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Família, trabalho, identidades de gênero

Family, work, gender identities

Familia, trabajo, identidades de género

Resumos

Este artigo trata de uma pesquisa realizada com quinze mulheres entre 20 e 35 anos com o objetivo de apreender a representação de identidade feminina, o lugar atribuído à mulher na família e no trabalho, as relações de gênero e as relações de poder. Utilizamos uma entrevista semiestruturada com roteiro, que foi gravada, transcrita literalmente e analisada pelo método da Análise de Conteúdo. Os resultados mostram identidades femininas múltiplas, mulheres ocupando novas posições de sujeito, o trabalho feminino assalariado possibilitando o atravessamento das fronteiras entre os espaços público e privado e novas modalidades de relacionamento entre os gêneros. Por fim, evidencia-se que a noção de identidade de gênero é contingencial e histórica, sendo cultural e socialmente engendrada e passível de ser questionada.

Identidade de gênero; trabalho; família


This article presents a qualitative research with fifteen women between 20 and 35 years old. The objective of the study was to apprehend their representation about Feminine Identity, inquiring the place attributed to women in family and at work, including gender and power relations. Hence, a semi-structured interview was applied, recorded and literally transcripted for later analysis. The data shows multiples feminine identities: women occupying new subject-positions; feminine work enabling the crosswalk between public and private spaces; and new modalities of gender relations. At last, the notion of gender identity is considered to be historical; as a cultural identity socially constructed, therefore possible to be putted into question.

Gender identities; work; family


En este artículo se aborda una investigación hecha con quince mujeres en la franja de edad entre 20 y 35 años, cuyo objetivo principal ha sido aprehender la representación de Identidad Femenina, el lugar atribuido a la mujer en la familia y en el trabajo; las relaciones de género y las relaciones de poder entre los géneros. Utilizamos la entrevista en profundidad con guión, que ha sido grabada y transcrita literalmente y sometida a un Análisis de Contenido. Los resultados apuntan identidades femeninas múltiplas; mujeres poniéndose en posiciones de sujeto distintas de las tradicionales; el trabajo femenino asalariado les posibilita atravesar las fronteras entre los espacios público y privado; se presencia nuevas relaciones entre los géneros. Por fin, se confirma que el concepto de identidad de género es contingente e histórico, cultural y socialmente construido y, por eso mismo, puede ser cuestionado.

Identidad de género; trabajo; familia


ARTIGOS

Família, trabalho, identidades de gênero1 1 Este artigo é parte da dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica.

Family, work, gender identities

Familia, trabajo, identidades de género

Thálita Cavalcanti Menezes da SilvaI; Maria Cristina Lopes de Almeida AmazonasII; Luciana Leila Fontes VieiraIII

IMestre em Psicologia Clínica, Mestranda em Educação para Profissões da Saúde pela Universidade de Maastricht (Holanda) e Professora da Faculdade Pernambucana de Saúde

IIDoutora em Psicologia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco

IIIDoutora em Saúde Coletiva, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Thálita Cavalcanti Menezes da Silva Rua Costa Gomes, 180, apto. 101, Madalena, CEP 50710–510, Recife-PE, Brasil E-mail: thalitamenezes25@yahoo.com.br

RESUMO

Este artigo trata de uma pesquisa realizada com quinze mulheres entre 20 e 35 anos com o objetivo de apreender a representação de identidade feminina, o lugar atribuído à mulher na família e no trabalho, as relações de gênero e as relações de poder. Utilizamos uma entrevista semiestruturada com roteiro, que foi gravada, transcrita literalmente e analisada pelo método da Análise de Conteúdo. Os resultados mostram identidades femininas múltiplas, mulheres ocupando novas posições de sujeito, o trabalho feminino assalariado possibilitando o atravessamento das fronteiras entre os espaços público e privado e novas modalidades de relacionamento entre os gêneros. Por fim, evidencia-se que a noção de identidade de gênero é contingencial e histórica, sendo cultural e socialmente engendrada e passível de ser questionada.

Palavras-chave: Identidade de gênero; trabalho; família.

ABSTRACT

This article presents a qualitative research with fifteen women between 20 and 35 years old. The objective of the study was to apprehend their representation about Feminine Identity, inquiring the place attributed to women in family and at work, including gender and power relations. Hence, a semi-structured interview was applied, recorded and literally transcripted for later analysis. The data shows multiples feminine identities: women occupying new subject-positions; feminine work enabling the crosswalk between public and private spaces; and new modalities of gender relations. At last, the notion of gender identity is considered to be historical; as a cultural identity socially constructed, therefore possible to be putted into question.

Key words: Gender identities; work; family.

RESUMEN

En este artículo se aborda una investigación hecha con quince mujeres en la franja de edad entre 20 y 35 años, cuyo objetivo principal ha sido aprehender la representación de Identidad Femenina, el lugar atribuido a la mujer en la familia y en el trabajo; las relaciones de género y las relaciones de poder entre los géneros. Utilizamos la entrevista en profundidad con guión, que ha sido grabada y transcrita literalmente y sometida a un Análisis de Contenido. Los resultados apuntan identidades femeninas múltiplas; mujeres poniéndose en posiciones de sujeto distintas de las tradicionales; el trabajo femenino asalariado les posibilita atravesar las fronteras entre los espacios público y privado; se presencia nuevas relaciones entre los géneros. Por fin, se confirma que el concepto de identidad de género es contingente e histórico, cultural y socialmente construido y, por eso mismo, puede ser cuestionado.

Palabras-clave: Identidad de género; trabajo; familia.

A problemática da criação das categorias de homem e mulher, masculino e feminino, remete-nos a um longo e complexo processo histórico. De fato, a constituição de um discurso sobre a diferença sexual, na história do Ocidente, data do final do século XVIII. Com o advento da Revolução Francesa, momento em que foi proclamada a igualdade dos direitos, tornou-se necessário justificar a inferioridade das mulheres. Segundo Laqueur, a ciência aparece, nessa época, a serviço da cultura, com o objetivo de fundamentar a inferioridade das mulheres em sua própria natureza. Para isso foi instituído o two-sex model, um modelo que estabelece uma distinção ontológica e horizontal entre os sexos. Esse modelo surge em oposição ao modelo inspirado na filosofia neoplatônica de Galeno, em que os sexos eram concebidos hierarquicamente e regulados pelo modelo masculino. Nele não encontramos os sexos divididos segundo a sua anatomia, ao contrário, os sexos são ligados por uma anatomia comum. No one-sex model, que dominou o pensamento anatômico durante dois mil anos, as mulheres eram concebidas como um homem invertido e imperfeito. Elas possuíam exatamente os mesmos órgãos que os homens, porém em lugares errados, devido à falta de calor vital. Entretanto, tal concepção não significava que homens e mulheres fossem confundidos. A diferença entre mulheres e homem era percebida, porém não era explicada através do critério da diferença sexual (Laqueur, 1992).

Assim, para Galeno, existiria apenas um sexo, que se diferenciava pelo grau de calor vital. Melhor dizendo, a ordenação das noções de homem e mulher remetia ao "grau de perfeição metafísica" em que o "telos é masculino." O calor vital seguiria uma verticalidade hierárquica, em que as fronteiras entre macho e fêmea são de grau, não de gênero, e os órgãos de reprodução são apenas um signo, entre outros, do lugar do corpo na ordem cultural que ultrapassa a biologia. Esse modelo dominará a reflexão sobre a diferença sexual desde a Antiguidade Clássica até o fim do século XVIII, embora as representações sobre os gêneros masculino e feminino tenham mudado, sobretudo por influência do cristianismo (Nunes, 2000).

Enfim, o modelo do sexo único cede lugar, no final do século XVIII, ao novo modelo do dimorfismo radical, de divergência biológica, em que os registros anatômicos e fisiológicos constituíram a base para fundamentar uma diferença de essência entre o homem e a mulher. Nesse cenário, cria-se um conjunto de argumentos políticos, filosóficos, moralistas e científicos que sustentavam categoricamente que todos os homens eram iguais, com exceção de alguns "naturalmente inferiores." No caso da mulher, a desigualdade será encontrada no sexo, que deixa de ser sinônimo de aparelho reprodutor. A diferença se manifestará na esfera do prazer, na constituição nervosa e óssea (Arán, 2003).

Os órgãos reprodutivos, especialmente o útero, serviram de fundamento para uma incomensurável diferença. O ventre, anteriormente concebido como forma negativa dos órgãos masculinos (inferior, imperfeito, invertido), adquire positividade na medida em que é sede da reprodução da espécie e da constituição da família. A mulher é valorizada pelos seus atributos maternos e negligenciada em seu prazer sexual. Delineia-se a separação entre prazer sexual e reprodução. Desta maneira, a sexualidade feminina começa a ser definida como original e radicalmente diferente da do homem e as fronteiras que demarcam o espaço público ligado ao masculino ficam cada vez mais nítidas.

No que concerne aos ossos, até o final do século XVIII o esqueleto humano apresentava-se apenas na versão masculina. Em 1798 aparece o primeiro desenho do esqueleto feminino como prova de legitimação da desigualdade social e política entre os sexos. As partes do corpo feminino escolhidas para o esquadrinhamento são o crânio menor e a bacia pélvica maior. O primeiro é utilizado para provar que as mulheres eram intelectualmente inferiores, devendo se afastar da vida pública. O segundo confirma pela anatomia que a mulher é destinada à maternidade e à vida privada (Laqueur, 1992).

Finalmente, em relação aos nervos, podemos observar a presença do sexo para balizar a incapacidade das mulheres para assumir funções político-econômicas, reservadas para o homem. A mulher era hipersensível. O seu encéfalo, sede do componente afetivo, era mais influenciado pelas paixões do que o encéfalo do homem. A predisposição da mulher à histeria emanava da suscetibilidade característica de seus nervos. A origem sexual da histeria vai migrar para os nervos e para o prazer sexual, pois, ao invés de sede da doença, o útero passará a sede da saúde dos indivíduos e da população, uma vez que dele dependiam a reprodução, a constituição da família e a regulação da política populacional (Costa, 1995).

Desta forma, podemos afirmar que a invenção do two-sex model foi uma consequência político-econômico-moral das exigências feitas à mulher e ao homem pela sociedade burguesa (Foucault, 1997). Esses ideais de masculinidade e feminilidade foram sendo forjados e culminaram, dentre outras mudanças, na separação radical do trabalho e da família. Ascendia um sentimento novo: o de privacidade e intimidade familiar. Com a reorganização da casa, a reforma dos costumes e a exclusão dos criados, clientes e amigos, a família foi reduzida aos pais e às crianças (Ariès, 1981). Cada vez mais recluso na casa e seguindo os progressos da vida privada, o sentimento de família era agora reconhecido e exaltado por seus membros.

Quanto mais a mulher se tornava íntima do espírito sentimental familiar e das demandas cotidianas deste, mais o homem vivia na rua, no meio de comunidades de trabalho, de festas, de cerimônias e – de certo ponto de vista – se afastava desse espírito de intimidade privada, circunscrito ao lar (Ariès, 1981).

Tendo permanecido, por muito tempo, excluída do espaço de circulação do poder da esfera pública, ao se inserirem nas diversas manifestações do escrito – através das correspondências, literatura e imprensa (jornais e revistas) –, as mulheres acabaram atingindo e exercendo alguma influência sobre esse espaço. Consideradas manifestações do privado, as cartas pessoais, juntamente com as autobiografias e os diários, tinham sua escrita associada às mulheres, produzindo um gênero literário posteriormente conhecido como Literatura do Íntimo (Gonçalves, 2006). Nessa perspectiva, as mulheres do final do século XIX e início do século XX moviam-se mais do que se pode imaginar e detinham um diferente tipo de poder, que era conferido com exclusividade ao ambiente privado.

Então, no que se refere à construção moderna da família conjugal, aos engendramentos dos espaços públicos e privados e às identidades que melhor os representariam, é preciso manter em mente que as duas formas de cultura (privada e pública) não estão isoladas entre si. Antes, o que existe é uma circulação real das formas de poder, visto que a produção cultural, frequentemente, envolve publicação (o tornar pública formas privadas) e, por outro lado, os textos públicos são consumidos ou lidos privadamente (Johnson, 2006).

Além disso, faz-se mister lembrar que esses estereótipos de mulher – esposa – mãe – dona de casa e anjo do lar –, apesar de fortemente presentes nos séculos XIX e XX, não eram universalmente válidos e variavam de acordo com a camada social. Gomes (2008, p.20) afirma que "a mulher brasileira comportava-se de acordo com sua classe social. As mulheres de classe inferior conheceram o trabalho físico e árduo, embora gozassem de maior liberdade pessoal." Desse modo, a improdutividade da mulher em relação ao homem e ao espaço público funcionava como um dispositivo para distinguir as camadas sociais e apontar para a distância e diversidade social das classes superiores e médias em relação às classes laboriosas (Lipovetsky, 2000).

A partir da segunda metade do século XIX o processo de industrialização abriu um leque de possibilidades de trabalho bem mais amplo, e por serem as mulheres destinadas ao lar, esses trabalhos foram assumidos pelos homens (Confortin, 2003). Conjuntamente, o processo de urbanização passaria a favorecer a extensão do trabalho feminino assalariado, fazendo com que as mulheres ocupassem os cargos deixados pelos homens e passassem a ganhar um salário, como operária ou como professora.

Simultaneamente, no momento em que a industrialização nascente confere oportunidades de trabalho à mulher, os discursos vigentes enfatizam a degenerescência da família, considerando o investimento profissional feminino como degradante e contrário à vocação natural da mulher (Perrot, 1995). Principalmente para a burguesia, o assalariamento feminino causava espanto e era tido como sinal de pobreza, uma vez que a mulher só deveria trabalhar se o marido não pudesse suprir as necessidades da família (Lipovetsky, 2000).

Reconhecer o trabalho assalariado feminino significaria concordar com certo fracasso por parte do homem no cumprimento de seu dever de providenciar o sustento financeiro do seu lar. Admitir a mulher como indivíduo autônomo e independente seria equivalente a desnaturalizá-la, a precipitar a ruína da ordem familiar, a gerar confusão entre os sexos. Logo, sendo a identidade de gênero uma categoria relacional, questionar a natureza de um polo significaria, de igual modo, pôr em dúvida a do seu outro; ou seja, ao se desnaturalizar o polo feminino se colocaria em xeque a supremacia do polo masculino.

Juntamente com os movimentos sociais e as políticas de identidade, a escola e as transformações dos grandes setores de atividade econômica estiveram entre os principais fatores que contribuíram para precipitar o declínio do estereótipo da esposa-mãe-dona de casa, e promover correlativamente um superinvestimento feminino nos papéis sociais da vida profissional. Mais uma vez, as relações familiares e os papéis desenvolvidos por homens e mulheres seriam modificados.

A nova cultura centrada no prazer, no lazer e na livre escolha individual desvalorizava o modelo de vida feminina mais voltado para a família do que para si mesma, legitimando os desejos de viver para si e desqualificando o modelo da "perfeita dona de casa." Quanto mais crescia a oferta de objetos, de serviços e de lazer, mais se intensificava a exigência de aumentar os rendimentos da família, a fim de estar à altura do ideal consumista. Com uma economia baseada no estímulo e na criação incessante de novas necessidades, o trabalho feminino veio a se tornar fonte de rendimento necessária à participação da mulher e da família nos sonhos da sociedade de consumo e abundância (Lipovetsky, 2000).

No Brasil, segundo Losada e Rocha-Coutinho (2007, p.494), "o crescente empobrecimento das camadas médias, aliado ao aumento das despesas com educação dos filhos, saúde e outras necessidades consideradas básicas, impulsionou, especialmente nos anos 1980, as mulheres casadas a buscar um trabalho fora de casa."

Método

Nesta pesquisa objetivamos apreender, na fala de algumas mulheres, a representação da identidade feminina, investigando o lugar que elas atribuem a si mesmas na família e no trabalho, incluindo suas percepções sobre as relações entre os gêneros.

Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, utilizamos a entrevista semiestruturada como instrumento, apresentando às participantes a seguinte questão disparadora: "O que significa, para você, ser mulher?" Esta pergunta desdobrava-se, ao longo da entrevista, em outras questões relacionadas à família e ao trabalho.

Participaram do estudo quinze mulheres, pertencentes à camada sociocultural média, com idades entre 20 e 35 anos. Os indicadores sociais levados em consideração para definir a camada social foram: grau de instrução, profissão, local de residência e renda mensal.

Em relação ao nível de instrução, cinco das quinze participantes ainda cursavam o nível superior, enquanto sete já eram formadas e três haviam concluído ou estavam por concluir uma pós-graduação. Destas, onze possuíam uma ocupação remunerada e quatro se encontravam desempregadas.

Nenhuma das quinze participantes tinha filhos, inclusive as três mulheres casadas, que residiam com seus maridos. Das onze participantes solteiras, nove ainda moravam com os pais, uma dividia um apartamento com colegas e uma morava sozinha. Uma das participantes era divorciada e morava sozinha.

As entrevistas foram marcadas em locais de melhor conveniência para as participantes. Inicialmente, explicávamos o objetivo da pesquisa e qual seria sua participação; em seguida, antes de iniciar a entrevista, era solicitado que a participante assinasse um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As falas, gravadas com seu consentimento, foram transcritas literalmente.

Para analisar as entrevistas, fizemos uso da Análise de Conteúdo. Inicialmente as entrevistas foram lidas e relidas com a mente voltada aos objetivos da pesquisa, buscando-se encontrar, na fala das participantes, os principais núcleos de sentido ou temas. Posteriormente, essas falas foram reunidas em torno de dois temas: como a mulher representa a si mesma e vê sua atuação no mundo familiar; e como ela se vê na relação com o trabalho. Em torno destes temas foram feitas as inferências e interpretações das falas, com ênfase ao que permanece e ao que se transforma nas posições de sujeito assumidas pelas mulheres nas esferas pública e privada e como elas percebem as relações entre os gêneros no mundo atual. Estes temas não são isolados, mas se mostram entrelaçados e é assim que estão apresentados neste artigo. É importante salientar que a análise foi realizada à luz do corpo teórico que norteou toda a investigação.

Resultados e discussão

O conceito de identidade é, inquestionavelmente, um dos mais explorados e estudados na atualidade. As problematizações que o envolvem abarcam posições as mais abrangentes. Muitas vezes contraditórios e excludentes, tais posicionamentos correspondem à própria produção da identidade.

Para aqueles que se apoiam em perspectivas essencialistas, a identidade é vista como algo que permanece ao longo do tempo, ou seja, é imutável (Braidotti, 2002). De acordo com Stuart Hall, nessas perspectivas as identidades são assim consideradas por parecerem "invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência" (Hall, 2000a, p. 108-109).

Por outro lado, para as perspectivas não essencialistas, as identidades estão sujeitas a uma historicização radical, vistas como em constante processo de mudança e transformação. Nesse sentido, a identidade seria um conceito que opera sob rasura, por não assinalar um núcleo estável do eu que permanece idêntico a si mesmo, passando pelas vicissitudes da história sem qualquer mudança (Hall, 2000a). Logo, a noção de identidade aqui desenvolvida é estratégica e posicional, na medida em que não compreende o sujeito como unidade-identidade, mas sim, dentro do contexto no qual ele é promovido e articulado: "a produção maquínica de uma máquina produtiva; produzindo, um produto" (Doel, 2001, p.83).

Em decorrência dos fluxos culturais e da autonomia do sujeito, diferentes possibilidades de identidades são criadas e partilhadas, vindo a exigir volatilidade, capacidade de adaptação às mudanças, trocas e descartabilidade (Hall, 2000b). Produzido pelo confronto entre uma gama de diferentes identidades – como consumidor em relação aos bens, como para serviços e como público para mensagens e imagens –, o sujeito contemporâneo se depara fazendo escolhas diante dos diferentes apelos feitos a diferentes partes de si, em contingências históricas pessoais e sociais específicas.

É deste modo que se apresentam as mulheres desta pesquisa: identidades múltiplas, paradoxais e nômades.

Hoje, tudo gira em torno de um desenvolvimento. O mundo vai se desenvolvendo e a gente vai precisando acompanhar esse ritmo. O poder aquisitivo também nos é cobrado. Pra que a gente tenha uma boa estabilidade financeira no lar, é preciso ser dividido. Então, lá em casa, a gente divide muito isso. Ele trabalha, eu trabalho (Ana;2 2 Todos os nomes das participantes são fictícios para preservar suas identidades. 32 anos; casada; sem filhos; superior completo).

Apontamos aqui para a redistribuição de papéis que subverte a norma tradicional de: mulher – mãe - dona de casa. "Ele trabalha, eu trabalho" desmantela antigos códigos de conduta feminina já consolidados e autoriza outros. Dissociam-se os "papéis" das identidades, provocando desconforto e trazendo à tona a figura do sujeito nômade - não mais tendo o masculino como referencial, mas escancarando a construtividade dos gêneros e assumindo a transitoriedade dos papéis e dos espaços. Essa representação de sujeito (nômade) sinaliza o caráter inventado, cultural e instável de todas as identidades (Louro, 2004).

Outrora atribuído apenas às figuras masculinas e ao espaço público, o poder aquisitivo, o poder de escolhas e de tomada de decisão confere à mulher e às relações de gênero maior fluidez e mobilidade. Esse poder vem pela resistência a pertencer a "apenas" uma única identidade e a um único espaço e pela possibilidade de ocupar múltiplas identidades e múltiplos espaços. "Ele trabalha, eu trabalho" fala das fronteiras sociais que se cruzam e se enfrentam em um espaço de lutas; mas, também, de relação. De acordo com Louro, "a fronteira é lugar de relação, região de encontro, cruzamento e confronto" (2004, p.19).

Semelhantemente, essa redistribuição dos papéis familiares é indicada por outra participante, Paula, para quem as mulheres, em épocas atuais, trabalham tanto quanto os homens e estão ausentes em relação à família, não permanecendo, como antigamente, as vinte e quatro horas do dia em casa.

Pronto, eu acho que hoje... Por ela tá saindo pra trabalhar, ela tá mais ausente. Mas essa ausência, às vezes, é suprida de outra forma. E, apesar dela estar saindo, ela consegue ter qualidade dentro da família. Ela consegue dar conta, digamos assim, tanto quando tá trabalhando, quanto quando tá dentro da família (Paula; 21 anos; solteira; sem filhos; superior incompleto).

Ao afirmar que a mulher "consegue dar conta de estar trabalhando e de estar dentro da família ao mesmo tempo," Paula nos dá uma pista da mobilidade dos espaços e da possibilidade de transitar entre eles. Aponta para a desconstrução dos princípios da divisão sexual do trabalho teorizados por meio de argumentos biológicos e legitimados por um processo dito natural, argumentos que posicionavam a mulher no espaço privado e o homem no público. Não obstante, tais argumentos, ao contrário do que se imaginava, não são estáveis, tampouco íntegros. Antes possuem fissuras e oscilações, assim como qualquer discurso social, permitindo a transitoriedade (Ellsworth, 2001) e denunciando a simultaneidade de lugares.

Este ir e vir denuncia a hibridez e não fixação da identidade. Segundo Butler (2002), o caráter performativo dos gêneros nos faz pensar que os corpos não se moldam, inteiramente, às normas pelas quais sua materialização é constrangida. Neste sentido, ser mulher atualmente não significa mais pertencer exclusivamente a um espaço estável (privado), tampouco possuir as características a ele atribuídas.

Enquanto as duas primeiras entrevistadas, Ana e Paula, apresentam posicionamentos performáticos ao falar do entre-espaço dos espaços público e privado – da possibilidade de cruzar fronteiras e de se estar na fronteira (Silva, 2000), Neuza se posiciona de outra forma, ao afirmar que são mais numerosas as mulheres que não conseguem conciliar família e trabalho do que as que conseguem.

Eu acho que [a mulher] não tá conciliando. Quando a pessoa parte pra trabalhar, tem que abrir mão – de certa maneira – de uma coisa ou de outra. É aquela coisa, vai levando (Neuza; 22 anos; solteira; sem filhos; superior incompleto).

O "não conseguir dar conta" ou "não estar conciliando," em contrapartida, denuncia que "a afirmação da identidade implica sempre a demarcação e a negação do seu oposto, que é constituído como sua diferença" (Louro, 2004, p.45). Aqui, a lógica que predomina é a de ser uma coisa ou outra e não múltiplas ao mesmo tempo. Estar em vários lugares simultaneamente desperta o incômodo e a ambiguidade de uma identidade indefinida (Silva, 2000). Dessa forma, os movimentos de cruzamento de fronteiras (estar simultaneamente em casa e no trabalho) são considerados estranhos, pois se distanciam do modelo da pureza e da homogeneidade.

Para esta mulher, o trabalho feminino não é compreendido como valor e fonte de realização pessoal, mas como uma necessidade imposta pelas condições financeiras. Nessa concepção, trabalhar não é algo que uma mulher possa, por si mesma, desejar – por não fazer parte da sua essência –, mas que ela apenas aceita, por necessidade financeira.

Outra participante discorre sobre a entrada da mulher no mercado de trabalho e a ausência no lar como uma de suas consequências. Segundo Sônia, à medida que a mulher foi desbravando novos caminhos, foi também conquistando uma liderança maior, tanto no mercado de trabalho quanto em outras áreas. Por esse motivo julga que, atualmente, os papéis desempenhados na família por ambos - homem e mulher - encontram-se nebulosos.

Eu acho que esses papéis, hoje... eu acho que eles estão até um pouco nebulosos, porque a mulher, como eu falei antes, ela tá mais fora. Ela tá até dando mais conta do que o marido, muitas vezes. Ela tá ganhando mais em outras situações. E mesmo que não esteja ganhando, ela tá mais fora de casa. E isso, talvez, traga algum conflito pro homem, não é? (Sônia, 27 anos, solteira, sem filhos, superior completo).

Quando ela diz que os papéis masculinos e femininos, na família, estão nebulosos, indica que se sente confusa. Acostumada a pensar de forma binária - homem-provedor X mulher-dona de casa, ao se deparar com mulheres e homens que trabalham lado a lado para prover o lar, independentemente de quem traz mais dinheiro para casa e de quem se demora mais tempo fora do lar, ainda não se sente capaz de interpretar esta realidade em outros moldes, não binários. Como consequência, afirma que é provável que isto traga conflitos "para os homens."

A lógica dos binarismos consiste em estabelecer pares, essencializando-os na tentativa de construir identidades fixas. Para isso se faz uso de discursos e dispositivos sociais – política, escola, igreja, justiça –, a fim de alocar os sujeitos de acordo com suas características essencialmente biológicas. Nesta lógica, não se evidencia que cada polo carrega consigo vestígios do outro e depende desse outro para adquirir sentido, tampouco o fato de que cada polo é, em si mesmo, fragmentado e plural. De igual forma, ficam encoberto seus efeitos: "a hierarquia, a classificação, a dominação e a exclusão" (Louro, 2004, p.45), pois os corpos e sua biologia são o que são na cultura.

É na cultura, situada por particularismos históricos, que ocorre a determinação dos lugares sociais, é nela que se posicionam sujeitos. A biologia – o corpo, a cor da pele ou dos cabelos, a presença da vagina ou do pênis – não é em si uma essência. A construção dos polos a partir da biologia fala, na verdade, de significados culturais, marcas de gênero, marcas de poder (Louro, 2004).

Mesmo, historicamente, tendo a família se caracterizado como centro dominador da vontade da mulher, eixo sobre o qual transitavam seus desejos e estilos para ação (Orsini, 2003), na contemporaneidade o interesse pelo trabalho, a iniciativa e a responsabilidade profissional passaram a ser expectativas prioritárias da maioria das mulheres. Segundo Lipovetsky (2000), na atualidade, a identidade feminina não é constituída apenas pelos papéis familiares, ao contrário, o que parece dominar nossa época é o superinvestimento feminino nos papéis sociais da vida profissional e certo sentimento de rejeição aos papéis familiares.

Dentro do trabalho, o que está acontecendo hoje é um crescimento cada vez maior das mulheres em cargos de chefia, em cargos de liderança. Eu presto consultoria pra algumas empresas também Cada vez mais eu vejo isso não só aqui na empresa que eu trabalho. Aqui, basta lhe dizer que nós temos seis líderes – fora a diretoria – cargos de gerência, e eu sou uma delas. As seis são mulheres! (Rosa, 35 anos, casada, sem filhos).

As transformações sociais não apenas convocaram as mulheres a assumirem novas posições de sujeito, mas também a investirem na valoração dessas novas posições (Amazonas & Silva, 2008). Isto pode ser observado na fala desta participante.

Apesar deste crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho a que se refere Rosa, ela mesma aponta para inúmeros preconceitos ainda existentes no ambiente de trabalho, sendo o principal o de que uma mulher não deve chefiar homens.

Hoje em dia, porém, a mulher passa a ter maiores possibilidades de ação, devido às mudanças ocorridas nas esferas públicas e privada e ao desvinculamento das noções de feminino/privado e masculino/público.

Hoje a mulher também é criada para ter uma profissão, pra ter um futuro. Os pais hoje sonham com a profissão das filhas. Antigamente quando nascia uma menina, o pai não pensava: Ai, o que ela vai ser? Hoje não. Hoje se pensa: Ah, será que ela vai ser médica? Será que ela vai ser dentista? Eu vejo isso, hoje. E até escanteando um pouco a questão da família. Tem muitas meninas hoje que... Ah, não quero casar! Como se isso fosse atrapalhar a vida profissional delas (Kátia, 26 anos, solteira, sem filhos, superior incompleto).

Para as mulheres, receber educação abriu-lhes as portas para a possibilidade de crescimento profissional, o que significou o início de sua independência financeira, com a qual adveio a independência emocional, desvinculando sua identidade da exclusividade da esfera familiar. Agora já não se precisa casar, tampouco ter filhos, para ser considerada mulher adulta, uma vez que sua iniciação não mais depende da maternidade e da assunção dos cuidados e responsabilidades com um lar (Badinter, 2005). De agora em diante, a entrada no mercado de trabalho proporciona à mulher o direito de ser sujeito de si mesma, pois não mais depende de seu marido como um dia dependeu de seu pai. Diferentes mulheres passaram, assim, a investir, pela primeira vez, em territórios até então masculinos, ocasionando a sensação de estar havendo uma reviravolta na definição dos gêneros sexuais.

Considerações finais

Durante muito tempo a diferença biológica foi utilizada como justificativa da dominação masculina e como meio de restringir a multiplicidade do ser mulher ao espaço privado. Assim, a maternidade foi eleita como seu destino, em que qualquer vestígio de sua recusa era patologizado, o que transformava a mulher numa desviante das normas sociais vigentes. De acordo com Badinter,

Ao fazer da diferença biológica o critério supremo da classificação dos seres humanos, fica-se condenado a pensá-los em oposição um ao outro. Dois sexos, logo duas maneiras de ver o mundo, dois tipos de pensamento e de psicologia, dois universos diferentes que permanecem lado a lado, sem jamais se misturar. O feminino é um mundo em si, o masculino é outro, e eles dificultam a travessia das fronteiras e parecem ignorar as diferenças sociais (Badinter, 2005, p.157).

Dessa maneira, mulheres de diferentes países, etnias e classes representariam uma única categoria: a feminina. As brasileiras seriam consideradas tais quais as chinesas, as americanas e as angolanas, por exemplo, partilhando uma natureza feminina universal, que demarca um grande abismo nas relações de gênero. As fronteiras entre ser mulher e ser homem tornam-se cada vez mais claras e intransponíveis, visto que se fundamentam em concepções naturalistas e essencialistas de gênero. As identidades de gênero, geralmente, são delineadas com relação ao desempenho de tarefas e funções opostas: o que se espera de um não se espera do outro. Neste sentido se opera uma dicotomia que reitera a complementaridade e a ordem que sustenta a distribuição dos papéis sociais. Logo, o questionamento da lógica binária seria condição sine qua non para a modificação das suas inerentes implicações: a hierarquização, a classificação, a dominação e a exclusão, pois, como nos alerta Butler (2006), o binarismo reproduz uma série de pressupostos em que o pólo inicial aparece como normal, superior, compulsório - em oposição ao pólo subordinado, que aparece como antinatural, inferior, o "outro."

De fato, a representação universal das identidades de gênero aponta para oposições binárias perigosas, que "apagam a complexidade do real em benefício de esquemas simplistas e restritivos" (Woodward, 2000, p.53). As relações complementares entre homens e mulheres, como relações sociais de gênero, basear-se-iam, então, em cosmogonias que acabam por naturalizar e legitimar a hegemonia masculina, porém as identidades de gênero são continuamente desestabilizadas pela diferença (Woodward, 2000). Crucial no processo de construção das posições de identidade, a marcação da diferença traduz a dependência da posição de dominação masculina em relação à posição de submissão feminina, e vice-versa.

A verdadeira desestabilização das identidades de gênero e a desconstrução dos papéis masculinos e femininos acontecem na tensão permanente entre as posições antagônicas de sujeito sobrescritas, bem como na produção e viabilização de entre-espaços. Nessa perspectiva, as múltiplas masculinidades e feminilidades seriam concebidas como construções contingentes, históricas e ficcionais. No dizer de Helena Confortin,

O conceito de gênero tem o objetivo de chamar a atenção sobre a construção social dos sexos, sobre a produção do feminino e do masculino, não como algo dado e pronto no momento do nascimento, mas como um processo que se dá ao longo de toda a vida e vai fazendo com que as pessoas, os sujeitos, se tornem homens e mulheres de formas muito diversificadas, sempre de acordo com o que aquela sociedade, aquele momento histórico, a sua cultura, as suas relações étnicas, religiosas, de classe consideram, permitem e possibilitam (2003, p.109).

As identidades de gênero são, pois, simultaneamente, a construção e a desconstrução de modelos já conhecidos (Arán, 2006). São categorias elásticas que se constituem enquanto resistência, conferindo aos sujeitos identidades plurais e múltiplas. Estas, por sua vez, dizem respeito a edificações sociais historicamente modeladas a partir de infinitas possibilidades de intercruzamento entre as demais identidades culturais, os discursos e as práticas que as sustentam. Neste sentido, compreendemos que a construção do ser humano "é um processo minucioso, sutil, sempre inacabado" (Louro, 2008, p.18).

Foi assim que se apresentaram as mulheres de nossa pesquisa. O que observamos foi que as dicotomias começam a ser abaladas e as fronteiras, atravessadas. Não se pode afirmar que elas tenham sido apagadas, mas pouco a pouco estão sendo flexibilizadas e novas posições de sujeito estão sendo construídas, tanto pelas mulheres quanto pelos homens. O ideal de mulher rainha do lar ainda permanece para algumas mulheres, mas isto é cada vez mais raro e vem sendo mesclado e contrabalançado pelo prazer que se obtém com a autonomia e complementaridade entre os sexos, proporcionadas pelo trabalho assalariado. Ainda que a sobrecarga de acumular uma dupla função – a do lar e a profissional – seja um fator nada desprezível quando se trata de produzir conflitos para a mulher, soluções vêm sendo cada vez mais encontradas, mudanças na mentalidade masculina vêm sendo produzidas e é indiscutível que temos um novo tipo de relacionamento entre os gêneros.

Recebido em 20/05/2009

Aceito em 16/12/ 2009

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  • Endereço para correspondência:

    Thálita Cavalcanti Menezes da Silva
    Rua Costa Gomes, 180, apto. 101, Madalena, CEP 50710–510, Recife-PE, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Este artigo é parte da dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica.
  • 2
    Todos os nomes das participantes são fictícios para preservar suas identidades.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Aceito
      16 Dez 2009
    • Recebido
      20 Maio 2009
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