Resumo:
A obra do peruano José Carlos Mariátegui é conhecida por tratar de temas latino-americanos, mais especificamente peruanos a partir do marxismo de maneira criativa. Em geral se associa a originalidade de sua obra às questões regionais, mas a partir de referências e autores europeus. Quando adentramos no contexto dos movimentos sociais peruanos da década de 1920, em particular no movimento camponês e indígena, é possível perceber que a preocupação do autor peruano está, muitas vezes, vinculada à necessidade de responder às demandas de uma luta política específica. O artigo tem como objetivo apresentar os movimentos radicais que foram imediatamente anteriores ao surgimento do marxismo no Peru e debater essas influências na obra de José Carlos Mariátegui.
Palavras-chave:
Indigenismo; Marxismo; Comunidades camponesas
Abstract:
The work of Peruvian José Carlos Mariátegui is known for dealing with Latin American themes, more specifically Peruvians as from Marxism in a creative way. The originality of his work is generally associated with regional issues, but based on European references and authors. When we enter the context of the Peruvian social movements of the 1920s, particularly in the peasant and indigenous movement, it is possible to see that the Peruvian author’s concern is linked to the need to respond to the demands of a specific political struggle. The article aims to present the radical movements that existed immediately before the emergence of Marxism in Peru and to discuss these influences in the work of José Carlos Mariátegui.
Keywords:
Indigenism; Marxism; Peasant communities
José Carlos Mariátegui (1894-1930), ao longo da década de 1920, havia produzido uma inovadora reflexão acerca da realidade peruana a partir do marxismo. Depois de sua morte, em 1930, a obra de Mariátegui foi esquecida por anos.
Somente a partir da década de 1950 os textos de Mariátegui seriam retomados e, a partir da década de 1970, estudados sistematicamente pelas correntes da esquerda latino-americana, em geral como uma alternativa regional de marxismo.
Sob os ares da Revolução Cubana, o argentino José Aricó descobriu Mariátegui e publicou um ensaio intitulado “Mariátegui y los orígenes del marxismo latino-americano” (Aricó, 1980) em que ressaltava o que depois Michael Löwy (2006)1 1 Löwy publicou um livro em que propunha uma antologia de textos produzidos pela esquerda de 1909 aos dias atuais, no caso 1999, ano da primeira edição. Essa antologia destacou quatro textos de Mariátegui, em que o autor estaria apresentando uma visão marxista original e divergente da posição soviética. Na introdução, Löwy enxerga em Mariátegui um opositor da linha da Internacional Comunista, “ortodoxa” (Löwy, 2006, p. 18-19). também denominaria como “heterodoxia”2 2 Existem vários artigos de Löwy em que ele utiliza o conceito de heterodoxia marxista para classificar Mariátegui, Gramsci, Lukacs e Korsch. Alguns exemplos podem ser vistos em: Löwy (1998a, 1998b, 21 nov. 1999, 2005) e Gomes e Reis (1996). no pensamento de Mariátegui.
O que chamava a atenção desses autores para o pensamento de Mariátegui eram algumas inovações conceituais que o afastariam da “ortodoxia” da Internacional Comunista, e uma análise original da formação histórica peruana, grande parte presente nos “Siete ensayos” (Mariátegui, 2011).3 3 Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, título do livro mais divulgado de Mariátegui. Ver Mariátegui (2011, 1975).
O que Mariátegui trazia de diferente e original era o papel das comunidades indígenas na revolução socialista no Peru, a inversão da lógica progressivista da conquista espanhola no Peru e o papel do mito para a revolução peruana, além de seu estilo pouco programático e mais ensaístico.
Para diversos autores, um trecho de um dos textos de Mariátegui sintetizava a percepção que se tinha da sua obra: “Não queremos que o socialismo seja na América decalque e cópia, mas criação heroica” (Mariátegui, 1986, p. 249).4 4 No original: “No queremos, ciertamente, que el socialismo sea en América calco y copia. Debe ser creación heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia realidad, en nuestro propio lenguaje, al socialismo indo-americano. He aquí una misión digna de una generación nueva” (Mariátegui, 1986, p. 249). E, sobre o que seria essa criação, socialistas, comunistas e até apristas têm debatido em centenas de páginas na América Latina e no mundo.
O que Mariátegui passava a simbolizar nos debates da esquerda latino-americana era a crítica ao espelhismo (reprodução acrítica e mecânica) do marxismo produzido em outras experiências sociais, particularmente europeias e soviéticas, sem uma análise do que teríamos de particular. Essa reprodução automática de fórmulas explicaria grande parte das derrotas da esquerda latino-americana em construir um caminho socialista no continente, ou, ao menos, explicava a dificuldade em fundir o socialismo às tradições radicais do movimento popular.
Esses debates acerca da particularidade da revolução na América Latina estavam diretamente relacionados aos ecos da Revolução Cubana na esquerda.
O debate foi interrompido pelos efeitos da queda do Muro de Berlin e a fragmentação da URSS, que trouxeram novas preocupações para os estudos acadêmicos, distanciando o marxismo e o movimento comunista das preocupações historiográficas da década de 1990.
Foi apenas depois das consequências negativas das políticas denominadas “neoliberais”, a partir do início do século XXI, e a vitória eleitoral de governos que reivindicavam, ao menos em discurso, um projeto de esquerda, como Hugo Chávez, Evo Morales,5 5 O ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, é um dos autores latino-americanos que resgatam a obra de José Carlos Mariátegui como um marxismo alternativo e indigenista. Um artigo que trata do assunto é García Linera (2008). o casal Kirchner e o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, que Mariátegui voltou a aparecer como o centro das preocupações de alguns estudiosos do movimento popular latino-americano, especialmente quando se tratava da questão indígena (tema importante para os países andinos) e das particularidades do continente latino-americano no marxismo.
Como acontece com muitos autores importantes, Mariátegui passou a representar muito mais que sua própria obra. Desde sua “redescoberta” na década de 1950, ele foi referência para muitas lutas políticas entre os partidos peruanos e seu pensamento tornou-se tão multifacetado que é difícil apreender sua figura histórica em meio a tanto que se citou, escreveu e reivindicou em seu nome. A obra de Mariátegui descolou-se de sua própria trajetória política, e, por muitas vezes, de seus próprios textos.
Nesse esforço por compreender o pensamento de Mariátegui, as conclusões mais divulgadas no Brasil costumaram isolá-lo, sempre solitário e excepcional no seu tempo. Tanto Flores Galindo, quanto José Aricó e mesmo Michael Löwy e Garcia Linera tenderam a separar Mariátegui dos coletivos comunistas e a explicá-lo como exceção ao ambiente “superficial” do movimento comunista na América Latina.
A direção de pesquisa desses autores tratou Mariátegui como um autor excepcional, distinto de tudo o que havia no movimento comunista latino-americano da época; foi em busca das influências e peculiaridades que explicavam essa excepcionalidade que Aricó escreveu:
[...] igual a outros heterodoxos pensadores marxistas, ele pertence à estirpe das rara avis, que em uma etapa muito difícil e de cristalização dogmática da história do movimento operário e socialista mundial se esforçam por estabelecer uma relação inédita e original com a realidade (Aricó, 1978, p. XIII; destaque nosso).
Para muitos autores, o que houve de peculiar na vida de Mariátegui foi a sua passagem pela Europa, particularmente pela Itália, onde pôde conhecer o pensamento de Sorel, Croce e Gobetti, além de Lenin. Ou seja, pelo filtro de um tipo de pensamento revolucionário socialista que explicava, do mesmo modo, a excepcionalidade de Gramsci.6 6 Em sua tese de doutorado acerca da obra de José Carlos Mariátegui, Leila Escorsim Machado partiu de uma hipótese muito próxima ao que a historiografia havia concluído acerca da excepcionalidade dele. Para Machado, Mariátegui era não apenas a rara avis, mas também quem havia trazido para o Peru a “modernidade” emergente que se desenvolvia na Europa, o movimento socialista. Ver: Machado (2004).
Para nós, embora os textos de Mariátegui tenham qualidades pouco comuns, se comparadas às de outros militantes comunistas da época, suas reflexões não se desenvolveram solitárias, nem se alimentaram apenas do que ele aprendeu na viagem pela Europa. Investigar o rico contexto político peruano em que Mariátegui atuou é fundamental para termos uma dimensão mais global de sua obra, e particularmente das vicissitudes desse primeiro encontro entre indigenismo e marxismo.
Trata-se de um período inicial do marxismo na América Latina, em que se buscou compreender pela primeira vez a realidade regional em suas particularidades, à luz de um projeto político internacional de emancipação dos trabalhadores, que iria influenciar diversas gerações posteriores de militantes de esquerda, mas também fundaria linhas de pesquisa e estudos acadêmicos nas ciências sociais da América Latina.
Nesse sentido, procuraremos retomar a questão indígena a partir da obra de Manuel González Prada.
Manuel González Prada e a questão indígena
A ocupação da cidade de Lima pelas tropas chilenas, em 1881, foi traumática para a oligarquia peruana. Além das perdas territoriais, os chilenos arrancaram o orgulho criollo dos conservadores da capital, situação que propiciou um novo debate sobre a nacionalidade peruana. Para muitos letrados e políticos da época, toda a falta de unidade do povo peruano recaía sobre as deficiências e a falta de patriotismo da população mestiça e indígena.7 7 Dentre os autores que se destacaram em proclamar com ares positivistas e cientificistas o racismo contra a população indígena da Serra, esteve Alejandro Deustua, conhecido por afirmar que a Sierra era um “peso morto para a nação” (Contreras Carranza, 2013, p. 174). Em geral, tal interpretação apontava para os índios como sendo os males que afligiam o Peru, incompatibilizando os ideais republicanos e nacionais com a população do altiplano, da Sierra,8 8 Vamos usar a palavra Sierra em espanhol para nos referir a região do altiplano andino peruano. Essa palavra tem uma dimensão geográfica, mas também cultural e política, já que a separação entre Costa e Sierra é também entre brancos e indígenas, entre Pizarro e Atahualpa, entre cidade e campo. Enfim, Costa e Sierra são palavras importantes para a história peruana, e sua tradução em português empobreceria o amplo significado. e os mestiços do litoral. Era cômodo para a oligarquia, derrotada e humilhada após a ocupação chilena, explicar a debilidade do Estado peruano apoiando-se em arraigados preconceitos colonialistas e racistas, que os eximiam da responsabilidade pela crise política. Os jornais da época estamparam manchetes que “denunciavam” a falta de patriotismo e a covardia dos indígenas.9 9 Um artigo que trata do racismo na Guerra do Pacífico: Areliano (2012). ,10 10 Ver também: Bonilla (1979).
Nesse ambiente de crise nacional emergiu a figura de Manuel González Prada. Nascido em Lima, em 1844, em uma família aristocrática da capital, viajou pela Europa e no Peru fundou um círculo literário que, posteriormente, constituiu-se como um partido político, a União Nacional.11 11 A União Nacional ou o Partido Radical criado a partir do grupo literário que rodeava Prada, teve vida efêmera e pouca vocação para a militância organizada. Nas palavras de Mariátegui: “O programa do Partido Radical, que, por outro lado, não foi elaborado por González Prada, permanece como um exercício de prosa política de um ‘círculo literário’. Já vimos que a União Nacional, efetivamente, não passou disso” (Mariátegui, 1975, p. 186).
Na Europa, Prada descobriu o anarquismo de Kropotkin, Proudhon, Malatesta e Bakunin, que o vinculou cada vez mais aos operários anarquistas peruanos. Seus escritos foram amplamente divulgados entre os círculos anarcossindicalistas12 12 O termo anarcossindicalismo designa o movimento sindical radical que se baseava em certos autores anarquistas e atuava nos sindicatos. Foi uma forma genérica de agrupar concepções políticas radicais muito ecléticas que se organizavam em torno dos sindicatos. da primeira década do século XX. Ficou conhecido pela crítica à religião e à ordem oligárquica, mas foi na defesa dos índios, com o artigo “Nuestros indios”, escrito em 1904, que seu nome seria lembrado como um dos primeiros indigenistas contemporâneos (González Prada, 1978).
González Prada surgiu na cena política peruana do início na virada do século XIX para o XX, e está inserido em um debate acerca da nacionalidade que percorre outros países da América Latina, opondo culturas autóctones e cultura europeia, cultura popular e cultura erudita. Essa tensão se traduz no Peru no debate entre hispanistas e arielistas, por um lado, e indigenistas por outro.
Em uma apresentação em Genova, em 1966,13 13 A transcrição dessa palestra foi publicada com o título de “El indigenismo en el Perú” (Arguedas, 1979, p. 5-8). José Maria Arguedas, importante escritor e etnólogo peruano, fez um histórico dessa dualidade e resgatou na conhecida Generación del 900 os primeiros representantes dessas duas correntes: Riva Aguero (1858-1923) e Vitor Andrés Belaúnde (1883-1966), hispanismo; e Julio O. Tello (1880-1947), indigenismo.
Os hispanistas caracterizavam-se pela afirmação da superioridade e a predominância da cultura hispânica no Peru (Arguedas, 1979, p. 6). No outro polo estaria o arqueólogo Tello, que buscou aprofundar seus conhecimentos acerca das culturas inca e pré-inca. Embora fosse um grande entusiasta das culturas andinas, seu ânimo pela grandeza do Peru Antigo não teve consequência direta nas comunidades indígenas do altiplano e na identidade nacional peruana.
Mas o mesmo Tello, como arqueólogo, perde de vista o índio vivo. Admira o folclore; entretanto, forma um conjunto de bailarinos de seu povoado nativo, Huarochiri, e os veste com trajes “estilizados” por ele, criados por ele, inspirando-se em motivos arqueológicos, com menosprezo aos vestidos típicos do povoado de Huarochiri (Arguedas, 1979, p. 6).
A crítica gonzalezpradista se preocupou com o índio vivo e seguiu o caminho de uma radicalização crescente: do liberalismo democrático à descoberta das mazelas da população passando pela literatura radical europeia até o anarquismo.
Na virada do século, González Prada reconheceu que era no regime latifundiário que se encontravam os problemas peruanos. Como solução, apresentou uma revolução próxima e inevitável, embora essa apareça em sua obra de forma vaga e apocalíptica.
As concepções políticas expressas em seus discursos e artigos não possuem uma estrutura que possa representar um programa de ação, nem uma perspectiva de futuro. Suas ideias refletiam mais a solução e a perspectiva anarquista da época. Apontava contra a política oligárquica, o latifúndio e a Igreja.
Prada ajudou a romper a despolitização no movimento operário - que nos seus primeiros anos estava hegemonizado por concepções mutualistas e por um sindicalismo economicista14 14 Economicismo é o termo utilizado no movimento operário para designar um tipo de sindicalismo que privilegia as lutas por melhorias econômicas e despreza a luta política. -, contribuindo para a introdução dos temas mais amplos da realidade nacional, como as condições de vida no campo e a exploração gamonal.15 15 Gamonal refere-se ao sistema latifundiário típico da região andina. Mariátegui (2008) afirma que o gamonalismo não é apenas um sistema econômico ou uma relação de produção, é um modo de produção, com consequências políticas e superestruturais.
Em “Nuestros indios” González Prada introduziu o tratamento da questão indígena pela crítica às ideias pseudocientíficas do positivismo comtiano e outras variantes, como o darwinismo social, de Spencer, bastante em voga na época.
Cômoda invenção a etnologia nas mãos de alguns homens! Admitida a divisão da humanidade em raças superiores e inferiores e reconhecida a superioridade dos brancos, e por conseguinte o seu direito de monopolizar o governo do planeta, nada mais natural do que a supressão do negro em África, do pele-vermelha nos Estados Unidos, do tágalo nas Filipinas, do índio no Peru. Como na seleção ou eliminação dos fracos e inadaptados se realiza a lei suprema da vida, os eliminadores ou supressores violentos não fazem mais do que acelerar o trabalho lento e preguiçoso da Natureza: abandonam a marcha da tartaruga pelo galope do cavalo. Muitos não o escrevem, mas deixam ler nas entrelinhas, como Pearson quando se refere à solidariedade entre os homens civilizados da raça europeia contra a Natureza e a barbárie humana. Onde se lê barbárie humana traduza-se o homem sem pele branca (González Prada, 1976, p. 332).
Da politização do racismo, Prada passou à questão indígena e a sua origem colonial, que estaria na raiz da divisão da sociedade peruana entre indígenas e brancos.
Gonzalez Prada, já um anarquista assumido quando escreveu esse texto, encontrou no Estado o seu inimigo. A partir de uma constatação demográfica que seria repetida por Mariátegui anos depois, legitimava a rebelião indígena: o Estado peruano, a “grande mentira”, mantém dois ou três milhões fora da lei.
Primeiro os Conquistadores, em seguida seus descendentes, formaram nos países da América um elemento étnico bastante poderoso para subjugar e explorar aos indígenas. Embora se tache de exageradas as afirmações de Las Casas, não se pode negar a avarenta crueldade dos conquistadores [...] No Peru vemos uma sobreposição étnica: excluindo os europeus e o reduzido número de brancos nacionais ou criollos, a população se divide em frações muito desiguais pela quantidade de “encastados” ou dominadores e os indígenas ou dominados. Cem a duzentos mil indivíduos se sobrepõem a três milhões (González Prada, 1978, p. 9).
Na sequência, Prada denuncia o racismo e desnaturaliza a desigualdade, relacionando os problemas da sociedade peruana à manutenção do sistema gamonal-feudal da Sierra, parte da dominação do Estado.
[...] Uma fazenda se forma pela acumulação de pequenos lotes arrebatados de seus legítimos donos, um patrão exerce sobre seus peões autoridade de um barão normando. Não apenas influi na nomeação de governadores, prefeitos e juizes de paz, mas também celebra casamentos, designa herdeiros, reparte as heranças, e para que os filhos quitem as dívidas do pai, os submete a uma servidão que frequentemente dura a vida inteira. Impõe castigos terríveis, como a corma, a flagelação, o cepo de campaña16 16 Tanto a corma como o cepo de campaña são instrumentos de tortura que consistem em duas madeiras que aprisionam membros ou a cabeça da vítima. Utilizados para criar extremo desconforto, humilhação e imobilização. e a morte, risíveis como a raspagem do cabelo e o banho de água fria. Quem não respeita vidas nem propiedades realizaria um milagre se resguardasse da exposição a honra das mulheres: Toda índia, solteira ou casada, pode servir aos desejos brutais do “senhor”.
[...] Em resumo: as fazendas constituem reinos no coração da República, os fazendeiros exercem o papel de autocratas no meio da democracia.
[...] A questão do índio, mais que pedagógica, é econômica e social. Como resolvê-la? (González Prada, 1978, p. 18; destaque nosso).
A citação acima é importante para desvelarmos a contribuição de Prada ao problema indígena. Em “Nuestros indios”, aparece pela primeira vez no debate público a ligação entre a situação dos índios e a concentração de terras na Sierra. Essa análise sobre a subsistência de um regime de servidão que se apresenta não somente em uma divisão social - entre classes gamonales e camponeses explorados -, mas também em suas características étnicas, influenciaria toda uma geração posterior e é o traço mais marcante do pensamento de González Prada.
Além de sua atuação na imprensa operária, o pensamento de González Prada contribuiria na ventilação de novos ares entre os intelectuais e nas camadas médias urbanas, preparando terreno para os debates que dominariam a geração posterior à sua morte, levantando temas como a questão agrária, a solução revolucionária para o problema indígena e a urgência de uma autêntica democracia.
Rebelião indígena e anarquismo
O crescimento das culturas de açúcar, a mineração e as ferrovias pressionaram as terras tradicionais indígenas e desorganizaram a antiga ordem da Sierra. Chevalier transcreve uma ilustrativa e dramática descrição de Arguedas sobre as transformações do início do século XX.
A ampla puna era para todo mundo, não havia pastos cercados por pedras ou alambrados; a extensa puna não tinha dono. Os índios viviam livremente onde melhor lhes parecia. Os mistis17 17 Misti é a palavra quéchua usada pelos indígenas para se referir ao branco. Pode ter significado próximo a patrão, a chefe; ou pode ser usada pejorativamente. e mestiços despertaram, então, para a existência da puna: pastos, gados, índios, estúpidos adormecidos pelo frio. Vamos! E todos juntos correram para se apoderar da puna. Eles empreenderam a limpeza, para sempre, das chukllas, como também das aldeias, e fizeram mais altas as cercas de arame farpado e de pedras na puna livre (Arguedas apud Chevalier, 1973, s.p.).18 18 Este trecho está em Chevalier, Imperialismo y agro peruano, sem data e sem numeração de páginas, citado por Anderle (1985, p. 20).
Nas descrições de Arguedas, os Andes apareciam como um paraíso comunalista19 19 Utilizamos a palavra comunalista para identificar a organização comunal típica de algumas experiências rurais na América, e também em outras regiões do mundo. Diferente de comunismo, que está associado a uma corrente política contemporânea, marxista, e que prevê uma sociedade sem classes, pós-capitalista e industrializada. que sofreu uma repentina invasão e apropriação das terras. Foi nesse contexto que surgiria um movimento indígena de uma magnitude tal que pudesse depois ficar conhecido como “La gran rebelión indígena”.
Os levantes indígenas contra a ordem gamonal foram comuns; de tempos em tempos explodiam nos Andes com violência. Alberto Flores Galindo nos apresenta uma série de notícias de levantes indígenas, em 1886, 1887, 1895, de 1906 até 1911. Em todas essas rebeliões há um mesmo padrão:
[...] inicia-se com motins ou tumultos antifiscais; dirigem-se contra as autoridades locais, questionam o sistema de fazendas, proclamam-se os autênticos proprietários das terras, declaram guerra ao misti ou branco e são conduzidos pelos mestiços que viviam fora dos grupos camponeses (Flores Galindo, 1993, p. 181).
O autor analisa particularmente a última rebelião indígena que precede a “Gran rebelión indígena del sur”, dirigida por Rumi-Maqui, em 1916.
Teodomiro Gutierrez Cuevas (1864-?), um sargento do exército peruano, havia sido subprefeito de Chucuito entre os anos de 1903-1904, e nessa gestão havia suprimido os trabalhos gratuitos, o reparte da lã, além de ter aberto uma escola para os filhos dos camponeses (Flores Galindo, 1993, p. 181). Embora fossem medidas legais, a atividade de Teodomiro Gutierrez logo tornou seu nome conhecido entre os indígenas e, principalmente, entre os gamonales, que logo conseguiram que ele fosse destituído.
Em 1913, Teodomiro novamente entraria na cena política, convidado pelo presidente Guillermo Billingurst (1851-1915) para investigar a situação de conflito entre indígenas e fazendeiros da região do altiplano. Os gamonales voltaram a pedir a destituição de Teodomiro, e, em 1914, com a queda do presidente, ele perde também o cargo, bem como a sua patente militar, e é obrigado a fugir do país, inicialmente atravessando a fronteira com a Bolívia, depois seguindo para a Argentina.
Em 1916, retorna a Puno, com um programa para: “reativar a rama [ver definição adiante] [...] organizar um exército camponês e preparar um levante para o domingo de carnaval. Muda seu nome para Rumi-Maqui20 20 Rumi-Maqui significa mão de pedra em quéchua. e se propõe a restaurar o Tahuatinsuyo” (Flores Galindo, 1999, p. 182). Antes do planejado, em 1º de dezembro de 1915, à frente de algumas centenas de camponeses, Rumi-Maqui controla algumas fazendas, e em San José perde uma batalha para as forças paramilitares dos gamonales, sendo preso. Em 1916, consegue fugir da prisão e desaparece.
O importante dessa rebelião é um aspecto que acompanharia as outras rebeliões na Sierra peruana: os camponeses opõem-se como indígenas às forças políticas do misti e estruturam suas reivindicações de acordo com a ideia de que as terras têm sido usurpadas pelos brancos desde a Conquista. Por essa razão, as terras lhes pertenciam por direito e por antiguidade. Nesse contexto, apareceu também o objetivo último: o restabelecimento do Tahuantinsuyo, o Império Inca.
Rumi-Maqui lideraria a última das rebeliões locais. Todos os levantes camponeses posteriores teriam uma dimensão política mais ampla e estariam, na maior parte das vezes, articulados com os movimentos radicais dos centros urbanos, que dariam à reinvindicação pela terra perspectivas político-programáticas mais amplas.
O primeiro encontro do movimento popular urbano com o campesinato indígena da Sierra deu-se através de uma série de associações indigenistas com sede em Lima.
Pouco depois que González Prada escreveu “Nuestros indios”, a defesa do indígena foi sustentada por um grupo de intelectuais reunidos na Asociación Pró-derecho Indigena, fundada em 1909 e dissolvida em 1916. O curto tempo em que essa associação esteve ativa serviu para atrair militantes anarquistas, algumas lideranças indígenas e intelectuais da capital. Dessa iniciativa surgiu, em 1919, o Comitê Central Pró-derecho Indígena Tahuantisuyo. Dora Mayer (1868-1959), mais tarde, descreveria esse processo com as seguintes palavras:
Ainda que a associação Pró-indígena não tivesse evidentemente em Lima mais vida que a que lhe dávamos Zulén e eu, ela havia deixado raízes maiores nas províncias. Ali perdurou na vida autônoma algumas das delegações, ouvindo-se falar nos sítios mais inesperados de uma “Pró-indígena”, quando a instituição mãe já não existia mais, e, pouco a pouco, essas sementes deram seu fruto no Comitê Pro-derecho Indígena, constituído em Lima em 1919, e no primeiro Congresso Indígena Tahuantinsuyo, uma verdadeira revelação de autêntica iniciativa indígena, celebrado em Lima para o Centenário da Independência Nacional, em 1921 (Mayer, 1926 apud Arroyo Reyes, 2005, s.p.).
Pedro Zulén (1889-1925), companheiro de Dora Mayer, e com ela principal instigador da associação indigenista, radicalizaria seu discurso e encontraria na base econômica do latifúndio andino a explicação para as mazelas do índio. Em 1915, escreveria um artigo intitulado “¡Destruíamos o latifúndio!” (Zulén, 27 nov. 1915).
Diferente da organização criada anos antes por Dora Mayer e Pedro Zulén, o Comitê teria outras características importantes, como a influência anarquista e uma militância mais efetiva entre os indígenas da Sierra. O próprio nome da organização, Comitê, carregava um tom libertário, termo tradicional nas organizações urbanas anarcossindicalistas. Outra influência importante, que cresceu ao longo dos anos posteriores à fundação do Comitê, foi a ideia do ressurgimento do Império Inca enquanto perspectiva utópica, combinada aos pressupostos anarquistas de justiça social e igualdade.21 21 A ideia de um ressurgimento do Império Inca combinada com a ideologia igualitária anarquista foi frequente entre os jornais operários de Lima, como em La Protesta, o mais importante jornal anarquista peruano da época.
Os princípios que regiam programaticamente o Comitê tinham ainda um sentido legalista e depositavam esperanças na possibilidade de se conseguir - através da mobilização indígena, aliada a um aparato jurídico - o respeito de alguns artigos da Constituição que protegiam os índios e suas comunidades. A crença nos instrumentos legais como método para se atingir a emancipação indígena não estava baseada somente em artigos constitucionais, mas também no apoio concreto do presidente Augusto Lenguía (1863-1932) ao Comitê.
O 1º Congresso Indígena, realizado em 1921 na cidade de Lima, contou com o apoio do mandatário no pagamento do transporte e refeições para os delegados da Sierra. Não somente esse apoio material, mas a retórica do presidente, nos primeiros anos de seu governo, também fazia crer que o Comitê poderia contar com recursos estatais. Lenguía havia subido ao poder com um discurso que apontava para o combate ao civilismo22 22 Civilista se refere ao Partido Civil que hegemonizou a política peruana entre 1895 e 1919, anos conhecidos como a República Aristocrática. e ao gamonalismo, anunciando reformas em benefício dos mais pobres. Ele estabeleceu o Dia do Índio, inaugurou um monumento a Manco Capac, proclamou-se o “novo Wiracocha” e pronunciou discursos em quéchua, dando a impressão de que era simpático a um certo indigenismo (Arroyo Reyes, 2005).
Em 1922, Lenguía criou o Patronato de la Raza Indígena como uma tentativa de vincular o crescente movimento indígena com o governo. Embora a institucionalização do movimento indígena tenha sido recebida com certa desconfiança, o tom legalista da declaração de princípios e o apoio à causa indígena criaram enormes expectativas entre a maioria dos líderes regionais indígenas.
O escritório onde funcionava o Comitê era o local em que muitos índios serranos se dirigiam para fazer denúncias contra os abusos dos gamonales e de usurpação das terras. A própria Dora Mayer lembra, em suas memórias, como vivia cheio o pequeno escritório no qual as pessoas solidárias ao problema indígena acolhiam as denúncias dos índios e lhes davam encaminhamento legal. Essa atividade filantrópica tinha limites na própria estrutura da sociedade peruana. Os latifundiários da Sierra e os enganchadores23 23 Enganchadores se refere a enganche, um tipo de recrutamento de mão de obra comum no Peru, em que alguns agentes das empresas agrícolas do litoral, necessitadas de mão de obra barata, recrutavam camponeses em suas aldeias prometendo salários relativamente bons, mas, ao chegarem ao local de trabalho, acabam presos, sem poderem abandonar a fazenda até que pagassem a “dívida” que contraíram desde o transporte da aldeia, até os bens de consumo que necessitavam para sobreviver e eram obrigados a comprar em um mercado controlado pela fazenda. Esse tipo de relação de trabalho, com características de servidão, em que a mão de obra é aprisionada por uma dívida artificial ou outro compromisso que nunca conseguiam quitar, foi recorrente em toda a América Latina. Conhecida com o nome de tienda de raia no México, casas aviadoras no ciclo da borracha no Norte do Brasil, entre outros. Ver também: Contreras Carranza (2013, p. 147). não respeitavam a ação legal que vinha da capital e nem os funcionários da capital faziam questão de aplicar algum tipo de penalidade aos latifundiários que cometiam abusos contra os índios.
Logo, no 1º Congresso Indígena a realidade indígena parecia estar essencialmente ligada ao problema da terra. Esse tema ocupou o centro dos debates entre os delegados presentes. O que garantia ainda a sobrevivência da linha filantrópica24 24 Utilizamos a palavra filantrópica conforme foi caracterizada por Mariátegui a direção do Comitê Indígena nesses tempos. Para uma melhor definição dessa organização pelo autor, ver: Mariátegui (1994, p. 18-23). no meio indigenista era o apoio do presidente Lenguía. O Congresso abriu com vivas ao mandatário, contando com o apoio do emergente movimento estudantil e do movimento operário.
Logo que o movimento indigenista passou a orientar-se no sentido da luta pela terra, principalmente na região de Puno, foi fundada a Liga de Haciendados del Sur, organização de fazendeiros que passou a fazer uma grande campanha contra o Comitê (ver Leibner, 1999, p. 178).
Enquanto o Comitê animava a rebelião indígena, sob uma prédica milenarista de retorno ao incário, os conflitos chegavam à Lima e impunham ao governo um posicionamento. Nos anos de 1922-1923, na região Sul, ocorreram diversos massacres. O que alcançou maior repercussão foi o de Huaconé. Ao contrário do que alguns membros do Comitê imaginavam, a resposta de Lenguía foi a perseguição aos dirigentes indigenistas. O ano de 1923 foi significativo por marcar uma fronteira importante na “Nueva Patria” de Lenguía. Ao mesmo tempo em que o Peru vivia as últimas mobilizações da onda de lutas populares que animavam o movimento popular desde 1919, o presidente passava a exercer uma repressão generalizada contra os seus oponentes. Em busca de apoio para sua reeleição, em 1924, redirecionou seu discurso para a oligarquia latifundiária, a Igreja e os interesses norte-americanos.25 25 Diversos autores marcam em meados da década de 1920 a inflexão decisiva de Lenguia em direção ao capital norte-americano. Ver: Cotler (2006, p. 158-165). Essa direção do governo, mais clara depois da prisão de Haya de La Torre, e a deportação de líderes estudantis e operários, modificariam a orientação de todo o Comitê.
Nesse ano de 1924 o movimento indigenista havia conseguido estabelecer uma ligação coordenada entre as comunidades e o centro dirigente em Lima. Muitos dos dirigentes, como Ezequiel Urviola (1885-1925), Hipólito Salazar e Carlos Condorena, de clara filiação anarquista, vincularam-se de tal forma às comunidades indígenas que as atividades do Comitê pareceram realmente ameaçar o latifúndio. Os fazendeiros da região Sul, onde as sublevações alcançaram maior importância, as descreveram com as seguintes palavras:
Por todos estes documentos fica comprovado, até a evidência, as complicações das [sic] sublevação indígena de Huaconé, que não apenas tinham por objetivo a destruição de todos os pueblos e de todas as propriedades, a morte de todos seus habitantes e o roubo e o saque geral, mas também a mais espantosa Revolução Social, o aniquilamento de todas as instituições nacionais, a destruição de todos os poderes públicos e, por fim, o caos (Fisancho Piñeda apud Leibner, 1999, p. 179).
Em 1923, o jornal La Verdad de Sicuan, em 5 de dezembro de 1922, dizia: “O que pretendem é saquear as fazendas, queimar populações, exterminar os mistis, repartir as propriedades territoriais e os capitais ‘semoventes’ da criação de gado, destruir tudo e restaurar o império do Tahuantinsuyo.” 26 26 Esse trecho está em: Flores Galindo (1993, p. 183).
O governo Lenguía, demonstrando os limites de seu apoio à causa indígena, passou a perseguir os dirigentes indigenistas, particularmente os que atuavam no sul. Em 1924, o 4º Congresso Indígena teve de realizar-se quase que clandestinamente e a perseguição aos líderes do movimento desenvolveu-se até 1927, quando Lenguía proibiu definitivamente o funcionamento da organização. Os argumentos para esse fechamento foram os mesmos utilizados pelos líderes gamonales desde 1921. Segundo a Liga dos Hacendados del Sur - organização dos fazendeiros da região Sul -, os membros do Comitê exploravam os índios com o pretexto de lutar pelos seus direitos. Utilizavam os índios para engrossar as fileiras dos sindicatos e desorganizar o governo. Para tirar a legitimidade do movimento indigenista e angariar simpatia e medo entre a elite criolla de Lima, um dos argumentos que os fazendeiros mais utilizavam era o de acusar os militantes indigenistas de rameros, bolcheviques e vermelhos. Ramero referia-se a uma contribuição - a rama - que o movimento recolhia entre os índios para o sustento e de sua atividade política. Essa contribuição era colocada pelos latifundiários como uma forma de exploração e manipulação contra os camponeses.
Em 1927, quando Lenguía havia proibido o funcionamento do Comitê, muitos dos líderes já estavam migrando para os novos movimentos sociais que surgiam. Urviola, Salazar, Eduardo Quispe y Quispe ligaram-se ao marxismo-leninismo de Mariátegui; Juan Hipólito Pevez e Demétrio Sandoval por sua vez, ingressariam nas fileiras do Partido Aprista Peruano de Haya de La Torre.
Mariátegui e indigenismo
El internacionalismo no es como se imaginan muchos obtusos de derecha y de izquierda la negación del nacionalismo, sino su superación. Es una negación dialécticamente, en el sentido de que contradice al nacionalismo; pero no en el sentido de que, como cualquier utopismo, lo condena y descalifique como necesidad histórica de una época (Mariátegui, 3 maio 1929).
Mariátegui chegou a conhecer Pedro Zulén e Dora Mayer, e, aliás, participou de algumas assembleias da Associação Indígena. Além disso, Mariátegui se vinculou a outra influência política importante no indigenismo daquele tempo, que foi a Revolução Mexicana, em particular às ideias de José Vasconcelos, autor de Raza cósmica, publicada em 1925, que propunha uma identidade racial latino-americana baseada na mestiçagem, que tinha como fermento os debates propiciados pela reconstrução nacional pós-revolucionária no México. Essas ideias, que inspirariam o Partido Aprista Peruano, chegaram diretamente por meio de Victor Haya de la Torre.
Rebeliões indígenas na serra sul, as associações indigenistas, a crítica anarquista e o pensamento gonzález-pradista e o latino-americanismo que ecoava do México pós-revolucionário influenciaram a obra de José Carlos Mariátegui, mas foi nas teses sobre questão agrária e questão colonial da Internacional Comunista que todas essas influências se amalgamaram para produzir a primeira interpretação marxista latino-americana, expressa nos “Setes ensaios” e nas teses sobre a questão das raças na América Latina, que Mariátegui enviou para a Reunião de Partidos Comunistas da América Latina, ocorrida em 1929.27 27 As atas dessa conferência estão em: El movimiento... (1929).
A comunidade indígena, o ayllu, ou a propriedade camponesa comunal, para Mariátegui, teve origem no Império Inca, que, embora autocrático, apoiou-se sobre a exploração coletiva da terra: “ao comunismo incaico - que não pode ser negado nem diminuído por ter se desenvolvido sob Regime autocrático dos Incas - designa-se por isso mesmo de comunismo agrário” (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 71), e cita Cesar Ugarte para definir a comunidade:
Propriedade coletiva da terra cultivável pelo Ayllu ou conjunto de famílias aparentadas, ainda que dividida em lotes individuais intransferíveis; propriedade coletiva das águas, terras de pasto e bosques pela marca ou tribo, ou seja, uma federação de ayllus estabelecidos ao redor de uma mesma aldeia; cooperação no trabalho; apropriação individual das colheitas e frutos (Ugarte apud Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 71).
Essa economia “natural e orgânica” (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 72) foi desorganizada pela conquista, mas sobreveio da incapacidade do feudalismo espanhol em suplantar o ayllu. Mariátegui demonstra que, ao contrário do que possa parecer, a comunidade camponesa foi comum em outros períodos, não sendo assim um fenômeno andino.
O feudalismo deixou, analogamente, que subsistissem as comunas rurais na Rússia, país com o qual é sempre interessante o paralelo, porque seu processo histórico se aproxima muito mais desses países agrícolas e semifeudais que os dos países capitalistas do Ocidente (Mariátegui, 2008, p. 80).
E também: “O comunismo agrário do ayllu, uma vez destruído o Estado inca, não era incompatível nem com um, nem com o outro” (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 78).
O regime medieval, teórica e praticamente, conciliava a propriedade feudal com a propriedade comunitária. [...] As disposições das leis coloniais sobre a comunidade, que se mantinham sem inconveniente ao seu mecanismo econômico, reformavam, em troca, e logicamente, os costumes contrários à doutrina católica (a prova matrimonial etc.) e tendiam a converter a comunidade numa roda da sua máquina administrativa e fiscal. A comunidade podia e devia subsistir, para maior glória e proveito do rei e da Igreja (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 79).
Segundo Mariátegui, a república, com sua jurisdição aparentemente liberal, não foi capaz de destruir o latifúndio, mas foi eficiente para atacar a comunidade. A república opôs a propriedade individual à comunidade, e acabou favorecendo a concentração da terra. Onde há economia capitalista e distribuição de terra de fato, conforme o programa demo-liberal, a comunidade desapareceu. Foi na impossibilidade do feudalismo espanhol colonizador em prover subsistência do campesinato que residiu a vitalidade do ayllu.
Mariátegui encontrou na comunidade indígena a antítese tanto para o feudalismo quanto para o imperialismo. O ayllu seria a própria Revolução agrária, e também o germe, o guardião da nacionalidade peruana. As duas tarefas da revolução burguesa (agrária e antifeudal), que não haviam sido cumpridas pela fraca burguesia, peruana se manifestavam no problema indígena peruano.
A religião peruana e a nacionalidade
Para uma análise marxista da religião, segundo Mariátegui, não bastava a crítica ateia, antirreligiosa. Era ainda mais importante compreender o significado que o pensamento religioso adquire na prática econômica e política dos homens e mulheres e de que modo os fatores econômicos se relacionavam com as concepções religiosas.
A primeira demarcação importante que Mariátegui estabelece em seu texto é com a crítica antirreligiosa do liberalismo e também do anarquismo.
Já foram definitivamente ultrapassados os tempos do apriorismo anticlerical, no qual a crítica “livre pensadora” se contentava com uma execução sumária e estéril de todos os dogmas e Igrejas, a favor do dogma e da Igreja de um “livre pensamento” ortodoxamente ateu, leigo e racionalista (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 163).
Para Mariátegui, o Peru conviveu com uma religião invasora, que não possuía relação com as formas de existência da maioria dos habitantes do país, diferente da religião orgânica do Tahuantinsuyo.
O povo incaico ignorou toda separação entre a religião e a política, toda diferença entre o Estado e a Igreja. Todas as suas instituições, como todas as suas crenças, coincidiam estritamente com sua economia de povo agrícola e com seu espírito de povo sedentário. A teocracia repousava sobre o comum e o empírico (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 169).
Na mesma linha de raciocínio que aplicou à questão religiosa, Mariátegui explicou a relação da literatura (e, podemos entender, a arte também) em países periféricos no sistema de dominação imperialista e desse tema pode-se desprender o problema da formação nacional:
Uma teoria moderna - literária, não sociológica - sobre o processo normal da literatura de um povo distingue nela três períodos: um período colonial, um período cosmopolita, um período nacional. Durante o primeiro período um povo, literariamente, não passa de uma colônia. Durante o segundo período assimila simultaneamente elementos de diversas literaturas estrangeiras (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 230).
Com isso, a classificação analítica de Mariátegui utilizava uma divisão do processo da literatura em três estágios: primeiro o colonial, depois um período cosmopolita e após um terceiro, nacional. Para Mariátegui, o período nacional da literatura é também o último de uma literatura genuinamente peruana, genuinamente nacional, e não uma literatura proletária e socialista.
Como oposto à literatura nacional está a literatura colonial, decadente, que, se já era retrógrada no período colonial, no período republicano aprofundou sua condição.
A debilidade, a anemia, a flacidez de nossa literatura colonial e colonialista provêm de sua falta de raízes. A vida, como afirmava Wilson, vem da terra. A arte tem necessidade de se alimentar da seiva de uma tradição, de uma história, de um povo. E no Peru a literatura não brotou da tradição, da história, do povo indígena.
Nasceu de uma importação da literatura espanhola; depois se nutriu da imitação da mesma literatura. Um cordão umbilical doentio a manteve ligada à metrópole (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 231).
Para Mariátegui, a burguesia peruana teria sido incapaz de produzir nacionalidade, mas, em oposição ao colonialismo que repousava sobre o feudalismo gamonal, apenas o camponês-indígena poderia inspirar nacionalidade. Assim, em oposição ao colonialismo, o nacional poderia ser construído a partir da civilização indígena que sobreviveu à Conquista. Se na colônia a influência espanhola apenas gerava decadência, esterilidade, cópia e anemia na literatura, todo instante de vitalidade artística era devido ao índio, ao povo, que, como um guardião da nacionalidade peruana, esperava as transformações sociais para poder expressar com toda sua pungência o espírito nacional peruano.
Os poucos literatos vitais, nessa pantanosa e anêmica procissão de cansados e amarrotados escribas, são os que, de alguma maneira, traduziram o povo. A literatura peruana é uma rapsódia pesada e indigesta da literatura espanhola, em todas as obras nas quais ignora o Peru vivo e verdadeiro. O gemido indígena, a pirueta mulata, são as notas mais animadas e verazes dessa literatura sem asas e vértebras (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 234).
Acompanhando o próprio processo da literatura do qual fez parte, Mariátegui introduz a etapa cosmopolita da literatura, um momento intermediário do processo de formação nacional, em que a partir da influência das transformações revolucionárias do mundo se produz uma crítica aberta à literatura colonial e se prepara a verdadeira literatura nacional. Como expressões dessa literatura cosmopolita, encontram-se González Prada e Ricardo Palma28 28 Manuel Ricardo Palma Carrillo (1833-1919) foi um escritor peruano que ficou famoso por escrever Tradiciones peruanas, uma série de contos de ficção histórica que valorizava a história popular, a linguagem popular, com relativa informalidade. :
O autor de Páginas libres aparece como um escritor de espírito ocidental e de cultura europeia. Mas, dentro de uma ‘peruanidade’ ainda por se definir, ainda por se precisar, por que considerá-lo como o menos peruano dos homens de letras que traduzem essa ‘peruanidade’? (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 242-3).
E marca os limites do cosmopolitismo
González Prada não interpretou esse povo, não esclareceu seus problemas, não chegou a um programa para a geração que deveria vir depois dele. Mas representa, de qualquer maneira, um instante - o primeiro momento lúcido - da consciência do Peru (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 243).
Mas se o cosmopolitismo era esse momento de crítica e ruptura com a metrópole, com o espírito colonial, não era ainda a literatura peruana.
Para Mariátegui, a literatura nacional não era produto de um gênio, de um intérprete com qualidades maiores, mas uma síntese de toda uma luta pela formação da nacionalidade, e esse processo ainda não havia culminado em uma obra-prima.
Também não cabe duvidar de sua vitalidade pelo fato de que até agora não produziu uma obra-prima. Obra-prima não floresce a não ser em um terreno já muito adubado por uma multidão anônima e obscura de obras medíocres. O artista genial não é geralmente um princípio, e sim uma conclusão. Aparece, normalmente, como o resultado de uma vasta experiência (Mariátegui, 2008MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 312).
Mas, se a literatura peruana ainda não havia se formado, já dava seus primeiros passos, com César Vallejo, Magda Portal e o indigenismo.
O marxismo associa nacionalidade com burguesia em uma perspectiva histórica. E é mais uma vez Mariátegui que encontra o índio vivo e sua herança histórica, o Império Inca, como argamassa de construção da identidade nacional da revolução peruana. Para Mariátegui, a revolução democrático-burguesa precisava construir uma nação peruana e a sua identidade ainda inexistente.
A atividade política de Mariátegui, como fundador do Partido Comunista (denominado socialista para não chamar a atenção da repressão política29 29 Existem diversas evidências de que o projeto de Mariátegui era fundar uma sessão da Internacional Comunista no Peru, que em 1930 seria denominado Partido Comunista do Peru. Essa questão pode ser vista nas intervenções dos “enviados de Mariátegui” a Buenos Aires, transcritas nas atas da Primeira Conferência Comunista Latino-Americana, ocorrida em 1929. Ver: El Movimiento… (1929) e Deveza (2016). ), animador do movimento operário, editor da revista Amauta e escritor, se direcionou para a constituição de organizações e instrumentos políticos que pudessem servir na construção de uma nacionalidade peruana, em meio à luta pela revolução mundial anunciada pela Internacional Comunista. Mariátegui foi o primeiro indigenista a conseguir tratar a questão indígena, a identidade nacional, o marxismo, a revolução proletária e a luta camponesa em uma obra política, estética e literária que marca os primeiros anos do indigenismo no Peru e, quiçá, na América Latina.
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1
Löwy publicou um livro em que propunha uma antologia de textos produzidos pela esquerda de 1909 aos dias atuais, no caso 1999, ano da primeira edição. Essa antologia destacou quatro textos de Mariátegui, em que o autor estaria apresentando uma visão marxista original e divergente da posição soviética. Na introdução, Löwy enxerga em Mariátegui um opositor da linha da Internacional Comunista, “ortodoxa” (Löwy, 2006, p. 18-19).
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2
Existem vários artigos de Löwy em que ele utiliza o conceito de heterodoxia marxista para classificar Mariátegui, Gramsci, Lukacs e Korsch. Alguns exemplos podem ser vistos em: Löwy (1998a, 1998b, 21 nov. 1999, 2005) e Gomes e Reis (1996).
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3
Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, título do livro mais divulgado de Mariátegui. Ver Mariátegui (2011, 1975).
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4
No original: “No queremos, ciertamente, que el socialismo sea en América calco y copia. Debe ser creación heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia realidad, en nuestro propio lenguaje, al socialismo indo-americano. He aquí una misión digna de una generación nueva” (Mariátegui, 1986, p. 249).
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5
O ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, é um dos autores latino-americanos que resgatam a obra de José Carlos Mariátegui como um marxismo alternativo e indigenista. Um artigo que trata do assunto é García Linera (2008).
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6
Em sua tese de doutorado acerca da obra de José Carlos Mariátegui, Leila Escorsim Machado partiu de uma hipótese muito próxima ao que a historiografia havia concluído acerca da excepcionalidade dele. Para Machado, Mariátegui era não apenas a rara avis, mas também quem havia trazido para o Peru a “modernidade” emergente que se desenvolvia na Europa, o movimento socialista. Ver: Machado (2004).
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7
Dentre os autores que se destacaram em proclamar com ares positivistas e cientificistas o racismo contra a população indígena da Serra, esteve Alejandro Deustua, conhecido por afirmar que a Sierra era um “peso morto para a nação” (Contreras Carranza, 2013, p. 174).
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8
Vamos usar a palavra Sierra em espanhol para nos referir a região do altiplano andino peruano. Essa palavra tem uma dimensão geográfica, mas também cultural e política, já que a separação entre Costa e Sierra é também entre brancos e indígenas, entre Pizarro e Atahualpa, entre cidade e campo. Enfim, Costa e Sierra são palavras importantes para a história peruana, e sua tradução em português empobreceria o amplo significado.
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9
Um artigo que trata do racismo na Guerra do Pacífico: Areliano (2012).
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10
Ver também: Bonilla (1979).
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11
A União Nacional ou o Partido Radical criado a partir do grupo literário que rodeava Prada, teve vida efêmera e pouca vocação para a militância organizada. Nas palavras de Mariátegui: “O programa do Partido Radical, que, por outro lado, não foi elaborado por González Prada, permanece como um exercício de prosa política de um ‘círculo literário’. Já vimos que a União Nacional, efetivamente, não passou disso” (Mariátegui, 1975, p. 186).
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12
O termo anarcossindicalismo designa o movimento sindical radical que se baseava em certos autores anarquistas e atuava nos sindicatos. Foi uma forma genérica de agrupar concepções políticas radicais muito ecléticas que se organizavam em torno dos sindicatos.
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13
A transcrição dessa palestra foi publicada com o título de “El indigenismo en el Perú” (Arguedas, 1979, p. 5-8).
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14
Economicismo é o termo utilizado no movimento operário para designar um tipo de sindicalismo que privilegia as lutas por melhorias econômicas e despreza a luta política.
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15
Gamonal refere-se ao sistema latifundiário típico da região andina. Mariátegui (2008) afirma que o gamonalismo não é apenas um sistema econômico ou uma relação de produção, é um modo de produção, com consequências políticas e superestruturais.
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16
Tanto a corma como o cepo de campaña são instrumentos de tortura que consistem em duas madeiras que aprisionam membros ou a cabeça da vítima. Utilizados para criar extremo desconforto, humilhação e imobilização.
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17
Misti é a palavra quéchua usada pelos indígenas para se referir ao branco. Pode ter significado próximo a patrão, a chefe; ou pode ser usada pejorativamente.
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18
Este trecho está em Chevalier, Imperialismo y agro peruano, sem data e sem numeração de páginas, citado por Anderle (1985, p. 20).
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19
Utilizamos a palavra comunalista para identificar a organização comunal típica de algumas experiências rurais na América, e também em outras regiões do mundo. Diferente de comunismo, que está associado a uma corrente política contemporânea, marxista, e que prevê uma sociedade sem classes, pós-capitalista e industrializada.
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20
Rumi-Maqui significa mão de pedra em quéchua.
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21
A ideia de um ressurgimento do Império Inca combinada com a ideologia igualitária anarquista foi frequente entre os jornais operários de Lima, como em La Protesta, o mais importante jornal anarquista peruano da época.
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22
Civilista se refere ao Partido Civil que hegemonizou a política peruana entre 1895 e 1919, anos conhecidos como a República Aristocrática.
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23
Enganchadores se refere a enganche, um tipo de recrutamento de mão de obra comum no Peru, em que alguns agentes das empresas agrícolas do litoral, necessitadas de mão de obra barata, recrutavam camponeses em suas aldeias prometendo salários relativamente bons, mas, ao chegarem ao local de trabalho, acabam presos, sem poderem abandonar a fazenda até que pagassem a “dívida” que contraíram desde o transporte da aldeia, até os bens de consumo que necessitavam para sobreviver e eram obrigados a comprar em um mercado controlado pela fazenda. Esse tipo de relação de trabalho, com características de servidão, em que a mão de obra é aprisionada por uma dívida artificial ou outro compromisso que nunca conseguiam quitar, foi recorrente em toda a América Latina. Conhecida com o nome de tienda de raia no México, casas aviadoras no ciclo da borracha no Norte do Brasil, entre outros. Ver também: Contreras Carranza (2013, p. 147).
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24
Utilizamos a palavra filantrópica conforme foi caracterizada por Mariátegui a direção do Comitê Indígena nesses tempos. Para uma melhor definição dessa organização pelo autor, ver: Mariátegui (1994, p. 18-23).
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25
Diversos autores marcam em meados da década de 1920 a inflexão decisiva de Lenguia em direção ao capital norte-americano. Ver: Cotler (2006, p. 158-165).
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26
Esse trecho está em: Flores Galindo (1993, p. 183).
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27
As atas dessa conferência estão em: El movimiento... (1929).
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Manuel Ricardo Palma Carrillo (1833-1919) foi um escritor peruano que ficou famoso por escrever Tradiciones peruanas, uma série de contos de ficção histórica que valorizava a história popular, a linguagem popular, com relativa informalidade.
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29
Existem diversas evidências de que o projeto de Mariátegui era fundar uma sessão da Internacional Comunista no Peru, que em 1930 seria denominado Partido Comunista do Peru. Essa questão pode ser vista nas intervenções dos “enviados de Mariátegui” a Buenos Aires, transcritas nas atas da Primeira Conferência Comunista Latino-Americana, ocorrida em 1929. Ver: El Movimiento… (1929) e Deveza (2016).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Jul 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
14 Set 2020 -
Aceito
22 Fev 2021