Resumo
Este artigo investiga os processos de reconfiguração e percepção da vacinação infantil contra Covid-19 no Brasil e o cuidado da criança no pós-pandemia. Por meio da etnografia em ambientes digitais, analisamos os argumentos utilizados para questionar a vacina a partir de quatro campos (Telegram, Twitter, YouTube e Instagram). Com isso, buscamos compreender qual é a percepção dos indivíduos em relação à segurança e os riscos do imunizante, como se dá a reconfiguração da cultura da vacinação infantil no Brasil e como isso acaba reverberando em outras instâncias da vida social. Observamos que os argumentos apresentados pelos indivíduos para negar a vacina já foram utilizados em emergências sanitárias anteriores (como o HPV e a H1N1) e possuem um forte apelo por liberdade e pela manutenção dos direitos individuais, além de colocar a criança como responsabilidade da família, não cabendo esse papel ao Estado.
Palavras-chave:
vacinação infantil; cuidado; cisma; Covid-19
Abstract
This article investigates the processes of reconfiguration and perception of childhood vaccination against COVID-19 in Brazil and childcare in the post-pandemic context. Through ethnography in digital environments, we analyze the arguments used to question the vaccine across four platforms (Telegram, Twitter, YouTube, and Instagram). Thus, we seek to understand individuals’ perceptions of the safety and risks of the vaccine, how the reconfiguration of childhood vaccination culture occurs in Brazil, and how this resonates in other instances of social life. We observe that arguments used to reject the vaccine have been employed in previous health emergencies (such as HPV and H1N1), emphasizing a strong appeal for freedom, the preservation of individual rights, and positioning the child as the family’s responsibility, excluding the State from this role.
Keywords:
childhood vaccination; care; schism; COVID-19
Introdução1 1 Este artigo é fruto de projetos de pesquisas realizados com o financiamento do CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa), da Capes (Bolsas de Doutorado e Doutorado Sanduíche) e da Faperj (Jovem Cientista do Nosso Estado e Pós-Doutorado Nota 10).
Em 2 de janeiro de 2023, Rafael iniciou uma discussão no P & G, um canal de informações sobre Covid-19 do Telegram.2 2 Os nomes e características dos interlocutores foram substituídos/suprimidos por questões de anonimato. O material de análise é proveniente de estudo aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em decorrência das disputas e do excesso de informações existentes naquele momento sobre a vacinação infantil contra Covid-19, que, muitas vezes, eram conflitantes, e diante do fato de que ele seria um futuro pai de gêmeos, Rafael passou a questionar todas as vacinas e estava pensando em não aplicar nenhum imunizante em seus então futuros filhos. Ele pediu conselhos para os demais membros do canal, dizendo que não sabia o que fazer, especialmente porque esse “negócio de vacina está tão estranho”.
Em seguida, seis mulheres e um homem passaram a dar seus depoimentos e aconselhamentos ao futuro papai, a partir de relatos de suas próprias vivências ou de terceiros. Marlene, por exemplo, disse que era mãe de três crianças e que tinha decidido não dar mais nenhuma vacina. Cláudia comentou que sua bebê tinha 10 meses e ainda não tinha tomado nenhuma dose de qualquer imunizante. Fernanda fez uma recomendação a Rafael: “Se eu pudesse te dar um conselho, fique longe delas.”
Larissa trouxe, por outro lado, a experiência de seu médico: “Eu também não me vacinei e nem vou me vacinar. Meu corpo, minhas regras, ou a esquerda acha que isso só serve para aborto? Meu cardiologista esquerdista se vacinou e morreu de Covid.” Já Maria, preferiu dar um conselho mais amplo a Rafael:
Oi, busque um médico/pediatra que não concorda com esse experimento para orientar vocês. Tenho uma amiga que mora no interior que nunca vacinou o filho e ao entrar no primeiro ano o colégio fez vista grossa. Quando seus filhos chegarem em idade escolar (que é quando pedem os comprovantes todos) é possível que isso tudo já tenha passado pela impossibilidade de negar as provas desse genocídio mundial (assim esperamos). Enquanto isso, sejam firmes e busquem pessoas com afinidade, sejam médicos, babás, escolinhas… Enquanto tudo isso se resolve, acredito que as pessoas vão se unir para criar uma rede alternativa de apoio e assistência.
Pablo e Jandira preferiram trazer seus relatos pessoais na hora de aconselhar Rafael e clamar pela liberdade, que eles julgam ser fundamental e um direito quando o assunto é saúde. Pablo conta que sua prima teria sido obrigada a dar a vacina contra Covid-19 para a filha de apenas 6 anos de idade para que ela pudesse se matricular na escola e que isso seria um “crime”: “A tendência é só piorar com esse governo comunista que amaria controlar a vida de todo mundo.” Jandira, então, reclama: “Cadê os direitos humanos? Só servem para defender bandido? E o direito individual de cada pessoa onde fica? Não se manda mais nem no próprio corpo!? Cada dia mais revoltada.”
O trecho acima retirado por nós do diário de campo serve como ilustração da reconfiguração da cultura de vacinação, especialmente a infantil, na sociedade brasileira contemporânea. De nação considerada como exemplo de vacinação em todo o mundo, o Brasil registrou em 2022 os piores índices de cobertura vacinal dos últimos 30 anos, com a preocupação do retorno de doenças consideradas erradicadas, como a poliomielite (Cardoso; Lerner, 2023CARDOSO, J.; LERNER, K. Protegendo os inocentes: discursos antagônicos à vacinação infantil contra covid-19. In: MALINVERNI, C. et al. (org). Desinformação e covid-19: desafios contemporâneos na comunicação e saúde. São Paulo: Instituto de Saúde, 2023. p. 192-221.).
Os índices de cobertura vacinal têm apresentado queda em vários países e isso pode ocorrer por diferentes razões. No Brasil, destacam-se o desconhecimento da importância da vacinação, a hesitação em vacinar, as falsas notícias disseminadas nas mídias sociais sobre os supostos malefícios que as vacinas podem provocar à saúde, o desabastecimento parcial de alguns produtos e os problemas operacionais para a execução adequada da vacinação, incluindo o apropriado registro dos dados até a dificuldade de acesso da população à unidade de saúde (Domingues et al., 2020DOMINGUES, C. M. A. S. et al. 46 anos do Programa Nacional de Imunizações: uma história repleta de conquistas e desafios a serem superados. Cadernos de Saúde Pública, [s. l.], v. 36, n. 2, e00222919, 2020.). Esses fatores se somam às consequências ocasionadas pela Emenda Constitucional nº 95, aprovada em 2016, que congelou os gastos públicos por 20 anos, e pela própria pandemia de Covid-19, que trouxe medidas de distanciamento social e sobrecarga não apenas do Sistema Único de Saúde (SUS), mas também dos profissionais que nele atuam (Cardoso; Lerner, 2023CARDOSO, J.; LERNER, K. Protegendo os inocentes: discursos antagônicos à vacinação infantil contra covid-19. In: MALINVERNI, C. et al. (org). Desinformação e covid-19: desafios contemporâneos na comunicação e saúde. São Paulo: Instituto de Saúde, 2023. p. 192-221.). Cabe mencionar que a condução da pandemia pelo ex-presidente Jair Bolsonaro também pode ter contribuído para a diminuição da cobertura vacinal. Com base em uma lógica neoliberal e pautado por uma prática que pode ser classificada como populismo anticientífico,3
3
Com base em Laclau (2013; Laclau; Mouffe, 1985), compreendemos que Bolsonaro se aproxima de um conceito de populismo menos ligado à formalização retórica do líder, mas fortemente relacionado às suas marcas discursivas e aos anseios da população, considerados como demandas. Nesse sentido, Waisbord (2018) sugere a existência de uma afinidade entre o populismo contemporâneo e a comunicação da pós-verdade (D’Ancona, 2018), em que políticos populistas surgem como sintoma dessa consolidação. Assim, o populismo contemporâneo defende achados científicos controversos, apostando no discurso de que a ciência que ele defende é a verdadeira. Acreditamos que a ciência que o ex-presidente defende se vincula a um ideal popperiano, e de ciência pura (Edler Duarte; Benetti, 2022) e desinteressada.
Bolsonaro seguiu os passos do ex-presidente americano Donald Trump e traçou três linhas de ação contra a doença: 1) relaxamento das medidas de isolamento em prol da economia; 2) incentivo ao “tratamento precoce” com o uso de medicamentos sem comprovação científica; e 3) vacinação não compulsória contra a Covid-19, visando a liberdade individual (Monari et al., 2021MONARI, A. C. et al. Disputas narrativas e legitimação: análise dos argumentos de Bolsonaro sobre vacinação contra Covid-19 no Twitter. Liinc em Revista, [s. l.], v. 17, e5707, 2021.). Bolsonaro e seus apoiadores se mostraram reticentes em relação à vacinação ao longo da crise sanitária. Ele chegou a dizer, sobre a vacina da Pfizer, que não havia garantia de segurança sobre os seus efeitos colaterais e esse, inclusive, teria sido um dos motivos da demora da assinatura dos contratos de aquisição das vacinas com a fabricante, que chegou a ter mais de cem e-mails com propostas de oferta de venda de vacinas ignorados pelo governo (Souza, 2021SOUZA, T. Lista de e-mails da Pfizer ignorados pelo governo aumenta: são 101 tentativas. Correio Braziliense, Brasília, 18 jun. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/06/4932143-lista-de-e-mails-da-pfizer-ignorados-pelo-governo-aumenta-sao-101-tentativas.html . Acesso em: 21 dez. 2023.
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). O ex-presidente também colocou seu cartão de vacinação em sigilo, disse que não iria se vacinar, pois já tinha sido acometido pela doença e adquirido “imunidade natural”, e não iria vacinar a sua filha caçula, que na época tinha 11 anos (Cardoso; Lerner, 2023CARDOSO, J.; LERNER, K. Protegendo os inocentes: discursos antagônicos à vacinação infantil contra covid-19. In: MALINVERNI, C. et al. (org). Desinformação e covid-19: desafios contemporâneos na comunicação e saúde. São Paulo: Instituto de Saúde, 2023. p. 192-221.).
Embora o governo federal, sob a nova gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tenha contabilizado um aumento nas coberturas vacinais de oito imunizantes recomendados no calendário infantil entre janeiro e outubro de 2023 (Brasil […], 2023BRASIL reverte tendência de queda nas coberturas vacinais e oito imunizantes do calendário infantil registram alta em 2023. Ministério da Saúde, Brasília, 19 dez. 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/brasil-reverte-tendencia-de-queda-nas-coberturas-vacinais-e-oito-imunizantes-do-calendario-infantil-registram-alta-em-2023 . Acesso em: 21 dez. 2023.
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), os números em relação à vacinação infantil contra a Covid-19 ainda são preocupantes. O boletim do Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Centro Universitário Arthur de Sá Earp Neto (Unifase), demonstrou em agosto de 2023 que apenas 11,4% das crianças entre 6 meses e 5 anos de idade tinham tomado as duas doses de vacina contra Covid-19 (Boccolini, 2023BOCCOLINI, C. Boletim Observa Infância de 09 de agosto de 2023. [S. l.]: Observa Infância, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/bol_observainfancia_-_analise_menores_5anos_covid-19.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
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). O Boletim InfoGripe, também da Fiocruz, mostrou em novembro de 2023 que cerca de 15% dos novos casos semanais de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por Covid-19 ocorrem em crianças de 0 a 4 anos (Resumo […], 2023RESUMO do Boletim InfoGripe: Semana Epidemiológica (SE) 44 2023. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2023. Disponível em: Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/sites/agencia.fiocruz.br/files/u34/resumo_infogripe_2023_44_1.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
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). Diante desses números, a atual ministra da Saúde, Nísia Trindade, defende a inclusão da vacina contra Covid-19 para crianças de 6 meses a 5 anos no Programa Nacional de Imunização (PNI). Ela participou em 28 de novembro de 2023 de uma audiência pública da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados a convite de oito legisladores, sendo que a maioria dos parlamentares que fizeram o convite é contrária à obrigatoriedade do imunizante para o público infantil e fazem parte da oposição política ao atual governo (Neves, 2023NEVES, M. Oposição critica vacinação de crianças contra Covid em debate com ministra da Saúde. Agência Câmara Notícias, Brasília, 28 nov. 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1020611-oposicao-critica-vacinacao-de-criancas-contra-covid-em-debate-com-ministra-da-saude/ . Acesso em: 18 dez. 2023.
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).
É interessante notar que parte dos argumentos desses mesmos legisladores contra a vacinação é semelhante ao encontrado por nós em pesquisa realizada em diferentes campos, seja nos próprios comentários do vídeo da audiência veiculado no YouTube, em canais de informação sobre Covid-19 no Telegram que discutem a temática ou em perfis de influenciadores médicos no Instagram, como pediatras que produzem conteúdos sobre saúde e infância. Eles ainda encontram eco na forma como o personagem considerado como símbolo da vacinação infantil no Brasil, o Zé Gotinha, vem sendo representado em diferentes mídias e percebido pela população.
Na semana posterior à audiência, o pesquisador Malini (2023)MALINI, F. Ao menos no Telegram, o mov antivaxx não apenas aumentou no Brasil, como tb se diversificou […]. Vitória, 11 dez. 2023. Twitter: @fabiomalini. Disponível em: Disponível em: https://twitter.com/fabiomalini/status/1734269292227510581 . Acesso em: 28 dez. 2023.
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divulgou dados preliminares de um estudo sobre o movimento antivacina e as plataformas digitais, conduzido pelo Laboratório de Internet e Ciência de Dados (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que constata que os exemplos e fatos utilizados pela oposição política para negar a imunização contra Covid-19 durante a audiência eram cópias literais de mensagens que circularam em canais e grupos do Telegram. A partir disso, ele afirma que o perfil do movimento antivacina apresentou uma mudança em 2022 por causa do ano eleitoral, com os conteúdos dos canais e grupos se conectando às disputas políticas do período, o que acabou ligando o movimento à defesa das ações promovidas pelo governo Bolsonaro. Em 2023, no entanto, a dinâmica eleitoral desapareceu e os conteúdos antivacinação passaram a conter um viés mais conspiracionista e noticioso, emulando o jornalismo e a comunicação científica, a partir do uso de artigos científicos de revistas de baixo impacto para noticiar informações sobre vacinas. Segundo Malini (2023)MALINI, F. Ao menos no Telegram, o mov antivaxx não apenas aumentou no Brasil, como tb se diversificou […]. Vitória, 11 dez. 2023. Twitter: @fabiomalini. Disponível em: Disponível em: https://twitter.com/fabiomalini/status/1734269292227510581 . Acesso em: 28 dez. 2023.
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, a hesitação vacinal tende a assumir cada vez mais a forma de uma conversa digital conspiracionista, pautada pelo medo da “reação adversa”, que é delineada pela influência de profissionais de saúde ultraconservadores - e nós também diríamos, apoiadores das políticas de extrema direita, cuja principal figura política ainda é Bolsonaro.
Diante disso, nós entendemos que esses conteúdos refletem o cenário de conflitos e disputas sobre formas de validação da informação científica atribuídas ao que tem sido chamado de pós-verdade4 4 Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alcunhou o termo “infodemia”, que, fazendo alusão à pandemia, consiste em uma nova forma de produção e compartilhamento de informações, ou seja, foi observado um aumento considerável no volume de informações associadas a um assunto específico, que pode se multiplicar rapidamente em um curto período devido a um determinado evento e, principalmente, com o auxílio de plataformas (Organização Pan-Americana da Saúde, 2020). Segundo a instituição, essa situação de excesso de informações, algumas precisas e outras não, pode tornar complicada a missão de encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis no momento em que se necessita delas. (D’Ancona, 2018D’ANCONA, M. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. Barueri: Faro Editorial, 2018.), que ocorre em um ambiente de contestação e ataque às instituições epistêmicas consideradas consolidadas através de um sistema político democrático-liberal (Oliveira; Gonçalves; Kant de Lima, 2022OLIVEIRA, T.; GONÇALVES, R. A.; KANT DE LIMA, R. Apresentação: a ciência em conflitos e a crise institucional e epistêmica no Brasil. In: OLIVEIRA, T.; GONÇALVES, R. A.; KANT DE LIMA, R. (org.). Ciência em conflitos: negacionismo, desinformação e crise democrática. Rio de Janeiro: Autografia, 2022. p. 9-28.).
Oliveira, Gonçalves e Kant de Lima (2022)OLIVEIRA, T.; GONÇALVES, R. A.; KANT DE LIMA, R. Apresentação: a ciência em conflitos e a crise institucional e epistêmica no Brasil. In: OLIVEIRA, T.; GONÇALVES, R. A.; KANT DE LIMA, R. (org.). Ciência em conflitos: negacionismo, desinformação e crise democrática. Rio de Janeiro: Autografia, 2022. p. 9-28. citam que há uma superabundância informacional, e nela, instituições científicas, cientistas e divulgadores de ciência, políticos, organizações governamentais e não governamentais, além de muitos outros atores, vão muitas vezes de encontro ao conhecimento científico e disputam o espaço digital na disseminação de narrativas sobre ciência. De um lado, instituições, como a ciência e o jornalismo, buscam formas de manter sua autoridade, por meio de campanhas e discursos de legitimação e reforço de seus papéis sociais como produtores de verdade. De outro, aparece a instrumentalização política sobre a ciência, que ocorre a partir de disputas sobre a regulamentação e criminalização das notícias falsas, judicializando a questão da circulação da informação e colocando em evidência o debate sobre os limites entre liberdade de expressão, desinformação e discurso de ódio.
O nosso estudo se centra, justamente, nesse contexto de disputas pela informação e pelo que é considerado verdade em relação à vacinação infantil contra Covid-19, especialmente nas redes sociais digitais. Nos perguntamos, então, quais foram os argumentos utilizados pelas pessoas para questionar a vacina? Qual é a percepção dos indivíduos em relação à segurança e os riscos apresentados pelo imunizante? Como se dá a reconfiguração da cultura da vacinação infantil no Brasil? E como isso acaba reverberando em outras instâncias da vida social, como a constituição da família, o cuidado com as crianças e as visões de direitos e liberdade?
O objetivo deste trabalho é, portanto, observar, a partir da etnografia em ambientes digitais, os processos de reconfiguração e percepção da vacinação infantil contra Covid-19 e o cuidado da criança no contexto pós-pandemia. A etnografia em ambientes digitais concede ferramentas que permitem a junção de pesquisa em ambientes digitais e não digitais, nesse caso, as controvérsias (Latour, 2016LATOUR, B. Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34, 2016.) se apresentam como um dispositivo teórico-metodológico interessante para suplantar fronteiras entre diferentes campos. Elas nos permitem observar dispositivos de justificação e construção de críticas (Thévenot, 2016THÉVENOT, L. La acción en plural: una introducion a la sociologia pragmática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2016.), relações de poder, posições institucionais, alianças, entre outras questões que fora delas seriam mais difíceis de serem observadas. Por isso a performance, a dramaticidade, os sentidos atribuídos aos objetos e às categorias são fontes imprescindíveis para a análise de uma controvérsia. A etnografia em ambientes digitais possibilita a observação em fluxo, sendo que, ao escolher um tema, utilizamos como principal fio condutor as hashtags, que funcionam como uma ferramenta de comunicação, e que pode envolver distintas redes e plataformas digitais, concedendo fluidez ao processo sob análise. No trabalho de campo mobilizamos duas técnicas desse tipo de etnografia: 1) a perambulação, que se dispõe seguir o fluxo das discussões a partir das hashtags em diferentes espaços; e 2) o acompanhamento, que se debruça sobre os perfis escolhidos costurando suas interações em diferentes redes, e os grupos em plataformas de comunicação (Leitão; Gomes, 2017LEITÃO, D. K.; GOMES, L. G. Etnografia em ambientes digitais: perambulações, acompanhamentos e imersões. Antropolítica, Niterói, n. 42, p. 41-65, 2017.).
A controvérsia nos permite levar em consideração as perspectivas conflitantes e as alianças realizadas para fazer valer e atribuir legitimidade aos argumentos que dão sentido a determinado objeto em disputa. Para esse artigo, tomamos como ponto de partida a vacinação contra Covid-19 em crianças porque observamos que o processo de produção de críticas colocou em evidência novas formas de justificação que fundamentam a decisão de imunizar ou não uma criança. Nesse sentido, traremos alguns elementos de nossa incursão etnográfica que lança luz sobre os discursos em relação à vacinação infantil contra Covid-19, observando diferentes espaços e grupos, e levando em consideração as mudanças nos últimos anos da divulgação do PNI. Contudo, antes falaremos um pouco sobre algumas características metodológicas de nossas pesquisas.
Um dos campos trabalhados neste artigo está situado em um ambiente contestado (Faust; Pfeifer, 2021FAUST, L.; PFEIFER, S. Dark ethnography? Encountering the ‘uncomfortable” other in anthropological research: introduction to this special section. Zeitschrift für Ethnologie, [s. l.], v. 146, p. 81-90, 2021.), que é aquele em que os nossos interlocutores têm pensamentos, crenças e visões de mundo radicalmente diferentes das nossas. Esse tipo de campo nos coloca questões complexas importantes sobre dilemas éticos, morais e emocionais - que, vale ressaltar, estão presentes em muitos temas de pesquisa, mas que quando realizados com interlocutores que podem ser denominados como outros desconfortáveis (Shoshan, 2015SHOSHAN, N. Más allá de la empatía: la escritura etnográfica de lo desagradable. Nueva Antropología, [s. l.], v. 28, n. 83, p. 147-162, 2015.) se tornam ainda mais desafiadores. Faust e Pfeifer (2021)FAUST, L.; PFEIFER, S. Dark ethnography? Encountering the ‘uncomfortable” other in anthropological research: introduction to this special section. Zeitschrift für Ethnologie, [s. l.], v. 146, p. 81-90, 2021. explicam que fazer uma pesquisa antropológica com os chamados outros desconfortáveis traz dilemas metodológicos específicos, como acesso ao campo, posicionamento do pesquisador durante todo o processo da pesquisa, proximidade e distância com os seus interlocutores, legalidade e dimensões afetivas, emocionais e corporais.5 5 Há décadas antropólogos têm estudado temas desconfortáveis, como práticas consideradas marginais e grupos violentos. A novidade está na legitimidade que algumas dessas perspectivas ganharam no âmbito federal durante o governo do ex-presidente Bolsonaro. O desconforto também surge porque esses grupos cresceram e se fortaleceram nas redes sociais digitais.
Participar do que se investiga envolve, no mesmo gesto, a construção de outro modo de observar, e de uma partilha da investigação com os interlocutores. A participação, em contiguidade com a observação e desafiando-a constantemente, constrói uma comunicação polifônica com os interlocutores, dando ensejo a um texto também urdido por multiplicidades. Na confecção do trabalho de campo, o etnógrafo não sente como o outro, mas ele sente o outro e busca compreendê-lo.
Relativizar é dar atenção às diferenças culturais (Abu-Lughod, 2012ABU-LUGHOD, L. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 451-470, 2012.), entendendo seu ponto de vista, suas emoções, moralidades e práticas culturais em seu contexto de expressão, como atos pragmáticos que criam realidades e relações sociais. Pinheiro-Machado e Scalco (2021)PINHEIRO-MACHADO, R.; SCALCO, L. Humanising fascists? Nuance as an anthropological responsibility. Social Anthropology, [s. l.], v. 29, n. 2, p. 329-372, 2021. afirmam que isso não implica que nos identifiquemos de modo unívoco, mas demanda a criação de estratégias para que possamos percebê-lo e compreendê-lo em sua complexidade, mesmo que isso nos afete de maneira mais negativa. O risco desse exercício, como apontam as pesquisadoras, é perceber que esse outro é bastante semelhante ou próximo de nós. Por isso a vulnerabilidade também se torna uma ferramenta de compreensão. Ao nos aproximar cognitivamente, a fronteira entre desagradável e agradável é menos demarcada (Shoshan, 2015SHOSHAN, N. Más allá de la empatía: la escritura etnográfica de lo desagradable. Nueva Antropología, [s. l.], v. 28, n. 83, p. 147-162, 2015.), porque, ao compreendê-los, nos compreendemos, e é nesse lugar que também reside a dificuldade de lidar com esses outros que nos são desconfortáveis.
Os canais de informação sobre Covid-19 do Telegram analisados por nós (P & G, V19 e Canal José da Silva) se enquadram como campos contestados, pois eles apresentam pensamentos, crenças e visões de mundo diferentes das nossas, que somos pesquisadores e conduzimos pesquisas sobre a circulação de (des)informação científica em saúde no contexto da Covid-19. Questões como emoções, medos, conflitos éticos e morais estão presentes em nossas notas no diário de campo e nas reflexões do material produzido. É importante citar, por exemplo, o receio e a ansiedade que tivemos de ter nossas identidades expostas e divulgadas nos canais, das dificuldades encontradas por nós após o bloqueio de um dos canais em decorrência de seu envolvimento nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 em Brasília6 6 Em 8 de janeiro de 2023, manifestantes organizaram um ato antidemocrático em Brasília contra os resultados das eleições de 2022, que culminou na invasão e depredação das sedes do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto (Terrorismo […], 2023). O ato teria sido organizado por meio das mídias sociais, sobretudo WhatsApp e Telegram, fazendo com que o ministro do STF Alexandre de Moraes solicitasse o bloqueio de alguns desses grupos e canais, sendo o P & G um deles. e de como lidamos com a venda ilegal de passaportes sanitários no Telegram. Isso faz parte da pesquisa e é um componente importante do fazer etnográfico, está presente em diferentes temas, mas que acaba ganhando outros contornos quando acompanhamos interlocutores cismados - falaremos mais adiante sobre esse ponto.
Nossa entrada no campo, nesse momento, se deu a partir de uma pesquisa de palavras-chave sobre Covid-19 na ferramenta de busca da plataforma, que nos trouxe, primeiramente, o canal P & G (que até 2022 se chamava Med PV). Com o acompanhamento das mensagens, acabamos chegando ao V19, que reúne informações e testemunhos de pessoas que supostamente sofreram reações do imunizante. Por fim, este último canal acabou nos apontando para o fenômeno dos médicos influenciadores, que são profissionais que possuem canais de informação no Telegram. Dentre eles, encontramos o Canal José da Silva, cuja moderação é feita por um médico, que compartilha não apenas questões sobre saúde, mas também seus posicionamentos políticos. O nosso período de observação dos canais ocorreu entre janeiro e março de 2023.
Continuando a nossa incursão etnográfica a partir dessa controvérsia e com a necessidade de compreensão de outras dimensões, acabamos nos deparando com o nosso outro campo, que se dá a partir dos comentários do vídeo no YouTube (Ministra […], 2023MINISTRA da Saúde esclarece temas polêmicos - Fiscalização Financeira e Controle - 28/11/2023. Brasília: Câmara dos Deputados, 28 nov. 2023. 1 vídeo (3h21min46s). Publicado no canal Câmara dos Deputados. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EWWiq6fAex8 . Acesso em: 27 dez. 2023.
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) da audiência pública da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, realizada em 28 de novembro de 2023. Nossa observação dos comentários ocorreu nos dias 13 e 14 de dezembro de 2023, quando o vídeo acumulava mais de 45 mil visualizações, 1,3 mil likes e 555 comentários. Embora nosso foco no momento da análise tenha sido as declarações feitas pelos usuários sobre a vacinação infantil contra a Covid-19, o vídeo também acumulava comentários sobre outras temáticas, como pedidos de valorização do profissional bucal e elogios e ataques ao trabalho que vem sendo realizado pela ministra, especialmente acionando o seu currículo para fundamentar críticas direcionadas a ela. Junto a isso, para compreender por que as mudanças de percepção da adesão vacinal na arena pública vêm sendo mobilizadas em diferentes âmbitos, sobretudo pelo atual governo, nos debruçamos sobre a hashtag #ZéGotinhaVoltou, promovida pelo Ministério da Saúde. As imagens e afirmações que circulam sob essa nomenclatura podem nos informar acerca das estratégias e formas de agir do Estado quando percebida a manutenção do declínio da adesão vacinal em campanhas para crianças pós-pandemia.
Para além desta introdução e das considerações finais, o artigo está dividido em mais duas partes: na primeira, nós iremos abordar a construção da ideia da vacina contra Covid-19 como um experimento presente, especialmente, nos canais de informação sobre Covid-19 no Telegram e nos comentários da audiência pública da Câmara dos Deputados, o que demonstra como os argumentos antivacinação circulam em diferentes campos; e na segunda, nós analisaremos a figura do personagem Zé Gotinha como símbolo da cultura de vacinação no Brasil, desde a sua criação, seu “esquecimento” durante o governo Bolsonaro e o seu retorno em 2023, como uma forma de aumentar os índices de vacinação no país.
“Que vacina é essa?”: a construção da ideia da vacina contra Covid-19 como um experimento
Os canais de informação sobre Covid-19 no Telegram apresentam discussões sobre diferentes facetas da pandemia, desde a questão do distanciamento social (que eles julgam não ser necessário), a defesa do “tratamento precoce” da doença com o uso de hidroxicloroquina e ivermectina, a não utilização de máscaras faciais (os participantes dos grupos acreditam que as máscaras não protegem, pois o “vírus seria menor que as tramas do tecido em que elas são confeccionadas”) até a vacinação, seja adulta ou infantil. Em 2023, quando foi feita a etapa de observação dos canais, a vacinação infantil contra Covid-19 já estava acontecendo há um ano, porém ela ainda era assunto de intenso debate entre os membros dos canais, que buscavam informações sobre a real necessidade de vacinar seus filhos e, sobretudo, as possíveis reações que isso poderia acarretar. O caso citado na introdução, em que Rafael pedia conselhos para os demais usuários, já dá alguns indícios de como eles percebem a questão da vacinação infantil contra Covid-19. O comentário de que o “negócio de vacina está tão estranho” mostra como o imunizante (e a doença) foi e ainda continua sendo alvo de disputas informacionais, em que diferentes atores travam um embate pelo poder de dizer a verdade sobre o tema.
Outro elemento evidenciado a partir das falas apresentadas na introdução é o enquadramento da Covid-19 como um assunto político-partidário. Isso significa, segundo Recuero et al. (2021)RECUERO, R. et al. Desinformação, mídia social e Covid-19 no Brasil: relatório, resultados e estratégias de combate. [S. l: s. n.], 2021. Relatório de Pesquisa., que as questões relacionadas à mitigação da pandemia, sua gravidade e as vacinas são classificadas como uma questão político-partidária, em que é preciso adotar “um lado”, ao invés de serem debatidas como um problema de saúde pública, em que todos precisam cooperar. Podemos notar isso a partir das falas de Larissa, quando ela diz “meu corpo, minhas regras, ou a esquerda acha que isso só serve para aborto?”, e na de Pablo, quando ele afirma que “a tendência é só piorar com esse governo comunista que amaria controlar a vida de todo mundo”. Essas duas passagens fazem alusão ao atual governo do Brasil, cujo líder está filiado a um partido de esquerda, o PT (Partido dos Trabalhadores), que é considerado como oposição ao ex-presidente Bolsonaro.
Para os membros dos canais, a vacina contra Covid-19 consiste em um experimento, pois ela teria sido feita “às pressas” e sem passar por todos os procedimentos necessários para assegurar sua segurança e eficácia. Isso decorre de uma desconfiança produzida pela rapidez com que ela foi elaborada, mesmo que uma das técnicas utilizadas - como na Coronavac e Astrazeneca - sejam empreendidas desde antes desse momento. Cabe ressaltar que compreendemos o momento pandêmico como um evento crítico, que representa uma quebra do cotidiano, podendo ser decorrente de situações violentas que causam sofrimentos tidos como repentinos e inexplicáveis, e cujas implicações duradouras concedem forma às narrativas individuais e coletivas (Das, 1995DAS, V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. New Delhi: Oxford University Press, 1995.) - nesses eventos há diferentes temporalidades, que marcam a vida coletiva. Soma-se a celeridade na produção das vacinas à crítica dos reais interesses nesse trabalho coletivo, que concentram suas instituições científicas na produção do controle do vírus. Nesse caso, se as vacinas foram produzidas rapidamente, sua aplicação é lida como mais uma fase de sua confecção. Em um comentário no canal V19, Marina aborda justamente a questão da vacina como experimento:
Que vacina é essa que precisa de cinco doses em menos de dois anos? Se até a vacina da febre amarela tem validade de dez anos, que líquido é esse, que tecnologia nova é essa? Que estudo é esse? Será que são tão ignorantes que não veem a sede de políticos para injetarem algo é porque há algo muito duvidoso? Ainda mais no Brasil, que político sempre quis enriquecer às custas do povo e o único a defender a não obrigatoriedade da vacina foi massacrado e perseguido por políticos, pela mídia e pelos que têm a mente manipulada. Eu não vou tomar e que Deus me proteja até o fim.
Da mesma forma que a imunização contra o HPV (Saraiva, 2018SARAIVA, J. E. S. Minha filha, minhas regras: análise dos argumentos em um grupo online sobre a implantação da vacina contra o HPV no Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado em Informação e Comunicação em Saúde) - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2018.), a vacinação infantil contra Covid-19 é considerada como um experimento e aqueles que não querem se vacinar são tidos como “perseguidos” e “massacrados” - tal como citado acima por Marina, que faz referência ao ex-presidente, que defendia que as pessoas deveriam ter a liberdade de escolher se vacinar contra a Covid-19 ou não. A campanha de diversos grupos sociais conservadores contrários à vacina contra o HPV em 2014 foi muito amplificada pelas mídias sociais. Ela foi oferecida a crianças e adolescentes, primeiramente só para meninas na idade de 9 a 14 anos, mas, logo depois, também para meninos de 11 a 14 anos de todo o Brasil pelo SUS nas escolas, visando a prevenção de várias doenças causadas pelo vírus HPV, que é transmitido sexualmente. A ideia dos grupos contrários ao imunizante é que isso incentivaria crianças e adolescentes a iniciarem suas vidas sexuais precocemente; outros argumentaram riscos para a saúde pela vacina ser considerada “experimental”. Se, naquele contexto, as crianças e adolescentes do sexo feminino eram consideradas como “cobaias humanas”, atualmente todas as crianças ganham essa conotação e é preciso agir para protegê-las contra os interesses econômicos, especialmente da indústria farmacêutica, que teria o apoio da OMS, de cientistas, de autoridades sanitárias, de políticos e da mídia de vários países. Outros argumentos utilizados pelos usuários do Telegram contrários à vacina contra Covid-19 são o de que o produto não garante a imunidade, não impede a transmissão do vírus e pode provocar efeitos adversos graves, inclusive mortes (Cardoso; Lerner, 2023CARDOSO, J.; LERNER, K. Protegendo os inocentes: discursos antagônicos à vacinação infantil contra covid-19. In: MALINVERNI, C. et al. (org). Desinformação e covid-19: desafios contemporâneos na comunicação e saúde. São Paulo: Instituto de Saúde, 2023. p. 192-221.).
Supostos casos de reações adversas das vacinas são compartilhados a partir de testemunhos das próprias vítimas ou de terceiros. No vídeo da audiência pública da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, realizada com a participação da atual ministra da saúde e de alguns deputados federais, usuários se apropriaram do espaço de comentários do YouTube para contar sobre as adversidades ocorridas com eles ou com pessoas próximas após a imunização. Aparecida alega ter tido Covid e ter ficado com “todos os sintomas da Covid longa”, apesar de ter tomado “duas doses”. Fabiana chama, por outro lado, a própria ministra de “mentirosa” quando ela afirma que o imunizante é seguro, pois ela teria uma amiga “sequelada” após ter tomado três doses da vacina contra Covid-19. Já Beth fala que gostaria de dizer para a ministra que tomou duas doses de Coronavac e que está “em cima de uma cama com uma doença autoimune” e seu marido, na terceira dose, teria morrido de Covid em 12 dias.
Isso demonstra como o produtor de conhecimento, no contexto de um outro regime de verdade, deixa de ser aquele que estabelece com o objeto uma relação de distanciamento metodológico, como prega a própria ciência, para ser a testemunha, aquela que adquire autoridade ao vivenciar a realidade com a observação de sua própria experiência ou a de outras pessoas (Sacramento; Paiva, 2020SACRAMENTO, I.; PAIVA, R. Fake news, WhatsApp e a vacinação contra febre amarela no Brasil. Matrizes, [s. l.], v. 14, p. 79-106, 2020.). O testemunho se coloca, portanto, como um verdadeiro imperativo social, que se estabelece como uma necessidade interior, pois emprega outro tipo de relação com a verdade, que não é com a evidência ou a pretensa objetividade do conhecimento científico, mas baseada em valores como sinceridade e autenticidade.7 7 Na história das ciências o testemunho tem sido objeto de análise, já que para construção do fato científico, principalmente em fins do século XVII, essa prática era necessária para atestar a verdade do “fato” (Pestre, 1996).
O compartilhamento de supostos relatos de reações adversas da vacina contra Covid-19 também serve como um alerta para os pais do que pode acontecer com os seus filhos se eles forem imunizados. Em comunidades, como os próprios canais de informação do Telegram, usuários buscam se unir a partir de emoções, como o medo de algo acontecer com seus próprios filhos. Da mesma forma que o HPV (Saraiva, 2018SARAIVA, J. E. S. Minha filha, minhas regras: análise dos argumentos em um grupo online sobre a implantação da vacina contra o HPV no Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado em Informação e Comunicação em Saúde) - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2018.), os membros citam como argumentos para não vacinar suas crianças o medo das sequelas e o terror de que os filhos carreguem essas consequências para o resto de suas vidas.
Eles se apoiam em uma ideia de fragilidade e inocência infantil, e defendem que os pais seriam os únicos responsáveis pela saúde das crianças (Cardoso; Lerner, 2023CARDOSO, J.; LERNER, K. Protegendo os inocentes: discursos antagônicos à vacinação infantil contra covid-19. In: MALINVERNI, C. et al. (org). Desinformação e covid-19: desafios contemporâneos na comunicação e saúde. São Paulo: Instituto de Saúde, 2023. p. 192-221.), não cabendo ao Estado esse papel. Isso pode ser observado a partir de uma discussão iniciada em março de 2023 no Canal José da Silva, no Telegram, quando algumas mães pediram sugestões ao médico sobre quais medidas elas deveriam tomar após terem sido chamadas a comparecer no conselho tutelar de suas cidades por não terem vacinado seus filhos. Uma delas compartilhou sua própria experiência visando incentivar outras mães a seguirem o mesmo caminho: “Ano passado fui chamada na escola por causa desses maledetas. Expliquei que não vacinaria meu filho e me disseram que iriam notificar o conselho tutelar, pois era a ordem que deveriam seguir. Até agora nada! Meus filhos não serão cobaias.”
A fiscalização de não vacinados pelos conselhos tutelares foi tema de outro debate, dessa vez no P & G. Fabíola diz que, se é necessário estar vacinado para frequentar a escola, é melhor não estudar. Fátima concorda com esse pensamento e afirma que “nós, como cidadãos de bem, não deveríamos aceitar isso. Prefiro deixar meu filho(a) fora da escola do que vaciná-lo”.
Em outro momento, o mesmo canal trouxe comentários de pais preocupados com as reações adversas da vacina contra Covid-19 e o temor que ela passasse a ser obrigatória em todo o país por meio do PNI. Eles trocaram ideias e experiências sobre o que poderiam fazer para que seus filhos pudessem continuar frequentando a escola, mesmo sem serem vacinados. Grande parte das respostas defendeu o homeschooling como uma opção para quem não quer se submeter ao imunizante.
Jussara: Minhas filhas estudam em casa e aqui não tomamos vacina nenhuma mais desde 2019. Tive minha bebê em casa, em agosto de 2022, e fiz meu próprio parto. Ela está forte, saudável e com o DNA intacto. Fujam do sistema.
José [em resposta à Jussara]: Se quiser, pode me responder no privado, mas pode passar mais detalhes para ensinar as crianças em casa. Qual a capacitação que os pais precisam? Enfim, é uma alternativa. Acho que deveríamos ter um grupo de estudos para isso, nem que fosse uma escola online para dar suporte.
Paulina: Fui fazer a matrícula da minha filha e a secretária da escola não quis porque ela não tomou a vacina. O que posso fazer?
Silmaria [em resposta à Paulina]: Tira da escola.
Simone [em resposta à Paulina]: Tenta conseguir atestado médico.
Paulina [em resposta à Simone]: Vou tentar. Obrigada. Pois é, um absurdo isso. Eles querem impor uma situação em que a própria pessoa tem o direito de escolha. Esses bandidos são vermes da sociedade.
Josefina: Não caia nessa! A criança pertence à família. O Estado não pode tirar uma criança de uma família por um motivo desses. Isso é o que eles querem que a gente acredite para se curvar e dar a vacina. Haveremos de encontrar escolas de direita onde poderemos ter paz. Josefina [em resposta à Paulina]: Denuncia. Faz B.O. [boletim de ocorrência] dizendo que estão impedindo o acesso ao direito da escola assegurado em lei por uma regra independente e sem fundamentação legal. Ou troca de escola, o que seria a minha escolha.
Para muitos membros dos canais sobre Covid-19 do Telegram, a criança não pertence ao Estado, mas à família e, sobretudo, aos pais. Sendo assim, o Estado não pode impor o que os responsáveis por aquela criança ou adolescente devem fazer em relação à saúde, educação, bem-estar e segurança, etc. São os pais que devem decidir, por exemplo, se querem ou não vacinar seus filhos. Eles ignoram ou não se apercebem, no entanto, que a vacinação, através da imunidade de grupo, é uma intervenção pública que protege comunidades, incluindo aqueles que não são ou não podem ser vacinados, além de não levar em consideração os próprios direitos e desejos das crianças/adolescentes (Camargo Júnior, 2020CAMARGO JÚNIOR, K. R. Lá vamos nós outra vez: a reemergência do ativismo antivacina na internet. Cadernos de Saúde Pública, [s. l.], v. 36, sup. 2, e00037620, 2020.).
De direito coletivo, a vacina passa a ser considerada então como direito individual, sendo o próprio indivíduo responsável por decidir se quer ou não se vacinar e se quer ou não vacinar seus dependentes. E como eles estão imersos em uma comunidade cujo principal ícone político é Bolsonaro, fica evidente que os exemplos dados pelo ex-presidente são levados em consideração quando o assunto é saúde. Se Bolsonaro, que era o líder da nação, não vacinou a própria filha contra a Covid-19, por que eles deveriam vacinar?
A ênfase dos antivacinas na escolha e no controle doméstico (através dos direitos parentais) pode ser vista como uma construção tanto dos princípios neoliberais conservadores como das filiações e crenças político-ideológicas. É comum ser invocada a retórica do direito à escolha como uma forma de expressar convicções de que a inclusão da vacina contra Covid-19 para crianças é uma maneira de os pais, mães e responsáveis perderem o poder de escolha sobre a saúde dos próprios filhos e o controle sobre seus próprios corpos e vidas domésticas.
O contexto da vacinação infantil contra Covid-19 se encontra, portanto, em uma ambivalência de risco (Lerner; Sacramento, 2012LERNER, K.; SACRAMENTO, I. Ambivalências do risco: a produção da confiança e da desconfiança na cobertura de O Estado de S. Paulo da Campanha Nacional de Vacinação contra a Influenza H1N1. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 188, p. 39-60, 2012.; Saraiva, 2018SARAIVA, J. E. S. Minha filha, minhas regras: análise dos argumentos em um grupo online sobre a implantação da vacina contra o HPV no Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado em Informação e Comunicação em Saúde) - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2018.). A vacina é importante e protege as pessoas contra a doença, mas também pode trazer riscos à saúde, especialmente pelas suas reações adversas, que são compartilhadas, sobretudo, nas redes sociais digitais. Nesse modo, se descola da evitação do risco de adoecer através da vacina para a compreensão de que o risco é a vacina, que ela é mais perigosa do que a própria doença. No caso da Covid-19, a mídia seria a responsável por pretensamente estar escondendo essas supostas reações e por alegar que o imunizante é seguro, em conluio com o Estado brasileiro e outros organismos internacionais, fazendo com que as pessoas se vacinem e os lucros da indústria farmacêutica aumentem. Isso demonstra como a resistência à vacinação na contemporaneidade tem um componente antiestablishment (Camargo Júnior, 2020CAMARGO JÚNIOR, K. R. Lá vamos nós outra vez: a reemergência do ativismo antivacina na internet. Cadernos de Saúde Pública, [s. l.], v. 36, sup. 2, e00037620, 2020.), em que as pessoas passam a cismar (Mota, 2018MOTA, F. R. Do indivíduo blasé aos sujeitos cismados: reflexões antropológicas sobre as políticas de reconhecimento na contemporaneidade. Antropolítica, Niterói, n. 44, p. 124-148, 2018.; Mota; Kant de Lima, 2022MOTA, F. R.; KANT DE LIMA, R. Pega na mentira: notas antropológicas sobre tempos inquietantes. Reciis: revista eletrônica de comunicação, informação e inovação em saúde, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 227-246, 2022.) com as informações provenientes de fontes consideradas tradicionais, como a ciência e o jornalismo. Soma-se a isso uma forte crença no direito à liberdade individual.
A cisma é a maneira pela qual lidamos com as pessoas e as instituições. Ela organiza a relação de confiança na sociedade brasileira, e está relacionada à tradição inquisitorial (Kant de Lima, 1989KANT DE LIMA, R. Cultura jurídica e práticas sociais: a tradição inquisitorial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 4, n. 10, p. 65-84, 1989.), que se configura como um dos pilares da construção da verdade no espaço público brasileiro (Mota; Kant de Lima, 2022MOTA, F. R.; KANT DE LIMA, R. Pega na mentira: notas antropológicas sobre tempos inquietantes. Reciis: revista eletrônica de comunicação, informação e inovação em saúde, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 227-246, 2022.). Uma de suas características é a presunção da culpa, diferenciando-se de outras culturas jurídicas e burocráticas do mundo ocidental que adotam a presunção de inocência. Nesse contexto, a pessoa ou instituição sujeita à suspeição precisa provar sua inocência, invertendo a lógica comum em que cabe ao acusador demonstrar a suspeição. Essa dinâmica permeia a sociedade brasileira de maneiras diversas, constituindo um valor fundamental nas relações diádicas, moldando a forma como nos relacionamos uns com os outros e estabelecemos confiança nas interações sociais. É nesse ponto que essa lógica se entrelaça com a noção de cisma, tornando-se um componente central na construção e, ao mesmo tempo, na diferenciação da confiança.
E ela não tem a ver com a desconfiança porque não há muito lugar para esse valor na sociedade brasileira, pois é própria de espaços em que os indivíduos são vistos como competentes para participar ativamente da arena pública. Nesses espaços, há a construção de consenso, eliminando a necessidade de um árbitro para decidir qual narrativa será verdadeira. A narrativa final é produto de um consenso. Na desconfiança a suspeita não é absoluta e é passível de ser negociada, por outro lado a racionalidade cismática (Mota; Kant de Lima, 2022MOTA, F. R.; KANT DE LIMA, R. Pega na mentira: notas antropológicas sobre tempos inquietantes. Reciis: revista eletrônica de comunicação, informação e inovação em saúde, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 227-246, 2022.) guia o indivíduo para o isolamento, consolidando sua suspeita de maneira inabalável, e nenhuma conversa terá efeitos sobre o objeto da cisma, ela não é modificada e se petrifica. Essa racionalidade se manifesta também na forma como os fatos se apresentam, não havendo espaço para a negociação do ponto de vista, pois o objeto da cisma se ensimesma, e, a partir dali, se fecha no interior daquilo em que se acredita, resultando em uma espécie de encapsulamento. Portanto, na esfera pública brasileira, a confiança transmuta-se em cisma, causando uma quebra nas relações de confiança típicas de uma sociedade moderna, uma vez que aqui são outras lógicas que configuram nossa maneira de nos relacionarmos com o outro. A cisma, então, estrutura a produção da verdade e está intimamente relacionada à desinformação. Ela fica ainda mais evidente e, de certo modo, se dissemina graças às mudanças digitais, que concede outros contornos a essa maneira de agir e construir verdades no espaço público brasileiro. Tudo fica mais visível, mais público e mais acelerado. O digital estimula e reforça a cisma, pois publiciza para uma quantidade maior de pessoas a suspeita e de quem se suspeita, contribuindo para o aumento do número de adeptos e promovendo um sentimento de pertença entre aqueles que acreditam e suspeitam a mesma coisa.
Os discursos antivacinação em suas conexões com a circularidade social promovida pela internet não chegam a ser uma novidade no Brasil. Temos notado, em análises pontuais pretéritas - uma na pandemia de Influenza H1N1 (Sacramento; Lerner, 2015SACRAMENTO, I.; LERNER, K. Pandemia e biografia no jornalismo: uma análise dos relatos pessoais da experiência com a Influenza H1N1 em O Dia. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 22, p. 55-70, 2015.), outra no contexto da vacinação contra o HPV (Sacramento, 2018SACRAMENTO, I. A saúde numa sociedade de verdades. Reciis: revista eletrônica de comunicação, informação e inovação em saúde, [s. l.], v. 12, n. 1, p. 4-8, 2018.) e em mais uma na pandemia de Covid-19 (Monari; Santos; Sacramento, 2020MONARI, A. C.; SANTOS, A.; SACRAMENTO, I. Covid-19 and (hydroxy)chloroquine: a dispute over scientific truth during Bolsonaro’s weekly Facebook live streams. Journal of Science Communication, [s. l.], v. 19, p. A03, 2020.) -, que não há uma tendência de desconsideração dos procedimentos de validação científica inventados na modernidade em prol da observação corporificada conferida pela experiência pessoal. Tem havido, na realidade, um incremento do condicionamento ou submissão da aceitação do conhecimento científico à experiência pessoal cotidiana no que se refere a valores, crenças e ideologias compartilhados coletivamente como balizadores fundamentais da definição do verdadeiro, de quem pode dizer o verdadeiro e no que acreditar como verdadeiro. Mas qual é exatamente a novidade nisso? As informações científicas passam ao longo da história por inúmeras contestações, conflitos, hesitações e resistências; e, além disso, concorrem, em diferentes momentos, com narrativas formadoras de sensos comuns e tantos outros discursos concorrentes. Considerando o senso comum como uma sabedoria coloquial, que avalia ou julga a realidade com base na experiência pessoal e coletiva empíricas, é possível observar um conjunto mais ou menos organizado de pensamento deliberado e não meramente como algo que aprendemos casualmente. Com o passar dos anos, opiniões tomadas da experiência vão se tornando ideias afirmadas e confirmadas pela própria experiência vivida. Vai-se, então, estruturando um catálogo de argumentos solidificados pela vivência social que se baseia no próprio resultado do viver interpretado como repetido e esperado de certas coisas. O senso comum tem como fundamento “a vida como um todo” e “o mundo como sua autoridade” (Geertz, 1998GEERTZ, C. O dilema do antropólogo entre “estar lá” e “estar aqui”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 7, n. 7, p. 205-235, 1998., p. 114). Existe, assim, como um “emaranhado de práticas herdadas, crenças aceitas e juízos habituais” (Geertz, 1998GEERTZ, C. O dilema do antropólogo entre “estar lá” e “estar aqui”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 7, n. 7, p. 205-235, 1998., p. 112).
No caso da vacinação no Brasil, como observa Chalhoub (2021)CHALHOUB, S. Vacina: história, ciência e negacionismo. Serrote, [s. l.], n. 39, 2021., há marcas expressivas na formação de um senso comum de resistência à imunização. Em que pese o movimento de reação contra a obrigatoriedade da vacina contra a varíola no começo do século XX - conhecido como Revolta da Vacina -, é preciso levar em consideração que “é comum que haja um percurso, às vezes longo e tortuoso, cheio de idas e vindas, entre determinada descoberta científica e a aplicação dela para beneficiar a população” (Chalhoub, 2021CHALHOUB, S. Vacina: história, ciência e negacionismo. Serrote, [s. l.], n. 39, 2021., p. 68). Sem a pressão dos movimentos sociais, da imprensa e dos políticos, “seria difícil imaginar que o benefício de certos avanços científicos se espraiasse além de setores sociais privilegiados para causar a grande transformação quanto à expectativa de vida que impacta agora a humanidade inteira” (Chalhoub, 2021CHALHOUB, S. Vacina: história, ciência e negacionismo. Serrote, [s. l.], n. 39, 2021., p. 68). Além disso, como ele insiste desde o seu estudo sobre a Revolta da Vacina, na historiografia sobre o tema, “os populares sempre reagem - resistem -, nunca agem, isto é, nunca se sabe exatamente que tipo de experiência histórica, de formas de entender o mundo e a sua situação de vida poderiam informar positivamente o movimento de luta contra a vacinação” (Chalhoub, 2021CHALHOUB, S. Vacina: história, ciência e negacionismo. Serrote, [s. l.], n. 39, 2021., p. 98-99). Sua análise expôs como as epidemias de varíola e a pouca difusão da vacina no país representavam uma imagem mundial de atraso ao progresso e à ideia de civilização almejada - logo, era necessário erradicar o vexame internacional. No entanto, muitos participantes da revolta lutavam pela defesa de suas próprias crenças, de suas práticas religiosas e pela inviolabilidade de suas tradições, e não somente contra a obrigatoriedade da vacina.
Talvez uma das maiores novidades desse processo sejam as redes sociais online. As comunidades antivacinas têm crescido constantemente há anos e agora exercem uma influência poderosa nas redes sociais, com a formação de grupos e comunidades em plataformas digitais. Com o acesso generalizado às mídias sociais, aumenta-se a facilidade com que a desinformação sobre as vacinas pode se espalhar (Goméz, 2018GOMÉZ, R. R. Os sentidos da antivacinação nas redes sociais e suas relações com o discurso dominante de imunização no Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado em Informação e Comunicação em Saúde) - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2018.).
Nesse contexto, entendemos que as redes sociais podem ser usadas para reunir pessoas muito diferentes na campanha antivacinação online, uma vez que podem congregar indivíduos de todo o espectro político e de diferentes áreas do mundo. Apesar das suas diferenças políticas e geográficas, esses atores encontraram um senso de comunidade e pertencimento ao usar as mídias sociais para se conectar com pessoas que compartilham suas crenças.
Mesmo assim, não é possível tomar como único, num país, ou globalmente, os movimentos antivacinação, até porque o que nos parece importante analisar são as especificidades locais e temporais das formas de hesitação vacinal. Isto é, apesar dos benefícios globalmente reconhecidos e difundidos da imunização, a hesitação em se vacinar é uma tendência crescente que tem sido associada ao ressurgimento de doenças imunopreveníveis. Por conta disso, este artigo leva em conta, certamente, que a confiança nas vacinas e a hesitação em se vacinar no Brasil está no quadro de um conjunto amplo de determinações sociais, de contextos de inúmeras crises, como a crise de confiança em certa ciência, a reconfiguração da autoridade declaratória da ciência, a consolidação da autoridade experiencial (baseada na experiência pessoal) em detrimento da autoridade experimental (centrada na pesquisa, na análise e no método científico), a crise do jornalismo de grandes corporações de comunicação como fonte legitimada privilegiada, as relações de credibilidade entre as esferas de governo e a sociedade civil, a institucionalização da cisma em relação à vacinação pelo governo Bolsonaro, o lugar da internet como fonte de informação sobre saúde e as possibilidades de expressão e circulação de dúvidas e contestações sobre as vacinas (Vasconcellos-Silva; Castiel, 2020VASCONCELLOS-SILVA, P. R.; CASTIEL, L. D. COVID-19, as fake news e o sono da razão comunicativa gerando monstros: a narrativa dos riscos e os riscos das narrativas. Cadernos de Saúde Pública, [s. l.], v. 36, n. 7, e00101920, 2020.).
Podemos falar de cultura de imunização?
O contexto pandêmico colocou sob (re)análise uma representação no âmbito da saúde pública: o Brasil é um país onde há uma cultura da imunização. O PNI foi criado há quase 50 anos, constituindo um orgulho nacional que se prestava, inclusive, como uma referência internacional devido à sua capilaridade e engajamento dos profissionais de saúde (Pinelli, 2023PINELLI, N. Conheça a história do Zé Gotinha: de ícone da vacinação a celebridade nacional. Instituto Butantan, São Paulo, 19 set. 2023. Disponível em: Disponível em: https://butantan.gov.br/noticias/conheca-a-historia-do-ze-gotinha-de-icone-da-vacinacao-a-celebridade-nacional . Acesso em: 29 dez. 2023.
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). Um símbolo dessa representação é justamente o Zé Gotinha, que nos últimos anos foi objeto de disputa no âmbito da política nacional. Criado por Darlan Manoel Rosa, a pedido do Ministério da Saúde com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Zé Gotinha tinha como objetivo colaborar com a comunicação entre o Estado e os pais na vacinação infantil, especialmente na campanha de erradicação da poliomielite em 1986 - já que o objetivo era extinguir o vírus até 1990. Para envolver ainda mais a população e as crianças, divulgando o recém-criado personagem, o Ministério da Saúde realizou um concurso entre as escolas públicas para a escolha do nome do mascote. As propostas foram enviadas através de cartas, que somaram mais de 11 milhões, e isso, segundo o criador, demonstrou o engajamento e a aderência do personagem, que acabou se transformando em um símbolo para a vacinação em crianças e na então erradicação da poliomielite em 1989. Costuma ser rápida a identificação do Zé Gotinha com as campanhas de imunização em crianças, e essa correlação tem fundamento, já que seu criador se baseou em um desenho em sequência que retrata uma menina andando, e, ao desenvolver seu esboço, acabou criando o personagem icônico.
Essa digressão é necessária para entendermos como se produz a representação de que o Brasil é o país da vacina e/ou da imunização, e como que diante da produção de incertezas e cismas foi se delineando a controvérsia sobre a vacinação infantil e a forma de gerir no âmbito federal. Assim que foram estabelecidas as negociações para dar início à campanha de vacinação contra a Covid-19, programada para janeiro de 2021, ocorreu um evento em 16 de dezembro de 2020 para lançamento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacina. Na ocasião, estavam presentes o ex-presidente Bolsonaro, o então Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e o Zé Gotinha, interpretado por alguém vestido com sua fantasia característica. A vestimenta exibia em seu rosto um pequeno tecido azul retangular, suscitando interpretações diversas: alguns associaram-no à máscara de proteção respiratória, enquanto outros o viram como uma espécie de mordaça (Assustado […], 2020ASSUSTADO? Zé Gotinha chama atenção dos brasileiros e vira meme nas redes. UOL, [s. l.], 16 dez. 2020. Disponível em: Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/16/memes-ze-gotinha.html . Acesso em: 26 dez. 2023.
https://noticias.uol.com.br/saude/ultima...
). Nesse momento já havia um discurso de retorno do personagem que costumeiramente tem sua imagem vinculada ao PNI, e está sempre presente nas cerimônias. Durante o evento, Bolsonaro segura o livro que contém o plano recém-lançado com uma mão e com a outra ele tenta cumprimentar o Zé Gotinha, que não corresponde ao gesto. Em vez disso, o personagem faz um aceno associado ao sinal de “ok” ou “legal”, levantando o polegar. Bolsonaro, então, decide abraçá-lo para tirar uma foto, e é a partir dessa interação que surgem diversas indagações sobre o motivo da recusa por parte do Zé Gotinha. Algumas pessoas atrelaram tal atitude ao fato de o ex-presidente negligenciar as medidas sanitárias, como uso de máscara e distanciamento social, e parabenizaram o personagem afirmando que ele estava correto, e queria dar o exemplo para os participantes do evento e aos telespectadores. Por outro lado, outras ponderaram que Zé Gotinha estava com o semblante triste e um tanto preocupado, e que na verdade poderia ter sido sequestrado, e essa aparição seria um pedido de socorro. No dia do evento, alguns comentários que circularam em uma postagem na página do jornal Sensacionalista8
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Esse jornal possui mais de 2 milhões seguidores no X, antigo Twitter, e brinca com as notícias do momento, muitas vezes as transformando em memes. A sua página contém a seguinte descrição: “O jornal isento de verdade”, e tem considerável repercussão nas redes sociais.
intitulada “Sumido há meses, Zé Gotinha faz aparição com mordaça e olhar assustado”, diziam o seguinte: “Pobre do Zé Gotinha, ele povoa nosso imaginário coletivo, representa a nossa aprovação à vacinação e está no meio dos negacionistas e antivacinas”, outro questionava o motivo da máscara, já que, se ele representa a imunização, não precisaria utilizá-la.
Em outro momento, Zé Gotinha esteve novamente presente no debate durante a pandemia de Covid-19, pois, sendo ele atrelado às campanhas de vacinação, seu sumiço, ou como foi nesse caso, seu pretenso esquecimento, foi relacionado à atenção dada pelo governo federal e pelo Ministério da Saúde ao processo de controle da pandemia. Esse episódio ocorreu um pouco depois do citado anteriormente, tratando-se agora de uma cerimônia em comemoração da chegada das primeiras doses do imunizante de Oxford/Astrazeneca. O evento foi transmitido ao vivo por alguns canais de televisão, como GloboNews. A impressão causada pelo vídeo é que a transmissão ocorreu antecipadamente, pois o personagem estava parado em pé ao lado do púlpito com microfone, que estava ainda sendo testado para posteriores declarações que seriam concedidas por Nísia Trindade, à época, presidente da Fiocruz, e por Pazuello. No aeroporto internacional do estado do Rio de Janeiro, Zé Gotinha estava à espera do desembarque de mais de 2 milhões de doses enviadas.
A repercussão nas redes sociais foi intensa, principalmente no Twitter e no YouTube. Em alguns tweets na página da CNN e GloboNews usuários diziam “O Brasil não merece o Zé Gotinha” e “Retrato do nosso país: abandonado pelo governo”, associando o descuido à ineficiência do governo daquele momento em administrar de maneira adequada as medidas de controle da doença. Se havia um estímulo tradicionalmente vindo do governo federal para a vacinação, não foi o que ocorreu durante a pandemia. As pessoas cismaram com a forma com que o personagem vinha sendo tratado, associando a presença do Zé Gotinha a uma ideia de boa gestão da saúde e à maneira que aparecia vinculado ao Ministério da Saúde e às políticas de vacinação.
Passada a pandemia - tomando como demarcador temporal a declaração da OMS -, o personagem retorna aos holofotes, agora com a seguinte hashtag, #ZéGotinhaVoltou, utilizada no lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação em 21 de fevereiro de 2023, política do Ministério da Saúde do atual governo que busca aumentar a adesão vacinal, já que a cobertura vacinal no Brasil vem despencando nos últimos dez anos, deixando a população - especialmente o público infantil - mais vulnerável a doenças que já estavam erradicadas no país, como sarampo e poliomielite.
É notável que a retórica do retorno parece contribuir para a tentativa de aumento da aderência vacinal. Uma das estratégias utilizadas é, por exemplo, trazer personagens infantis que povoam a memória dos adultos que agora são pais, aqueles que foram crianças nos anos 1980/1990 e início dos 2000, como é o caso da participação da ex-apresentadora de programa infantil Xuxa Meneghel, e do próprio Zé Gotinha, que, inclusive, participaram de um comercial juntos.
A propaganda pode ser vista em qualquer horário durante a programação de diferentes emissoras. O tom nostálgico é evidente: Zé Gotinha bate à porta do que seria a casa da Xuxa, Rainha dos Baixinhos, ela atende com um sorriso saudoso, e ele então anuncia: chegou a hora de convocar nossos baixinhos e baixinhas para o Movimento Nacional pela Vacinação. Os dois entram em sua casa, e aparece o que seria a nave icônica de seu programa sob um lençol. Ela troca de roupa, e ressurge com sua jaqueta de ombreiras, calça justa e botas. Zé, como é chamado por ela, alerta que algumas doenças estão voltando, e ela complementa: “Por isso a participação dos pais ou responsáveis é muito importante, né, Zé?” Em seguida, eles decolam, e sobrevoam diferentes paisagens. Segue um breve diálogo, Zé desembarca, e Xuxa recomenda a atualização da caderneta de vacinação para crianças e adolescentes, e antes de anunciar o lema do atual ministério, surge uma música com sua voz “quem ama vacina, então, vacine quem você ama”. E assim, encerra com sua pose tradicional, “vacina é vida, vacina é para todos”.
Esse retorno, diríamos, também envolve representação de que há uma cultura de imunização no Brasil. Nas palavras de Hochman (2011)HOCHMAN, G. Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 375-386, 2011., essa cultura se constituiu ao longo do século XX e se expressa pela adesão da população aos programas governamentais de imunização e pela demanda cada vez maior de que novas vacinas sejam oferecidas pelo poder público, mas não sob falta de resistência, como vimos acima.
O Programa Nacional de Imunizações, criado em 1975 na esteira da erradicação da varíola no Brasil, é a expressão institucional desse processo, assim como os dias nacionais de vacinação - cruciais para a erradicação da poliomielite no Brasil - são a forma mais saliente de mobilização pública em torno da imunização. Há fortes indícios e indicadores de que a população brasileira conquistou uma “cidadania biomédica” inclusiva mesmo em uma sociedade desigual, com a oferta pública de amplo pacote de imunizantes e boa cobertura da população nas campanhas de vacinação (Hochman, 2011HOCHMAN, G. Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 375-386, 2011., p. 376).
Nesse caso, o retorno não seria apenas do Zé Gotinha, mas também da adesão vacinal infantil, que é o público que mais vem sendo afetado com processos de desinformação em saúde. A vacinação infantil contra a Covid-19 foi alvo de intenso debate e disputa nas redes, com influenciadores pediatras publicando conteúdos objetivando esclarecer sobre os benefícios da imunização em crianças. Um deles, Daniel Becker, cujo perfil no Instagram se chama Pediatriaintegralbr com mais de 1 milhão de seguidores, em um vídeo de 12 de janeiro de 2023, chama atenção para o aumento da hesitação vacinal de diferentes imunizantes, destacando o de Covid-19, e afirmando que essas taxas decaíram por dois principais motivos: 1) responsáveis não levam filhos para vacinar, por conta da erradicação da doença que deixou de ser um receio graças ao “sucesso da vacinação”, e 2) o aumento da propagação das fake news quando iniciou a imunização contra Covid-19, falando que não se deve acreditar em notícias enganosas trocadas em aplicativos de mensagens instantâneas; pelo contrário, pais e responsáveis devem se informar e confiar em sociedades científicas e OMS. O argumento presente em grande parte de seus vídeos evidencia o fato de os pais e/ou responsáveis não levarem as crianças para se vacinarem, e que, segundo ele, parece haver um entendimento de que a vacinação é uma escolha individual, que cabe à família e não ao Estado decidir vacinar uma criança.
Considerações finais
As instituições sanitárias brasileiras hoje, diante do acúmulo de desinformação sobre vacinação durante o governo Bolsonaro, tendem a interpretar quaisquer sinais de hesitação individual como uma ameaça à imunização completa que compromete a imunidade coletiva. Distinto da recusa total, o discurso de hesitação vacinal marca uma mudança importante na forma como falamos e pensamos sobre a longa história de resistência dos pais à vacinação. Dado que as preocupações com a vacinação são ao mesmo tempo corporais, sociais e políticas, tais mudanças na linguagem e nas metáforas relativas à saúde, ao risco e à imunidade proporcionam um modo complexo para explorar ansiedades culturais mais amplas. Essas ansiedades refletem tensões sobre a melhor forma de gerir a saúde pública nas sociedades neoliberais, onde o bem-estar coletivo é conceptualizado como a acumulação de escolhas individuais livres, mas responsáveis, que estão em conformidade com os conhecimentos e diretrizes de saúde pública. Embora o discurso da hesitação vacinal transcenda a dicotomia entre aceitação e recusa da vacina, ele simultaneamente multiplica as maneiras pelas quais os pais passam a ser definidos e vistos como resistentes ou não aderentes, e amplia as abordagens adotadas para identificar e corrigir atitudes parentais que são vistas como defeituosas e desalinhadas com visões biomédicas de risco e perspectivas de saúde pública sobre vida saudável e parentalidade responsável. Paradoxalmente, essa abordagem alargada para compreender a aceitação da vacina é facilmente recuperada numa visão polarizada da saúde pública, na qual qualquer desvio das práticas de vacinação recomendadas é confundido com uma postura antivacinação.
O que observamos é que para os contrários à vacinação obrigatória a “escolha” é a mais pura expressão de “liberdade” e, portanto, um direito humano fundamental. O movimento antivacinação utiliza cada vez mais a linguagem das liberdades civis para enquadrar a vacinação como uma escolha individual, e não como um fator importante para a manutenção da imunidade coletiva e da saúde pública. Essa ideia da vacinação como uma escolha individual também está ligada ao neoliberalismo e é um argumento que fundamenta as demandas nas liberdades individuais e no direito absoluto à escolha (Goméz, 2018GOMÉZ, R. R. Os sentidos da antivacinação nas redes sociais e suas relações com o discurso dominante de imunização no Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado em Informação e Comunicação em Saúde) - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2018.). Isso contribui para hesitação e atraso nas vacinações mesmo entre aqueles que se consideram pró-vacina (Salvador et al., 2023SALVADOR, P. T. C. O. et al. Inquérito online sobre os motivos para hesitação vacinal contra a COVID-19 em crianças e adolescentes do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, [s. l.], v. 39, n. 10, e00159122, 2023.). Também observamos que esse quadro de “liberdades individuais” serve para desviar a atenção das contradições internas do movimento antivacinação em relação à vacina contra a Covid-19. Como as comunidades antivacinação são mantidas unidas apenas pela crença de que as vacinas são mais prejudiciais do que benéficas, existem inúmeras opiniões divergentes dentro do grupo sobre fatos científicos ou médicos. Por exemplo, alguns acreditam que as vacinas causam a doença contra a qual foram criadas para proteger ou contêm substâncias tóxicas, enquanto outros acreditam que as vacinas são desnecessárias, pois doenças como a caxumba e a poliomielite já não são uma ameaça. Mas há outros que acreditam que certas vacinas, sobretudo as feitas em caráter de urgência sanitária, como a contra a Covid-19, são ineficazes porque são experimentais, não tão conhecidas e testadas como as já presentes no calendário vacinal. Enquadrar a oposição à vacina como uma questão das liberdades civis desvia a atenção dessas divergências internas e reforça laços comunitários baseados em cismas (Mota, 2018MOTA, F. R. Do indivíduo blasé aos sujeitos cismados: reflexões antropológicas sobre as políticas de reconhecimento na contemporaneidade. Antropolítica, Niterói, n. 44, p. 124-148, 2018.; Mota; Kant de Lima, 2022MOTA, F. R.; KANT DE LIMA, R. Pega na mentira: notas antropológicas sobre tempos inquietantes. Reciis: revista eletrônica de comunicação, informação e inovação em saúde, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 227-246, 2022.).
Observamos também, especialmente no caso das mães - origem da maioria das falas analisadas -, reafirmações de discursos sobre uma maternidade natural ou mães naturais, que tendem a rejeitar os conselhos externos contínuos em favor de práticas maternas naturais e instintivas, uma vez que acreditam que arrebataram o controle de seus interesses pessoais e sabem o que é melhor para seus filhos. Nesse sentido, a responsabilidade pela saúde e bem-estar das crianças deve ser vivida longe de instituições, especialistas e outros que afirmam saber o que é melhor, e ser transferida para o lugar da família individual e, sobretudo, da mãe, que teria o privilégio natural de saber o que é melhor para seus filhos. Culturalmente, as mães são responsáveis pela saúde física, emocional e psicológica dos seus filhos; crianças saudáveis representam simbolicamente uma boa maternidade e, inversamente, há a proliferação da culpa da mãe quando as crianças estão doentes. Assim, a maternidade exige que as mulheres criem estratégias ativamente em apoio aos seus próprios filhos, mas não necessariamente a todas as crianças, por vezes abraçando e outras vezes rejeitando conselhos de especialistas e normas de instituições. Não à toa grande parte do público de influenciadores pediatras também são mães.
A retórica da escolha como preferência individual prolifera os esforços das mulheres para se definirem como boas mães e, portanto, boas mulheres. Esse discurso emerge de um período histórico em que as ideologias neoliberais apoiam dois quadros de escolha individual. Em primeiro lugar, existe uma visão dos sistemas econômicos e governamentais como enraizados em valores empresariais, como a competitividade, o interesse próprio e a descentralização. Em segundo, essa perspectiva sustenta que os indivíduos devem sentir-se obrigados a gerenciar ativamente a si mesmos, trabalhar duro, comportar-se moralmente e evitar e calcular o risco plausível por meio de tomada de decisão informada. A obrigação maternal no neoliberalismo é gerenciar riscos e buscar o sucesso para mães e crianças. Como gerentes de risco e tomadoras de decisão, a prática materna resulta em uma experiência individualista de realização e perícia mesmo que as suas opções percebidas sejam facilitadas pelo acesso aos recursos, inclusive informacionais, para escolher. No entanto, não se procura o Estado, pois ele é objeto de cisma.
A vacinação contra Covid-19 para crianças, tendo se iniciado em janeiro de 2022, ainda hoje encontra resistências entre os responsáveis, como vimos nos comentários do vídeo da declaração da atual ministra da saúde. A campanha para a volta do Zé Gotinha é destinada ao público que atualmente ocupa essa posição, logo, há uma tentativa de mobilizá-lo afetivamente, trazendo elementos presentes na memória coletiva de uma determinada faixa etária, e um retorno a uma pretensa cultura de imunização, que, como vimos, não se deu sem resistência e cismas desde o início das campanhas de vacinação. As novas dimensões são justamente as tecnologias, a conformação de grupos encapsulados e uma política antivacina alimentada por um ex-presidente. A intersecção desses conjuntos de ações conforma a maneira como vai se delinear a vacinação para crianças em um período pós-pandemia. Se já se observava desde antes dela uma atitude de cisma com diferentes vacinas, no momento pandêmico e pós-pandêmico esses aspectos são reforçados, culminando em uma queda drástica de toda cobertura vacinal para crianças após a pandemia.
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» https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/01/08/o-dia-em-que-bolsonaristas-invadiram-o-congresso-o-planalto-e-o-stf-como-isso-aconteceu-e-quais-as-consequencias.ghtml - THÉVENOT, L. La acción en plural: una introducion a la sociologia pragmática. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2016.
- VASCONCELLOS-SILVA, P. R.; CASTIEL, L. D. COVID-19, as fake news e o sono da razão comunicativa gerando monstros: a narrativa dos riscos e os riscos das narrativas. Cadernos de Saúde Pública, [s. l.], v. 36, n. 7, e00101920, 2020.
- WAISBORD, S. The elective affinity between post-truth communication and populist politics. Communication Research and Practice, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 17-34, 2018.
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Este artigo é fruto de projetos de pesquisas realizados com o financiamento do CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa), da Capes (Bolsas de Doutorado e Doutorado Sanduíche) e da Faperj (Jovem Cientista do Nosso Estado e Pós-Doutorado Nota 10).
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Os nomes e características dos interlocutores foram substituídos/suprimidos por questões de anonimato. O material de análise é proveniente de estudo aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
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Com base em Laclau (2013LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.; Laclau; Mouffe, 1985LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso, 1985.), compreendemos que Bolsonaro se aproxima de um conceito de populismo menos ligado à formalização retórica do líder, mas fortemente relacionado às suas marcas discursivas e aos anseios da população, considerados como demandas. Nesse sentido, Waisbord (2018)WAISBORD, S. The elective affinity between post-truth communication and populist politics. Communication Research and Practice, [s. l.], v. 4, n. 1, p. 17-34, 2018. sugere a existência de uma afinidade entre o populismo contemporâneo e a comunicação da pós-verdade (D’Ancona, 2018D’ANCONA, M. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. Barueri: Faro Editorial, 2018.), em que políticos populistas surgem como sintoma dessa consolidação. Assim, o populismo contemporâneo defende achados científicos controversos, apostando no discurso de que a ciência que ele defende é a verdadeira. Acreditamos que a ciência que o ex-presidente defende se vincula a um ideal popperiano, e de ciência pura (Edler Duarte; Benetti, 2022EDLER DUARTE, D.; BENETTI, P. R. Pela ciência, contra os cientistas? Negacionismo e as disputas em torno das políticas de saúde durante a pandemia. Sociologias, [s. l.], v. 24, n. 60, 2022. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/18070337-120336 . Acesso em: 12 abr. 2024.
https://doi.org/10.1590/18070337-120336... ) e desinteressada. -
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Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alcunhou o termo “infodemia”, que, fazendo alusão à pandemia, consiste em uma nova forma de produção e compartilhamento de informações, ou seja, foi observado um aumento considerável no volume de informações associadas a um assunto específico, que pode se multiplicar rapidamente em um curto período devido a um determinado evento e, principalmente, com o auxílio de plataformas (Organização Pan-Americana da Saúde, 2020ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a Covid-19. [S. l.]: OPAS, 2020. Disponível em: Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/Factsheet-Infodemic_por.pdf . Acesso em: 22 dez. 2023.
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1... ). Segundo a instituição, essa situação de excesso de informações, algumas precisas e outras não, pode tornar complicada a missão de encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis no momento em que se necessita delas. -
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Há décadas antropólogos têm estudado temas desconfortáveis, como práticas consideradas marginais e grupos violentos. A novidade está na legitimidade que algumas dessas perspectivas ganharam no âmbito federal durante o governo do ex-presidente Bolsonaro. O desconforto também surge porque esses grupos cresceram e se fortaleceram nas redes sociais digitais.
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Em 8 de janeiro de 2023, manifestantes organizaram um ato antidemocrático em Brasília contra os resultados das eleições de 2022, que culminou na invasão e depredação das sedes do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto (Terrorismo […], 2023TERRORISMO em Brasília: o dia em que bolsonaristas criminosos depredaram Planalto, Congresso e STF. G1, [s. l.], 8 jan. 2023. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/01/08/o-dia-em-que-bolsonaristas-invadiram-o-congresso-o-planalto-e-o-stf-como-isso-aconteceu-e-quais-as-consequencias.ghtml . Acesso em: 27 dez. 2023.
https://g1.globo.com/df/distrito-federal... ). O ato teria sido organizado por meio das mídias sociais, sobretudo WhatsApp e Telegram, fazendo com que o ministro do STF Alexandre de Moraes solicitasse o bloqueio de alguns desses grupos e canais, sendo o P & G um deles. -
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Na história das ciências o testemunho tem sido objeto de análise, já que para construção do fato científico, principalmente em fins do século XVII, essa prática era necessária para atestar a verdade do “fato” (Pestre, 1996PESTRE, D. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG-Unicamp, Campinas, v. 6, n. 1, p. 3-56, 1996.).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
29 Dez 2023 -
Aceito
31 Maio 2024