Resumo
Esta revisão narrativa tem por objetivo analisar a literatura no âmbito da Saúde Coletiva no intento de reconhecer o que se tem discutido em Educação Popular em Saúde (EPS) entre 2019 e 2022. Após busca, 59 artigos foram selecionados, analisados criticamente e separados em seis categorias-síntese: as práticas de educação popular como promotoras de uma visão participativa da saúde; educação popular e a valorização dos saberes e práticas da cultura popular local; a educação popular em saúde como estratégia de apoio à reconstrução social ante aos retrocessos nas políticas públicas; a importância da articulação nacional em educação popular como resposta à sua desvalorização; a educação popular como projeto libertador pensando a formação democrática e luta contra violências institucionais e estruturais; educação popular no processo de formação universitária em saúde. Pôde-se obter importantes resultados que elucidam a importância da EPS no contexto do Sistema Único de Saúde e na formação acadêmica de profissionais da saúde, favorecendo o respeito aos saberes ancestrais e a horizontalidade do cuidado. Ainda, reafirma-se a necessidade de articulação nacional e dialogada com os movimentos populares para o avanço de uma agenda emancipadora e dignificante da saúde no Brasil.
Palavras-chave:
Revisão; Educação Popular em Saúde; Participação social; Saúde Coletiva; Sistema Único de Saúde
Abstract
This narrative review aims to analyze the literature on Collective Health to recognize what has been discussed in Popular Health Education (PHE) from 2019 to 2022. Fifty-nine articles were selected, critically analyzed, and separated into six summary categories: popular education practices as promoters of a participatory vision of health; popular education and the valorization of local popular culture knowledge and practices; popular health education as a strategy to support social reconstruction in the face of setbacks in public policies; the importance of national articulation in popular education as a response to its devaluation; popular education as a liberating project thinking about the democratic formation and the fight against institutional and structural violence; popular education in the university health training process. We achieved significant results that elucidate the importance of PHE within the Unified Health System and the academic education of health professionals, fostering respect for ancestral knowledge and care horizontality. We also reaffirm the need for national articulation and dialogue with grassroots movements to advance Brazil’s emancipatory and dignifying health agenda.
Key words:
Review; Popular Health Education; Social participation; Collective Health; Unified Health System
Introdução
A Educação Popular (EP) constitui uma perspectiva teórico-metodológica orientadora de práticas educativas e sociais, articulando um conjunto de fundamentos éticos, políticos e pedagógicos que embasam iniciativas de organização popular no enfrentamento às iniquidades sociais11 Cruz PJSC, Pereira EAAL, Alencar IC. Educação popular: teoria e princípio ético-político do trabalho social emancipador. In: Cruz PJSC, organizador. Educação popular em saúde: desafios atuais. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 47-67.. Por isso, o campo da Educação Popular em Saúde (EPS) consolidou-se na Saúde Coletiva como arcabouço teórico-metodológico orientador de movimentos compromissados com um fazer em saúde emancipatório dos sujeitos sociais22 Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde. Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Brasília: MS; 2012..
Os últimos seis anos foram marcados por profundas e significativas crises. Como fundamentam Fleury33 Fleury S. Capitalismo, democracia, cidadania - contradições e insurgências. Saude Debate 2018; 42(n. esp. 3):108-124., o qual faz uma análise das crises econômicas, das crises de representatividade democrática, iniciando em 2016, com o Governo Temer (2016-2018), na implementação de uma agenda pública orientada pela austeridade e, para isso, pelo enfraquecimento e até extinção de políticas públicas. No Governo Bolsonaro (2019-2022), a gestão do Governo Federal aprofunda sua perspectiva neoliberal e encara a pandemia da COVID-19 com ações e políticas caracterizadas pelo esvaziamento do SUS, intensificação da necropolítica e aprofundamento da desigualdade social44 Muniz RC, Ferradas FM, Gomez GM, Pegler LJ. Covid-19 in Brazil in an era of necropolitics: resistance in the face of disaster. Disasters 2021; 45 (Supl. 1):S97-S118.. Mbembe55 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições; 2018. fundamenta que a necropolítica constitui forma de pensar a vida, a política, as organizações e suas relações, onde impera as violências e o aniquilamento de outros sujeitos como prática social, política e cultural e econômica, de modo a quem detém o poder determinar quem morre para o exercício do controle nas relações.
No âmbito da EPS, junto a isso ocorreu o abandono institucional da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS (PNEPS-SUS), representado pela inativação de seu Plano Operativo, juntamente com a extinção do Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde (CNEPS) no Ministério da Saúde66 Bonetti OP. Por uma institucionalidade transformadora e contra-hegemônica: reflexões sobre o inédito viável da Política de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Interface (Botucatu) 2021; 25:e200660..
Reconhecendo a importância da EPS no fortalecimento da pluralidade cultural dos saberes populares, como também animar espaços de discussão em saúde coletiva, o Programa de Extensão e de Pesquisa “Práticas Integrais de Promoção da Saúde e Nutrição na Atenção Básica (PINAB)”, da Universidade Federal da Paraíba, constrói desde maio de 2021 o Observatório de Educação Popular em Saúde e Realidade Brasileira. Essa iniciativa reúne atores em saúde de variadas regiões do Brasil para realizar discussões que envolvam a análise crítica da conjuntura brasileira e os desafios postos às práticas de EPS77 Brito PNA, Silva FM, Silva AS, Silva JC, Cruz PJSC. Reunir, compartilhar, perceber, agir: um relato de experiência do Observatório de Educação Popular em Saúde e realidade brasileira. Rev Ed Pop 2022; ed. esp.:101-116..
A partir dos encontros e debates do Observatório, surgiu o questionamento: “o que se tem discutido em EPS na literatura dos últimos anos na área de Saúde Coletiva?”. Ante o exposto, o presente estudo tem por objetivo analisar a bibliografia sobre EPS no Brasil, procurando identificar e sistematizar as principais discussões desenvolvidas.
Metodologia
Trata-se de uma revisão narrativa da literatura, promovida com abordagem qualitativa88 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2015., compreendida como um estudo apropriado para descrever e discutir o “estado da arte” de uma dada temática, estabelecendo entendimentos teóricos e contextuais99 Rother ET. Revisão sistemática X revisão narrativa. Acta paul Enferm 2007; 20(2):5-6.. A pesquisa da bibliografia foi iniciada em outubro de 2022 na base de dados “Portal de Periódicos CAPES”, utilizando o descritor “Educação Popular em Saúde”.
Como critérios de inclusão definiram-se artigos completos publicados em português, inglês ou espanhol, no período entre 2019 e outubro de 2022, referentes às experiências e reflexões da EPS no Brasil. Por sua vez, os critérios de exclusão foram: artigos que não abordavam a EPS ótica freiriana, resumos, monografias e outros tipos de produção que não artigos publicados em periódicos científicos, e artigos em duplicidade.
Todos os resultados encontrados foram importados da base de busca “Periódicos CAPES” para o aplicativo Rayyan (https://www.rayyan.ai/) como forma de organização e arquivamento dos estudos. Com uso de funcionalidade nativa do aplicativo, foram identificados e excluídos os artigos duplicados.
O processo de seleção dos estudos foi dividido em dois momentos: primeira e segunda triagem. A primeira triagem foi realizada por dois revisores que analisaram de forma independente e cega os títulos e os resumos dos estudos encontrados. Os artigos que atenderem aos critérios de inclusão seguiram para a segunda triagem. A segunda triagem se deu pela leitura integral desses artigos por dois revisores, também de forma independente e cega. Os artigos da segunda triagem que atenderam os critérios de inclusão foram selecionados para compor a revisão. Em caso de divergência nas triagens, um terceiro revisor teve poder decisório sobre a inclusão do artigo.
Nesse processo, os artigos selecionados foram analisados na perspectiva da análise de conteúdo, conforme referenciada por Laurence Bardin1010 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. Procedeu-se uma leitura em profundidade desses artigos de maneira a identificar ideias emergentes que apontavam para alternativas de respostas aos objetivos deste estudo. Para cada ideia emergente, foram destacadas citações representativas. Em seguida, foi realizada análise de confluência de sentido entre ideias emergentes no intuito de agrupá-las em núcleos de sentido. Por fim, diferentes núcleos foram reunidos por aproximação temática em ideias-síntese, de modo a evidenciar as dimensões emergentes resultantes da análise das produções científicas selecionadas (Link SciELO Data: https://doi.org/10.48331/scielodata.DG4RNR).
Resultados
A busca inicial resultou em 113 artigos. Aplicados os critérios, foram selecionados 59 artigos (Figura 1).
O Quadro 1 sistematiza os resultados da análise dos artigos na forma das seis categorias-síntese construídas, explicitando os núcleos de significado que as compõem.
Uma quantidade significativa dos artigos encontrados, a exemplo de Paro et al.1111 Paro CA, Sousa LM, Silva NEK. Análise das experiências da Comunidade de Práticas sobre o enfrentamento do câncer de colo de útero. Rev Ed Pop 2020; 19(2):176-198., enfatizavam a associação das práticas de EPS com uma concepção ampla de saúde e, consequentemente, uma abordagem ampliada ao processo saúde-doença. Nesse sentido, denota-se que é expressiva a identificação da EPS como concepção orientadora de práticas que potencializam a ideia-força de promoção da saúde no âmbito das práticas e dos serviços, como definido por Buss et al.1212 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Cien Saude Colet 2020; 25(12):4723-4735. (p. 4725): uma estratégia promissora para enfrentar problemas de saúde, integrando saberes técnicos e populares, bem como mobilizando recursos institucionais e comunitários para promover a qualidade de vida.
Revelou-se expressiva também, na literatura, a ênfase que os processos de EPS vem logrando para as ações educativas e os trabalhos sociais em Saúde Coletiva como um todo, no sentido do acolhimento e inclusão protagonista dos saberes e das práticas populares no agir em saúde e nas iniciativas de cuidado. Publicações como as de Conceição e Conceição1313 Conceição CR, Conceição KR. Capoeira Angola e educação popular em saúde: por uma pedagogia ancestral e amorosa. Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:104-122. e Santos e Santos1414 Santos RC, Santos RC. Ancestralidade e produção de saúde na comunidade indígena Xokós, Sergipe. Rev Ed Pop 2020; 13:160-175. apresentam relatos de práticas onde esse diálogo decorre.
Observou-se importante gama de contribuições na literatura acerca das contribuições das práticas de EPS ante aos retrocessos recentemente ocorridos nas políticas públicas brasileiras, agravados por agendas públicas de cunho ultraneoliberal e pela crise sanitária da COVID-19. Artigos como os de Lima e Pekelman1515 Lima LO, Pekelman R. O diálogo como estratégia formativa: perspectivas a partir da Educação Popular em Saúde. Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:290-297., Paro et al.1616 Paro CA, Nespoli G, Lima LO. Educação Popular em Saúde, mais do que nunca! Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:1-5. e de Fernandes et al.1717 Fernandes RS, Fank EI, Mendes LEF, Araújo RS, Barbosa DS. Potencialidades da Educação Popular em tempos de pandemia da Covid-19 na Atenção Primária à Saúde no Brasil. Interface (Botucatu) 2022; 26:e210142. revelam iniciativas de resistência e sistematização proposições de saberes e aprendizados acumulados na potência da EPS como resposta a políticas de extrema austeridade ante às ações sociais, bem como de enfrentamento solidário e comunitário às emergências sanitárias.
Destacaram-se, também, produções com relatos de experiências e ensaios crítico-reflexivos em torno da necessidade de comunicação e articulação entre as práticas e os projetos de EPS ante aos processos citados anteriormente de fragilização das ações sociais e políticas públicas em saúde, como também diante da (ainda) pouco valorização da EPS no âmbito dos serviços de saúde, como apontado por Cruz et al.1818 Cruz PJSC, Prado EV, Sarmento DS, Carneiro DGB, Costa LJA, Vasconcelos EM, Araújo RS, Alencar IC, Almeida AMM, Sousa LMP, Botelho BO, Falcão EF. Mapeamento de experiências de extensão popular nas universidades públicas brasileiras: um estudo descritivo em escala nacional. Rev Conexao UEPG 2019; 15(1):7-16..
Finalmente, um conjunto importante de contribuições da literatura indicou os significados das práticas de EPS na formação de atores sociais para as lutas pela defesa da democracia, a exemplo do contido nos artigos de Brutscher et al.1919 Brutscher VJ, Lacerda SMP, Lira GA. Curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde na paraíba: a experiência da coordenação estadual. RTE 2019; 28(1):231-246. e de Brito et al.2020 Brito TCS, Peixinho BC, Pirró JCF, Oliveira RS, Carvalho PLF, Silva DM, Santos MOS. Territórios Saudáveis e Sustentáveis: estratégias de cuidado para a saúde da população negra do campo em Caruaru/Pernambuco. Saude Debate 2021; 45(131):1017-1032..
Discussão
No que se refere à categoria-síntese sobre as práticas de EP como promotoras de uma visão participativa da saúde, denota-se que a EPS foi levantada na literatura como relevante perspectiva aplicada na orientação das políticas públicas de saúde em resposta à fragmentação do cuidado, mediante ações direcionadas à autonomia e à saúde com uma ótica integral2121 Mello AS, Santos WP, Oliveira SA. A Educação Popular em Saúde como mediação pedagógica da gestão e práticas colaborativas na Atenção Básica à Saúde. Saude Redes 2020; 6(1):219-233.. Pedrosa2222 Pedrosa JIS. Educação popular em saúde e gestão participativa no sistema único de saúde. Rev APS 2008; 11(3):303-313. (p. 306) reforça esse entendimento, ao destacar a EPS, como um campo em movimento, a partir do qual “vem se constituindo outra forma de produção de conhecimento e sistematização de experiências que apontam novos desenhos para práticas de saúde desde o âmbito do cuidado às práticas gerenciais e de gestão”.
Oliveira Junior et al.2323 Oliveira Junior JB, Wachholz LB, Manske GS, Lange FC. Promoção da saúde através da educação popular e práticas corporais: potencializando o cuidado e fortalecendo os vínculos sociais. Motrivivencia 2020; 32(62):1-15. relatam formação do grupo multiprofissional “Movimenta SUS”, uma iniciativa de EPS voltada para o cuidado integral, por intermédio de práticas corporais e atividade física e Dantas et al.2424 Dantas VL, Paro CA, Cruz PJSC. Educação popular em saúde, arte e múltiplas linguagens. Rev Educ Pop 2020; ed. esp.:298-311., por sua vez, apresentam a arte e a cultura como processos nos quais as pessoas, os grupos e as classes populares expressam sua representação, recriação e reelaboração da realidade, inserindo-as nas práticas de saúde na perspectiva de uma prática social libertadora.
Lima et al.2525 Lima PRG, Sousa FOS, Farias HSL, Carmo YAF. A educação popular em saúde como estratégia fortalecedora do apoio matricial na atenção básica. Rev Educ Pop 2020; ed. esp. 204-218. apontam a dialogicidade da EPS como fundamental para que os profissionais integrem ativamente e organicamente os processos de trabalho da equipe. Caminhando nessa direção, Cruz et al.2626 Cruz PJSC, Silva MRF, Pulga VL. Educação Popular e Saúde nos processos formativos: desafios e perspectivas. Interface (Botucatu) 2020; 24:e200152. (p. 11) acentuam essa compreensão, indicando que a EPS mobiliza um “fazer concreto”, ante ao qual seus atores poderão ampliar seus olhares para além das práticas locais e específicas, percebendo, “a potencialidade da construção coletiva e da ação social organizada de forma participativa e cooperativa entre gentes com saberes distintos, inclusive técnicas e profissões variadas”.
A EPS demonstra-se, conforme indica a literatura pesquisada, como importante no processo de superação da Educação em Saúde com abordagem verticalizada e temáticas tecnicistas, em favor da educação articulada ao cuidado emancipador2727 Costa JS, Carneiro-Leão AMA. Campanhas sanitárias como instrumentos da educação em saúde no Brasil: algumas reflexões para uma educação popular em saúde. Rev Sustinere 2021; 9:333-351.. Pedrosa2222 Pedrosa JIS. Educação popular em saúde e gestão participativa no sistema único de saúde. Rev APS 2008; 11(3):303-313. (p. 310) amplia esse entendimento, ao apontar, no âmbito da gestão participativa, a contribuição da EPS em três dimensões: “projeto político de ampliação dos espaços de interlocução entre a gestão do SUS e os movimentos sociais; dispositivo com capacidade de mobilizar a população pelo direito à saúde e pela equidade; e estratégia pedagógica constituinte de sujeitos críticos e propositivos com potencialidade para formulação e deliberação de projetos políticos”.
A literatura pesquisada exalta a amorosidade como fundamento da EPS, que deve ser valorizada na prática educativa. Amorosidade envolve cuidados, atitudes e posturas éticas para humanizar o trabalho em saúde, centrando o fazer no diálogo, na presença acolhedora e na escuta autêntica. Não é, portanto, um processo puramente romantizado de relação profissional-usuários, mas uma postura de ética diante do outro, no sentido de potencializar o agir solidário e emancipatório2828 Cruz PJCS; Carvalho LE, Araújo RS. Amorosidade como princípio das práticas de saúde orientadas pela Educação Popular: um estudo bibliográfico. Rev APS 2020; 21(4):608-634.. O vínculo estabelecido nesta base freiriana estimula uma vivência coletiva na direção da autonomia, solidariedade e equidade2929 Lima MC, Andrade KP, Nunes LC, Alves WA, Menezes MS, Pinto TL. Reflexões sobre a implantação de novas estratégias de educação popular em uma ESF de um município do leste de Minas Gerais. Rev APS 2020; 21(4):757-765..
O referencial da EP permite a construção de um agir que inclui e valoriza o vínculo dos profissionais de saúde com o território e a comunidade, associada ao processo de promoção do pensamento crítico das pessoas, permitindo o desvelar de percepções silenciadas e a valorização de vozes marginalizadas. Nesse enfoque, Hélène Laperriére3030 Hélène L. O problema metodológico e político de recolher evidências empíricas em regiões arriscadas da realidade amazônica: problematizações para a educação popular em saúde. Rev Temas Educ 2019; 28(1):212-230. reforça a noção de que a ciência conservadora e relatórios oficiais excluem intencionalmente os conhecimentos e saberes “inconvenientes” que surgem das vivências comunitárias e da prática dos trabalhadores locais.
Ampliando o olhar, cabe trazer referência a Freire3131 Freire P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes; 1979., quando esse indica que “o compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas “águas” os homens verdadeiramente comprometidos ficam “molhados”, ensopados”. Na acepção defendida por Vasconcelos3232 Vasconcelos EM. Educação popular e atenção à saúde da família. 6ª ed. São Paulo: Hucitec; 2015., isso implica, necessariamente, um processo de se inserir na realidade, observar, estudar, refletir e agir, que só é possível mediante uma convivência regular e sistemática com o contexto de trabalho, bem como com a construção e mediação de vínculos com os protagonistas locais.
No que se refere à categoria-síntese dedicada à EP na valorização dos saberes e práticas da cultura popular local, observamos que, por ter em seus fundamentos o diálogo, a EPS apresenta abordagens que, partindo da crítica à imposição do saber científico perante os populares na construção das ações sociais e dos trabalhos sociais e educativas no âmbito das políticas públicas1313 Conceição CR, Conceição KR. Capoeira Angola e educação popular em saúde: por uma pedagogia ancestral e amorosa. Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:104-122., reafirmam uma perspectiva de desenvolvimento da ciência de forma respeitosa ao saber popular3333 Morel APM. Educação popular em saúde e colonização em tempos de negacionismo. Reflexao Acao 2021; 29(2):41-56. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/16008
https://online.unisc.br/seer/index.php/r...
. Estabelecido esse espaço comum e igualitário de fala, a construção de vínculo com o território e a comunidade é valorizada, permitindo assim o desvelar de percepções silenciadas e a valorização de vozes marginalizadas3030 Hélène L. O problema metodológico e político de recolher evidências empíricas em regiões arriscadas da realidade amazônica: problematizações para a educação popular em saúde. Rev Temas Educ 2019; 28(1):212-230..
Essas percepções podem ser visualizadas no relato da terceira turma em Belém-PA do Curso de Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde (EDPOPSUS), ao constatar como a diversidade de locais de origem, incentivo à autonomia e inserção em ambiente de acolhimento permitiu a consolidação de um coletivo de ajuda mútua, companheirismo e solidariedade3434 Rodrigues RP, Sotirakis GHO, Penha JFA, Dias JS. Educação popular em saúde: construindo saberes e práticas de cuidado através do EDPOPSUS. Rev Ed Pop 2020; 19(1):219-229..
Dialogando com essa reflexão, pensamos ser pertinente pontuar que Acioli et al.3535 Acioli S, Kebian LVA, Dias JR, Corrêa VAF, Daher DV, Martins ALX. Saberes científicos e populares na Estratégia Saúde da Família na perspectiva hermenêutica-dialética. Online Braz J Nurs 2016; 15 (4):644-654. (p. 650) apresentaram pesquisa onde constataram que, em grande parte, o reconhecimento do saber popular pelos profissionais pesquisados estava preponderantemente relacionado a utilização de fitoterápicos, em uma ótica de somar a fitoterapia ao saber biomédico em indicações terapêuticas. Essa compreensão, quando presente, precisa ser problematizada pelos profissionais em suas equipes, e a EPS apresenta-se como metodologia orientadora de relações educativas, sociais e de parcerias que corroboram nesse sentido, sobretudo em compreender os saberes populares como conhecimentos que advêm da prática concreta dos povos e das comunidades, cuja incorporação nas práticas de saúde possa colaborar para constituir iniciativas adequadas e coerentes com as necessidades e as potencialidades do território de ação e seus representantes.
A EPS é uma perspectiva que reconhece as inter-relações sociais, históricas e políticas do educar. Para tanto, sua metodologia inclui o respeito à dimensão da ancestralidade e dos saberes e práticas acumulados pelo povo, como aspecto de partida da construção dos trabalhos educativos e das ações comunitárias em saúde.
Lavor Filho e Vale3636 Lavor Filho TL, Vale CAS. Notas sobre a formação de universitários e povos de terreiro: experiências com educação popular em saúde em Juazeiro do Norte, Ceará. Rev Ed Pop 2019; 17(3):195-207. se debruçam sobre esse recorte temático, com sua experiência com povos de terreiro. Percebendo que o modelo de aula expositiva era insuficiente para dar conta das demandas requeridas pelo grupo, foi construída nova proposta: Círculos de Conversa, articulados com demandas sociais compartilhadas pelos babalorixás, lalorixás, pais e filhos de santo. Esse protagonismo das lideranças comunitárias nas práticas culturais locais promove processos que rumam na libertação ideológica dos sistemas de dominação educacionais e práticas do fazer saúde fragmentadas.
Palmira Lopes3737 Lopes PS. Práticas populares de cuidado, ação comunitária e promoção da saúde: experiências e Reflexões. João Pessoa: Editora do CCTA/UFPB; 2020., ao sistematizar sua vida de trabalho e atuação nos movimentos sociais populares, referenda esse entendimento ao destacar o quanto encontrou, nas práticas de EPS, acolhida para seus conhecimentos acumulados com as experiências de vida e os aprendizados com seus ancestrais, sentindo-os respeitados e acolhidos no fazer das ações concretas de saúde em seu território. Ao mesmo tempo, chama atenção para um aspecto que, por vezes, pouco é valorizado em parte do movimento de EPS, como dizem Cruz et al.2626 Cruz PJSC, Silva MRF, Pulga VL. Educação Popular e Saúde nos processos formativos: desafios e perspectivas. Interface (Botucatu) 2020; 24:e200152., o qual consiste na capacidade dos atores populares aprenderem também com os saberes científicos e com o conhecimento acumulado pela academia. Em muitos textos no campo da EPS, apontam os autores anteriores, denota-se uma valorização da inclusão e do protagonismo dos saberes populares que, por vezes, apaga as potentes e pertinentes contribuições dos saberes acadêmicos.
Ao direcionar a práxis na EPS para APS, foi reforçado na literatura que a EPS qualifica a ESF com a metodologia necessária para superar o modo hegemônico de desenvolver as ações de saúde e potencializar o cuidado emancipador e integral3838 Holanda CWB, Santos AP, Gomes GA, Santos RL. Educação Popular em Saúde e Estratégia de Saúde da Família: Potencialidades do Cuidado. Rev Psicol 2019; 13(47):1051-1059.. Isto é, um fazer compartilhado que respeita e incentiva formas múltiplas de cura, por meio, por exemplo, do retorno à ancestralidade3939 Dantas MA, Silva MRF, Castro AR. Aprendizagens com o corpo todo na (trans)formação de educadores (as) populares do Curso Livre de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS). Interface (Botucatu) 2020; 24:e190205.. Nesse sentido, Souza et al.4040 Souza ATS, Vilarinho MLCM, Brandão SASM, Rodrigues AK, Amaral LRS, Milanez LS, Pereira MS, Pedrosa JIS. Educação em saúde para mulheres indígenas sobre cânceres de mama e de colo uterino. Rev Bras Promoc Saude 2020; 33:10740. reconhecem a roda de conversa como importante aliada da APS na promoção da saúde da mulher de povos originários, valorizando seus saberes ancestrais e estabelecendo vínculo profissional com a realidade da comunidade.
Essas experiências reafirmam a intencionalidade política da EPS, ao ver na escuta dos socialmente excluídos e no incentivo às vozes carregadas de historicidade o caminho para o fortalecimento da autonomia e da participação social.
A categoria-síntese que enfoca a EPS como estratégia de apoio à reconstrução social ante aos retrocessos nas políticas públicas contempla a consideração de que, nos últimos anos, o negacionismo tem se revelado como uma das principais facetas estratégicas do neoliberalismo em seu embate profundo contra o fortalecimento das políticas sociais públicas direcionadas à promoção dos direitos sociais e humanos, na perspectiva da emancipação social. No Brasil, a agenda ultraneoliberal, pautada na necropolítica, foi operada pelo governo federal durante as gestões de 2016-2018 e de 2019-20224141 Morel APM. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab Educ Saude 2021; 19:e00315147..
Autores como Fleury33 Fleury S. Capitalismo, democracia, cidadania - contradições e insurgências. Saude Debate 2018; 42(n. esp. 3):108-124., Hallal4242 Hallal PC. SOS Brazil: science under attack. Lancet 202; 397(10272):373-374. e Morel4141 Morel APM. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab Educ Saude 2021; 19:e00315147. evidenciaram os impactos, respectivamente, do ultraneoliberalismo e suas repercussões nas políticas sociais e, em especial, no direito à saúde, do negacionismo da ciência e suas repercussões na abordagem e enfrentamento à pandemia da COVID-19 no Brasil, e as consequências das notícias falsas tanto para a legitimação da necropolítica, como também da fragilização das ações de vigilância e prevenção em saúde no contexto pandêmico, agravando a exposição de milhares de pessoas à doença, em especial aquelas que já conviviam com situações de forte vulnerabilidade social4141 Morel APM. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab Educ Saude 2021; 19:e00315147..
Ante esse contexto, as práticas de EPS tiveram que resistir a uma série de processos sociais e políticos que trouxeram significativas dificuldades para a continuidade das experiências de EPS, por atingir frontalmente as condições de vida e trabalho de seus participantes e mediadores. Contudo, revelou-se também que a EPS tem capacidade de resiliência e vocação propositiva, a partir de grupos, organizações sociais e instituições públicas país afora que protagonizaram novas práticas e iniciativas alinhadas à EPS para a mobilização de ajuda emergencial, bem como a manutenção de espaços de cuidado integral e de momentos de debate e reflexão crítica em torno da saúde pública brasileira1515 Lima LO, Pekelman R. O diálogo como estratégia formativa: perspectivas a partir da Educação Popular em Saúde. Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:290-297.,1717 Fernandes RS, Fank EI, Mendes LEF, Araújo RS, Barbosa DS. Potencialidades da Educação Popular em tempos de pandemia da Covid-19 na Atenção Primária à Saúde no Brasil. Interface (Botucatu) 2022; 26:e210142.,4343 Souza IG, Carvalho LMS, Silva FM, Vasconcelos ACCP, Cruz PJSC. Experiências de extensão em educação popular em saúde no enfrentamento à pandemia da Covid-19 na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu) 2022; 26:e210146..
Na contramão de discursos violento proferidos por várias pessoas em posição de poder no Brasil, nos últimos anos, como revelado no estudo de Silva e Silveira4444 Silva SD, Silveira A. "Gripezinha ou resfriadinho": uma análise dos discursos midiáticos do presidente Jair Bolsonaro sobre a covid-19 a partir da teoria das representações sociais [monografia]. Tubarão: Universidade do Sul de Santa Catarina; 2020., ao fazer uma análise dos discursos midiáticos do ex-presidente Jair Bolsonaro sobre a COVID-19 a partir da teoria das representações sociais, a EPS é pautada por fundamentos como: amorosidade, autonomia, criticidade e partilha dialógica de saberes. Assim, com base na literatura, encontra-se o estímulo à formação profissional para suas práticas em saúde orientadas pela pedagogia freiriana, construindo pontes com a população assistida, com ações que fortalecem a formação da coletividade, pautadas na relação dialética e contraditória do cotidiano4343 Souza IG, Carvalho LMS, Silva FM, Vasconcelos ACCP, Cruz PJSC. Experiências de extensão em educação popular em saúde no enfrentamento à pandemia da Covid-19 na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu) 2022; 26:e210146..
Esse momento crítico revelou, também, a pertinência e centralidade do movimento de EPS não deixar fragilizar suas práticas e experiências de base, pois foi justamente do trabalho permanente de base que muitas dessas iniciativas emergiram. Cananéa e Melo Neto4545 Cananéa FAALC, Melo Neto JF. Apresentando o marco de referência de educação popular para as políticas públicas: caminhos para a institucionalização da educação popular In: Melo Neto JF, Cruz PJSC, organizadores. Extensão popular educação e pesquisa. João Pessoa: Editora CCTA; 2017. p. 156-88., ao fazerem reflexões sobre os processos de institucionalização da educação popular nas políticas públicas de governo, no período 2003-2016, destacam o cuidado importante de que tal processo não fragilize a continuidade e o fortalecimento das experiências de base. Em entrevista no ano de 2014, para a Revista Novos Estudos CEBRAP4646 Lavalle AG, Szwako J. Origens da Política Nacional de Participação Social: Entrevista com Pedro Pontual. Novos Estud CEBRAP 2014; 99:91-104., Pedro Pontual, ao refletir sobre as origens da Política Nacional de Participação Social, concorda que, enquanto se possa permear mais contundentemente o fazer da gestão pública com preceitos da educação popular que as ações decorrentes não esvaziem as práticas socialmente territorializadas.
A EPS se insere nas propostas preventivas, sobretudo quando dialogando com a perspectiva da Vigilância em Saúde por meio da Vigilância Popular em Saúde, atuando para além das instituições e promovendo a participação popular4141 Morel APM. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab Educ Saude 2021; 19:e00315147.. Durante a pandemia, a EPS conseguiu fortalecer a APS pela retomada e revalorização da aproximação das equipes com grupos e movimentos sociais populares, na construção de novas redes de articulação do apoio social.
Nessa direção, destaca-se, principalmente, a experiência do trabalho comunitário dos agentes populares em saúde articulada com a Vigilância Popular em Saúde, sobretudo através do “Projeto Mãos Solidárias”. Nas experiências com agentes populares de saúde, esses foram os principais responsáveis pelo cuidado nas comunidades e periferias, pela educação na prevenção da COVID-19, pelo combate ao negacionismo, pela mobilização de apoio para alimentação e pela facilitação no processo de vacinação1717 Fernandes RS, Fank EI, Mendes LEF, Araújo RS, Barbosa DS. Potencialidades da Educação Popular em tempos de pandemia da Covid-19 na Atenção Primária à Saúde no Brasil. Interface (Botucatu) 2022; 26:e210142.,4747 Pedrosa JIS. A Política Nacional de Educação Popular em Saúde em debate: (re) conhecendo saberes e lutas para a produção da Saúde Coletiva. Interface (Botucatu) 2021; 25:e200190..
A importância da articulação nacional em EP como resposta à sua desvalorização configurou uma importante categoria-síntese, pois algumas das literaturas consultadas consideraram que a EPS ainda é, em alguma medida, pouco valorizada no agir profissional nas instituições de saúde, que funcionam, preponderantemente, de forma hegemônica individualizante, pautada em procedimentos de pronto diagnóstico, prescrição e medicalização4848 Silva FMP, Pereira AKAM. O processo de formação para a prática de educação popular em saúde: concepções teóricas e metodológicas dos egressos de enfermagem. Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:123-143..
Os artigos pesquisados na presente revisão apontam que, recentemente, os movimentos e as práticas de EPS têm dificuldades na perspectiva de garantirem reconhecimento, valorização e incorporação nas práticas de saúde, especialmente no cotidiano das unidades de saúde. Além do histórico biomédico dominante anteriormente citado, a agenda governamental e pública dos últimos anos trouxe sérios obstáculos nesse sentido, conforme referido anteriormente quanto à perspectiva ultraneoliberal e negacionista imposta na agenda pública brasileira entre 2016 e 20224848 Silva FMP, Pereira AKAM. O processo de formação para a prática de educação popular em saúde: concepções teóricas e metodológicas dos egressos de enfermagem. Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:123-143..
Mesmo ante tais obstáculos, verifica-se nas produções pesquisados a insistência dos atores da EPS em apontar, com auxílio da pesquisa e da sistematização de suas experiências, o potencial que a EPS tem para auxiliar na complexificação de respostas que façam face às diversas problemáticas na área da saúde, principalmente à emergência sanitária.
A produção de conhecimentos, experiências e tecnologias sociais e educativas, a partir das práticas de EPS, permanece pulsante, em vários territórios e contextos, haja vista os profícuos desdobramentos do Grupo Temático de EPS na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), conforme sistematizaram Lima e Pekelman1515 Lima LO, Pekelman R. O diálogo como estratégia formativa: perspectivas a partir da Educação Popular em Saúde. Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:290-297..
Os saberes, metodologias e aprendizados gestados nessas experiências contribuem, ainda que com limites, para a disseminação da EPS nos serviços de saúde, em especial via APS, o que ainda é um desafio frente às práticas hegemônicas bancárias, autoritárias e individualizantes. Ainda nesse sentido, são poucas as referências que buscam configurar a EPS enquanto Tecnologia Social (TS) para educação em saúde4949 Paro CA, Silva NEK. Educação popular em saúde como tecnologia social em contextos de emergências sanitárias: notas a partir de uma ação extensionista. Rev Ed Pop 2022; 21(1):3-33..
Paro et al.1616 Paro CA, Nespoli G, Lima LO. Educação Popular em Saúde, mais do que nunca! Rev Ed Pop 2020; ed. esp.:1-5. apresentaram a recente ampliação de publicações de dossiês de periódicos científicos e da organização de coletâneas com relatos de diversas experiências, as quais apontam novos horizontes e possibilidades de frutificação de atividades voltadas à humanização em saúde, à promoção da equidade, ao fomento à participação social, à formação crítica dos profissionais de saúde, a partir dos aportes da EPS. A coletânea Educação Popular em Saúde, organizada em 2020 por Paro et al.5050 Paro CA, Lemões MAM, Pekelman R, organizadores. Educação popular e a (re)construção de horizontes formativos na saúde. João Pessoa: Editora do CCTA; 2020., evidencia outra expressão dessa potente riqueza.
A categoria dedicada à reflexão em torno da EP como projeto libertador pensando a formação democrática e luta contra violências institucionais e estruturais revelou-se potente e com aspectos inovadores, se comparados a revisões anteriores de literatura na área. A revisão aponta para experiências e ensaios crítico-reflexivos que posicionam a EPS como uma metodologia de promoção da autonomia dos indivíduos, na medida em que, por meio da educação participativa, as pessoas possam ter seus protagonismos valorizados. O estudo ressalta como é vital que as práticas de EPS não percam de vista essa condição e a nitidez de sua intenção política1919 Brutscher VJ, Lacerda SMP, Lira GA. Curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde na paraíba: a experiência da coordenação estadual. RTE 2019; 28(1):231-246..
O trabalho de base, alicerçado desde a infância e adolescência com a educação com base nos preceitos da EP, é potente no enfrentamento da violência estrutural e institucional. Quando se trabalha a autonomia com os jovens, constrói-se com eles um senso de pertencimento à EPS, sendo interessante ainda para que respeitem as características e crenças de outrem, ao validar a expressão de seus repertórios culturais. Uma forma de cultivar esse pertencimento é por meio do cuidado do espaço das escolas, trazendo o senso de coletividade. A utilização dessa metodologia com crianças foi citada de modo positivo por meio de Círculos de Cultura realizados por organizações da sociedade civil em Florianópolis5151 Selau BL, Kovaleski DF, Paim MB, Prates IV. Estratégias para potencialização das ações de promoção da saúde com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu) 2021; 25:e210235..
Um dos melhores meios para construção dessa estratégia de base é o uso do brincar, uma vez que intervenções dialogadas ludicamente com crianças podem ser uma estratégia decisiva para gerar reflexão sobre os processos sociais que permeiam saúde e doença. O desenvolvimento neuropsicomotor e sociabilidade dos infantes também se torna um benefício importante, pois junto desse estímulo podem ser delineadas questões de luta social como racismo, homofobia e machismo de forma acessível para as crianças a partir do entendimento da realidade que as cercam2020 Brito TCS, Peixinho BC, Pirró JCF, Oliveira RS, Carvalho PLF, Silva DM, Santos MOS. Territórios Saudáveis e Sustentáveis: estratégias de cuidado para a saúde da população negra do campo em Caruaru/Pernambuco. Saude Debate 2021; 45(131):1017-1032..
Os debates acerca da justiça ambiental também surgiram as discussões em EPS, uma vez que por meio deles há soberania ativa da comunidade na busca por um espaço de reafirmação das características culturais e saberes populares, rompendo com estruturas coloniais e hegemônicas1414 Santos RC, Santos RC. Ancestralidade e produção de saúde na comunidade indígena Xokós, Sergipe. Rev Ed Pop 2020; 13:160-175..
A articulação de grupos, por meio dos quais ocorrem as trocas de conhecimentos, a construção compartilhada dos saberes e o empoderamento dos participantes, constitui um processo que fortalece a EPS. Nesse sentido, a revisão apontou o “Movimenta SUS”, que surge para promover saúde integral nas comunidades, utilizando técnicas diferentes das utilizadas comumente no contexto de cuidado em saúde2727 Costa JS, Carneiro-Leão AMA. Campanhas sanitárias como instrumentos da educação em saúde no Brasil: algumas reflexões para uma educação popular em saúde. Rev Sustinere 2021; 9:333-351..
Uma última categoria-síntese de destaque consistiu da EP no processo de formação universitária em saúde, onde se evidenciou a EPS como uma estratégia potente durante a formação acadêmica2323 Oliveira Junior JB, Wachholz LB, Manske GS, Lange FC. Promoção da saúde através da educação popular e práticas corporais: potencializando o cuidado e fortalecendo os vínculos sociais. Motrivivencia 2020; 32(62):1-15..
Os projetos de extensão e pesquisa universitários são destacados como campos profícuos de desenvolvimento das metodologias de EPS na formação em saúde. Historicamente há, nessas duas práticas, um espaço privilegiado para ações e interações entre o campo acadêmico e o campo social. Nesse sentido, são de suma relevância nas diversas problemáticas sociais e no fazer saúde de forma ampliada1818 Cruz PJSC, Prado EV, Sarmento DS, Carneiro DGB, Costa LJA, Vasconcelos EM, Araújo RS, Alencar IC, Almeida AMM, Sousa LMP, Botelho BO, Falcão EF. Mapeamento de experiências de extensão popular nas universidades públicas brasileiras: um estudo descritivo em escala nacional. Rev Conexao UEPG 2019; 15(1):7-16.. Os artigos consultados revelam o significado potente que as práticas de Extensão Popular têm no sentido de contribuir com a promoção da comunicação e da articulação das diversas experiências de EPS.
Através da atenção integral promovida pela EPS, os acadêmicos são desafiados a tecer práticas humanizadas e amorosas que conversem com as circunstâncias que perpassam o cuidado em saúde. Assim, observou-se que as produções de EPS que pautam a formação em saúde e evidenciam a relevância de conhecer o território e as condições de produção de vida como ponto de partida das ações de ensino, para que as ações propostas não sejam esvaziadas de sentido à população assistida nem gerem um processo de passividade e afastamento da pessoa cuidada5252 Lisbôa CMP, Costa RRS, Fonseca ABC. As potencialidades da educação popular na construção curricular da formação em nutrição. Rev Ed Pop 2020; 19(1):3-23.,5353 Nascimento Júnior BJ, Santos MAF, Souto LB, Alencar AAC, Vieira DD. Farmácia para comunidade: compartilhando o conhecimento através do Festival Farmacodrama e da Feira Expofarma. Rev Ed Pop 2022; 21(1):356-369..
Considerações finais
As seis categorias-sínteses revelam as consequências tangíveis do governo no brasileiro de 2019 a 2022, apontando perspectivas para a reanimação da EPS no SUS. As percepções destacam a relevância da EP na promoção de uma visão participativa da saúde, na valorização dos saberes e práticas da cultura popular local, com práticas também fundamentadas em conteúdos teóricos crítico-reflexivo.
Discute-se também a EPS como estratégia de apoio à reconstrução social diante dos retrocessos nas políticas públicas, enfatizando a importância da articulação nacional em EP e seu papel como projeto libertador no combate a violências institucionais e estruturais, gerando atores sociais que resistem e defendem a educação democrática, crítica, emancipatória e justa, centrada nos saber popular. A categoria sobre a educação popular na formação universitária ressalta a relevância das experiências para capacitar profissionais comprometidos com os princípios do SUS, reconhecendo a importância de considerar as diversas esferas constituintes do indivíduo em sociedade no cuidado, proporcionando uma atenção singular, acolhedora e horizontal que ressalta a importância dos encontros entre os saberes acadêmicos e populares.
Este estudo representa um esforço de sistematização e valorização das construções teórico-práticas, visando contribuir para o debate e a implementação da EPS no SUS. É fundamental promover uma articulação nacional e dialogada com os movimentos populares para avançar em uma agenda libertadora e dignificante da saúde no Brasil.
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18Cruz PJSC, Prado EV, Sarmento DS, Carneiro DGB, Costa LJA, Vasconcelos EM, Araújo RS, Alencar IC, Almeida AMM, Sousa LMP, Botelho BO, Falcão EF. Mapeamento de experiências de extensão popular nas universidades públicas brasileiras: um estudo descritivo em escala nacional. Rev Conexao UEPG 2019; 15(1):7-16.
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19Brutscher VJ, Lacerda SMP, Lira GA. Curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde na paraíba: a experiência da coordenação estadual. RTE 2019; 28(1):231-246.
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20Brito TCS, Peixinho BC, Pirró JCF, Oliveira RS, Carvalho PLF, Silva DM, Santos MOS. Territórios Saudáveis e Sustentáveis: estratégias de cuidado para a saúde da população negra do campo em Caruaru/Pernambuco. Saude Debate 2021; 45(131):1017-1032.
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Financiamento
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - Universidade Federal da Paraíba - científica 2022/2023 - edital 01/2022/PROPESQ.
Editores-chefes:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Jun 2024 -
Data do Fascículo
Jun 2024
Histórico
-
Recebido
07 Ago 2023 -
Aceito
25 Jan 2024 -
Publicado
27 Jan 2024