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O racismo institucional na universidade e consequências na vida de estudantes negros: um estudo misto

Resumo

O objetivo do artigo foi analisar como o racismo institucional em uma universidade pública brasileira afeta a vida de estudantes negros e negras. Trata-se de um estudo misto, desenvolvido por meio da aplicação de questionário autoaplicado online a estudantes universitários que se autodeclararam negros. Os dados quantitativos foram analisados por estatística descritiva, análise bivariável por meio do qui-quadrado e regressão logística multinominal. A análise dos dados qualitativos foi feita no Iramuteq. Do total de 125 respondentes, 68 (54,4%) afirmaram ter sofrido racismo pelo menos uma vez dentro da universidade. Percebeu-se que as situações racistas vividas pelas pessoas negras dentro do ambiente universitário colocam em questão a autoconfiança e a motivação do estudante, afetando diretamente a sua saúde mental e seu desempenho no curso. Evidenciou-se a importância dos coletivos para acolhimento e fortalecimento do pertencimento dos estudantes.

Palavras-chave:
Racismo; Ensino superior; População negra; Estudantes

Abstract

This article aimed to analyze how institutional racism at a Brazilian public university affects the lives of Black students. This mixed study was developed by applying an online self-administered questionnaire to university students who self-declared as Blacks. Quantitative data were analyzed using descriptive statistics, bivariate analysis using chi-square, and multinomial logistic regression. Qualitative data analysis was performed using IRAMUTEQ. Sixty-eight (54.4%) of the 125 respondents claimed to have suffered racism at least once within the university. We noticed that racist situations experienced by Black people within the university environment call into question the student’s self-confidence and motivation, directly affecting their mental health and performance in the course. The importance of receptive groups for strengthening students’ belonging was highlighted.

Key words:
Racism; University education; Black population; Students

Introdução

O Brasil é o país do continente americano que recebeu o maior número de africanos escravizados11 Paixão M, Rossetto I, Montovanele F, Carvano LM. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil: 2009-2010. Rio de Janeiro: UERJ; 2010.. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que a população negra (composta por pretos e pardos) é a maior do território nacional, com 53,6% negros e 45,5% que se declararam de cor branca. Em contrapartida, no mesmo período, somente 16,4% dos estudantes universitários eram negros11 Paixão M, Rossetto I, Montovanele F, Carvano LM. Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil: 2009-2010. Rio de Janeiro: UERJ; 2010.,22 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Estudo mostra desigualdades de gênero e raça em 20 anos [Internet]. 2017. [acessado 2021 set 7]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/mestrado-profissional-em-politicas-publicas-e-desenvolvimentodesafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2832:catid=28&Itemid=23
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A população negra brasileira sofre as consequências do racismo, permanecendo nas classes sociais mais pobres e com condições mais precárias na pirâmide social. As condições indignas de vida persistem ao decorrer dos anos, evidenciando o racismo silencioso e não declarado33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Articulação Inter federativa. Painel de Indicadores do SUS 2016; 7(10): 1-82.,44 Damasceno M, Zanello V. Saúde mental e racismo contra negros: produção bibliográfica brasileira dos últimos quinze anos. Psicol Cienc Prof 2018; 38(3):450-464.. A marginalização dessa população tem relação com a narrativa de vida de cada indivíduo, ou seja, com as condições históricas de inserção social, somadas às condições de moradia, renda, saúde, localização geográfica e autoconceito positivo ou negativo, que são elementos que determinam o acesso a bens e serviços55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Brasília: MS; 2013..

Considerando o sistema educacional, especificamente o ensino superior, a falta de acesso de estudantes negros a esse nível de ensino, reflexo do racismo estrutural existente na sociedade, foi o mote para intensos debates que culminaram na promulgação da “Lei de Cotas” em 2012. A referida lei se aplica ao ensino superior em instituições federais no Brasil e foi fruto da constante mobilização do movimento negro, com a atuação de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), de docentes e da sociedade civil66 Cohn C. Uma década de presença indígena na UFSCar. Campos 2016; 17(2):15-34.. A intenção da lei era igualar o quadro discente, visivelmente branco, elitista e advindo do ensino privado, permitindo o ingresso de candidatos que não tinham acesso ao ensino superior. As medidas propostas foram formuladas para que as diversidades pudessem, juntas, contribuir para o desenvolvimento da universidade. A Portaria GR 695/07 instituiu a reserva de vagas em cursos de graduação para as pessoas que se autodeclarassem pretas e pardas, de forma que as mesmas passaram a estar sujeitas a averiguação por parte da instituição para verificação da veracidade das informações prestadas77 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Programa ações afirmativas UFSCar [Internet]. 2007. [acessado 2020 abr 17]. Disponível em: http://www.acoesafirmativas.ufscar.br/index.html
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As transformações que ocorrem na vida das pessoas na transição e adaptação à universidade podem resultar em sintomas que afetam a saúde física e psicológica88 Costa E, Leal I. Um olhar sobre a saúde psicológica dos estudantes do ensino superior-avaliar para intervir [Internet]. 2008. [acessado 2022 ago 2]. Disponível em: http://www.isabel-leal.com/portals/1/pdfs/7congresso/vii-congresso-saude-pp-213-216.pdf
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. Para a população negra, que vive em sofrimento mental contínuo devido às condições de vida precárias advindas do racismo proveniente da escravização e da marginalização55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Brasília: MS; 2013., esses sintomas podem ser ainda mais intensos. O suporte de pares, docentes e diferentes setores da instituição é decisivo no processo de adaptação. Entretanto, se o estudante não for devidamente acolhido, pode se retrair emocionalmente88 Costa E, Leal I. Um olhar sobre a saúde psicológica dos estudantes do ensino superior-avaliar para intervir [Internet]. 2008. [acessado 2022 ago 2]. Disponível em: http://www.isabel-leal.com/portals/1/pdfs/7congresso/vii-congresso-saude-pp-213-216.pdf
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A universidade tem um papel importante no contexto de aprendizagem e desenvolvimento psicossocial global de seus estudantes, não podendo olhar unicamente para os resultados acadêmicos ou para a formação de profissionais especializados, mas devendo olhar de maneira integral para sua comunidade88 Costa E, Leal I. Um olhar sobre a saúde psicológica dos estudantes do ensino superior-avaliar para intervir [Internet]. 2008. [acessado 2022 ago 2]. Disponível em: http://www.isabel-leal.com/portals/1/pdfs/7congresso/vii-congresso-saude-pp-213-216.pdf
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. Assim, o objetivo desta pesquisa foi analisar como o racismo institucional em uma universidade federal pública pode afetar a vida de estudantes negros e negras.

Métodos

Estudo misto, descritivo, analítico e exploratório de abordagem quanti-qualitativa. Sujeitos estudantes de graduação de uma universidade pública brasileira, localizada no interior do Estado de São Paulo, que se declaravam negros (pretos ou pardos), maiores de 18 anos, com acesso à internet. O conjunto de autoras e autores deste artigo é composto por sete pessoas, cinco se autodeclaram negras, duas foram estudantes de graduação que fizeram uso de ações afirmativas para o ingresso no ensino superior e uma delas cursa o mestrado também com reserva de vagas na pós-graduação. A amostra foi de conveniência, de acordo com o número de respostas obtidas ao formulário. A escolha pela amostra de conveniência se deu porque a coleta de dados foi realizada durante o auge da pandemia de COVID-19, e à época as impressões do impacto da pandemia e do ensino remoto na universidade campo de coleta eram do aumento das desigualdades enfrentadas por estudantes negros/as e outros grupos vulnerabilizados, como os/as estudantes indígenas, ao acesso à internet, a computadores e outras ferramentas necessárias.

Os desfechos deste estudo foram: ter sofrido racismo e/ou ter presenciado racismo cometido contra outras pessoas, ambos na universidade. Como medidas para a possível revitimização das pessoas que responderam ao questionário, a equipe de pesquisa disponibilizou o telefone de duas das pesquisadoras para que, caso quisessem, os/as estudantes pudessem entrar em contato e assim serem encaminhados/as para o serviço de atenção à saúde da universidade ou para um projeto de acolhimento de pessoas negras que surgiu durante a pandemia. Cabe colocar que houve a busca por esse serviço de duas pessoas respondentes.

A coleta de dados foi realizada de outubro de 2020 a fevereiro de 2021, por meio de um questionário autoaplicado em formato eletrônico, confeccionado para esta pesquisa, versando sobre variáveis sociodemográficas e dados acerca do ingresso e atual situação na universidade. E as perguntas abertas listadas abaixo:

  1. Você já teve em seu curso alguma discussão ou conteúdo em disciplinas com a temática racial? Se sim, qual foi a disciplina? Como foi esse debate?

  2. Se você já viveu alguma situação racista na universidade, como você considera que a situação vivida afetou o seu desempenho universitário?

  3. Se você já viveu alguma situação racista na universidade, como você considera que a situação afetou a sua vida na universidade?

  4. Quais mecanismos de combate ao racismo você identifica na universidade?

  5. O que você sugere para a universidade no combate ao racismo e para valorizar da diversidade?

Os dados quantitativos foram armazenados em uma planilha de dados estruturada no Excel, com dupla verificação. O programa estatístico utilizado foi o Stata, versão 12.0, sendo realizada a análise descritiva para caracterizar a amostra. Foram feitos os testes qui-quadrado e de tendência linear, calculados as odds ratio (OR) e os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) por meio de modelos de regressão logística multinomial. Para os testes de associações, foi adotado um nível de significância de 5%. Para análise dos dados qualitativos, foi composto um corpus textual por meio da junção das respostas apresentadas, seguindo com seu processamento e análise por meio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Iramuteq).

As respostas às questões abertas foram organizadas de forma a compor o corpus textual, que foi preparado e revisado com o intuito de eliminar equívocos de digitação e padronização de siglas e expressões (preservando os mesmos significados).

A análise foi efetuada por estatística textual clássica e classificação hierárquica descendente (CHD). As ocorrências de cada uma das classes na CHD foram consideradas a partir de valores estatisticamente significantes (p < 0,05). Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), CAAE 32725820400005504, parecer nº 4192494.

Resultados

No total, 125 estudantes negros responderam à pesquisa. Na Tabela 1 é apresentado perfil das respostas obtidas. A maioria se declarou preta (57,6%), feminina cis (72,4%) e heterossexual (48,0%). Como forma de ingresso, 63,1% foi por meio das ações afirmativas. Quanto às áreas do conhecimento (biológicas/saúde, humanas e exatas) nas quais estavam matriculados, não houve predominâncias. Um pouco mais da metade (54,4%) teve alguma reprovação. Entre os participantes, 68 (54,4%) afirmaram ter sofrido racismo pelo menos uma vez e 74 (59,2%) ter presenciado racismo dentro da universidade. Com relação a quem cometeu o racismo, estudantes foram identificados como a maioria, tanto para quem sofreu racismo (44,8%) quanto para quem presenciou racismo (83,8%), seguido por docentes (28,8% e 56,8%, respectivamente).

Tabela 1
Perfil de estudantes negros/as universitários/as e ocorrência de racismo institucional, Brasil, 2021 (n = 125).

A Tabela 2 mostra o resultado na análise bivariada entre as variáveis de desfecho e as sociodemográficas. Observa-se que referiram ter sofrido mais racismo os estudantes pardos (57,9%) e que ingressaram na universidade por ações afirmativas (53,6%). Presenciaram mais racismo na universidade os estudantes pretos (68,3%) e que foram reprovados em pelo menos uma disciplina (63,5%).

Tabela 2
Racismo sofrido e/ou presenciado por estudantes negros universitários, Brasil, 2021 (n = 125).

A Tabela 3 mostra o resultado da regressão logística múltipla. Observa-se que os estudantes pardos sofreram 1,2 vez mais racismo na universidade do que os estudantes pretos. Em contrapartida, os estudantes pretos presenciaram 1,07 vez mais racismo dentro da universidade com outras pessoas.

Tabela 3
Regressão logística múltipla para racismo sofrido e/ou presenciado por estudantes negros universitários, Brasil, 2021 (n = 125).

No que diz respeito à análise qualitativa dos dados da pesquisa, o corpus geral foi constituído por cinco textos, (que correspondem às respostas das cinco questões abertas do questionário), separados em 251 segmentos de texto (st), com aproveitamento de 210 st (83,67%). Emergiram 8.906 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo 1.715 palavras distintas e 1.023 com uma única ocorrência. O conteúdo analisado foi categorizado em quatro classes: Classe 1 com 37 st (17,62%), Classe 2 com 81 st (38,57%), Classe 3 com 33 st (15,71%) e Classe 4 com 59 st (28,09).

Vale ressaltar que essas quatro classes se encontram divididas em duas ramificações (A e B) do corpus total em análise. O subcorpus A, “Questões raciais na universidade”, composto pelas Classes 1 (“Locais de proteção contra o racismo dentro da universidade”) e 2 (“Discussões sobre questões raciais na universidade”). O subcorpus B, “O racismo na universidade”, contém os discursos correspondentes às Classes 3 (“Decorrências de situações racistas na universidade”) e 4 (“Possíveis estratégias de combate ao racismo no meio universitário”) (Figura 1).

Figura 1
Dendrograma de análise do corpus textual das respostas abertas.

Para uma melhor visualização das classes, elaborou-se um organograma de onde emergem as evocações que apresentam vocabulário semelhante entre si e vocabulário diferente das outras classes. A seguir, são descritas e exemplificadas cada uma dessas classes emergidas a partir da classificação hierárquica descendente (Figura 2).

Figura 2
Organograma com as classes e as palavras mais prevalentes.

Classe 1 - Locais de proteção contra o racismo dentro da universidade

Compreende 17,62% (37 st) do corpus total analisado. Constituída por palavras e radicais no intervalo entre x² = 4,72 (tema) e x² = 59,51 (coletivo), essa classe é composta por palavras como “grupo” (x² = 33,29); “SAADE” (Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade) (x² = 28,88); “movimento” (x² = 19,07); “pessoas negras” (x² = 14,45); e “rodas de conversa” (x² = 10,09).

A partir da análise é possível identificar a existência de espaços dentro da universidade que exercem a função de proteção das pessoas negras contra o racismo. Poucos espaços são institucionais e correspondem a grupos de estudos e coletivos que tenham como objetivo a luta contra questões classistas, racistas, misóginas e preconceituosas de forma geral, como se pode perceber por meio dos fragmentos de texto:

A presença de coletivos, ligas, que abordam a temática e, de certa forma, são um meio de ajudar e a distribuir informações (P32).

Coletivo Quilombo dos 50 e a Bateria Comando Federal propõem sempre que possível rodas de conversa e projetos sociais (P48).

Vejo alguns movimentos dos alunos, mas em relação à universidade mesmo eu não tenho muito conhecimento (P56).

Coletivo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, comissões que proporcionassem respeito e proteção a essas pessoas (P19).

Classe 2 - Ausência de discussões sobre questões raciais na universidade

Compreende 38,57% (81 st) do corpus total analisado. Constituída por palavras e radicais no intervalo entre x² = 4,35 (raça) e x² = 27,33 (discussão), essa classe é composta por palavras como “disciplina” (x² = 30,78); “aula” (x² = 24,36); “nunca” (x² = 15,75); “roda” (x² = 14,54); e “professor” (x² = 12,47).

Por meio da análise, identifica-se que as discussões sobre as questões raciais pouco acontecem dentro da universidade. Quando aparecem, encontram-se situadas em momentos específicos de disciplinas ou dentro de sala de aula. A depender do espaço onde o assunto é levantado, há situações de retaliação, que geram desconforto àqueles(as) estudantes que fizeram o apontamento, como é possível identificar nos fragmentos de texto a seguir.

As discussões acabam sendo muito rasas e com situações específicas, como a violência obstétrica com mulheres negras, por exemplo. Faltam referências sobre a temática antes de trazê-las em sala de aula ou em eventos voltados para o público acadêmico negro (P13).

Já peguei disciplina optativa sobre o tema raça. Fora isso, se tive, não me lembro significativamente (P79).

Um colega de turma me disse durante uma discussão em sala de aula: sabe por que você é pobre? Porque sua raça trabalhou 300 anos para a minha (P06).

Não houve temática na disciplina, mas levantei a questão da solidão da mulher negra. Recebi olhar de estranhamento e comentários de ironia pela sala em várias disciplinas (P04).

Classe 3 - Decorrências de situações racistas na universidade

Compreende 15,71% (33 st) do corpus total analisado. Constituída por palavras e radicais no intervalo entre x² = 5,08 (sentir) e x² = 21,87 (nota), essa classe é composta por palavras como “passar” (x² = 18,43); “duvidar” (x² = 16,32); “conseguir” (x² = 15,98); “matéria” (x² = 9,32); e “sofrer” (x² = 6,21).

Os dados mostram que as situações racistas vividas pelas pessoas negras dentro do ambiente universitário são capazes de gerar marcas, até mesmo irreversíveis. Colocam em questão a autoconfiança e a motivação do(a) estudante, afetando diretamente a sua saúde mental e, consequentemente, o seu desempenho no curso, como é possível identificar por meio dos seguintes fragmentos de texto:

Já fui muito menosprezada. Até duvidaram das minhas notas ou até mesmo como passei na matéria difícil sem ter a reprovação. Isso, no tom de fala, como se eu fosse o perfil de reprovar (P43).

Inibiu meu desenvolvimento, com certeza. Sim, entre uma aluna negra e uma aluna branca, a professora mil vezes escolhe a branca para ajudar ou até mesmo para dar nota para passar na matéria. Nós, os negros, mesmo sendo bons em algo, nunca somos reconhecidos (P102).

Uma vez eu até duvidei que estava no curso certo e me propiciou uma crise de ansiedade muito forte. Mesmo indo bem eu tinha o sentimento de continuar reafirmando os que me magoaram (P10).

Me fez duvidar de mim mesmo, de toda minha capacidade e, inclusive, se eu servia para executar atividades ou até mesmo continuar na área (P02).

Classe 4 - Estratégias de combate ao racismo no meio universitário

Compreende 28,09% (59 st) do corpus total analisado. Constituída por palavras e radicais no intervalo entre x² = 4,15 (Universidade) e x² = 26,19 (Faculdade), essa classe é composta por palavras como “lugar” (x² = 25,46); “desenvolver” (x² = 21,15); “dentro” (x² = 14,97); “ambiente” (x² = 12,03); e “oportunidade” (x² = 7,49).

Analisando os fragmentos de textos que compuseram essa classe, identifica-se algumas estratégias apontadas pelos(as) participantes da pesquisa na direção do combate ao racismo no meio universitário. Tais estratégias envolvem o desenvolvimento de eventos, a existência de instâncias institucionais onde denúncias possam ser acolhidas, garantindo resolutividade aos casos, a oferta de mais profissionais aptos a lidarem com a saúde mental dos(as) estudantes e a capacitação docente com vistas ao manejo de situações preconceituosas, como o racismo:

Organização de uma semana para a discussão do tema. Ouvidorias para toda a faculdade não só depender dos centros acadêmicos para tal. Mais ofertas de vagas para psicólogo aos alunos (P89).

Criação de um conselho racial que possa receber denúncias de situações ocorridas dentro da universidade, mas também fora dela, quando acontecer entre pessoas da universidade, visto que isso afeta as relações e o desempenho acadêmico (P124).

Levar a sério denúncias feitas por estudantes. Ofertar mais matérias com o cunho de identidade étnico-raciais nos cursos de humanidades. Capacitar os docentes a terem mais empatia com a experiência de vida das pessoas (P21).

Maior integração entre a universidade e os estudantes negros, de forma que possam ser realizados mais eventos na calourada e em outras datas ao longo do ano, de modo que os estudantes negros se sintam mais acolhidos e que isso possa evitar eventuais situações discriminatórias e vexatórias (P69).

Discussão

Esta pesquisa evidenciou o perfil do racismo institucional vivido por estudantes negros de uma universidade pública brasileira. A coleta de dados foi realizada no início da pandemia da COVID-19, o número total de pessoas respondentes correspondeu a 4,37% do apontado pela universidade pesquisada como estudantes de graduação que se autodeclaram negros. No contexto pandêmico, um dos grupos de estudantes mais afetados pela falta de estrutura para se manterem nas atividades acadêmicas no formato remoto foi o de estudantes negros. Ainda que não tenhamos o perfil de evasão durante a pandemia, percebe-se que a pandemia de COVID-19 aprofundou as desigualdades pré-existentes, vulnerabilizando ainda mais a população negra99 D'avila A, Bonaldi E.Trabalho e educação em tempos de pandemia: entrevista com Marcos Supervielle. Norus 2020 8(14):135-162..

Adotou-se o conceito sociológico de raça, sobre o qual o racismo se perpetua na sociedade, pois “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam”1010 Silva VC, Silva WS. Marcadores sociais da diferença: uma perspectiva interseccional sobre ser estudante negro e deficiente no Ensino Superior brasileiro. Rev Educ Esp 2018; 31(62):569-585.. A universidade não está imune às relações sociais marcadas pelo racismo da estrutura social brasileira, ao contrário, como se vê nesta pesquisa, a maioria dos/as estudantes negros/as universitários sofreu e/ou presenciou racismo dentro da universidade, provocado majoritariamente por seus pares e/ou servidores/as.

O fato de os/as estudantes pardos/as terem sido maioria entre os que sofreram racismo na universidade pode ser porque, embora o perfil de cor/raça dentro das universidades tenha mudado nos últimos dez anos, esse ainda é um ambiente majoritariamente branco. Assim, quando uma pessoa parda entra na universidade, é quando as diferenças raciais se acentuam, ou seja, é na universidade que se “descobrem negros/as”1111 Santana B. Quando me descobri negra. São Paulo: Sesi SP; 2016.. O colorismo é compreendido como a discriminação baseada na cor da pele, isto é, ela irá ditar o tratamento que a pessoa receberá pela sociedade e assim aumentar a chance de exclusão ou marginalização desses indivíduos1212 Silva TS. O colorismo e suas bases históricas discriminatórias. Debate Virtual 2017; 201:1-19..

As universidades vêm adotando um discurso antirracista, culpando o racismo estrutural como um meio hipócrita de lidar com os problemas raciais dentro delas. Há então uma necessidade de se autodenominar não racista, mas não há o exercício de ser antirracista ou até mesmo de combater o racismo cotidianamente na sua estrutura1313 Comissão de Avaliação do Ingresso por Reserva de Vagas e do Programa de Ações Afirmativas. Avaliação dos 10 anos do programa de ações afirmativas e do ingresso por reserva de vagas (2007-2017) [Internet]. 2018. [acessado 2021 set 7]. Disponível em: https://www.soc.ufscar.br/consuni/2018/arquivos/pauta-da-232a-reuniao-ordinaria-consuni-11-05-2018/relatorio_final_comissao_avaliacao_10anos_acoes_afirmativas_aprecicacao_consuni.pdf
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. Com tal postura é possível observar falas comedidas quanto à pele retinta dentro do meio acadêmico. O mesmo não se aplica às pessoas com traços fenotípicos negróides menos acentuados, evidenciando o racismo velado e sistêmico.

Entre 1995 e 2015, a população adulta negra com 12 anos ou mais de estudo passou de 3,3% para 12%. Entretanto, o patamar alcançado em 2015 pelos negros era o mesmo que os brancos tinham já em 199522 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Estudo mostra desigualdades de gênero e raça em 20 anos [Internet]. 2017. [acessado 2021 set 7]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/mestrado-profissional-em-politicas-publicas-e-desenvolvimentodesafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2832:catid=28&Itemid=23
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. Observa-se que as universidades são uma micro representação da sociedade, com a presença dos mesmos estereótipos e as baixas expectativas para negros. Barnett et al.1414 Barnett TM, McFarland A, Miller JW, Lowe V, Schanavia H. physical and mental health experiences among African American College Students. Social Work Public Health 2019; 3(2):145-157. relatam que estudantes negros em instituições com maioria numérica branca sentem-se “pressionados” a se misturarem à realidade cultural dominante para maior aceitação. Há então uma tendência semelhante à descrita por Frantz Fanon: “O que quer o homem? Que quer o homem negro? [...] O negro quer ser branco”, citado por Bernardino Costa1515 Bernardino-Costa J. A prece de Frantz Fanon: oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! Civitas 2016; 16(3):504-521., nessa discussão, especificamente no contexto universitário.

Os campi universitários têm de 12% a 50% dos estudantes universitários com um ou mais transtornos mentais que provêm da vivência externa à universidade e que são associados às micro agressões raciais provindas da transição da adolescência para a vida adulta1414 Barnett TM, McFarland A, Miller JW, Lowe V, Schanavia H. physical and mental health experiences among African American College Students. Social Work Public Health 2019; 3(2):145-157.. Sendo assim, geralmente esses estudantes têm a saúde mais agravada, com maiores taxas de depressão1414 Barnett TM, McFarland A, Miller JW, Lowe V, Schanavia H. physical and mental health experiences among African American College Students. Social Work Public Health 2019; 3(2):145-157..

Para tentar minimizar esses transtornos, coletivos se organizaram em ambientes universitários, com o intuito de agenciar, formar e organizar politicamente estudantes negros e cotistas, além de acompanhar a implementação das políticas de ações afirmativas e apoiar a carreira universitária estudantil. O nome coletivos se inspirou nos coletivos negros feministas dos anos 1970 e 1980, que pregavam horizontalidade na tomada de decisões e ausência de hierarquia na forma de organização, constituindo-se como grupos de discussão e de atuação política e intelectual em torno de um ideário libertário e emancipatório1616 Guimarães A, Rios F, Sotero E. Coletivos negros e novas identidades raciais. Novos Estud CEBRAP 2020; 39(2):309-327..

Com a entrada de estudantes negros em universidades brasileiras, sendo grande parte admitida pela política de cotas em instituições federais a partir de 2012, os coletivos passaram a ser uma forma de apoio desses estudantes. Esse movimento fortaleceu e possibilitou a consolidação dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) dentro das universidades, intensificando as políticas que resultaram em maior presença de pesquisas e pesquisadores no campo das relações raciais, e de modo mais horizontalizado e pelo uso sistemático de redes sociais na internet, esses grupos se recusam a se denominarem militantes, como nos partidos e sindicatos, e preferem se autodenominar ativistas1616 Guimarães A, Rios F, Sotero E. Coletivos negros e novas identidades raciais. Novos Estud CEBRAP 2020; 39(2):309-327..

As práticas e discursos interseccionais estão mais visíveis nas formas de representação e nas experiências universitárias, em especial quanto à articulação entre raça, gênero e geração, como tem sido observado em estudos contemporâneos sobre juventude nas periferias e nas universidades. Há a necessidade de evidenciar intelectuais negros e negras, seja na conduta, quando enfrentam situações de machismo ou de homofobia nas práticas universitárias, seja na incorporação de integrantes que tenham sexualidade fluida, que não necessariamente se vejam a partir de uma identidade de gênero binária1717 Medeiros JMS. O feminismo periférico na Zona Leste de São Paulo: a centralidade da questão racial para o ativismo de mulheres jovens. Anais do 40º Encontro Anual da Anpocs 2016.

18 Rios F. Antirracismo, movimentos sociais e Estado. In: Lavalle AG, Carlos E, Dowbor M, Szwako J, organizadores. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EDUERJ; 2018, p. 255-283. DOI: 10.7476/9788575114797.0008.
https://doi.org/10.7476/9788575114797.00...
-1919 Shannon G, Morgan R, Zeinali Z, Brady L, Couto MT, Devakumar D, Eder B, Karadag O, Mukherjee M, Peres MFT, Ryngelblum M, Sabharwal N, Schonfield A, Silwane P, Singh D, Van Ryneveld M, Vilakati S, Watego C, Whyle E, Muraya K. Intersectional insights into racism and health: not just a question of identity. Lancet 2022; 400(10368):2125-2136..

Os dados mostram como a temática racial não está institucionalizada de forma transversal e contínua durante a formação. A abordagem do tema se mostra condicionada a iniciativas pontuais individuais de docentes. Foi observado nesta pesquisa que os estudantes não veem formas efetivas de acolhimento por parte da instituição, o que leva a um maior distanciamento entre discentes e universidade. Entretanto, quando há necessidade de acolhimento, a busca se direciona ao apoio de colegas e dos coletivos, pela identificação com a narrativa das pessoas que os compõem. Tal comportamento evidencia a necessidade de olhar para esses coletivos como parte de extrema relevância para a construção e continuidade da trajetória de estudantes pretos e pardos na ocupação de espaços dentro da nova realidade que lhe é dada por direito ao ensino superior.

Como limitações deste estudo, pode-se apontar a não obtenção de um número maior de respostas ao questionário, o que afetou o poder de inferência, bem como a coleta de dados ter sido feita por meio de um questionário online, o que pode ter ocasionado um viés de seleção, além disso, por mais que se tenha buscado que os benefícios superassem os malefícios, este tipo de pesquisa pode revitimizar as vítimas de racismo.

Conclusões

Para além dos estudos que versam sobre as desigualdades e as políticas públicas que visem o acesso à universidade e a permanência nela, o presente estudo evidenciou que o racismo institucional sobre pretos e pardos matriculados na universidade pública em questão resulta na tentativa contínua de distanciamento e de oposição à instituição.

Os achados deste trabalho contribuem para uma construção antirracista nas universidades públicas brasileiras, que busquem melhorar as condições de vida e saúde para pessoas pretas e pardas que frequentam e se inserem no ambiente universitário. Além disso, contribuem também para orientar debates políticos nos quais os movimentos sociais negros se engajem visando maior ascensão da população negra ao ensino superior brasileiro.

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  • Financiamento

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - 2020/06836-7.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2023
  • Aceito
    22 Jan 2024
  • Publicado
    24 Jan 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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