Resumo:
O artigo tem como objetivo analisar um conjunto de textos e discursos do pensador uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917) sobre o Brasil, produzidos nas duas primeiras décadas do século XX. Dada a pouca produção analítica específica sobre este debate na obra do autor, abordaremos o tema a partir da utopia rodoniana de construção da “pátria intelectual”, o que nos mobilizou a reabilitar a antiga questão sobre o pertencimento do país no concerto das nações latino-americanas, a partir da interpretação de Rodó, que também deslocou seu olhar para contextos societários específicos no continente. Os textos enfocados demonstram o compromisso do autor com o americanismo, entendido como ferramenta cognitiva fundamental para a compreensão do continente latino-americano, que resgata elementos do passado histórico para produzir uma versão intelectual, espiritual e cooperativa do continente.
Palavras-chave: José Enrique Rodó (1871-1917); Pátria intelectual; Brasil
Abstract:
The article aims to analyze a group of texts and speeches by the Uruguayan thinker José Enrique Rodó (1871-1917) about Brazil, produced in the first two decades of the 20th century. Due to the little specific analytical production on this debate in the author’s work, we will approach the theme from Rodó’s utopia that deals with the construction of the “intellectual homeland”. This mobilized us to rehabilitate the old question about the belonging of the country to the concert of Latin American nations, based on Rodó’s interpretation, who also shifted his gaze to specific societal contexts in the continent. The focused texts demonstrate the author’s commitment to Americanism, understood as a fundamental cognitive tool for understanding the Latin American continent, which rescues elements from the historical past to produce an intellectual, spiritual and cooperative version of the continent.
Keywords: José Enrique Rodó (1871-1917); Intellectual homeland; Brazil
“las fronteras del mapa no son las de la geografía del espíritu” (Rodó, 1957, p. 152).
José Enrique Rodó tematizou no conjunto de sua obra o ideal de latinidade, partindo da perspectiva continental, transcendeu o nacionalismo ao apontar que fatores originários, apoiados na geografia, na história, na raça, na cultura e nos sentimentos eram os elementos fundamentais para a construção de uma identidade coletiva, às vezes apresentada na versão hispano-americana, outras vezes, na ibero-americana.
Parte considerável da fortuna crítica rodoniana destacou sua presença em países como Peru, Chile, México, Cuba, Brasil, Espanha, entre outros.1 Pretendemos nesta reflexão observar como Rodó, ao longo da primeira década e parte da segunda, do século XX, inseriu em seu discurso interamericano o Brasil. Rodó traz para o centro da sua atenção a integração do Brasil à sua “pátria” intelectual nos seguintes textos: “Discurso sobre el tratato con el Brasil” (1909); “Sobre el tratado con el Brasil” (1909); “Iberoamérica” (1910); “Río Branco: en ocasión de su muerte” (1912); “Cielo y agua” (1916). No texto “Nuestro desprestigio (el caciquismo endémico)”, de 1912, Rodó volta a mencionar o Brasil, de modo marginal, e indicar alguns problemas políticos nos países do continente, o que, na visão do autor, reforçaria os laços de pertença comum à grande comarca latino-americana.
A proposta de tecer itinerários para a análise do país pode vir a ser uma contribuição que desloca a observação da recepção de Rodó no Brasil, para observar como esta interpretação estabeleceu uma dinâmica importante para revisar configurações societárias marcadas por processos de sociabilidade que problematizaram as fronteiras entre a América Latina e a América Anglo-saxã, a Hispano-América e a Ibero-América.
Recuperar o esforço intelectual rigoroso deste pensador é também uma chave para a compreensão do destino comum do continente, cartografado, mentalmente, por Rodó, uma vez que a questão identitária é tema nuclear em seu pensamento.
Com isso, a reflexão rodoniana lembra o continente de seus ideais coletivos e, ao mesmo tempo, oferece condições intelectuais de interpretar a si mesmo. Neste sentido, sublinha Devés-Valdés (2014, p. 32):
El estudio de las redes intelectuales es un método para detectar los contactos de largo aliento entre personas dedicadas a la tarea intelectual, aunque no necesariamente sólo a ésta, detectando así la existencia de canales de circulación de ideas y en los cuales se gestan iniciativas diversas.
Portanto, os textos de José Enrique Rodó, que refletiram sobre o Brasil, mas não a partir do Brasil, e também que enfatizaram outros países da América Latina, podem ser considerados como potencialidade epistemológica para o estudo de canais de circulação de ideias, que não perpassa pelos centros hegemônicos de produção e de circulação de conhecimento, e sim é elaborado a partir da periferia para a periferia.
A obra Ariel, em seus primeiros anos de lançamento, não teve a mesma repercussão em solo nacional como a que teve em outros países, talvez, porque seus ensinamentos, exemplos, modelos morais, projetos, não eram os mesmos que a intelectualidade cultivava naquele momento. No entanto, nos interessa debater como um dos representantes do ideal continentalista elaborou num conjunto de textos esparsos, uma possível articulação entre Brasil e América Hispânica, a partir de seu ensejo integracionista de latinidade. Desse modo, o texto parte da perspectiva de explorar a análise transnacional, já que a delimitação dos problemas mobilizados não é necessariamente nacional e não se esgota exclusivamente no nacional:
Una perspectiva transnacional presta atención a las negociaciones entre lo global, lo nacional y lo local y toma en cuenta las relaciones multidireccionales y rizomáticas de la identidad cultural, superando así oposiciones dicotómicas como centro-periferia o superioridad-inferioridad (Dhondt; Vanderbosch, 2017, p. 14).
Nesse sentido, é possível inserir o pensamento de Rodó nesta perspectiva transnacional, sedimentado nas trocas, contatos e colisões entre intelectuais e culturas.
Para a organização do argumento, o texto está dividido do seguinte modo: primeiramente, abordaremos como Rodó orientou seu discurso intelectual na direção de uma ação prática, exercitando o que Rodríguez Monegal (1957) intitulou como “milícia americanista” (p. 88), a fim de fortalecer as redes comunicativas entre intelectuais do continente; como veremos, o americanismo rodoniano era a resposta estética e política aos desafios do novo século.
No segundo momento, abordaremos dois discursos proferidos em 1909, sobre um tratado entre Brasil e Uruguai, que permitiu a livre navegação de ambos os países numa fronteira fluvial. Nesses discursos, observaremos como Rodó inseriu o tema da solidariedade internacional e reafirmou a manutenção dos laços históricos entre as duas nações.
No terceiro momento, analisamos o empenho rodoniano na construção de uma ideia de criar uma confederação peninsular, tema presente em seus artigos jornalísticos “Iberoamérica”, de 1910 e “Río Branco: en ocasión de su muerte”, nos quais expressou sua preocupação pelo desamparo das ex-colônias após a independência política, o que incentivou novas articulações diplomáticas internas.
Por fim, exploraremos o texto “Cielo y água”, de 1916 escrito quando Rodó viajava para a Europa para ser correspondente da revista argentina Caras y Caretas, onde novamente o autor ratifica sua esperança na raça latina a partir da paisagem local, sempre lembrada em suas crônicas de viagem.
Por um perímetro regional americanista
O ensaísmo foi o formato utilizado pelo autor uruguaio para lidar com os problemas presentes no continente. Como ressaltou Belém Morales (2008, p. 805), o ensaio hispano-americano foi um espaço reflexivo para a gestação dos grandes projetos sociais, políticos e culturais que se sucederam no transcurso histórico do continente. Ainda conforme a autora, desde o modernismo, o ensaio literário se localiza como discurso reflexivo e interpretativo, em diversos campos do conhecimento (literatura, estética, pensamento filosófico e político, crítica da cultura etc.). Também adotou diversos formatos: a carta, o artigo, o manifesto, o prólogo, o aforismo, a novela filosófica e outros.
Em 1900, Rodó publicou Ariel, sua obra mais conhecida. Trata-se de um ensaio de interpretação que inseriu as preocupações e reajustes ideológicos do final do século XIX e início do XX. Naquele período, o contraste entre o “desenvolvimento” da América Saxã e o “atraso” da América Latina, era a principal questão para os pensadores latino-americanos. A obra se localiza num período-chave para a história do continente, pois a Espanha perdia suas últimas colônias em 1898, e os Estados Unidos se erigiam como a grande potência continental, porém, o texto alerta sobre os perigos que esta concepção e estes valores poderiam acarretar para a América Latina: utilitarismo, intolerância, especialização, tecnocracia, vulgaridade e mau gosto.
No livro, o professor Próspero convoca seus alunos para sua última lição magistral, cujas pautas éticas e estéticas são pronunciadas para aqueles que enfrentarão uma vida ameaçada pelo imperialismo ianque, pelo materialismo e utilitarismo mesquinhos de uma sociedade que começava a se modernizar no sentido norte-americano.
Na primeira parte do livro, Rodó faz uma defesa da personalidade integral do homem, conforme o conceito humanista, contrária à especialização. Na segunda parte da sua obra, o autor faz uma defesa das minorias seletas e das hierarquias espirituais contra a tendência niveladora da democracia moderna, buscando conciliar o princípio do governo democrático dos Estados com os valores seletivos da individualidade, procurando um equilíbrio. Na terceira parte do ensaio, Rodó tece a crítica aos Estados Unidos da América, como responsável pelo erro dos grandes equívocos da democracia niveladora da cultura, da educação utilitária e prática, de que o país era representante.
Real de Azúa (1976, p. VII) apontou que o tom do chamado era de urgência, havia uma pedagogia social, as soluções e as forças mobilizadoras aludiam sempre ao coletivo, ao americano. Deste projeto, ou desta missão intelectual, surge uma versão do arielismo, encarado como um espaço de sociabilidade juvenil que buscava latinizar a América, tornar o continente familiar aos habitantes, problematizar as fronteiras nacionais e recuperar o elo perdido com a independência política. É válido pontuar que o chamado para a união do continente moldava um corpo de textos de Rodó, não somente Ariel, e não se atrelava institucionalmente, e sim, partia de um esforço coletivo de reunir novamente os países do continente, de forma fraternal e espiritual. Alfonso García Morales (1992) sustentou que o discurso arielista se dedicava a traçar um programa de orientação moral e a fixar nos jovens ideais para enfrentar a vida e fazer realizar suas esperanças.
O americanismo de Rodó transcendia a literatura. De acordo com Ardao (1970), se constituiu a parte medular da sua produção, faz parte do conjunto de suas ideias éticas, estéticas, políticas e sociais da sua obra, e se divide em quatro principais: literário, cultural, político e heroico. Esse conceito se desdobra na questão da originalidade do continente latino-americano, que deveria sempre retomar a ligação com a civilização espanhola. O descobrimento da nossa vocação cultural se realizaria por meio da exploração da região oculta e inesgotável que representava a América Latina, somente dessa forma poderíamos desenvolver e mostrar ao mundo a nossa verdadeira personalidade; o alcance desse objetivo só seria possível por meio da ação intelectual séria e herdada da “alta cultura” europeia, e também a partir da unificação intelectual dos nossos povos.
Sobre os enlaces entre a intelectualidade americana e espanhola, a partir do século XIX e início do XX (período em que a produção de Rodó se insere), Claudio Maíz (2009) sistematiza a hipótese de que entre 1898 e 1920 se constitui uma “comunidade imaginada”, para além das fronteiras nacionais da Hispano-América e mais além do obstáculo geográfico que representa o Oceano Atlântico; segundo o autor, se trata da primeira comunidade imaginada como um forte fundamento na língua como nexo de união e de entendimento.
Essa comunidade imaginada foi denominada por Rodó de “pátria intelectual”,2 que possuía como pontos comuns, amizades, promoção de livros, projetos comuns, angústias, sonhos, desencantos, um movimento de homens, objetos (livros), ideias, sentimentos que caracterizavam este espaço entre o real e o ideal. A pátria intelectual não está formada por fronteiras fixas, inalteradas e imperiais como provê um hispanismo conservador.
La patria intelectual expande sus límites a fin de abrirse a la circulación de ideologías estéticas, técnicas lingüísticas de expresión literaria, lecturas, traducciones. Sin embargo, para que esta actividad sea efectiva se requiere de los medios idóneos, sin los cuales sería impensable: la carta, la revista, el periódico. Pero debe insistirse también en el conocimiento de otras lenguas (Maíz, 2009, p. 31).
Portanto, estamos diante da aposta da construção de objetos supranacionais que estabeleceram e organizaram projetos e colocou o continente como possível centro irradiador de saberes.
Como apontamos, apesar de Ariel não ser a única obra onde Rodó desenvolveu uma proposta identitária para o continente, o livro se configurou como um manifesto juvenil e foi recepcionado por diferentes partes do continente, transitando também na Espanha. Para Liliana Weinberg (2001, p. 63), o caso de Ariel é um dos mais extraordinários exemplos de como a recepção de um texto pode transformar sua leitura, o que confere reconhecimento da especificidade de cada obra em seu processo de adoção.
O texto teve sua primeira edição em português em 1933, o que pode ter impactado na demora de sua recepção e divulgação entre a juventude intelectual brasileira, já que a tradução é um dos mecanismos para a recepção de ideias produzidas em contextos internacionais. Além disso, como aponta Maria Lígia Coelho Prado (2001, p. 140), o regime republicano no Brasil acarretou novas identidades, que estabeleceram “linhas de simpatia com relação aos Estados Unidos da América”, o que significava um aprofundamento dos projetos de país que contribuíam para o afastamento dos países hispano-americanos. Em contraposição a isso, ocorriam na América Hispânica, no final do século XIX e início do XX, manifestações de busca de identidades alicerçadas nas raízes culturais e na herança da colonização.
Prado (2001) menciona como exemplo dessa aproximação o “encontro intelectual” entre autores brasileiros e hispano-americanos no contexto do século XX, a partir da obra Ariel. Trata-se da resenha de José Veríssimo, publicada no Jornal do Comércio, em 18 de dezembro de 1900, intitulada “Regeneração da América Latina”, na qual refletia também sobre a obra de A. Rodríguez, Peligros americanos.
Veríssimo apontou que Ariel seria um discurso filosófico à maneira do século XVIII, à maneira dos gregos e à maneira dos diálogos e outras peças de Ernest Renan. Veríssimo é um dos autores brasileiros que percebeu que o Brasil republicano poderia enveredar pela imitação do modelo norte-americano, e advertiu para este perigo. (Barbosa, 1986, p. 8). Outra obra brasileira, intitulada A ilusão americana, de Eduardo Prado (1961), publicada originalmente em 1893, também problematizou a influência norte-americana. Seu autor inicia o livro afirmando que é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confraternização que se pretende impor entre Brasil e Estados Unidos, uma vez que estávamos separados pela distância, raça, religião, índole, língua, história e tradições.
A fraternidade americana, segundo Eduardo Prado, era uma mentira, pois havia mais ódios e inimizades entre os países do continente do que propriamente fraternidade. Ele menciona que Colômbia e Venezuela se odiavam até a morte, bem como o conflito entre Bolívia, Peru e Chile, Paraguai e Argentina, Uruguai, questionando se essa seria a “fraternidade”. Leslie Bethel (2012) acentuou que Prado foi um adiantado expoente da ideia do Brasil como uma “imensa ilha”, um continente em si mesmo, já que estava separado das repúblicas hispano-americanas, por sua diversidade de origem e de língua, e nem o Brasil físico nem o moral formavam um sistema com aquelas nações.
A despeito das diversas interpretações que oscilam entre o pertencimento e a identificação do Brasil à América Latina, diluídas ao longo do século XIX e XX, nos chama atenção o forte peso simbólico que alguns textos de José Enrique Rodó, publicados ao longo da primeira década e parte da segunda, atribuem à incorporação do Brasil ao perímetro latino-americano, segundo o intérprete em questão, por mais que o país falasse outro idioma, e tivesse outra relação com sua ex-metrópole, o ethos americano atrelava aquela nação ao restante do continente.
O tratado com o Brasil: a aposta otimista nas relações internacionais
Nos dois discursos que analisaremos a seguir sobre o tratado selado entre Uruguai e Brasil, observamos uma fala que se converte em múltiplos gêneros, revelando a habilidade artística de Rodó como escritor e sua argúcia argumentativa. Nos múltiplos lugares de enunciação usados pelo autor, para elaborar a “pátria intelectual”, reivindicava a unidade cultural do continente latino-americano, sempre com uma proposta anti-imperialista.
A situação que gerou ambos os discursos, voltados para públicos diversos, foi diplomática e política. Sendo o primeiro destinado a um grupo de jornalistas e estudantes brasileiros, e o segundo, aos seus pares deputados. Nas estruturas desses discursos públicos, seu enunciador ressalta as peculiaridades da vida latino-americana e convida seus interlocutores a refletir sobre os laços entre Uruguai, Brasil e América Latina. Elos que deveriam ser mantidos e preservados.
Em 24 de setembro de 1909, Rodó pronunciou o discurso “Sobre el tratado con el Brasil” no círculo da Prensa de Montevideo, à época presidido por ele, e se deu em ocasião da festa promovida por esta instituição para um grupo de estudantes e jornalistas brasileiros que levaram o busto do barão de Rio Branco, o qual foi entregue ao Ateneu uruguaio. Esse evento ocorreu um mês antes da assinatura final do tratado Merin-Yaguarón, que solidificou a livre navegação bilateral das águas das fronteiras da lagoa Mirim e do rio Jaguarão.
Esta negociação teve a participação direta do barão do Rio Branco. Segundo Gerardo Caetano (2012), este tratado de retificação de limites entre os dois países colocou o fim na velha controvérsia, bastante sensível para a consciência internacional do país. Antes deste tratado, desde 1801, essas águas pertenciam exclusivamente ao Império brasileiro, condição que se manteve no tratado de limites de outubro de 1851.
Para a diplomacia uruguaia, a questão dos portos sobre o rio Jaguarão e a lagoa Mirim era crucial para os interesses do comércio local e para a saída para o oceano. Conforme Clemente (2010), no início do século XX se observou uma forte aproximação entre Uruguai e Brasil, com a política exterior do primeiro batllismo e um sério deterioramento das relações com a Argentina, devido a assuntos ligados aos limites do rio da Prata.
O discurso pronunciado por Rodó saudou aos jornalistas, definindo-os como “força militante e laboriosa do pensamento de um grande povo” (Rodó, 1957, p. 1024), e aos estudantes, “a juventude de vibrante inteligência e entusiasmo” (p. 1024), que trazia a “esperança de um presente glorioso” e de um futuro ainda mais glorioso. Ainda ressaltou que o momento celebrado seria uma realização de uma “fausta promessa que cumprida não só estreitará os laços fraternais de nossas duas nações, sim que será no tempo uma glória americana” (p. 1024).
De acordo com José Enrique Etcheverry (1950), os discursos envolvendo o Brasil nos permitem reconstruir o pensamento de Rodó acerca das relações vitais entre o Brasil e o restante das repúblicas ibero-americanas. A América, por meio de um de seus países mais representativos, insurge neste discurso rodoniamo como uma mentora universal, e uma de suas principais apostas no futuro, que é a juventude, aparece como uma esperança renovada, além da ênfase no momento, como conciliação harmoniosa entre os dois países, já que a marca civilizatória muitas vezes é construída por meio do império “brutal e odioso da força” (Rodó, 1957, p. 1084), entretanto, sua aposta seria a consagração da paz e da harmonia entre as nações. Em suas palavras:
Pero he aquí en América, en el escenario del porvenir, un pueblo grande por su territorio, por su poder y por sus destinos, quiere un día demonstrar al mundo que los sentimientos de desinterés y generosidad son extensibles, en la práctica, a las relaciones internacionales; y con espontaneidad absoluta, sin que medie petición que le mueva ni compensación que le halague, anuncia solemnemente su propósito de devolver a un pueblo hermano lo que por naturaleza era de éste, pero lo que convenciones de validez inexpugnable mantenían en manos de su poseedor (Rodó, 1957, p. 1025).
Interessante apontar que Rodó não deixa de pontuar episódios da história brasileira que seriam, a seu ver, os “quatro grandes fatos capitais” (Rodó, 1957, p. 1025) que contribuíram para moldar e orientar a história da nacionalidade do país: o primeiro, o Grito do Ipiranga, que estendeu sobre o vasto domínio colonial a plataforma de um poderoso e opulento império, o segundo, a Abolição da Escravidão, que extinguiu a “nota nada harmoniosa da civilização humanitária”, o terceiro, a Proclamação da República, que assinala “o pleno exercício das instituições livres”, e o quarto, a consagração de um critério internacional fundado no princípio e do “reconhecimento leal” do direito alheio.
Apesar dos elogios tecidos ao país, Rodó não deixa de pronunciar uma crítica à história do país ao dialogar com seu passado e munir-se de exemplos, principalmente a escravidão, nada nobre para uma nação que almejava a modernidade. Ademais, não deixa de pontuar a importância do tratado que assinaria e redefiniria o trânsito na fronteira entre Brasil e Uruguai, o elemento fundamental da enunciação deste discurso.
Al ver la serena firmeza con que trazáis em rumbo de vuestro porvenir, señalando por una magma conquista cada paso de vuestra historia, diríase que esos eternos luminares del mundo moral que se llaman verdad, justicia, derecho, sentimientos de patria y de humanidad, resplandecen en la profundidad de vuestras conciencias con aquella misma claridad casi solar y aquella misma igualdad, sin escintilaciones con que las luces del firmamento presiden a la majestad augusta de vuestras noches tropicales (Rodó, 1957, p. 1025).
A valorização do futuro, a história, a justiça, o direito, os sentimentos de pátria e de humanidade, são elementos que Rodó enfatiza neste discurso, e não deixa de divulgar sua confiança no futuro americanista e, ao mesmo tempo, no aperfeiçoamento da espiritualidade, da moral, como impulso orientador para a delegação brasileira, sob uma mensagem otimista.
O seu segundo discurso proferido sobre o tratado com o Brasil, quando Rodó estava em sua segunda legislatura como deputado (1908-1911), ocorreu na sessão da Câmara dos Deputados de 11 de novembro de 1909, e trata-se do intitulado “El tratado con el Brasil”, quando houve a apreciação do projeto de lei pelo Parlamento, em que se solicitava a aprovação em sessão extraordinária. Jorge Cencio (1972) reuniu os discursos e documentos da atuação parlamentária de Rodó e apontou que, em matéria de relações exteriores, sua única intervenção é o importante discurso sobre o tratado de limites com o Brasil, cujo projeto foi votado e aprovado por unanimidade.
No início da sua fala, Rodó argumenta sobre o sentimento de júbilo patriótico que embarga a todos, além de uma admiração profunda e gratidão ao Brasil pelo tratado:
Desgraciadamente las relaciones morales entre los hombres y entre los pueblos no han llegado ¡ni con mucho! a un grado tan alto de altruismo y de desinterés que la gratitud deba reservarse para lo que pasa más allá del reconocimiento leal de la justicia (Rodó, 1957, p. 1083).
Nesta passagem Rodó renova suas convicções e advoga contrário ao interesse estreito e nacionalista. Vincula o fato do tratado ao que é uma linha constante em seu ideário: o americanismo, bem como o sentido da moral como valor social.
Es un hecho de transcendencia americana, porque fija normas, que debemos creer definitivas, a la acción internacional de todos los pueblos del continente; y es un hecho de transcendencia americana, también, porque contribuye a revelar que el espíritu de América tiene eficacia con que tender a la originalidad, a la innovación fecunda, en materia política como en otras esferas del pensamiento y de la acción (Rodó, 1957, p. 1084).
O discurso rodoniano proferido nesta ocasião não abandona o que Arturo Ardao (1971, p. 249) denominou de “intelectualismo abstrato da linguagem”, nem suas recomendações americanistas, muito presentes em reflexões sobre a literatura e o pensamento produzidos no continente, mas este discurso possui o caráter de orientador dos povos do continente; a intenção educativa conflui com a necessidade de religar os povos do continente e, ao mesmo tempo, um tratado como este, entre Brasil e Uruguai, apontava para ações diplomáticas amistosas, recuperando os laços de solidariedade entre os países.
Y es un pueblo americano el que hoy - quizá por vez primera en el mundo -, tiende de una manera franca y resuelta a desvanecer el concepto, asaz generalizado, de que en política internacional sigue predominando, bajo máscara más o menos falaces, la superioridad brutal y odiosa de la fuerza. ¡El pueblo del Brasil ha demostrado que, en materia de relaciones internacionales, sobre la fuerza bruta puede prevalecer el derecho, que es una idea, pero que es también una fuerza! (Rodó, 1957, p. 1084).
As visões de uma política internacional que se ancora na ideia de superioridade brutal e odiosa da força, são combatidas por Rodó neste discurso, ratificando seu projeto de união fraternal entre os intelectuais de âmbito transnacional. Belém de Castro Morales (2016, p. 20) apontou que Rodó buscava evitar as visões nacionalistas que se baseavam no rancor, na violência e na repressão, apelando para sua ideia de Magna Pátria, que tinha como base identitária comum e mais inclusiva a experiência da colonização e a heroica emancipação. Sua perspectiva americanista tinha uma função comunicativa de primordial importância para impulsionar um intercâmbio de escala continental e transatlântica. Em outra parte do discurso, afirmou:
América tiende desde sus orígenes, por el pensamiento consciente de sus emancipadores, de los fundadores de los pueblos que la constituyen, a formar una confederación de naciones. Esta confederación de naciones será primero una confederación moral, una armonía de intereses, de sentimientos, de ideas. Será, algún día muy lejano, una gran unidad política, como soñaba el libertador Bolívar, cuando pensaba que en el Istmo de Panamá, que une las dos mitades del continente americano, se reunirá algún día el Congreso afictiónico que mantendría con lazos perdurables la unidad de los pueblos del nuevo mundo (Rodó, 1957, p. 1084).
A perspectiva integradora reaparece nesta passagem, bem como seu ambicioso projeto de união das duas metades do continente, o que seria um apelo à dupla continentalidade, que marca a história dos povos latino-americanos. Esta aposta parece superar, enfim, o isolamento nacional brasileiro e revelar o país aos seus vizinhos. Esta orientação intelectual, que reaparece neste discurso, se amplia ao afirmar a presença do Brasil na Magna Pátria, demonstrando o multifacetado projeto rodoniano de modernidade, que se internacionalizava e ganhava uma dimensão para além daquela que ele havia travado com autores hispano-americanos, ancorados nas correspondências e nas diversas formas de contato intelectual. A partir de sua atuação parlamentar, ao proferir o discurso na sessão da Câmara, Rodó fez uso de palavras amistosas, num momento propício para as relações diplomáticas entre os dois países, expandindo sua comunicação e alcance.
O tom geral dos dois discursos segue uma tendência continentalista, que pode ser rastreada em grande parte de suas obras, comprometida em evitar, na sua percepção, os equívocos que a influência norte-americana pudesse causar. O olhar atento, que buscava em outros países, escritores, obras e movimentos políticos e sociais, relações diplomáticas reveladas pelos discursos, aponta para uma recuperação do passado, e integrar o gigante brasileiro à “pátria intelectual” fortalecia seus objetivos.
Esse discurso oficial e institucional pronunciado no Parlamento estava centrado em interesses de seu país, mas, ao mesmo tempo, o resultado de uma instância conjuntural aparece na fala de Rodó repleto de fé e esperança, revelando um intelectual nostálgico de um mundo espiritual superior, que enfrentava o dilema do confinamento nacional, abrindo espaços para uma pertença comum, forjando um patriotismo intercontinental.
A grande aposta é a existência de uma cultura latino-americana, definida por traços gerais, compartilhados pelas nações da região. Neste sentido, as inegáveis diferenças culturais que separavam uma nação da outra apareciam como menos importantes no hibridismo rodoniano.
A ideia de uma confederação peninsular
O artigo jornalístico intitulado “Iberoamérica” foi publicado em 1910. No início do texto, Rodó apontou que, devido a situação geográfica e seus “fundamentos históricos” (Rodó, 1957, p. 671), o Uruguai parece destinado a selar a unidade ideal e a harmonia política desta América do Sul, que segundo ele seria o “cenário reservado, no espaço e no tempo, para a plenitude do gênero de uma grande e única raça” (p. 671).
Numa tentativa de afirmar a importância de seu país para o estabelecimento da harmonia política da região, Rodó esboça uma narrativa contra-hegemônica de qualquer um dos países, principalmente dos maiores, Brasil e Argentina, e desloca o debate para a integração.
No necesitamos los sudamericanos, cuando se trata de abonar esta unidad de raza, hablar de una América Latina; no necesitamos llamarnos latinoamericanos para levantarnos a un nombre general que nos comprenda a todos, porque podemos llamarnos algo que signifique una unidad mucho más íntima y concreta: podemos llamarnos iberoamericanos, nietos de la heroica y civilizadora raza que sólo políticamente se ha fragmentado en dos naciones europeas; y aún podríamos ir más allá y decir que el mismo nombre hispanoamericanos conviene también a los nativos del Brasil (Rodó, 1957, p. 671).
Nesse sentido, é possível rastrear na obra de Rodó uma preocupação com a fragmentação do continente. Nesse texto ele volta a frisar que os destinos das duas metades da raça ibérica compartilham também a mesma história e o mesmo futuro do Novo Mundo, e estarão sempre entrelaçados. A fim de ilustrar esse entrelaçamento, Rodó utiliza a metáfora dos rios Amazonas e Prata, rios que nascem do coração da “nossa América” e se repartem pela extensão do continente:
(...) el tributo de las aguas, el destino de esas dos mitades de la raza ibérica, que comparten también entre si la historia y el porvenir del Nuevo Mundo: los lusoamericanos y los hispanoamericanos, los portugueses de América y los españoles de América; venidos de inmediatos orígenes étnicos, como aquellos dos grandes ríos se acercan en las nacientes de sus tributarios (Rodó, 1957, p. 672).
Essas “águas doces do porvir” (Rodó, 1957, p. 672) trariam, segundo Rodó, a transfiguração pela justiça, pela paz e pela grande amizade entre os homens, e uma eterna relação entre as partes da grande América. Como traço de seu perfil intelectual, a partir do início do século XX, especificamente no momento em que as relações diplomáticas entre Brasil e Uruguai entraram em sua pauta, seja como intelectual, ou como político, Rodó ambiciona inventariar a organicidade do continente, incluindo o Brasil.
Em outro texto jornalístico publicado em 1912, que será incorporado na obra El mirador de Próspero (1913), intitulado “Río Branco: en ocasión de su muerte”, Rodó homenageia o barão do Rio Branco, principalmente sua atuação no tratado com o Brasil em relação às fronteiras da lagoa Mirim e do rio Jaguarão. Para o pensador uruguaio, a grandeza deste homem estaria na maneira “puramente intelectual” de realizar seus trunfos envolvendo as relações internacionais brasileiras. Rio Branco seria “mestre no manejo”, que “substituiu a supremacia da força brutal pelos recursos da inteligência, convertida em meio de ação e de domínio” (Rodó, 1957, p. 632).
Segundo Rodó, o barão foi responsável por uma política internacional de equidade, de concordância e de solidariedade americana.
A nuestro entender, la apología de Río Branco no puede concentrarse en elogio más alto ni más justo. Es el tipo profético que anuncia para el porvenir una estirpe de hombres de pensamiento y de acción que han de ajustar a nuevas normas las relaciones de los pueblos y han de imprimir sello distinto a las artes de la diplomacia y de la política (Rodó, 1957, p. 632).
A grande amizade entre os homens, colocada no texto jornalístico anterior como uma das principais conexões entre o futuro das duas Américas, retorna nesta homenagem rendida ao barão, que esteve no comando da política externa brasileira entre 1902 e 1912.
Rubens Ricúpero (1995) aponta que, na concepção de Rio Branco, o Brasil deveria estreitar os vínculos com os países vizinhos e, simultaneamente, com os Estados Unidos. A política brasileira deveria ter como base a aproximação com as políticas norte-americana e latino-americana. A partir dessa premissa, Rio Branco esforçou-se por ser o intérprete, junto aos países latino-americanos, da política norte-americana e, ao mesmo tempo, por apresentar o Brasil como país vinculado à América Latina.
Esta espacialidade congregada pela região, a partir dos elementos históricos, sociais, humanos e políticos, é considerada como depositária de valores e de ações de homens como o barão Rio Branco, que, segundo Rodó, fazia a defesa deste espaço a partir da solidariedade balizada em valores comuns e diplomáticos, elementos que deveriam marcar a relação entre os países do continente.
Em seus discursos examinados acima, e em seus textos jornalísticos, vemos a necessidade de estabelecer uma política e uma ação pedagógica útil para reaver a base ética e cultural comum entre os países da Península Ibérica. Esta experiência da latinidade, sincronizada com os elementos da tradição ocidental, deveria ser a força mobilizadora coletiva das sociedades americanas. A defesa da tradição, conforme Uruguay Cortazzo (1986), significava para Rodó a continuidade, em um mundo assolado por mudanças persistentes e abruptas. Isso reverbera na preocupação rodoniana em estabelecer uma ordem ao continente convulsionado após os processos de independência. Como apontou José Luis Romero (1978), essa preocupação pode ser observada em alguns pensadores, que não se declararão explicitamente como conservadores, no entanto, a ordem possuía um significado singular: “(...) la percepción de que la Independencia había provocado la formación de una nueva sociedad, distinta de la tradicional, de curso imprevisible y, a los ojos de los conservadores, preñada de peligros” (Romero, 1978, p. XX).
Em texto, também jornalístico, publicado no Diário del Plata, de 1912, intitulado “Nuestro desprestigio: el caciquismo endémico”, que Rodó assinou com o codinome Calibán, ele apontou que seria necessário muito tempo para que na Europa desaparecesse o preconceito que enxerga uma grande parte das repúblicas americanas como “semeadora de revoluções” (Rodó, 1957, p. 1033), países inclinados a motins, distúrbios e massacres. A fama é antiga, e foram geradas figuras que se converteram em Césares absolutos: “(...) estas siluetas de terror y arbitrariedad son las que han contribuído al descrédito que se cierne sobre el Continente, no obstante las notas aisladas de progreso, de orden, que al presente dan algunas repúblicas” (Rodó, 1957, p. 1033).
Neste artigo, Rodó (1957, p. 1034) pontuou os problemas que enxerga nos países do continente, advindos desta situação: o México, devido a seu “desenfreio revolucionário” e à intervenção ianque; o mesmo se observa em Quito, no Equador, repleto de cadáveres de prisioneiros contestadores, e no Paraguai, onde “se bate o recorde” dos problemas políticos insolúveis. No Peru, executam-se trabalhadores indefesos, cujo único delito era o protesto. No caso do Brasil, Rodó sustenta que a autonomia exagerada, que deu origem ao caciquismo em alguns estados do país e gerou “revoltas lamentáveis”, constitui uma séria interrogação para a República, e volta a mencionar a importância de Rio Branco como figura solucionadora de conflitos: “(...) hoy, cuando la gran figura de Río Branco ha desaparecido del escenario y su palabra de concordia no repercute” (Rodó, 1957, p. 1034).
Na Argentina pontuou a “insólita democracia” (Rodó, 1957, p. 1034), cujas eleições seriam um mito. No caso do próprio Uruguai sucedia algo pior: os recentes progressos e a trégua de paz que se goza não bastam para elevar “a consideração unanime dos estados florescentes” (Rodó, 1957, p. 1034):
Se nos confunde tristemente con el Paraguay, acaso por la vecindad o por la consonancia guaranítica de los nombres. Tanto es así que días atrás un importante diario madrileño decía poco más o menos: “Los revolucionarios paraguayos atacaron la capital. Reina pánico en Montevideo”.
O crítico atribui a culpa destes desconhecimentos e preconceitos sobre estas terras, que estão imbricadas, por razão histórica, de linguagem e de raça, aos seus representantes diplomáticos, que eram enviados para o exterior sem discernimento. Alguns dos quais só se interessariam pelas benesses do cargo, com o conforto dos salões de baile e de jogo, sem se preocupar em pendurar um mapa do país representado em qualquer lugar por onde passavam.
Este retrato das repúblicas americanas, nada idealizado, finaliza com o desejo do formulador, que em algum momento a Europa se inteire das energias do jovem continente, “surgido como uma promessa das aspirações de todos” (Rodó, 1957, p. 1034):
(...) cuando em vez de propalar los retrocesos propague los progresos que se alcanzan, los veneros que se explotan, las energías que se despiertan, entonces, sí, vendrá la consideración mundial y con ella la confianza del crédito. La sensatez patriótica realizará ente ensueño. Entre tanto, confesemos que la nueva vía interoceánica que abren al Norte los yanquis, con separarnos geográficamente, nos acerca más al foco europeo. Y esto ya es algo.
Esta perspectiva, de que a América tinha muito mais contribuições para oferecer ao mundo, sempre foi defendida por Rodó. No entanto, é interessante apontarmos para o fato de que o mesmo reconhece os diversos problemas sociais e históricos que assolavam o conjunto de países, o que o retira do lugar estritamente idealista, desconectado da realidade, e passadista que alguns críticos3 já lhe atribuíram.
Nestes escritos, a consciência de uma cultura em formação é ratificada pela necessidade de impulsionar uma política pedagógica que unia literatura e educação; não é à toa que Rodó usa de exemplos, modelos, história, moral, para circular suas ideias e tentar integrar os diferentes saberes, a partir de um reterritorialização latino-americana, que busca nas inspirações locais uma tradição que é influenciada pelo cosmopolitismo europeu, mas é ao mesmo tempo portadora de tradições e de vínculos espaciais, históricos e de raça, o que também é definidor da sua modernidade.
O mar como metáfora da encruzilhada peninsular
“La práctica de la idea de nuestra renovación tiene un precepto máximo: el viajar. Reformarse es vivir. Viajar es reformarse”
(Rodó, 1957, p. 400).
O último texto em que Rodó menciona o Brasil é o intitulado “Cielo y agua”, de 1916, que integrará seu livro de crônica de viagens El camino de Paros, editado postumamente em Barcelona, em 1918. É um texto simbólico, de abertura da obra e dá uma dimensão do progresso das suas reflexões de viagem. Nesta crônica, continua sua defesa pela união americana. É muito emblemático, pois foi escrito a bordo do navio em que viajava para a Europa pela primeira vez, onde passou os últimos nove meses de sua vida, com a função de ser correspondente da revista argentina Caras y Caretas.
Conforme Rodríguez Monegal (1957), essas crônicas de viagens, 24 no total, apresentam algumas das páginas mais bonitas e maduras de Rodó, que, afastado das inquietações da política e do jornalismo, dá a sua prosa grande equilíbrio. Além disso, valem também como seu testemunho de Europa e como testemunho do homem. Segundo o crítico, Rodó não descreve a paisagem como paisagista, sim como um pensador que vê o mundo.
Al lo largo de su periplo, y mientras se aleja cada vez más de la tierra natal, van aflorando en Rodó sus recuerdos de América. En muchas crónicas suena el eco americano: un tango escuchado en Barcelona, las playas de Pisa que solicitan la comparación con las uruguayas, las luchas civiles en Italia que evocan las nuestras, el encuentro con unos estudiantes venezolanos con los que arieliza (el verbo es suyo), la inevitable comparación de cada nueva piedra vieja de Nápoles con las viejas piedras nuevas de Montevideo (Rodríguez Monegal, 1957, p. 1183).
As referências locais, portanto, não deixam de aparecer em suas crônicas, mas as viagens representavam para Rodó também a possibilidade de desenvolver a personalidade. De acordo com Gustavo San Román (2010), observamos nesses escritos europeus de Rodó uma experiência de aprendizagem na viagem e de reafirmação de ideias prévias sobre o futuro itinerário da América.
Las crónicas para Caras y Caretas reflejan tanto la culminación como la confirmación de lo que venía diciendo durante veinte años de escritura: su idealismo, su americanismo, sus valores humanistas sobre la personalidad y la organización política. El viaje ha sido ratificador y madurador de esta visión arielista de la persona y de la sociedad latinoamericanas, que continuaban ocupando el centro de su atención en los últimos meses de su vida. (San Román, 2010, p. 323).
Rodó inicia sua primeira crônica de viagem, “Cielo y agua”, afirmando “tenho o sentimento do mar” (Rodó, 1957, p. 1184). O mar e o céu aberto representam sua saída para o continente que sempre quis conhecer, mas ao mesmo tempo conduzem suas memórias ao seu passado, à sua pátria. Segundo Claudio Maíz (2010), as alegorias que se relacionam com a prosa da viagem são o rio, o mar, o caminho, imagens de mudança, de tempo de progresso.
Como maravilloso simulacro de las nubes, se levanta en el horizonte la bahía de Río de Janeiro. No hay mejor espectáculo para quien llega iniciado por el mar en la visión de lo grande y majestuoso. Si cabe fijar en una parte el pórtico de un mundo, éste es el pórtico de América. Esas sublimes líneas de montaña; esas lujuriantes guirnaldas de bosque, esas inmensas y armoniosas curvas de playa, sugieren la idea arquitectónica de un mundo que se abre, de un continente que compendia su infinitud y su carácter en un aspecto capaz de ser abarcado con los ojos (Rodó, 1957, p. 1184-1185).
Nesta passagem, novamente lemos a ênfase na paisagem, no caso, a brasileira, por onde o navio passava e de onde escrevia, que inspira nosso cronista, que constrói relações entre o lugar imediato, seu continente e a necessidade de ir em busca do conhecimento elaborado e culto europeu, de onde deveríamos buscar nossas inspirações. Em trecho seguinte, quando o navio cruza o estado da Bahia, ele diz que a imagem evoca nele a “Montevidéu dos trópicos” (Rodó, 1957, p. 1185).
Julio Ramos (2008) ressaltou que, nas sociedades posteriores às guerras de independência, a viagem, principalmente à França e à Inglaterra, era um dos rituais básicos na educação de intelectuais latino-americanos. A literatura de viagens, publicada por entrega, na forma de “cartas”, aos jornais da época, constituía um dos “modelos retóricos narrativos fundamentais que proliferavam sobre as novas nações” (Ramos, 2008, p. 169). Ainda conforme Ramos, esse deslocamento da viagem, do baixo para cima, do caos para a ordem, possibilita o poder de escrever, no presente “caos”, sobre o futuro. Nessa crítica dos letrados modernizadores, percebe-se como o sujeito estético, ao definir o “ser” continental, inclui as regiões subalternas marginalizadas pela modernização.
Rodó refletiu sobre essa subalternidade continental em diversos textos, mas em texto escrito no final de 1916, quando estava em Roma, intitulado “Al concluir el año”, o tema do olhar e do desconhecimento europeu em relação à América era muito distante, pois a viam como uma só entidade, integrada e que procede historicamente da Espanha. Mas, para ele, essa “relativa ilusão” (Rodó, 1957, p. 1225) também induz a falsas generalizações e enormes erros de identificação do lugar; no entanto, ainda não sentíamos esta força aglutinadora continental. E em forma de sonho ou objetivo de seu autor, a crônica revela seu desejo ao concluir o ano:
Si se me preguntara cuál es, en la presente hora, la consigna que nos viene de lo alto, si una voluntad juvenil se me dirigiera para que le indicase la obra en que podría ser su acción más fecunda, su esfuerzo más prometedor de gloria y de bien, contestaría: “Formar el sentimiento hispanoamericano, propender a arraigar en la conciencia de nuestros pueblos la idea de América nuestra, como fuerza común, como alma indivisible, como patria común” (Rodó, 1957, p. 1226).
Esse sentido unitário, que Rodó tanto almejou como crítico na produção literária, também foi requisitado na sua atuação parlamentar e diplomática, na escrita jornalística e em seus últimos escritos, as crônicas de viagem. Portanto, dedicou uma parte importante de seu trabalho como crítico, pensador e político para a reinvindicação de uma identidade ibérica supranacional. Mesmo que a passagem física de Rodó pelo Brasil tenha sido esta única vez, e de modo muito breve, projetou o país no conglomerado americano, reafirmando as esperanças do autor por um futuro latino-americano comum.
Considerações finais
Como apontou Ángel Rama (2001), a unidade da América Latina foi e, continua sendo, um projeto de um grupo de intelectuais, que, em sua maioria, buscaram no passado uma história, idioma e modelos semelhantes de comportamento, mas, apesar disso, segundo o crítico, a diversidade seria a definição mais precisa deste continente. A literatura serviu às múltiplas funções na América Latina, dentre elas uma possibilidade de homogeneidade discursiva. No caso de Rodó, observamos as diversas maneiras de proteger a identidade ibérica, e em seu projeto de pátria intelectual ensejou reconstruir territorialidades.
Nos discursos sobre o tratado entre Brasil e Uruguai, utilizou-se de um fato histórico concernente aos dois países, que envolvia suas fronteiras fluviais; a partir disso, logrou ultrapassar o nacionalismo temático, deslocando sua fala a um projeto que esteve muito presente em sua produção intelectual: a pátria intelectual hispano-americana, que naquele momento também se voltou para o legado ibérico, trazendo para o centro seu anseio internacionalista.
Nos discursos enfocados, as transformações econômicas, sociais e culturais advindas com o progresso material foram deixadas de lado, talvez pela carência de uma estrutura estável numa sociedade em constante mudança ou pelos efeitos desvirtuados da influência norte-americana, cuja retórica arielista tanto combatia. O elo entre as duas Américas teria dimensão espiritual, este foi o mapa do continente mentalizado por Rodó.
Nos textos enfocados aqui, Rodó interpelou diversos pontos sensíveis em sua agenda de debate. A dimensão transcontinental nunca foi um tema marginal em sua obra, mas central, no entanto, circunstâncias históricas e de sua vida pessoal (como a breve passagem pelo país quando seguia para a Europa), fizeram com que o Brasil fosse conclamado para integrar a comarca que o autor demarcou para fortalecer o latino-americanismo identitário.
A partir do intercâmbio transnacional de ideias, observamos uma posição intelectual moderna, que não envolveu somente a circulação das ideias literárias, mas também ideias de cultura, de sociedade e de política. Rodó, como um intelectual, lembrou à sociedade latino-americana a necessidade de definir-se, e, ao mesmo tempo, que tinha condições intelectuais de interpretar a si mesma. Entendemos que seu americanismo despontou como um regime disciplinar de produção de conhecimento, que se difundiu a partir de diversos modos, seja em seus enunciados didáticos, em sua comunicação social, em seus textos, e também na perspectiva de forjar redes intelectuais e transculturais.
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1
Mencionamos o trabalho de Emir Rodríguez Monegal (1953), que analisou as relações intelectuais entre Rodó e Francisco García Calderón; em seu trabalho, René de Costa (1970) ressalta a presença de Rodó na literatura chilena; Raffaelle Cesana (2016) analisou a presença de Rodó no México; Belém de Castro Morales (2013) e Gustavo San Román (2009) apontaram a recepção da obra de Rodó em Cuba; José Enrique Etcheverry (1950) e Pablo Rocca (2017) apontaram a recepção rodoniana no Brasil.
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2
Em seu trabalho Maíz buscou investigar a importância do pensador espanhol Miguel de Unamuno como um dos grandes provedores do enlace entre Espanha e América. O autor analisou suas cartas, textos e os diversos contatos de Unamuno e autores hispano-americanos, concluindo que Unamuno ocupava o centro de uma constelação discursiva cuja finalidade era orientar seu discurso a outras vozes.
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3
Mário Benedetti (1966); Alberto Zum Felde (1930); e Luis Alberto Sanchez. 1941.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Abr 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
30 Jul 2021 -
Aceito
04 Nov 2021