Resumo
Objetivo de promover reflexão sobre a palhaçaria, à luz da Educação Popular em Saúde. Descreve e analisa intervenções realizadas entre outubro de 2020 e dezembro de 2021, com usuários e servidores públicos no Sertão Central. A palhaça abriu alas para a territorialização e se mostrou potente tecnologia para uma atuação humanizada da enfermeira residente. Como interlocutora entre o saber científico e o popular, em sua corporalidade cenopoética, lidava de forma criativa e leve com assuntos tabus para a saúde comunitária, promovendo uma educação problematizadora e dialógica com seu público. A experiência fez-nos refletir nas lacunas de investimentos para viabilizar projetos como esse, fortalecendo a institucionalização da Educação Popular em Saúde. Assim, defendemos a implementação de formações e oficinas sobre conceitos, desafios e potencialidades da Educação Popular em Saúde. A palhaçaria, como proposta de atuação, é tecnologia transformadora que inspira o protagonismo à comunidade por meio de conhecimento, cuidado amoroso e arte.
Palavras-chave:
Promoção da Saúde; Educação Popular em Saúde; Terapia do Riso
Abstract
The scope of this paper is to elicit reflection on therapy clowns in the realm of Popular Education in Health. It describes and analyzes interventions conducted between October 2020 and December 2021 between civil service workers and patients in the Sertão Central hinterlands. Therapy clowning paved the way as a potent technology for humanized care treatment by the resident nurse. As an intermediary between scientific and popular knowledge, in its scenopoetic approach, it dealt creatively and humorously with taboo subjects for community health, promoting a light-hearted interaction experience with its audience. The experience revealed some points about the scarcity of investment to make projects like this viable, thereby empowering the institutionalization of Popular Education in Health. For this reason, we advocate the implementation of training sessions and workshops on concepts, challenges, and potentialities in Popular Education in Health. Therapy clowning, as a proposed action, is a transformative technology that inspires a proactive approach in the community through knowledge, loving care, and art.
Key words:
Health promotion; Popular Education in Health; Laughter therapy
Introdução (ou No princípio, criou-se o riso)
Hotxuá é o sacerdote da etnia Krahô, de Tocantins, norte do Brasil, que tem a função de promover o bem-estar de sua comunidade através do riso e da alegria. O palhaço, como o Hotxuá, compartilha da condição sacerdotal através de uma ritualística de comicidade do seu corpo, geradora de bem-estar11 Sabatella L, Cardia G, Pedra Corrida Produções. Hotxuá [filme-vídeo]. Tocantins: Petrobrás; 2009. 1 DVD HDCAM, 70 min. color. som.,22 Silva MC. A prerrogativa espetacular do hôxwa Krahô. Rev Florestan 2015;4:166-175..
Em meados da década de 1980, o palhaço adentra os espaços hospitalares, provocando risos, aliviando tensões, ao parodiar as rotinas de cuidados de saúde através de sua óptica caleidoscópica. Há experiências em todo o planeta e nos mais diversos espaços em que a figura palhacesca se transforma em instrumento terapêutico33 Sato M, Ramos A, Silva CC, Gameiro GR, Scatena CMC. Clowns: a review about using this mask in the hospital environment. Interface (Botucatu) 2016; 20(56):123-134..
O foco de sua atuação, até então no bem-estar de pessoas em internação hospitalar, seus acompanhantes e os profissionais que as assistem durante os plantões, na primeira década do século XXI, passa a incluir os espaços comunitários para realizar educação em saúde, através do humor, do lúdico e da imaginação44 Brito CM, Silveira R, Mendonça DB, Joaquim RHVT. O humor e o riso na promoção de saúde: uma experiência de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família. Cien Saude Colet 2016; 21(2):553-562.
5 Pekelman R, Ferrugem D, Minuzzo FAO, Melz G. A arte de acolher através da visita da alegria. Rev APS 2009; 12(4):510-516.-66 Zoboli ELCP, Hohl KG. Tecnologia clown na saúde da família: a transposição de uma tecnologia de humanização hospitalar para o território. In: Anais do 21º Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP. São Paulo: EEUSP; 2013..
O palhaço é uma figura cenopoética. Cenopoesia é a linguagem desvendada pela Educação Popular em Saúde (EPS), centrada na pessoa, problematizadora, amorosa e carreadora de transformações. Constitui-se uma ponte entre o saber popular e o científico, alicerçada na pedagogia libertadora de Freire e na Arte77 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz: roteiros para refletir brincando: outras razões possíveis na produção de conhecimento e saúde sob a ótica da educação popular. Brasília: MS; 2013..
O que motiva esta narrativa é uma proposta de reflexão da arte palhacesca como favorecedora do acolhimento, da construção do conhecimento e da emancipação dos indivíduos e comunidades assistidos pelo SUS.
Este trabalho objetiva descrever a experiência do ciclo de intervenções educativas de uma palhaça na promoção da saúde, enquanto enfermeira residente em Saúde Mental Coletiva no Sertão Central do Ceará, e ainda promover a reflexão sobre a palhaçaria como recurso educativo e terapêutico na saúde comunitária em diálogo com a Educação Popular em Saúde.
Profecia Celestina
Certa noite tive um sonho em que estava sentada a uma pequena mesa sob a lona branca de um circo vazio. Diante de mim, um senhor de uns 70 anos me mostra uma foto sua, em preto e branco, como palhaço, daqueles de chapéu coco, calças largas e suspensórios.
Então, ele diz que meu trabalho vai ajudar a várias pessoas. Pergunto mentalmente como. Nesse momento, o homem aponta para a porteira do circo, que se abre e uma multidão adentra querente e agitada em nossa direção.
Sidarta Ribeiro revela que “sonhos bem sonhados vislumbram nosso destino através de simulações dos possíveis trajetos e desfechos”88 Ribeiro S. O Oráculo Da Noite: A História E a Ciência Do Sonho. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2019.(p.352). No dia seguinte, ao acordar pensei: Hoje crio minha palhaça.
No fim da tarde, eu paro, penso nela. Ela veio vivaz, fresca, fluida como cachoeira. Era feminina, falava firme e com elegância, tinha os seios fartos e usava óculos. Então, diante do espelho, flexiono as pernas, num bom e velho pliê e digo, estendendo a mão direita: - Celestina. Muito prazer!
Celestina surge em 23 de maio de 2009, eu estava com sete meses de gestação, talvez justifique o ar maternal de minha palhaça.
Celestina nasce para trabalhar em ambientes de saúde. Durante oito anos, atuei como membra da Trupe do Riso, grupo de teatro com foco em intervenções em ambientes de saúde, de Fortaleza-CE.
Os anos de experiência como Celestina me sensibilizaram o olhar para a saúde. Eu vi que, ricas ou pobres, as pessoas precisavam de profissionais de saúde humanos, competentes tecnicamente, também que realizassem um cuidado amoroso. Era isso o que eu queria fazer. Além de ser uma palhaça cuidadora e educadora, ser uma profissional da saúde.
Primeiro veio a palhaça, depois a enfermeira
Até 2012, era professora em escola estadual e utilizei Celestina em eventos temáticos. Em 2013, deixo de ensinar e abandono as graduações em Psicologia e Letras, que me convidavam ao retorno ou à jubilação, para tentar vaga no curso de Enfermagem, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), em Redenção-CE.
Na Enfermagem, crio e coordeno o grupo Florence’s de palhaços-enfermeiros com colegas brasileiros e africanos. De 2014 a 2019 o grupo, que não foi institucionalizado, participou de Semanas Universitárias e da Enfermagem, com performances e apresentações de resumos. Criamos um esquete apresentado em um congresso internacional na Bahia.
Realizamos intervenções educativas sobre a prevenção de IST/HIV, arboviroses, cânceres de mama, próstata, testículo e pênis, recepção de novos alunos, palestras e esquetes em escolas de educação infantil, ensinos fundamental e médio/técnico sobre saúde bucal, mental e sexual, bullying, autoestima, prevenção ao uso de substâncias psicoativas e preparação pré-ENEM.
Três dias após a colação de grau, iniciava no Programa de Residências Integradas em Saúde da Escola de Saúde Pública do Ceará (RIS/ESP-CE), no componente comunitário, com ênfase em Saúde Mental Coletiva, em Quixadá. Celestina segue (quase sempre) solo.
Metodologia (ou De como se fez o que foi feito)
Estudo descritivo, do tipo relato de experiência sobre palestras-performance realizadas em outubro de 2020 e de outubro a dezembro de 2021, com usuários e profissionais de dispositivos públicos em Quixadá, no Sertão Central do Ceará.
As intervenções com usuários e profissionais ocorreram nos espaços dos serviços: Unidade de Pronto-Atendimento (UPA); Serviço de Atenção Especializada (SAE); Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS) Frei Guido, no bairro Alto São Francisco; CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) Rachel de Queiroz, no conjunto residencial homônimo.
As demais intervenções ocorreram nos auditórios da Superintendência de Saúde do Sertão Central e de duas instituições de ensino superior, nas palestras para a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (CAGECE). No salão do Sindicato Rural de Quixadá o público era de agricultores e agricultoras ativas e aposentadas.
Foram realizadas 10 palestras-performance informativas, reflexivas e interativas, com duração aproximada de 1 hora e 30 minutos. Cada grupo tinha entre 30 e 50 pessoas, presentes no espaço em decorrência da rotina dos serviços (UPA, SAE, UAPS e CRAS), ou convidados por gestores para evento temático (CAGECE, Superintendência e Sindicato).
Os conteúdos foram trabalhados com auxílio de recursos audiovisuais e objetos didáticos lúdicos de acordo com cada temática - Outubro Rosa, Novembro Azul e Dezembro Vermelho.
A coleta de dados, feita a partir de diário de campo, incluiu registros do que foi observado durante a intervenção, as reações, interações, a retroalimentação sobre conteúdo e método adotados, por meio de falas e expressões corporais dos participantes. Os eventos foram registrados também por fotografias e vídeos curtos.
O que emergiu de mais significativo em cada vivência vem a ser analisado e discutido à luz da Educação Popular em Saúde.
Os aspectos éticos foram respeitados. Os riscos se relacionaram, principalmente, à pandemia, reduzidos com o uso de máscara, higienização das mãos e distanciamento durante as palestras. A vacinação prévia dos participantes, a partir de janeiro de 2021, ampliou a segurança contra a COVID-19. Houve risco de tensionamento entre o conteúdo exposto e as crenças dos participantes, minimizado por uma fala reforçada com evidências científicas, linguagem simples e uso de comparações com situações cotidianas, com respeito às crenças e escolhas de cada pessoa.
Resultados e discussão (ou Sobre o ser e o devir)
Alienígena em Quixadá: as palestras de Celestina
Celestina adentra o Sertão Central, nos primeiros meses de pandemia, como alienígena, uma novidade, um ser exótico com algo a oferecer, no caso, cuidados de saúde, educação e alegria. Aportou em lugar desconhecido, para cumprir uma missão, junto à RIS/ESP-CE, de realizar boas trocas e crescer com isso.
A enfermeira residente ampliou os horizontes de sua atuação através da palhaça, ultrapassando os limites de campo previstos pelo programa. Tais intervenções permitiram à residente conhecer e reconhecer peculiaridades dos serviços no território, bem como atuar na comunidade, através da arte, de forma ética e poética, dentro e para além do SUS.
Estudos sobre experiências denominadas PalhaSUS, ambos com início em 2010, no Rio de Janeiro e na Paraíba, convergem com as palestras de Celestina pela percepção dialógica e amorosa da arte palhacesca como prática com potencial para a promoção da saúde via Educação Popular em Saúde99 Matraca MVC, Araújo-Jorge TC, Wimmer G. O PalhaSUS e a Saúde em Movimento nas Ruas: relato de um encontro. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl. 2):1529-1536.
10 Costeira AAMF. Educação popular e formação em saúde na perspectiva do palhaço cuidador: estudo com base em um projeto de extensão. 1ª ed. João Pessoa: Editora do CCTA; 2018.-1111 Matias JAG, Carvalho LE, Menezes RA, Costeira AAMF. Um breve relato histórico sobre a construção do PalhaSUS. In: Costeira AAMF, Vasconcelos BC, Nascimento JA, organizadores. PalhaSUS: Luta que se faz com cuidado e amorosidade. 1ª ed. João Pessoa: Editora do CCTA; 2018. p. 37-49..
Ao receberem a palhaça cuidadora em um ambiente comum ao seu cotidiano, as pessoas percebem aquele ser descolado das imagens e sons habituais. Seu tom de voz, seus movimentos corporais e expressões faciais exagerados concentram as atenções em si e são gatilhos para o riso.
A escolha do figurino e demais recursos é feita evocando a temática ou contexto do encontro. Uma dança de símbolos que nos remetem ao que ela vem apresentar. Para Baczinski e Araujo-Jorge1212 Baczinski MG, Araújo-Jorge TC. Dotôra Clô: um relato de experiência de palhaçaria e ensino de saúde. In: Matraca MVC, Nieto-Lopez F, organizadores. Palhaçaria: Arte, ciência, saúde e educação para novos afetos. 1ª ed. Formiga: Editora MultiAtual; 2022. p. 101-116., as mulheres, uma vez protagonistas de cenas e improvisos palhacescos, se abrem a uma vastidão de possibilidades cênicas e estéticas.
Embora temas atraentes e comuns, a sexualidade e as questões de saúde a ela relacionadas são envolvidas por grande tabu. As palestras ajudaram Celestina a parir seu lado bufônico e colocar esta manifestação ancestral palhacesca tão contraventora, conforme Ferreira e Lima1313 Ferreira ALR, Lima TM. Bufonaria e política a partir de Leo Bassi [Tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; 2018. assinalam, a serviço da educação.
A palhaça, como interlocutora entre o saber científico e o saber popular, em sua corporalidade cenopoética, lidava de forma criativa e leve com assuntos tabus para a saúde comunitária, promovendo uma educação problematizadora e dialógica com seu público1414 Freire P. Pedadogia do Oprimido. 17ª ed. Vol. 21. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1987..
Durante as palestras, ocorreram interações entre a palhaça e o público, quando ela se movimentava entre as pessoas, abordando aqueles cujos corpos chamavam pelo contato. Para Kasper et al.1515 Kasper KM. Experimentar, devir, contagiar: o que pode um corpo? Pro-Posicoes 2009; 20(3):199-213.,1616 Kasper KM, Toffoli GS, Sejanes TA, Barros MP. Desaprendizagens na ressonância dos encontros. Leitura Teoria Pratica 2021; 39(83):121-139., é do encontro entre corpos em ressonância que ocorrem aprendizagens e afecções. Este mesmo encontro é força motriz da atuação do palhaço.
As Intervenções de Outubro
As intervenções de outubro foram as únicas que ocorreram em 2020 e 2021. As 5 palestras ocorreram com público de homens e mulheres, estas em maioria sempre. Houve uma palestra apenas com o staff feminino da CAGECE de Quixadá.
O primeiro contato ocorreu na UPA. Uma Sala de Espera com o trio de residentes atuantes no CAPS geral: a farmacêutica da ênfase em Saúde Coletiva, a psicóloga e a enfermeira da Saúde Mental Coletiva.
Cada profissional apresentou um tópico. Apenas a enfermeira estava caracterizada de palhaço. Celestina abordou a detecção precoce e diagnóstico, tratamento e os caminhos a seguir dentro da rede do município para atenção em saúde para rastreamento de câncer de mama.
Enfrentamos as tensões pandêmicas dentro da UPA com um ato cenopoético. De máscara e à distância, Celestina usava o par de mamas didáticas de feltro feito pela enfermeira residente para esta intervenção, exibindo-as ao público após realizar um strip-tease ao som de palmas, risos e “para-parás” do público reproduzindo The Pink Panther Theme Song, de Henry Mancini.
Daí partiu uma orientação sobre o cuidado com as mamas, depois os demais pontos previstos. Enquanto fazia graça, ia tecendo uma conexão entre seus conhecimentos e os de sua plateia, provocando um ato de autorreflexão-liberdade-expressão1717 Lima RF. Pelas ordens do rei que pede socorro: um roteiro-manifesto da cenopoesia. Fortaleza: Expressão Gráfica; 2012. nos presentes, que se repetiu nas demais palestras.
No mesmo mês, o trio realizou palestra semelhante no SAE - serviço especializado que acompanha e realiza triagem e gerenciamento dos fluxos para pessoas com HIV/AIDS e outras ISTs. O público quase que totalmente feminino aguardava atendimento ginecológico na sala de espera do serviço. Celestina e suas colegas seguiram roteiro semelhante ao da UPA, conforme divisão prévia.
Deste público, houve maior resistência, uma certa estranheza quanto à abordagem de Celestina. Apesar de atentas ao que era exposto, as mulheres não se apresentavam dispostas a uma maior interação.
Por isso, foi uma das apresentações mais curtas. Um dia em que mesmo uma palhaça experiente questiona sua arte. A arte do palhaço é vitalmente dependente do outro e a hilaridade precisa fluir entre os corpos1818 Almeida FA, Louro CR. The influence of clown art on the academic training of health professionals. NTQR 2021; 8:469-477..
Em outubro de 2021, Celestina estreou em suas apresentações solo. O foco foi direcionado para as questões de saúde mental que podem afetar a saúde física, no caso, provocando câncer de mama, com base no livro de Adalberto de Paula Barreto, Quando a boca cala, os órgãos falam (2014).
Todos os encontros de outubro de 2021 seguiram a abordagem da doença como multicausal e tecida por desequilíbrios entre os múltiplos aspectos fisiológicos, psíquicos, espirituais e sociais, conforme Barreto1919 Barreto AP. Quando a boca cala os órgãos falam: desvendando as mensagens dos sintomas. Fortaleza: Gráfica LCR; 2014..
A primeira palestra-performance do novo ano aconteceu no SAE. Celestina dessa vez conversou com uma sala de espera lotada de mulheres aguardando sua vez no atendimento com ginecologista. Um olhar diferenciado sobre o câncer de mama foi chamariz para a expressão de quem esteve atento à palestra.
O público ria, concordava com a fala da doutora-palhaça, até que uma mulher se queixou dos atendimentos, no momento em que Celestina contrapunha exemplos de tratamento humanizado e não humanizado.
A cena merece destaque pela sincronicidade dos fatos que levou a uma reflexão crítica sobre humanização. A mulher criticava as grosserias de um médico do município, quando o ginecologista, que era aguardado, adentrou o serviço, parando bruscamente ao se deparar com a plateia, que olhou para ele.
A narração da mulher prosseguiu: - Um dia ele chegou atrasado, passou no meio da gente e não cumprimentou ninguém. - Ela falando e o médico, em passos desconfiados, caminhou até o outro lado da recepção. Então, virou-se para as pessoas sentadas, levantou o olhar receoso e soltou um tímido, porém, audível: - Boa tarde! - Logo entrou em seu consultório e de lá não saiu.
Ocorreu ao ginecologista uma oportunidade de refletir sobre a própria conduta, se humanizada o suficiente. Como representante da categoria, teve a oportunidade de escutar e aprender com o povo, representado na fala daquela mulher. Destaque-se que esse médico foi elogiado por clientes e atendentes.
Na sala de espera na UAPS Frei Guido, Celestina fez seu tradicional strip-tease, que causou surpresa e risos, além de focar a atenção, inclusive de membros da equipe que saíam de seus setores para vê-la. As mamas, como recurso, foram bem aceitas. Pessoas queriam tocar ou experimentar as mamas artesanais.
O Decreto nº 94.406/1987, art.8º, inciso II, item m, alude, como uma incumbência do enfermeiro enquanto membro da equipe de saúde, a educação em saúde para uma melhor qualidade de vida de indivíduos e coletivos2020 Brasil. Decreto nº 94.406, de 8 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da Enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1987; 9 jun..
Após verem registros da palestra na UAPS, enfermeiras de outras unidades solicitaram empréstimo da mama didática para suas atividades do mês e referiram a vantagem em utilizar recursos didáticos lúdicos, junto com uma linguagem acessível para levar educação à comunidade.
Ao orientar o autocuidado das mamas, Celestina sugere às mulheres presentes que peguem um tempo-espaço do seu dia e o dediquem exclusivamente para si. E deve fazê-lo, pois, como coloca Ray Lima2121 Lima RF. Breves palavras: cenopoesia, vivências, intervenções e leituras cenopoéticas. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz: roteiros para refletir brincando: outras razões possíveis na produção de conhecimento e saúde sob a ótica da educação popular. Brasília: MS; 2013. p. 29-40., “cuidar do outro é cuidar de si e cuidar de si é cuidar do mundo”.
No Sindicato Rural, Celestina, diante de um público de agricultores e agricultoras, fez seu strip-tease, ensinou o autocuidado de mamas e incentivou mulheres a ida às consultas de enfermagem para prevenção de câncer cervicouterino nas UAPS.
A palhaça enfatizou uma higiene íntima adequada, porque lidava com pessoas residentes em zona rural, onde no último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apenas 25% dos domicílios eram abastecidos pela rede de saneamento2222 Quixadá - CE. Infosanbas [Internet]. [acessado 2022 set 2]. Disponível em: https://infosanbas.org.br/municipio/quixada-ce/#Abastecimento-de-água.
https://infosanbas.org.br/municipio/quix...
, ainda no período em que a seca tomava 100% do estado do Ceará2323 Monitor de Secas do Brasil [Internet]. [acessado 2022 set 2]. Disponível em: https://monitordesecas.ana.gov.br/mapa?mes=10&ano=2021.
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Uma higiene genital precária, principalmente nos homens, é importante fator de risco para câncer de pênis, cuja incidência é maior nas regiões Norte e Nordeste, em pessoas de baixa condição socioeconômica2424 Instituto Nacional de Câncer (INCA). Câncer de pênis [Internet]. [acessado 2022 set 2]. Disponível em: https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/cancer/tipos/penis.
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Diante do humor feito com os conflitos nos relacionamentos a dois, homens foram mobilizados ao verem mulheres concordando com a palhaça que eles precisavam ser mais carinhosos e respeitar o “não” feminino e lavar bem sua região íntima, antes de querer algo com elas.
Então, ao fim da palestra, uma membra do sindicato elogiou a performance de Celestina e revelou desejo de ser palhaça e trabalhar com a comunidade. Propôs o desenvolvimento de um curso em parceria com a gestão municipal para formar palhaços para atuação na saúde. A palhaça se sentiu esperançosa com a ideia de uma formação.
Celestina fez uma palestra para os funcionários da Superintendência de Saúde do Sertão Central, muitos dos quais, gestores. Chegou perguntando pelos caciques da Saúde, pois havia sido alertada de que todos estariam reunidos ali.
Um mote que incentivou os mais desinibidos e gerou uma gag, uma cena cômica curta2525 Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Gag [Internet]. [acessado 2022 fev 13]. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=gag.
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, que se repetiu durante a palestra e provocava risadas em coro. Criaram nomes de “tribos” com sentido ambíguo e acusavam o pertencimento dos colegas a elas.
Celestina entrou na brincadeira e ainda convidou uma trabalhadora com estereótipo indígena para dançar um torém - dança indígena - enquanto agitava um maracá e batia com os pés ritmados no chão.
A mulher fez uma benzedura espontânea em Celestina (Figura 1), gerando uma cena que evocou contato com a ancestralidade e mais risos, remetendo a lembrança aos Hotxuás Krahôs. Espalhar alegria e amor, segundo Hunter “Patch” Adams, é fundamental ao palhaço e ao profissional de saúde, tanto como o é para os xamãs2626 Clark CD. A clown most serious: Patch Adams. Int J Play 2013; 2(3):163-173..
Outro ponto relevante, a encenação de uma CPI improvisada por inspiração da CPI da COVID-19, em alta nas mídias à época, para apurar quem era o maior fofoqueiro da equipe.
Celestina, presidente da CPI, também acusada, propôs uma simulação da brincadeira “Batatinha frita 1, 2, 3”, em referência à série coreana Round 6, na qual os suspeitos deveriam caminhar até a colega que estava de costas para eles e quando ela virasse, após dizer o nome da brincadeira, eles deveriam ficar imóveis, ou seriam eliminados.
Quem chegasse até a colega seria o real culpado por conseguir ficar mais tempo agindo pelas costas da pessoa. Celestina deu um jeito de fazer o que mais acusava os colegas vencer o jogo e ganhar o título de maior fofoqueiro, o que causou um estrondo de gargalhadas.
O palhaço dialoga não apenas com o público presente em uma intervenção, mas com eventos da história e da atualidade, com o social e o íntimo dos seres humanos. A dialogia do riso, segundo Matraca et al.2727 Matraca MVC, Araújo-Jorge TC, Wimmer G. A dialogia do riso: um novo conceito que introduz alegria para promoção da saúde, apoiando-se no diálogo, no riso, na alegria e na arte da palhaçaria. Cien Saude Colet 2011; 16(10):4127-4138., favorece a mediação de saberes entre profissional e população, é ainda ferramenta para questionar e subverter a ordem estabelecida.
Baubo2828 Estés CP. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco; 2018., arquétipo feminino da sagrada sexualidade, com origem na antiga Grécia, pouco conhecido, representa um humor que é visceral e curativo. Em única menção escrita na mitologia grega, a deusa ancestral do ventre cura Deméter, a mãe-terra, de uma profunda tristeza pelo rapto da filha Perséfone por Hades. Baubo, com sua dança e piadas picantes, fez Deméter rir e do riso adquirir forças para o resgate da filha.
Na CAGECE, um encontro exclusivo para as mulheres significou liberdade para uma expressão mais genuína das participantes e ajudou a palhaça a trazer assuntos-tabus do universo feminino como prazer sexual e papeis sociais. Esse humor balsâmico de Baubo foi essencial na palestra de Celestina com as mulheres da CAGECE, vista na Figura 2.
As Intervenções de Novembro
Em novembro, a intervenções tiveram como novidade a estreia de Lincoln Washington a dividir os holofotes e a carne com Celestina. A versão transgênero de Celestina, seu alter ego ou “um outro eu mesmo”2929 Gubert PG. A vida boa com e para outrem: ética, alteridade e reconhecimento em Ricoeur. Cad Etica Filos Polit 2018; 2(33):135-149.(p.143), Lincoln Washington, registrado na Figura 3, nasceu para o encontro com o staff masculino da CAGECE, de uma vontade da enfermeira-artista de sentir as autorizações e limites sociais masculinos.
Lincoln Washington estreia com o staff de homens da CAGECE, na prevenção de cânceres masculinos.
Brum3030 Brum D. A atuação de mulheres como palhaças: resistência e subversão. Rev Artemis 2018; 26(1):157-174. também debate com as questões de gênero, raça e sociais por meio da palhaçaria. Usa sua arte, como Celestina, para uma ruptura com os ideais de feminilidade e crítica às imposições do patriarcado.
Lincoln Washigton igualmente questionou as imposições sociais ao homem, em sua busca por portar-se como tal, imitando a postura e o jeito de andar e falar dos presentes, pois era novo no assunto e sentiu que o mundo dos homens também era diverso.
Assim, o palhaço trouxe à discussão questões de gênero, sexualidade, relacionamentos, higiene íntima, prevenção de cânceres de próstata, pênis e testículo, autocuidado e saúde mental.
Estrelou ao som de “Eu sou homem com ‘H’”, interpretada por Ney Matogrosso, revezando gestos mais femininos e outros mais masculinos, no sentido conservador dos termos. Em sua dança, o corpo questionava e expressava conflito sobre o comportamento que um homem está autorizado socialmente a ter.
Celestina, ao retornar em novembro de 2021 à Superintendência já era conhecida e aguardada. Recebida com sorrisos confusos e estranhamento, porque se apresentava como uma nova versão de si, Lincoln Washington. Mote suficiente para o grupo aguardar com entusiasmo o que viria dessa mudança.
Uma colega residente da Saúde Coletiva, atuante na Superintendência, participou como palhaça. Assim, com a parceria da recém-nascida Gherisvalda, Lincoln Washington reaparece mais desenvolto com sua masculinidade, com uma parceira e manifestando machismo.
O casal entrou em cena com uma dramatização da música “Ai d’eu, sodade!”, interpretada por Xangai, que mostra o diálogo de um casal no qual o homem é desmotivado e se encontra dependente da mulher para as atividades da vida diária. Enquanto a mulher lhe cobra atitude.
Numa linguagem satírica, o esquete trouxe uma reflexão sobre a necessidade de o homem compartilhar das responsabilidades dentro do relacionamento de forma mais igualitária com a mulher, que se empodere no autocuidado e haja rompimento com os ciclos de codependência nas relações a dois.
A atuação do palhaço-cuidador-educador tem um perfeito encaixe à EPS, pois se orienta por premissas semelhantes, pautadas na dialogicidade, amorosidade, conscientização e transformação da sociedade e do mundo77 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz: roteiros para refletir brincando: outras razões possíveis na produção de conhecimento e saúde sob a ótica da educação popular. Brasília: MS; 2013.,3131 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - PNEPS-SUS. Diário Oficial da União 2013; 3 jan..
Baczinski1212 Baczinski MG, Araújo-Jorge TC. Dotôra Clô: um relato de experiência de palhaçaria e ensino de saúde. In: Matraca MVC, Nieto-Lopez F, organizadores. Palhaçaria: Arte, ciência, saúde e educação para novos afetos. 1ª ed. Formiga: Editora MultiAtual; 2022. p. 101-116., em sua experiência como a Dotôra Clô, observa como pessoas que interagem mais e dão mais abertura ao palhaço são importantes para se ir além na troca com o público.
Celestina captou algo semelhante, especialmente nas palestras direcionadas à saúde do homem. Os homens mostraram-se atraídos por esse tipo de humor bufônico e participaram atentos, receptivos e curiosos.
A lógica do palhaço relatada por Dotôra Clô é compartilhada por Celestina, que bebeu da fonte de Baubo novamente, para falar a populares pontos importantes da vida que incomodavam sobre o comportamento sexual de homens, e aqueles pontos que prejudicavam sua vida sexual e amorosa, bem como sua saúde física e mental1212 Baczinski MG, Araújo-Jorge TC. Dotôra Clô: um relato de experiência de palhaçaria e ensino de saúde. In: Matraca MVC, Nieto-Lopez F, organizadores. Palhaçaria: Arte, ciência, saúde e educação para novos afetos. 1ª ed. Formiga: Editora MultiAtual; 2022. p. 101-116..
Os risos e demais reações, como comentários ambíguos ou maldosos sobre colegas, denunciam o reconhecimento do que é expresso pela palhaça como parte da realidade de vários dos presentes, o que fortalece vínculos e distensiona relações, quer no ambiente de trabalho, quer na comunidade.
A Intervenção de Dezembro
A intervenção de dezembro teve o público mais maduro e decorreu de convite e parceria com o SAE e o CRAS. O evento, organizado pelo SAE, ocorreu no CRAS Rachel de Queiroz, em referência ao Dezembro Vermelho, campanha anual de prevenção ao HIV/AIDS.
Iniciada por uma conversa sobre a cor vermelha naquele mês, essa palestra teve participação ativa de idosos, trabalhadores dos dois serviços e favoreceu a criação de vínculos com dispositivos públicos do município que podem vir a ser parceiros das residências em saúde.
A equipe do SAE havia levado paetês, perucas, tiaras e chapéus. Alguns dos presentes incluíram os adereços no visual, com espontaneidade. Celestina dividiu fala com a coordenadora do SAE e o psicólogo do serviço. Foram ofertados testes rápidos para HIV, sífilis e hepatites B e C, que a palhaça fez, como forma de incentivar os demais.
O ser palhaço cria com facilidade um clima descontraído para a aprendizagem e o profissional de saúde por trás do nariz vermelho se torna mais amoroso em seu cuidar, conforme lhe é proporcionado sentido a partir de sua performance. Vai sendo sensibilizado ao viver este ser, por isso sua inserção na rotina dos serviços significa mais humanização e uma abordagem integral e interdisciplinar3232 Silva IJ, Candeia EAS. Contribuições do projeto PalhaSUS na formação do trabalhador da saúde mental uma reflexão. In: Costeira AAMF, Vasconcelos BC, Nascimento JA, organizadores. PalhaSUS: Luta que se faz com cuidado e amorosidade. 1ª ed. João Pessoa: Editora do CCTA; 2018. p. 117-129..
Celestina propôs um teatro popular improvisado (Figura 4), um dos idosos que estava no CRAS para o forró e um dos educadores sociais se voluntariaram para simular uma situação do encontro de um casal durante um forró, no qual o idoso representava o homem e o educador, a mulher.
Nesse esquete, que Celestina dirigiu, o homem convidava a namorada para uma dança, depois iam ao motel. O casal conversava. Ela perguntou pelo preservativo. Ele reclamou. Ela tirou da bolsa uma sequência de três preservativos e exigiu o uso. O parceiro então aceitou e ela o ajudou e ensinou a colocar em seu pênis, representado por uma prótese didática.
A dinâmica entre a atuação improvisada da dupla e a condução da palhaça era hilária. Algumas Senhoras riam timidamente, as mais desinibidas gritavam “É isso mesmo!”. Os homens riam e apontavam os colegas. Ao visualizarem uma cena conhecida, foi possível aos idosos perceberem outras possibilidades de ação, mais conscientes da sua responsabilidade para com a própria saúde e qualidade de vida.
O objetivo do esquete foi levar a mensagem sobre ter uma vida sexual ativa com saúde no envelhecimento, realçando cuidados como: escuta da parceria sexual, higiene íntima, uso de preservativos e realização de testes.
A palhaça inseriu assuntos relevantes para mulheres pós-menopausa, a citar o uso de lubrificantes adequados, as preliminares, o diálogo e o consentimento. Enfatizou o risco no uso de estimulantes sexuais, as chamadas “pílulas azuis”, sem prescrição médica e no consumo de bebidas alcoólicas.
Dantas3333 Dantas VLA. Introdução: Das Cirandas da Vida aos processos de Educação Popular em Saúde no Ceará e no Brasil. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz: roteiros para refletir brincando: outras razões possíveis na produção de conhecimento e saúde sob a ótica da educação popular. Brasília: MS; 2013. p. 21-25., a partir de sua vivência no projeto Cirandas da Vida em Fortaleza, Ceará, reconhece que a cenopoesia problematiza o SUS, enquanto propicia que os saberes artístico, científico e popular dialoguem de forma promissora, promovendo conhecimentos, acolhimento e humanização.
Ao final da intervenção no CRAS, a palhaça caiu na dança, cedendo a convites de idosos, ao som da sanfona de um dos participantes. Uma senhora a tirou para dançar e quando o som pausou, pediu para conversar pois necessitava de orientação sobre sua vida conjugal.
A mulher, que era preta, relatou ter sofrido violência doméstica e racismo pelo marido ao longo dos anos e conviver com ele sem relações maritais, desejando divórcio. Ela demonstrava baixa autoestima, insegurança e disse serem ela e o filho caçula acompanhados no CAPS geral.
Celestina fez um atendimento individual, uma conversa terapêutica, usou cartas terapêuticas OH! como recurso imagético, para facilitar a expressão do conflito e possibilidades de solução a partir da própria pessoa. Ela precisava de fortalecimento e apoio para tomar uma decisão.
A figura palhacesca despertou tamanha confiança na idosa que teve autorização para auxiliá-la no impasse, como alguém com conhecimento técnico e potencial humano para uma escuta sem julgamentos, acolhedora e uma orientação precisa.
A enfermeira-palhaça conflui com Dantas et al.3434 Dantas VLA, Paro CA, Cruz PJSC. Educação popular em saúde, arte e múltiplas linguagens. Rev Ed Popular 2020; (ed. esp.):298-311. na compreensão do palhaço como um ser humano por inteiro a promover o humano no outro por inteiro, tendo como fundamento ético o amor, com poder de mobilizar a ação educativa.
Instrumento potente da EPS, o palhaço confronta as sombras e fragilidades humanas, ressignificando-as. Doa-se inteiro na relação com o outro. Conectado ao momento presente, enxerga no outro um universo rico em possibilidades criativas, sendo suporte para que o outro se expresse livremente e aja com consciência e autonomia.
Como observado quando outra mulher chamou a palhaça e relatou união com um homem duas décadas mais novo, de quem gostava muito, mas seu par favorito no forró se declarou para ela, deixando-a com dúvidas. Pediu orientação.
Celestina perguntou se ela queria manter o primeiro relacionamento, ao que a mulher respondeu positivamente. Quando expressou que se o parceiro de dança aceitasse apenas dançar estaria tudo bem, pois desejava manter o relacionamento atual, a mulher tornou mais tangível para si o próprio sentimento diante do conflito apresentado.
Ao se escutar, a senhora tomou consciência de seus sentimentos, mostrou-se mais segura em fazer uma escolha e lidar com as consequências.
Em estudo sobre os efeitos da pandemia de COVID-19 em idosos (2021), 81% dos 9.173 entrevistados afirmaram se sentir isolados, 79% se sentiram ansiosos e 71,4% referiram se sentir tristes durante o primeiro ano da pandemia. Destes, porcentagem significativa era de mulheres. Das 5.204 entrevistadas, 79,2% referiram sentimentos de tristeza, 81,5% de ansiedade e 84,4% de solidão3535 Romero DE, Muzy J, Damacena GN, Souza NA, Almeida WS, Szwarcwald CL, Malta DC, Barros MBA, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, Gracie R, Pina MF, Lima MG, Machado ÍE, Gomes CS, Werneck AO, Silva DRP. Idosos no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil: efeitos nas condições de saúde, renda e trabalho. Cad Saude Publica 2021; 37(3):e00216620..
Com a vacinação em massa e medidas de biossegurança adotadas foi possível o retorno das atividades grupais propostas pela Secretaria de Desenvolvimento Social, dentre as quais o “Forró da terceira idade”. Para os idosos, maioria de baixa escolaridade e renda, o forró semanal é um espaço para sentir-se vivo, socializar, ter lazer e prazer. O estado de espírito dos frequentadores do forró os predispõe à alegria e à socialização.
O palhaço no CRAS leva o SUS até o SUAS, como instrumento da promoção da saúde e de transformação social na perspectiva de um cuidado integral, humanizado e do uso da linguagem cenopoética.
Estudo em Redenção, Ceará, com um grupo de idosos, reforça que pessoas nessa faixa etária sejam estimuladas a refletir criticamente sobre o processo saúde-doença, conscientizem-se, mudem seus hábitos para ter mais saúde no envelhecimento e disseminem na comunidade os conhecimentos construídos na experiência grupal3636 Carvalho CML, Silva FMO, Maia GMC, Santos LVF. Grupo operativo: Prática educativa para o autocuidado em idosos. In: Silva GC, Oliveira ER, Sousa LB, Langa ENB. Ensino, pesquisa e extensão na Unilab. 1ª ed. Fortaleza: Expressão Gráfica; 2017. p. 417-430..
Considerações finais (ou Plunct-Plact-Zum)
Ao fim dessa jornada com Celestina contemplamos o florescimento comunitário em meio ao clima agreste da pandemia. Com todas as limitações impostas pelo momento histórico atual, a alegria no encontro de pessoas para falar de saúde, através da linguagem cenopoética do palhaço, em ações temáticas de campanhas de saúde, revelou-se motor para a troca de conhecimentos e experiências.
A palhaçaria é uma potente tecnologia social, terapêutica, educativa e, por isso, transformadora de realidades. O palhaço utiliza sua linguagem amorosa, subversiva, poética, pura e intensa, que se expressa através de seu corpo. Corpo este que dialoga, afeta e é afetado pelo outro.
O afeto, como um farol, ilumina o arcabouço de recursos artísticos, comunitários, científicos e rompe tabus. O palhaço-cuidador-educador é cenopoesia viva, que nutre a comunidade de conhecimentos, arte e cuidado amoroso e assim aprende.
A experiência mostrou que ser ético e confiar nas evidências da ciência não exclui, faz é somar, multiplicar ao que vem do povo e à arte.
A proposta das palestras-performance de Celestina apresenta um modelo de atuação com bases na Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS). Faz-nos refletir nas lacunas de investimentos públicos e privados para viabilizar projetos, fortalecendo a institucionalização da EPS.
Assim, defendemos a implementação de formações e oficinas sobre conceitos, desafios e potencialidades da EPS para profissionais da saúde, também para pessoas da comunidade interessadas, para atuação nos diversos espaços onde seja possível fazer saúde coletiva.
Num movimento democrático e transformador, recordamos que a EPS também é luta social. A palhaçaria, como proposta de atuação, é tecnologia transformadora que inspira o protagonismo à comunidade por meio de conhecimento, cuidado amoroso e arte.
Referências
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8Ribeiro S. O Oráculo Da Noite: A História E a Ciência Do Sonho. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras; 2019.
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9Matraca MVC, Araújo-Jorge TC, Wimmer G. O PalhaSUS e a Saúde em Movimento nas Ruas: relato de um encontro. Interface (Botucatu) 2014; 18(Supl. 2):1529-1536.
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10Costeira AAMF. Educação popular e formação em saúde na perspectiva do palhaço cuidador: estudo com base em um projeto de extensão. 1ª ed. João Pessoa: Editora do CCTA; 2018.
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11Matias JAG, Carvalho LE, Menezes RA, Costeira AAMF. Um breve relato histórico sobre a construção do PalhaSUS. In: Costeira AAMF, Vasconcelos BC, Nascimento JA, organizadores. PalhaSUS: Luta que se faz com cuidado e amorosidade. 1ª ed. João Pessoa: Editora do CCTA; 2018. p. 37-49.
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12Baczinski MG, Araújo-Jorge TC. Dotôra Clô: um relato de experiência de palhaçaria e ensino de saúde. In: Matraca MVC, Nieto-Lopez F, organizadores. Palhaçaria: Arte, ciência, saúde e educação para novos afetos. 1ª ed. Formiga: Editora MultiAtual; 2022. p. 101-116.
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17Lima RF. Pelas ordens do rei que pede socorro: um roteiro-manifesto da cenopoesia. Fortaleza: Expressão Gráfica; 2012.
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19Barreto AP. Quando a boca cala os órgãos falam: desvendando as mensagens dos sintomas. Fortaleza: Gráfica LCR; 2014.
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20Brasil. Decreto nº 94.406, de 8 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da Enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União 1987; 9 jun.
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21Lima RF. Breves palavras: cenopoesia, vivências, intervenções e leituras cenopoéticas. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz: roteiros para refletir brincando: outras razões possíveis na produção de conhecimento e saúde sob a ótica da educação popular. Brasília: MS; 2013. p. 29-40.
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22Quixadá - CE. Infosanbas [Internet]. [acessado 2022 set 2]. Disponível em: https://infosanbas.org.br/municipio/quixada-ce/#Abastecimento-de-água
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23Monitor de Secas do Brasil [Internet]. [acessado 2022 set 2]. Disponível em: https://monitordesecas.ana.gov.br/mapa?mes=10&ano=2021
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25Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Gag [Internet]. [acessado 2022 fev 13]. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=gag
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26Clark CD. A clown most serious: Patch Adams. Int J Play 2013; 2(3):163-173.
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27Matraca MVC, Araújo-Jorge TC, Wimmer G. A dialogia do riso: um novo conceito que introduz alegria para promoção da saúde, apoiando-se no diálogo, no riso, na alegria e na arte da palhaçaria. Cien Saude Colet 2011; 16(10):4127-4138.
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28Estés CP. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco; 2018.
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29Gubert PG. A vida boa com e para outrem: ética, alteridade e reconhecimento em Ricoeur. Cad Etica Filos Polit 2018; 2(33):135-149.
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31Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - PNEPS-SUS. Diário Oficial da União 2013; 3 jan.
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32Silva IJ, Candeia EAS. Contribuições do projeto PalhaSUS na formação do trabalhador da saúde mental uma reflexão. In: Costeira AAMF, Vasconcelos BC, Nascimento JA, organizadores. PalhaSUS: Luta que se faz com cuidado e amorosidade. 1ª ed. João Pessoa: Editora do CCTA; 2018. p. 117-129.
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33Dantas VLA. Introdução: Das Cirandas da Vida aos processos de Educação Popular em Saúde no Ceará e no Brasil. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). De sonhação a vida é feita, com crença e luta o ser se faz: roteiros para refletir brincando: outras razões possíveis na produção de conhecimento e saúde sob a ótica da educação popular. Brasília: MS; 2013. p. 21-25.
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34Dantas VLA, Paro CA, Cruz PJSC. Educação popular em saúde, arte e múltiplas linguagens. Rev Ed Popular 2020; (ed. esp.):298-311.
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35Romero DE, Muzy J, Damacena GN, Souza NA, Almeida WS, Szwarcwald CL, Malta DC, Barros MBA, Souza Júnior PRB, Azevedo LO, Gracie R, Pina MF, Lima MG, Machado ÍE, Gomes CS, Werneck AO, Silva DRP. Idosos no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil: efeitos nas condições de saúde, renda e trabalho. Cad Saude Publica 2021; 37(3):e00216620.
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Editores-chefes:
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Maio 2023
Histórico
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Recebido
23 Jun 2022 -
Aceito
20 Out 2022 -
Publicado
22 Out 2022