histórico de Cuiabá uma testemunha.

Dessa forma, pode-se evidenciar as marcas subjetivas das crianças em relação à cidade, estabelecendo um diálogo com suas próprias vivências. Esse contexto se tornou particularmente evidente quando as crianças empregaram recursos criativos para expressar preocupações sobre o abandono e o esvaziamento da cidade, além de reconhecerem indícios de uma narrativa histórica que enfatiza a hegemonia masculina. Por fim, elas atribuíram significados ao Centro Histórico de Cuiabá, manifestando um senso de pertencimento e explorando o potencial identitário desse local.

Assim, o roteiro narrativo com as crianças no Centro Histórico revelou perspectivas importantes para pensar a educação patrimonial, visando ao estabelecimento do diálogo intergeracional na concepção dialógica. A interação das crianças com os lugares de memória, ainda que precários, esvaziados e em ruínas, estimula a criatividade e a curiosidade das crianças para tentar desvendar o passado e compreender o presente. Essa perspectiva dá pistas para (re)pensar, com as crianças, os projetos representacionais objetivados na cidade, inserindo-as como coautoras da cena educativa, com o devido reconhecimento da sua condição de sujeito de direito.

Portanto, é fundamental a construção de políticas de subjetividade (Tedesco, 2004TEDESCO, Juan Carlos. Igualdad de oportunidades y política educativa. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 557-572, 2004. https://doi.org/10.1590/S0100-15742004000300003
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) que potencializem ações educativas voltadas ao diálogo intergeracional, para o desenvolvimento de consciências preservacionistas e de construção de memórias sociais, possibilitando que o Centro Histórico seja reconhecido em sua dimensão estruturante da história cuiabana.

As crianças não podem ficar alheias a essas ações, pois esse lugar de memórias abriga materiais pedagógicos e lúdicos riquíssimos, que podem se tornar narrativas encorajadoras de novos modos de ocupar e pensar o Centro Histórico e outros lugares de memória.

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  • 1
    Uma Action Cam é uma câmera digital que tem como característica a captura de imagens e vídeos em movimento.
  • 2
    Poeta mato-grossense e primeira mulher negra a assumir a presidência de uma Academia de Letras no Brasil.
  • 3
    Um poeta andarilho, ícone da cultura cuiabana e conhecido por vender bolos pelo centro da cidade. Segundo as histórias contadas pelos cuiabanos, Zé Bolo Flô compunha poesias para trocá-las por comida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2022
  • Aceito
    10 Jan 2024
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