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A memória política brasileira em imagens animadas: entre documentação e fabulação

Brazilian political memory in animated images: between documentation and fabulation

Resumo:

O artigo busca refletir sobre a utilização de imagens animadas na representação de memórias políticas relacionadas à ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Para tanto, serão analisados três filmes brasileiros de animação: os curtas-metragens documentais Torre (Nádia Mangolini, 2017) e Cadê Heleny? (Esther Vital, 2022), e o longa-metragem de ficção Meu tio José (Ducca Rios, 2021). Produzidas integralmente com imagens animadas, as obras estão conectadas com formas contemporâneas de abordagem do real e de eventos históricos.

Palavras-chave:
Filmes de animação; Memória; Ditadura brasileira

Abstract:

This work brings a reflection on the use of animated images to represent political memories related to the Brazilian civil-military dictatorship (1964-1985). Therefore, three Brazilian animated films were analyzed: the animated documentary shorts Torre (Nádia Mangolini, 2017) and Cadê Heleny? (Esther Vital, 2022) and the fictional feature Meu tio José (Ducca Rios, 2021). Produced entirely with animated images, these films are connected with contemporary ways of approaching reality and historical events.

Keywords:
Animated movies; Memory; Brazilian dictatorship

Memórias políticas, cinema contemporâneo e animação

O artigo busca refletir sobre o uso de imagens animadas na representação de memórias relacionadas aos eventos políticos da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Para tanto, serão analisados três filmes brasileiros de animação: os curtas-metragens documentais Torre (Nádia Mangolini, 2017, 18”) e Cadê Heleny? (Esther Vital, 2022, 29”), e o longa-metragem de ficção Meu tio José (Ducca Rios, 2021, 89”). Produzidas integralmente com imagens animadas, as obras se conectam com formas contemporâneas de abordagem da realidade e de acontecimentos históricos. É possível considerar que o uso de animação nesses filmes está associado a uma proposta de documentação que acompanha a subjetivação de eventos concretos, assim como está relacionado a uma revisão desses eventos sob o olhar de gerações que não os vivenciaram diretamente.

Filmes premiados, tais como o israelense Valsa com Bashir, de 2008, centrado na perda da memória do diretor Ari Folman sobre sua participação no massacre de refugiados durante a Guerra do Líbano de 1982, ajudaram a estimular a produção de animações não ficcionais, especialmente em forma de documentários animados, e a naturalizar a relação entre imagens animadas e a representação de temas sociais e políticos. Além disso, obras como Persépolis (Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, 2007), Jasmine (Alain Ughetto, 2013), Carne (Camila Kater, 2019), Flee (Jonas Poher Rasmussen, 2021), entre outras, atestam um fortalecimento no uso de imagens animadas para representar recordações, seja no formato de filmes ficcionais ou documentais, com produções que trazem interpretações audiovisuais de testemunhos, apresentam relatos autobiográficos ou buscam abordar imaginários sociopolíticos para quem não viveu os momentos narrados.

Atualmente, o uso de animação na representação de eventos sociais, políticos ou históricos tornou-se mais recorrente em países latino-americanos, como pode ser verificado pelas pesquisas de Suárez (2015SUÁREZ, Bianca. Documental animado para el establecimiento de otra memoria. In: GIL-ARBOLEDA, Mariana(ed.); SUÁREZ, Bianca(coord.). Cine y reflexión: una ventana a la investigación sobre cine. Bogotá: Vicerrectoría de Investigaciones, 2015. p. 107-124.), Fenoll (2018FENOLL, Vicente. Animación, documental y memoria: la representación animada de la dictadura chilena. Cuadernos.info: Comunicación y Medios em Iberoamérica, n. 43, p. 45-56, 2018.) e Serra (2019SERRA, Jennifer Jane. O prédio dos chilenos: documentário latino-americano contemporâneo e animação do testemunho. In: COELHO, Cláudio Novaes Pinto; SOARES, Rosana de Lima(orgs.). Produtos midiáticos, práticas culturais e resistências. São Paulo: Cásper Líbero, 2019. v. 1, p. 296-312., 2021SERRA, Jennifer Jane. A animação como meio de representação da memória: lembranças afetivas e políticas. Diálogo com a Economia Criativa, Rio de Janeiro, v. 6, n. 18, p. 292-304, 2021.), com destaque para o Chile, onde a ditadura comandada por Augusto Pinochet foi tematizada em diferentes animações documentais, como a série Trazos de memoria I e II (Coletivo Londres 38, 2012 e 2016), e ficcionais, como os premiados curtas-metragens A história de um urso (Gabriel Osorio Vargas, 2014) e Bestia (Hugo Covarrubias, 2021), entre outras produções. Realizadas em sintonia com discussões correntes na sociedade e em meios de comunicação, essas obras têm fomentado uma memória acerca da ditadura chilena e conectado gerações mais jovens a essa realidade, que ainda impacta a história do país.

No Brasil, representações animadas da ditadura civil-militar iniciada em 1964 são frequentes em produções educativas que versam sobre a história nacional. No campo da animação cinematográfica esse perfil é ainda ocasional, mas é possível destacar a premiada animação de ficção científica Uma história de amor e fúria (Luiz Bolognesi, 2013), que aborda conflitos históricos como a violência contra indígenas durante a colonização brasileira, a Balaiada e a ditadura. O foco deste artigo, no entanto, são filmes de animação que representam a ditadura civil-militar brasileira por meio de imagens animadas combinadas com relatos pessoais. Torre, Cadê Heleny? e Meu tio José podem ser reunidos a produções audiovisuais recentes que revisitaram a última ditadura brasileira a partir dos testemunhos de suas vítimas. É possível ressaltar também a conexão desses filmes com um cenário nacional de debates sobre a ditadura, tanto relacionados aos 50 anos do golpe de 1964, como aos trabalhos realizados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV)1 1 No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade, que investigou violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, foi instituída apenas em 2011 e durou até 2014. Antes dela, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP) foi criada em 1995 com o objetivo de investigar casos de crimes com vítimas fatais motivados por questões políticas. Anteriormente, o projeto Brasil: Nunca Mais, coordenado por dom Paulo Evaristo Arns e equipe, realizado clandestinamente entre 1979 e 1985, compilou e publicou em livro (Petrópolis, Vozes, 1985) processos de denúncias de perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas, constituindo-se em importante documento daquele período. O material encontra-se disponível para pesquisa no Arquivo Edgard Leuenroth (Unicamp). e outras instituições associadas à memória da ditadura. Segundo Nádia Mangolini (2018MANGOLINI, Nádia. [Entrevista concedida a Jennifer Jane Serra]. Material sonoro não publicado. São Paulo, 2018. [1 gravação de voz, formato MP3, 60 min]), diretora de Torre, seu objetivo ao iniciar o projeto do filme era realizar um documentário animado sobre os “filhos da ditadura” e, nesse sentido, os trabalhos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva2 2 Em paralelo à Comissão Nacional da Verdade, comissões estaduais e municipais foram criadas no país para remediar as limitações de tempo e de estrutura da CNV. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva foi a primeira comissão estadual criada e se estendeu de 2012 a 2014. Informações adicionais podem ser acessadas no website da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/comissoes/comissao-da-verdade/. foram essenciais para a definição de seus personagens. Documentos produzidos por essa comissão também fizeram parte dos materiais de Cadê Heleny? Assim como os relatórios produzidos pelas comissões, esses filmes retomam os eventos da última ditadura brasileira, especialmente a partir do testemunho de quem a vivenciou como vítima da violência de Estado utilizada na repressão a insurgentes contrários a suas posições político-ideológicas.

É possível considerar que o recurso à animação vai ao encontro do movimento de subjetivação pelo qual passa o documentário contemporâneo, do crescimento do campo de estudos da memória e da expansão do documentário animado, especialmente com produções sobre experiências pessoais, como aponta Anabelle Honess Roe. Retomando autores como Susannah Radstone e Katherine Hodgkin, que ressaltam a importância da memória para a formação das identidades individuais, Honess Roe defende que, por seu modo subjetivo e interpretativo de criação, a animação

pode apresentar uma intervenção subjetiva nos discursos da autobiografia, da memória e da história. Dessa forma, a animação como estratégia de ‘re-apresentação’ da história pessoal é uma ferramenta pela qual a autoidentidade pode ser explorada e compreendida (Honess Roe, 2013HONESS ROE, Annabelle. Animated documentary. Londres: Palgrave Macmillan, 2013., p. 146, tradução nossa).

Uma das principais potencialidades da animação para o trabalho com a memória audiovisual diz respeito a sua habilidade em materializar dimensões intangíveis da realidade, que não podem ser percebidas pelo olhar ou capturadas por uma câmera, fornecendo um modo de representação de traumas, relatos pessoais ou daquilo que é difícil expor em palavras. Tal habilidade oferece uma forma de abordagem narrativa que se diferencia da tradição do cinema documentário e da fotografia, cujo trabalho com a memória recai sobretudo na exploração da referencialidade que a imagem indicial oferece em sua aproximação com o passado.

Com imagens simbólicas e criações metafóricas, a animação pode comunicar algo a mais do que aquilo oferecido pelos testemunhos, acessados na maior parte dessas obras por meio de elementos sonoros. Através de excessos visuais, simbologia e natureza imaginativa, essas imagens agregam elementos que dialogam com os relatos dos personagens e fornecem uma compreensão mais intensa de processos interiores de quem viveu as experiências narradas. Tais competências da animação no tratamento da memória podem ser vislumbradas nas produções brasileiras analisadas: os curtas-metragens documentais Torre e Cadê Heleny?, e o longa-metragem de ficção Meu tio José.

Torre, as memórias da infância

Torre,3 3 Trailer disponível em: https://vimeo.com/232520243. Acesso em: 9 abr. 2023. lançado em 2017 e dirigido pela produtora e historiadora paulista Nádia Mangolini, é um documentário animado sobre a ditadura do ponto de vista de filhos de ex-militantes políticos, construído com os depoimentos dos quatro filhos do casal Virgílio e Ilda Gomes da Silva: Isabel, Gregório, Virgílio Filho e Vlademir. Virgílio Gomes da Silva foi um dos militantes políticos “desaparecidos” pelas forças de repressão do governo militar. Sindicalista em São Paulo, durante a ditadura foi membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), recebeu treinamento de guerrilha em Cuba e participou do sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, negociado em troca de presos políticos, em 1969. Nesse mesmo ano, Virgílio foi preso por agentes da Operação Bandeirantes (Oban) e, torturado de forma violenta, morreu 12 horas após a prisão, no prédio do então DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), na cidade de São Paulo. No entanto, sua morte só foi confirmada após o fim da ditadura e seu corpo nunca foi entregue à família. Ilda Gomes da Silva não era militante política, mas foi presa um dia após Virgílio, junto com três de seus filhos. Foi mantida presa por nove meses na ala feminina do presídio Tiradentes, conhecida como “Torre das donzelas”, onde também esteve presa a ex-presidenta Dilma Rousseff.4 4 Em 2018, a diretora Susanna Lira lançou o documentário Torre das donzelas (Brasil, 97”), com relatos inéditos de mulheres que estiveram presas na década de 1970 (entre elas, Dilma Rousseff), recontando suas histórias e seu cotidiano por meio da rememoração e reconstrução daquele período. A narrativa é entrelaçada por depoimentos, entrevistas, elementos referenciais e outros ficcionais (entre eles o uso de desenhos feitos pelas personagens para reconstituição do espaço a ser usado na encenação), constituindo um importante documento na preservação dessa memória. Durante alguns meses, Ilda permaneceu sem comunicação com a família, e seus filhos ficaram em poder do Estado ou com parentes até sua libertação. Com a perseguição do Estado ainda forte e uma situação financeira precária, Ilda deixou o país em exílio com as crianças, primeiro para o Chile e depois para Cuba, onde viveram até 1993, quando retornaram ao Brasil.

Figura 1
Cartaz do filme Torre (divulgação).

O filme Torre é construído apenas com imagens animadas de desenhos e pinturas, sem imagens de arquivo, gráficos ou filmagens. Dividido em quatro blocos, cada um deles é focado nas memórias de um dos filhos do casal, começando com a mais nova, Isabel, até o mais velho, Vlademir. Ao longo do filme, a animação desempenha especialmente uma função de metaforizar a memória, seja a partir dos elementos visuais, que retratam as recordações e experiências dos entrevistados, ou a partir de uma representação da própria natureza da memória, em sua maleabilidade e inventividade. Como apontou Nádia Mangolini (2018MANGOLINI, Nádia. [Entrevista concedida a Jennifer Jane Serra]. Material sonoro não publicado. São Paulo, 2018. [1 gravação de voz, formato MP3, 60 min]), a escolha por trabalhar com animação foi definida por ser este “um meio perfeito para transmitir essa não rigidez da memória, que é fluida”, uma vez que a memória sofre processos de transformação, especialmente ao longo do tempo, o que é propício a uma produção que resgata lembranças de infância contadas por adultos.

Torre exemplifica a capacidade da animação de comunicar conteúdos complexos por meio de seus elementos constitutivos e por seu caráter criativo, trazendo um excedente na mensagem exposta por figuras e depoimentos. Aqui, o próprio processo de rememorar, em sua imprecisão e plasticidade, é incorporado como um objeto do filme. Indo além no trabalho de traduzir visualmente as lembranças narradas, o estilo visual da animação que acompanha cada relato está relacionado às diferentes maneiras com as quais as memórias dos personagens foram constituídas a partir das experiências vividas na infância. Esse movimento tem início com uma visualidade com poucos elementos, em referência a uma memória marcada pela ausência de recordações (nos casos de Isabel e Gregório), ampliando-se em detalhes no depoimento de Virgílio Filho até chegar a um desenho mais realista, porém também poético, de Vlademir, com sua representação já como adulto e a combinação de desenhos e texturas para contornar sua memória.

A torre que nomeia o filme cumpre também um papel simbólico, como um baú de recordações da infância traumática, remetendo a um lugar que encerra as memórias dos entrevistados, como informa Mangolini (2018MANGOLINI, Nádia. [Entrevista concedida a Jennifer Jane Serra]. Material sonoro não publicado. São Paulo, 2018. [1 gravação de voz, formato MP3, 60 min]). Algo que se torna ainda mais significativo com a demolição do presídio e o tombamento de seu portal, em 1985, como símbolo da luta contra a violência de Estado, já que o apagamento do edifício não encerra a permanência das memórias às quais ele alude. Sua referência é, portanto, menos ao presídio do que às experiências vividas pelos quatro irmãos. É a torre que costura seus depoimentos, por meio de uma cena que se repete no início de cada bloco e na qual as crianças acenam para o presídio, em uma representação do período em que Ilda não podia receber visitas. Quando seus filhos iam visitá-la, de fora do presídio, levados pela avó, ela acenava para eles de uma fresta da torre, cena repetida com as diferentes estéticas visuais que distinguem os blocos do filme. Em cada segmento vemos revelado o conteúdo dessa torre-baú de memórias, expresso nas falas testemunhais e nas imagens animadas.

Isabel tinha apenas 4 meses quando sua mãe foi presa e em torno de 3 anos quando eles foram para o exílio no Chile. Suas lembranças são tênues, escassas, e os cenários brancos e vazios nas imagens representam a falta de elementos que constituem a memória que ela tem desse período. Ela conta como imagina o que sua mãe viveu, o que ouviu sobre seu pai e suas primeiras memórias em Cuba. O relato de Isabel, além de tratar de uma ausência de memória e da dor por esta carência, expõe ainda a formação de uma memória que é compartilhada, uma vez que a história que ela conhece foi contada por seus familiares.

Gregório era também muito jovem, pois tinha 2 anos e estava com sua avó quando a família foi presa, e ele, separado de sua mãe e de seus irmãos. Como Isabel, suas memórias individuais começam no tempo do exílio, especialmente em Cuba. Ele fala de seu pai com base no que outros lhe contaram, usando pequenos detalhes da personalidade de Virgílio desconectados de sua figura política a fim de construir uma lembrança que preenche a lacuna de sua não presença: Virgílio era um fã de esportes, gostava de coisas como cuidar de plantas, da natureza e de música. Também a animação, em sua visualidade, representa uma memória de pouca intensidade, com lembranças em segunda mão usadas por Gregório para criar sua própria versão do passado. A memória dos dois é, portanto, recriada por lembranças transmitidas.

Figura 2
Representação de Virgílio Gomes da Silva com base nas memórias de Gregório (reprodução).

É através do testemunho de Virgílio Gomes da Silva Filho que o filme apresenta mais sobre seu pai, seus constantes desaparecimentos devido a perseguições políticas, e o que aconteceu com Ilda e seus filhos depois de serem presos pela Operação Bandeirante. Virgílio Filho tinha então 6 anos. Ele, Isabel e Vlademir foram mantidos em um Juizado de Menores por três meses antes de serem resgatados por seus tios. Depois, cada criança foi colocada sob os cuidados de um tio ou tia até que Ilda fosse libertada. Algumas informações adicionais que não são mencionadas na fala dos personagens são fornecidas pela animação, como em uma das cenas do depoimento de Virgílio Filho, quando vemos sua versão criança carregando uma caixa de engraxate.

Figura 3
No filme Torre, Virgílio Filho é mostrado preso em um Juizado de Menores com seus irmãos Vlademir e Isabel, e segurando uma caixa de engraxate (reprodução).

Após a prisão de Ilda, sua família suportou dificuldades financeiras e Virgílio Filho teve que trabalhar, uma das consequências da militância política para uma classe trabalhadora mais empobrecida. Esse é um exemplo de como a animação pode ser usada como forma singular de comunicação, com a exploração de uma visualidade para complementar ou substituir o depoimento. A veiculação de informações por meio de imagens animadas é um processo que amplifica o filme e se articula a uma preocupação da diretora relacionada aos filmes animados não autobiográficos e à ética da representação documentária.

Apesar das autobiografias constituírem um tipo recorrente de animações que trabalham a memória, casos como Torre e Cadê Heleny? - obras nas quais a equipe de produção não vivenciou as experiências relatadas - também são frequentes. Uma das questões que o projeto de Torre impôs a Mangolini foi, portanto, como trabalhar a memória do outro na animação. Em outras palavras, como manter a fidelidade dos relatos e explorar, ao mesmo tempo, as potencialidades expressivas da animação? Em filmes como Torre, a animação é resultado da interpretação da equipe das narrações dos entrevistados, trazendo suas próprias figurações do passado para a representação fílmica. Há um limite, colocado pela narrativa documentária na exploração da animação para a representação da memória, que corresponde ao esforço de não distorcer as experiências pessoais relatadas, equilibrando as formas audiovisuais poéticas e as escolhas dos artistas com a preservação das informações e sentidos originais dos relatos.

A solução adotada por Mangolini foi se ater aos elementos mencionados nas entrevistas e elaborar todas as imagens com base apenas nos depoimentos, mesmo que o projeto tenha incluído uma vasta pesquisa em fontes documentais, como os materiais produzidos pela Comissão Nacional da Verdade e pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. O diretor de animação, Marcos Vinícius Vasconcelos, acompanhou as entrevistas e criou uma série de imagens de referência que acabaram por conduzir a produção da animação. Por outro lado, houve também uma preocupação na criação de imagens que não fossem redundantes à fala, mas que completassem e expandissem cada recordação. Dessa forma, os áudios e as imagens se complementam na exposição das experiências vividas. Uma das singularidades da animação no contexto documental é, dessa forma, impor uma preocupação a mais no processo de mediação entre realizadores e sujeitos narrados e tornar mais evidente ao espectador essa mediação, que está presente em todo filme documentário que não seja autobiográfico, mas que não está tão intensamente evidenciado em filmes construídos em live action.

A animação em Torre também contribui para a expressão de experiências de difícil comunicação e compreensão, como traumas vivenciados na infância. Durante o tempo que passou no Juizado de Menores, Vlademir, o mais velho, com quase 8 anos de idade, cuidou de seu irmão e irmã, evitando a separação dos três filhos diante de tentativas de envio das crianças para adoção. Seu testemunho difere dos demais, já que ele não tenta contar a história de sua infância, mas versa sobre a perda do pai. A animação nesse segmento tem um estilo marcadamente diferenciado, feito com tinta a óleo sobre a imagem do rosto de Vlademir, por sua vez representado com traços realistas. Como afirmou Mangolini (2018MANGOLINI, Nádia. [Entrevista concedida a Jennifer Jane Serra]. Material sonoro não publicado. São Paulo, 2018. [1 gravação de voz, formato MP3, 60 min]), as diferentes pinceladas que se sobrepõem em camadas são uma metáfora para os estratos que recobrem suas memórias traumáticas.

Figura 4
Representação visual que acompanha o depoimento de Vlademir no filme Torre (reprodução).

A liberdade que Vlademir conseguiu do Juizado de Menores foi acompanhada da notícia de que seu pai estava morto. Como as informações da época não eram confiáveis, oficialmente Virgílio Gomes da Silva estava apenas desaparecido. Para Vlademir, a incerteza sobre o destino do pai - assassinado ou vivendo na clandestinidade - permaneceu até a declaração oficial da morte de Virgílio, em 2004. O processo de retomar as lembranças sobre o pai é um processo de escavação violento, apresentado de forma metafórica pela animação, e que encontra correspondência na técnica utilizada, pois cada camada de tinta retirada corresponde a uma camada de si mesmo que é movida para revelar suas memórias.

O desaparecimento é outro elemento abordado em Torre por meio da animação. No filme, Virgílio Gomes da Silva é representado como uma sombra, uma figura sem rosto com um corpo indeterminado. A relação entre ausência e presença ganha complexidade adicional porque, na animação, todos os corpos físicos dos personagens estão ausentes, sendo representados por desenhos, bonecos ou pinturas, e não pela imagem referencial produzida por uma câmera. A esse respeito, Honess Roe chama atenção para a relação entre documentário, corporeidade e visibilidade em entrevistas animadas relacionadas a questões políticas. A ausência do corpo físico em entrevistas documentais que tem como objetivo dar voz a agentes sociais marginalizados ou invisibilizados pode parecer contraditória, mas, como Honess Roe sugere,

a ausência física dos corpos no filme acrescenta uma camada de significado metafórico em relação ao poder sociopolítico dos entrevistados. A ausência do corpo físico não implica, entretanto, uma ausência de significado e afeto políticos. [...] A relação entre a ausência do corpo e o excesso, em termos de potencial metafórico e interpretativo, da animação tem a capacidade de transmitir uma mensagem política forte, mas complexa, sobre os papéis e posições que atribuímos a determinadas pessoas na sociedade (Honess Roe, 2013HONESS ROE, Annabelle. Animated documentary. Londres: Palgrave Macmillan, 2013., p. 96, tradução nossa).

É possível considerar que a representação do corpo de Virgílio Gomes da Silva por formas visuais mais abstratas destaca sua ausência física e sua existência etérea, denunciando sua condição permanente de “desaparecido” imposta pelo Estado. Dessa maneira, seu corpo sem definição também pode ser lido como uma representação da impossibilidade dos sobreviventes de estarem em posse de algum vestígio do ente perdido e, com isso, de realizar uma despedida, permanecendo, dessa forma, o sofrimento diante de sua condição como “desaparecido”. Esse elemento reforça como, além das memórias mais pessoais de Isabel, Gregório, Virgílio e Vlademir, a animação em Torre oferece um meio de acesso às experiências que permanecem como resultado das diferentes violências cometidas durante a última ditadura brasileira e que são compartilhadas por diferentes gerações.

Cadê Heleny?, entre a leveza e o horror

No filme Cadê Heleny? (2022),5 5 Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4QmUSFL3uv0. Acesso em: 21 nov. 2023. a violência e o horror são elementos que se sobressaem na narrativa, especialmente a partir do contraste com a técnica de animação utilizada. Trata-se de um documentário animado dirigido pela pesquisadora, psicóloga, produtora cultural e ativista espanhola Esther Vital, que apresenta a história de Heleny Ferreira Telles Guariba, militante política desaparecida pela ditadura civil-militar brasileira, em 1971. Cadê Heleny? narra a trajetória de Heleny Guariba no período em que atuava como professora no Teatro de Arena e iniciava sua militância política no grupo de luta armada Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), até o momento em que foi presa, torturada e desaparecida. O filme é inteiramente realizado com animação de bonecos de pano e costuras, com inspiração na arpillera, técnica têxtil chilena de tradição popular produzida por mulheres como forma de registro e denúncia das violências cometidas pelo regime ditatorial do Chile (1973-1990).

Figura 5
Cartaz do filme Cadê Heleny? (divulgação).

A narrativa de Cadê Heleny? tem como base o testemunho de três pessoas que conviveram com Heleny enquanto dramaturga, intelectual e militante política: sua aluna de teatro e amiga, Dulce Muniz; José Olavo Leite Ribeiro, ex-namorado e companheiro de militância; e José Carlos Dias, advogado que defendeu Heleny durante o período de perseguição e prisão pelas forças de repressão do Estado brasileiro. Seguindo a estrutura narrativa clássica, o filme é dividido em três atos que apresentam a trajetória de Heleny partindo de sua vida como artista e intelectual a membro ativa da VPR, sem perder de vista as particularidades de ela ser uma mulher que rompe com as expectativas de comportamento feminino da época. Nesse sentido, o filme tem início com seu crescente envolvimento com a militância política e filiação à VPR, enfatizando sua vida pessoal especialmente a partir do cuidado que destina a seus dois filhos, Francisco e João Vicente, bastante novos na época. O fim de seu casamento com o professor universitário Ulisses Telles Guariba é apresentado como uma consequência do aumento de seu engajamento na militância política, mas que não abala a participação de seus filhos em seu cotidiano, sendo o cuidado com as crianças um elemento recorrente ao longo da narrativa.

O projeto do filme Cadê Heleny? tem origem no engajamento de Esther Vital na pesquisa e promoção da arpillera, trabalhando essa arte com mulheres em situação de violência em países europeus, na Palestina e no Brasil. Surgida como forma de registrar os elementos culturais e da vida em comunidade, com a construção de cenas em tapeçaria e bordado, a técnica das arpilleras se converteu em uma forma de registro e comunicação dos problemas políticos e sociais enfrentados durante a última ditadura chilena, configurando-se, especialmente, como uma forma de resistência e expressão feminina de parentes de pessoas desaparecidas, presas ou exiladas. A técnica de animação de arpilleras tridimensionais, com cenários que representam espaços reais da cidade de São Paulo e com bonecos de tecido que representam as personagens, reforçam o caráter memorialista do filme. Como propõe a diretora Esther Vital ao associar a costura com o ato de relembrar:

A materialidade de este tipo de narrativa se faz especialmente apropriada para a abordagem proposta no filme, pois constitui um processo “físico” e mecânico que parece muito aos processos mentais envolvidos na memória. Cada pontada, e cada frame no stop motion, é uma sinapse, uma “marca de memória” (Vital, 2020aVITAL, Esther. Relatório de atividades. Projeto Cadê Heleny? Rumos Itaú Cultural. Material digital não publicado. [S.l.], 2020a., p. 5).

Dessa forma, o filme evoca uma memória da ditadura chilena que as arpilleras promovem, associando-a à memória da ditadura brasileira, assim como relaciona o processo construtivo da animação com o da memória, como ocorre também no filme Torre. O processo criativo da memória é ainda mais enfatizado pela técnica de animação de tecidos. Como aponta Victoria Grace Walden (2019WALDEN, Victoria Grace. Animation and memory. In: DOBSON, Nichola et al. (org.). The animation studies reader. Nova York: Bloomsbury Academic, 2019. p. 81-90., p. 82-83), a criatividade e a imaginação envolvidas na formação da memória são especialmente destacadas quando a produção quadro a quadro da animação é enfatizada, como ocorre na técnica de stop motion usada no filme, uma vez que a tatilidade desse tipo de animação provoca a consciência da presença do artista gerando o universo e o movimento vistos na tela.

Figura 6
Bonecos de Heleny Guariba e de seu filho produzidos pela equipe de Cadê Heleny?

Além disso, Walden (2019WALDEN, Victoria Grace. Animation and memory. In: DOBSON, Nichola et al. (org.). The animation studies reader. Nova York: Bloomsbury Academic, 2019. p. 81-90., p. 83) defende que o uso de materiais e formas não humanas nas animações, tais como tecidos e bonecos, podem provocar no espectador associações entre o corpo do objeto animado e o corpo presente em eventos históricos. Citando a análise das propriedades táteis da animação realizada pela pesquisadora Jennifer Barker, Walden propõe que a descontinuidade corporal entre a pessoa representada e o boneco animado em stop motion, além da fragilidade dos materiais usados, pode evocar um sentimento de vulnerabilidade, como se a efemeridade do material que constitui o boneco fosse um signo da própria existência ameaçada do corpo físico que ele representa.

Em Cadê Heleny?, além de conferir ao corpo animado uma noção de fragilidade, a animação em tecido também evoca no espectador outros sentimentos que contribuem para a narrativa do filme, como, por exemplo, as sensações de familiaridade, conforto e nostalgia, que acrescentam sentidos na composição dos personagens e na relação de empatia que o espectador desenvolve com eles. Ainda mais significativa em Cadê Heleny?, a técnica de animação de tecidos e bordados confere ao filme uma densidade poética e um sentido de singeleza que contrastam com a brutalidade das violências sofridas pela protagonista. As cenas de tortura são significativas de como esse contraste entre forma e conteúdo pode criar imagens de grande densidade dramática e impacto visual, tornando mais intenso o sentido de horror presente na representação visual desses acontecimentos.

Heleny foi presa quando tentava se esconder em um sítio da família de seu companheiro, José Olavo, em Poços de Caldas (MG). Levada para uma sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo, foi violentamente torturada. Diferente do colorido que marca as cenas de Heleny em sua casa ou locais de São Paulo, a trabalho ou exercendo sua militância política, a cena de tortura tem uma fotografia escura e contrastada, com cenário minimalista em fundo infinito preto e a câmera em giro de 360 graus, simulando o efeito bullet time.6 6 Bullet time é um tipo de efeito especial realizado com câmera lenta e simulação de movimento produzido com diversas câmeras, mostrando uma ação na “duração de uma bala”, produzindo o efeito de quase congelamento do tempo para a visão da cena. Os bonecos que representam os militares são parecidos entre si e vestem ternos escuros, enquanto Heleny é representada por um boneco branco, sem rosto, ao ser colocada no “pau de arara” e na “cadeira do dragão”, sofrendo espancamentos e outras formas de violência em diversas partes de seu corpo, com o sangue sendo representado por fitas vermelhas. A estilização empregada na composição da cena e dos personagens eleva o tom de artificialidade da animação e torna a cena de tortura menos horrenda em comparação com uma filmagem, mas sem perder o impacto visual. Como aponta Vicente Sánchez-Biosca (2016, p. 165), a animação usada em filmes autobiográficos e que apresentam uma memória traumática opera um mecanismo de distanciamento brechtiano que tem como base a natureza icônica da imagem animada, que “ajuda a desnaturar atores e palcos” e torna imagens de violência mais suportáveis de serem vistas. Ao mesmo tempo, esse distanciamento pode inibir uma relação voyeurística do espectador diante de cenas de violência ao diminuir o grau de espetacularização dessas imagens e a exploração visual dos personagens. As cenas de tortura em Cadê Heleny? oferecem também o exemplo mais contundente no filme do contraste entre a técnica e os materiais da animação e a brutalidade, representada a partir da história de Heleny Guariba. Ao mesmo tempo que os tecidos, a costura e o bordado reforçam a fragilidade e a personalidade artística e empática de Heleny, promovem um antagonismo maior à violência representada, ampliando o sentido de absurdo e horror dessas cenas.

Figura 7
Representação de Heleny Guariba no filme Cadê Heleny? (reprodução).

Depois de torturada, Heleny foi conduzida para a “Torre das donzelas”, no Presídio Tiradentes. O acolhimento das outras presas e o companheirismo entre as mulheres da torre é transmitido a partir da roda que elas fazem em torno de Heleny Guariba no momento de sua chegada. Todas são representadas por bonecas de tecido, enquanto o presídio é mostrado bidimensionalmente, como um cenário desenhado a partir de tecidos e linhas. A escolha por tecidos bordados e bonecos para a representação documental de Cadê Heleny? se relaciona, dessa forma, à habilidade da animação em comunicar narrativas traumáticas através de sua linguagem e de seus elementos constitutivos que, nesse caso, estão conectados a um histórico de resistência e luta contra violências praticadas por uma ditadura. Como afirma Vital (2020aVITAL, Esther. Relatório de atividades. Projeto Cadê Heleny? Rumos Itaú Cultural. Material digital não publicado. [S.l.], 2020a., p. 1),

a escolha estética das arpilleras tem sido sempre uma escolha estética, conceitual, narrativa e política. Para a diretora, o filme se configura como uma oportunidade de valorizar e visibilizar a arpillera, a costura, como meio expressivo na construção de narrativas coletivas traumáticas em contextos de repressão política. [...] Assim, mesmo que o produto final deste projeto é um filme de animação, também poderíamos dizer que é uma arpillera animada.

Na última parte do filme são apresentadas as circunstâncias do desaparecimento e morte de Heleny Guariba e as falas do advogado José Carlos Dias passam a conduzir a narrativa. Após ser libertada do presídio, Heleny continua a ser vigiada e é presa novamente, em uma emboscada envolvendo o agente infiltrado cabo Anselmo. Heleny foi presa e levada para a “Casa da morte”, em Petrópolis, um aparelho de repressão que foi local do assassinato de dezenas de opositores da ditadura. Através da fala de José Carlos Dias é informado que Heleny passou a ser procurada sem sucesso, até que souberam de sua morte pelo depoimento de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da “Casa da morte” e importante testemunha da última ditadura brasileira.

Falas de Dulce, José Olavo e José Carlos sobre a tortura, o desaparecimento e o trauma que permanece para a família encerram o filme, seguidas de uma última cena na qual os filhos de Heleny Guariba aparecem em uma praia, olhando para o mar. Dessa maneira, o filme se encerra com uma imagem metafórica sobre a espera sem fim a que são submetidas as famílias de pessoas desaparecidas. Assim como o filme Torre, Cadê Heleny? lança nosso olhar para o que permanece após a ditadura e se conecta com o presente por meio das memórias de quem carrega o trauma da perda de pessoas queridas.

Meu tio José, as ficções do real

Meu tio José (2021)7 7 Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G3B4Ia5KUtA. Acesso em: 21 nov. 2023. é um longa-metragem de ficção dirigido pelo cineasta e animador baiano Ducca Rios, que apresenta a história de seu tio, José Sebastião Rios de Moura, artista plástico, militante político durante a ditadura civil-militar, membro do grupo “Dissidência da Guanabara” e participante do sequestro do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick. O filme é inteiramente animado, com a técnica de desenho animado digital, em branco e preto com alguns elementos em vermelho, e é narrado pela perspectiva de uma criança, o sobrinho de José Sebastião, Adonias, que representa o próprio realizador, Ducca Rios. De caráter autobiográfico, Meu tio José, no entanto, estrutura-se como uma autoficção na qual as lembranças da infância do realizador e as histórias de vida de seu tio, transmitidas por sua família, são trabalhadas a partir de uma estrutura narrativa ficcional. Além disso, o roteiro mescla eventos reais da vida de José Sebastião e da família de Rios com elaborações ficcionais, apresentando a vida de José da infância até sua morte a partir do relato dos familiares de Adonias, que percorre, com esse processo, uma jornada de aprendizagem sobre o que foi a última ditadura brasileira e suas implicações na vida de seu tio.

Figura 8
Cartaz do filme Meu Tio José (divulgação).

Interrogando seus familiares sobre o tio, Adonias é o fio condutor que leva o espectador a conhecer José e o que ocorreu com ele, e com o país, após o golpe militar de 1964. A infância e juventude de José em Teresina (PI), onde nasceu, é contada pela avó de Adonias, Aracy. A mãe, Vanete, relata o período em que José segue sua carreira profissional e vai para a cidade do Rio de Janeiro, onde tem contato com um cenário cultural efervescente. O pai de Adonias, Silvestre, lhe explica de forma professoral o que foi a repressão praticada pelos militares e como José, então professor da Universidade de Brasília (UnB), engajou-se na luta contra a ditadura. Após permanecer no exílio até a promulgação da Lei da Anistia, José Sebastião retornou ao Brasil. Pouco tempo depois, foi assassinado na capital baiana, Salvador, quando estava em uma farmácia, em um crime não solucionado que levanta suspeitas de crime político devido às circunstâncias em que ocorreu. A história do filme se dá em duas narrativas paralelas: uma acontece ao longo de uma semana, quando José Sebastião é baleado em uma segunda-feira, não resiste ao tratamento no hospital, morrendo na sexta-feira, até a realização de uma passeata do movimento dos “Diretas já”, no sábado. A segunda narrativa se desenvolve em flashback a partir dos relatos da família de Adonias, contando a vida de José desde criança até a clandestinidade e o exílio.

Apesar de ser um filme de ficção, o caráter autobiográfico, o resgate de acontecimentos da vida de José Sebastião e da história do país, especialmente com o suporte dos materiais de pesquisa, que incluem relatos de jornais e revistas, assim como livros, e o trabalho com a memória transmitida por sua família, fornecem camadas documentais a Meu tio José que o aproximam do campo da não ficção, aspecto acentuado pelas características visuais da obra. Nesse sentido, Ducca Rios (2018RIOS, Ducca. Entrevista sobre o filme “Meu Tio José”. Mensagem recebida por: jennifer.jserra@gmail.com em20 set. 2018.) afirma que “ainda que 80% seja ficção, é a mais pura verdade que eu aprendi o que era ditadura a partir da brutalidade do atentado contra a vida de meu tio após a anistia”. Na construção de uma autoficção centrada, porém, em seu tio, Ducca Rios aproxima-se das narrativas audiovisuais contemporâneas que trabalham com a miscigenação de fato e fantasia, realidade e fabulação, convergindo “em termos tecnológicos, estéticos, éticos e narrativos, em que formas factuais e formas ficcionais compõem, no cinema e na televisão, um modo diverso de reconstituir a história recente dos diversos grupos sociais representados nas mídias” (Freire, Soares, 2013FREIRE, Marcius; SOARES, Rosana de Lima. História e narrativas audiovisuais: de fato e de ficção. Comunicação, Mídia e Consumo, v. 10, n. 28, p. 71-86, 2013. Disponível em: Disponível em: https://revistacmc.espm.br/revistacmc/article/view/506 . Acesso em: 9 abr. 2023.
https://revistacmc.espm.br/revistacmc/ar...
, p. 73).

Figura 9
Representação de José Sebastião no filme Meu tio José (reprodução).

Entre os elementos fílmicos que contribuem para a reconstituição da história da ditadura e que dialogam com a memória nacional desse período, é possível destacar a trilha sonora. O filme é dividido em cinco capítulos, cada qual pontuado por uma música consagrada do cantor Chico Buarque em versões reconstruídas com acentuação do rock8 8 Segundo Rios (Barreto, 2021), as canções de Chico Buarque foram reconstruídas em um estilo rockabilly punk, em referência ao movimento punk dos anos de 1980, uma proposta de referenciar o contexto da infância retratado no filme, que inclui a inserção de pichações em muros e paredes nos cenários, de personagem punk como figurante e a referência visual ao Movimento Concretista. e versões instrumentais, além da interpretação da canção Apesar de você (Chico Buarque, 1978) pelo cantor Lirinha. A relação entre Chico Buarque e a resistência à ditadura brasileira é de conhecimento público e suas músicas nasceram no contexto de oposição e combate à ditadura, constituindo materiais históricos que carregam em si os sentidos dessa resistência. O filme também inclui um elenco de voz que conta com atores consagrados, como Wagner Moura (que faz a voz de José Sebastião adulto) e Tonico Pereira, entre outros, especialmente baianos. O lançamento de Meu tio José ocorre depois de Wagner Moura dirigir e lançar um filme de longa-metragem sobre Carlos Marighella, também ele um dos principais opositores da ditadura e articulador da resistência armada. Estes são elementos que reforçam as conexões do filme Meu tio José com uma memória coletiva sobre a ditadura brasileira e, mais recentemente, eventos políticos brasileiros da extrema direita que reacenderam a importância desse debate. Os elementos estéticos que compõem a animação em Meu tio José também estabelecem relações com o movimento contemporâneo dos quadrinhos, no qual as autobiografias vêm contribuindo para o resgate e revisão de momentos históricos com novas formas de abordagem, especialmente voltadas para públicos mais jovens. O estilo visual dos desenhos, a opção pelo preto e branco e a narrativa autobiográfica centrada em uma criança são elementos que aproximam Meu tio José, por exemplo, de Persépolis,9 9 A graphic novel Persépolis foi lançada em quatro volumes, entre os anos 2000 e 2003, na França. No Brasil, a obra completa foi traduzida e lançada em um só volume, pela editora Companhia das Letras, em 2007. o trabalho da quadrinista Marjane Satrapi, publicado inicialmente como uma série de graphic novel e, depois, adaptado para um longa-metragem de animação.10 10 Persépolis é também citado por Ducca Rios (Barreto, 2021) como uma obra que serviu de referência à produção de Meu tio José. Assim como Persépolis e Maus: a história de um sobrevivente,11 11 Os capítulos de Maus foram originalmente publicados entre 1980 e 1991 na revista underground Raw (EUA), fundada e editada pelo próprio autor, Art Spiegelman. Em 1986, a editora Pantheon Books (EUA) publicou os seis primeiros capítulos em um volume único intitulado Maus: a survivor’s tale, com o subtítulo My father bleeds history (Maus - A história de um sobrevivente: meu pai sangra história). Em 1991, a mesma editora lançou um segundo volume intitulado And here my troubles began. Por Maus, Art Spiegelman recebeu o prêmio Pulitzer em 1992, pela primeira vez concedido a uma revista em quadrinhos. No Brasil, a obra foi traduzida e lançada pela editora Brasiliense em 1987 (primeiro volume) e 1995 (segundo volume) e pela editora Companhia das Letras, em volume único, em 2005. Meu tio José oferece um meio de acesso a um passado histórico e traumático com uma forma narrativa que se conecta com as novas gerações e dialoga com outras narrativas presentes nas mídias sem, contudo, banalizá-las, possibilitando apropriações e ressignificações por parte dos públicos. Como defende Andreas Huyssen (2000HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória:arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000., 2003), o maior perigo para passados traumáticos é seu esvaziamento pelo excesso de memória, tornada então mercadoria de consumo de massa. Para Huyssen (2003, p. 135-137), novas estratégias figurativas e narrativas como Maus, assim como os filmes analisados neste estudo, podem contribuir para o afastamento desse perigo.

Ainda segundo Rios (2018), o estímulo a produzir um filme sobre seu tio veio da invisibilidade de sua história e da compreensão de que, assim como ele, existiram outros anônimos que cumpriram papéis relevantes na resistência política contrária à ditadura brasileira. Tal pensamento está em sintonia com o cinema latino-americano que recorre às experiências pessoais e à memória como contraponto às historiografias que restringem as vozes de movimentos sociais. Meu tio José, dessa forma, contribui tecendo uma importante escrita para a história da ditadura brasileira mais recente.

Considerações finais

Ao percorrer os três filmes tratados, em que eventos sociais do passado e relatos pessoais no presente se interconectam para, ao mesmo tempo, evocar e deslocar narrativas traumáticas e, assim, refazer as tramas da memória, percebem-se linhas de força (e de fuga) que aglutinam movimentos políticos contemporâneos. Esses relatos, cada vez mais frequentes em obras audiovisuais no Brasil e na América Latina, têm se colocado como modos de resistência e reexistência em relação a uma realidade marcada por esquecimentos e apagamentos das histórias de violências e autoritarismos presentes nesses países, especialmente em períodos dominados por ditaduras civis e/ou militares. Nos dois curtas e no longa-metragem analisados, tem-se a valorização das imagens animadas como acesso às subjetividades narradas sem que isso se torne o relato pessoal de um indivíduo; ao contrário, trata-se da construção de sujeitos coletivos e de contextos político-sociais traumáticos que reativam e atualizam características presentes em filmes engajados ou no cinema militante.

Como afirmam Halbwachs (1950, p. 129) e Beatriz Sarlo (2007, p. 56), o tempo da memória é o presente. A memória não se refere aos fatos passados, mas à nossa experiência do passado no presente e, com isso, ela carrega os traços e o olhar da atualidade. Considerando o momento presente, é possível destacar que as memórias representadas nos filmes adquirem relevância e urgência ao serem divulgadas, pois sofrem a ação das disputas políticas que marcam as ditaduras latino-americanas ocorridas na segunda metade do século XX. Assim como no caso brasileiro, as imagens oscilam entre movimentos de resistência ou de resgate dessas memórias e ações de apagamento ou de ressignificação por parte de instituições que apoiaram as ditaduras, e que ainda são dotadas de poder. Os filmes que rememoram a ditadura e que trazem a experiência pessoal para o centro desse processo de recordação atuam na construção da memória coletiva sobre esse passado nacional e fortalecem o combate a políticas de esquecimento que se manifestam com leis de anistia, revisões historiográficas enviesadas e a favor de governos ditatoriais, ou com o silêncio repressivo.

Além de sua habilidade em tematizar narrativas de caráter mais subjetivo, a animação opera outra conexão com a atual valorização da primeira pessoa no cinema, por meio da projeção do espectador nas experiências contadas nos filmes animados. Por um lado, a animação produz um distanciamento em relação às imagens, por sua natureza icônica e simbólica que permite dirigir o olhar para “imagens intensas”, termo usado por André Bazin (2014BAZIN, André. O que é cinema?São Paulo: Cosac Naify, 2014.), tais como imagens de violência e trauma, ao produzir representações suportáveis ao olhar e, ao mesmo tempo, sensíveis e de grande carga dramática. Mas, além disso, a imagem animada dá espaço para a projeção do espectador na narrativa graças a sua inerente qualidade estética e não referencial que a aproxima da ficção e, por isso, estimula o engajamento imaginativo do espectador com o material fílmico (Saunders, 2009SAUNDERS, Max. Autobiografiction: experimental life-writing from the turn of the century to modernism. Literature Compass, v. 6, n. 5, p. 1041-1059, 2009., p. 1048), fomentando laços de identificação entre espectador e protagonistas. Esse efeito é potencializado por uma associação culturalmente sedimentada entre animação e universo infantil, que tanto provoca um sentimento de nostalgia, quanto uma maior abertura e escuta do público para o conteúdo apresentado no filme, postura alimentada pela visão ainda comum da animação como sendo um meio ingênuo.

Finalmente, outros três elementos se destacam nas análises, a saber: 1) a possibilidade de exercitar a crítica cultural por meio da crítica midiática de obras de caráter híbrido, em que aspectos documentais e ficcionais contribuem para a reconstrução da memória e, ao mesmo tempo, mostram a indissociabilidade dos sistemas de produção e recepção audiovisual; 2) a potencialidade das formas audiovisuais de animação em articular imaginários por meio da fabulação de acontecimentos históricos, ao mesmo tempo explicitando e recobrindo seu caráter indicial; e 3) a interpelação sobre as fronteiras entre fatos e relatos visando equilibrar o excesso de realidade muitas vezes presente em narrativas testemunhais com o elogio da ficção necessário à diluição do afastamento e ao estímulo da empatia por parte dos espectadores, especialmente em narrativas relegadas ao esquecimento ou destinadas ao apagamento histórico. Finalmente, é no entremeio entre uma análise audiovisual de caráter formalista e aquela voltada a aspectos sociológicos que se pode vislumbrar um percurso capaz de estabelecer, por meio dos circuitos midiáticos, um complexo crítico coerente com os desafios de se olhar o passado com os olhos do presente, buscando transformá-lo.

A animação, portanto, oferece uma forma expressiva de representação de eventos passados traumáticos que diminui o potencial de espetacularização, cria uma camada de proteção ao espectador diante de conteúdos sensíveis e estimula uma relação empática com os personagens e com a abordagem do filme. Esses resultados, aliados a uma valorização e divulgação da memória política do país, mostram-se de grande importância em um momento em que há, no Brasil e em outros países do mundo, movimentos de exaltação a governos autoritários e de extrema direita. Tais posições muitas vezes visam consolidar uma memória enviesada e distorcida sobre esse período da história de diferentes países latino-americanos por meio do silenciamento e/ou da validação de sua política repressiva, antidemocrática e violenta. Dessa forma, o trabalho com animação e memória nos filmes brasileiros analisados mostra-se também como uma forma de resistência simbólica e de ação política no processo de (re)construção de uma memória coletiva sobre o passado político do país.

Referências

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    » http://screamyell.com.br/site/2021/06/13/entrevista-ducca-rios-fala-sobre-meu-tio-jose-animacao-baiana-selecionada-para-o-festival-annecy-2021/
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Filmografia

  • A história de um urso(Chile, 2014, 11min), de Gabriel Osorio Vargas.
  • >Bestia (Chile, 2021, 15min), de Hugo Covarrubias.
  • >Cadê Heleny?(Brasil/Espanha, 2022, 29min), de Esther Vital.
  • >Carne(Brasil/Espanha, 2019, 12min), de Camila Kater.
  • >Flee: nenhum lugar para chamar de lar(Dinamarca, 2021, 1h 30min), de Jonas Poher Rasmussen.
  • >Jasmine(França, 2013, 1h 10min), de Alain Ughetto.
  • Meu tio José(Brasil, 2021, 1h 29min), de Ducca Rios.
  • Persépolis(França, 2007, 1h 35min), de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud.
  • Torre(Brasil, 2017, 19min), de Nádia Mangolini.
  • Trazos de Memoria I e II(Chile, 2012e 2016), do Coletivo Lo7ndres 38.
  • Uma história de amor e fúria(Brasil, 2013, 1h 15min), de Luiz Bolognesi.
  • Valsa com Bashir(Israel, 2008, 1h 27min), de Ari Folman.
  • 1
    No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade, que investigou violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, foi instituída apenas em 2011 e durou até 2014. Antes dela, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP) foi criada em 1995 com o objetivo de investigar casos de crimes com vítimas fatais motivados por questões políticas. Anteriormente, o projeto Brasil: Nunca Mais, coordenado por dom Paulo Evaristo Arns e equipe, realizado clandestinamente entre 1979 e 1985, compilou e publicou em livro (Petrópolis, Vozes, 1985) processos de denúncias de perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas, constituindo-se em importante documento daquele período. O material encontra-se disponível para pesquisa no Arquivo Edgard Leuenroth (Unicamp).
  • 2
    Em paralelo à Comissão Nacional da Verdade, comissões estaduais e municipais foram criadas no país para remediar as limitações de tempo e de estrutura da CNV. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva foi a primeira comissão estadual criada e se estendeu de 2012 a 2014. Informações adicionais podem ser acessadas no website da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/comissoes/comissao-da-verdade/.
  • 3
    Trailer disponível em: https://vimeo.com/232520243. Acesso em: 9 abr. 2023.
  • 4
    Em 2018, a diretora Susanna Lira lançou o documentário Torre das donzelas (Brasil, 97”), com relatos inéditos de mulheres que estiveram presas na década de 1970 (entre elas, Dilma Rousseff), recontando suas histórias e seu cotidiano por meio da rememoração e reconstrução daquele período. A narrativa é entrelaçada por depoimentos, entrevistas, elementos referenciais e outros ficcionais (entre eles o uso de desenhos feitos pelas personagens para reconstituição do espaço a ser usado na encenação), constituindo um importante documento na preservação dessa memória.
  • 5
    Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4QmUSFL3uv0. Acesso em: 21 nov. 2023.
  • 6
    Bullet time é um tipo de efeito especial realizado com câmera lenta e simulação de movimento produzido com diversas câmeras, mostrando uma ação na “duração de uma bala”, produzindo o efeito de quase congelamento do tempo para a visão da cena.
  • 7
    Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G3B4Ia5KUtA. Acesso em: 21 nov. 2023.
  • 8
    Segundo Rios (Barreto, 2021), as canções de Chico Buarque foram reconstruídas em um estilo rockabilly punk, em referência ao movimento punk dos anos de 1980, uma proposta de referenciar o contexto da infância retratado no filme, que inclui a inserção de pichações em muros e paredes nos cenários, de personagem punk como figurante e a referência visual ao Movimento Concretista.
  • 9
    A graphic novel Persépolis foi lançada em quatro volumes, entre os anos 2000 e 2003, na França. No Brasil, a obra completa foi traduzida e lançada em um só volume, pela editora Companhia das Letras, em 2007.
  • 10
    Persépolis é também citado por Ducca Rios (Barreto, 2021) como uma obra que serviu de referência à produção de Meu tio José.
  • 11
    Os capítulos de Maus foram originalmente publicados entre 1980 e 1991 na revista underground Raw (EUA), fundada e editada pelo próprio autor, Art Spiegelman. Em 1986, a editora Pantheon Books (EUA) publicou os seis primeiros capítulos em um volume único intitulado Maus: a survivor’s tale, com o subtítulo My father bleeds history (Maus - A história de um sobrevivente: meu pai sangra história). Em 1991, a mesma editora lançou um segundo volume intitulado And here my troubles began. Por Maus, Art Spiegelman recebeu o prêmio Pulitzer em 1992, pela primeira vez concedido a uma revista em quadrinhos. No Brasil, a obra foi traduzida e lançada pela editora Brasiliense em 1987 (primeiro volume) e 1995 (segundo volume) e pela editora Companhia das Letras, em volume único, em 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2023
  • Aceito
    06 Fev 2024
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