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“Revelando”, no gerúndio: segredo e estigma nas práticas de cuidado às crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids

“Revealing in the gerund”: secrecy and stigma in practices of care for children and adolescents living with HIV/Aids

Resumo

O artigo analisa as práticas de cuidado e o processo de revelação do diagnóstico a crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids. Foi realizado um estudo de caso em um ambulatório localizado em um hospital público do Rio de Janeiro (RJ), através de observação participante, entrevistas semiestruturadas com profissionais de saúde e consulta a documentos produzidos pelos profissionais. A análise, baseada na sociologia de Simmel e Goffman, aponta a revelação do diagnóstico como uma marca que acompanha todo o cuidado estabelecido com os usuários e dá luz a questões como o segredo, o estigma e as possíveis compreensões acerca da condição de saúde estabelecidas. Com isso, as relações institucionalizadas contribuem para um progressivo contato com a condição de portador de um estigma e fazem existir fases de uma carreira de doente protegido pela informação.

Palavras-chave:
HIV; Estigma social; Saúde do adolescente; Saúde da criança

Abstract

This article analyzes practices of care and the HIV diagnosis disclosure process to children and adolescents living with HIV/AIDS. A case study was conducted in an outpatient clinic located in a public hospital in Rio de Janeiro through participant observation, semi-structured interviews with health professionals, and the consultation of documents produced by the professionals. The analysis, based on the sociology of Simmel and Goffman, points to the revelation of the diagnosis as a hallmark that accompanies all the care established with users and sheds light on issues such as secrecy, stigma and the possible understandings about the health condition established. As a result, institutionalized relationships contribute to a progressive contact with the condition of bearing a stigma and enable phases of a patient’s life protected by information to exist.

Key words:
HIV; Social stigma; Adolescent health; Child health

Introdução

Nos primórdios da epidemia de Aids no Brasil, a evolução clínica da doença era devastadora e a morte por doenças oportunistas não era apenas comum, mostrava-se como um destino para aqueles que descobriam ter o temido diagnóstico. A realidade das crianças infectadas por transmissão vertical não era diferente: havia uma alta taxa de mortalidade nos dois primeiros anos de vida e poucos poderiam alcançar a adolescência. Contudo, diversos esforços e investimentos em estudos e políticas públicas reduziram agravos e possibilitaram a redução da morbimortalidade e, consequentemente, o aumento da expectativa de vida11 Galano E, Turato ER, Delmas P, Côté J, Gouvea AFTB, Succi RCM, Machado DM. Vivências dos adolescentes soropositivos para HIV/Aids: estudo qualitativo. Rev Paul Pediatr 2016; 34(2):171-177..

Em relação ao panorama epidemiológico, destacamos que, entre 1980 e 2017, crianças e adolescentes de 0 a 19 anos representavam 4,9% dos casos de HIV/Aids notificados no país22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epidemiológico HIV/Aids. Vol. 49. Brasília: MS; 2018.. Segundo o Boletim Epidemiológico de 2021, a partir do ano de 2010 até os dias atuais, todas as regiões do Brasil apresentaram queda na taxa de detecção de HIV/Aids em menores de 5 anos. Importante destacar que a referida taxa é utilizada para monitoramento da infecção por transmissão vertical.

Diante desse quadro, desafios são impostos no campo da assistência individual aos que adquiriram o HIV por transmissão vertical, como a adequação ao tratamento, uma avaliação diferenciada da adesão, acompanhamento do crescimento e desenvolvimento e revelação do diagnóstico da doença33 Zanon BP, Paula CC, Padoin SMM. Revelação do diagnóstico de HIV para crianças e adolescentes: subsídios para prática assistencial. Rev Gaucha Enferm 2017; 37(Esp.):e2016-0040..

O processo de revelação do diagnóstico se insere como um conjunto de práticas específicas que fazem parte do cuidado ao público em pauta. Em documento recente do Ministério da Saúde44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em crianças e adolescentes. Brasília-DF: MS; 2018., a revelação do diagnóstico de HIV é descrita como um processo que precisa ser construído de maneira individualizada e em três grandes etapas: o primeiro momento é de compreensão e preparação da família; depois vem a nomeação; e então o acompanhamento das reverberações pós-revelação. Assim, a nomeação do vírus HIV é compreendida como uma etapa de um processo contínuo de cuidado. Tais orientações deixam clara a importância do processo como parte da assistência mais ampla àqueles que vivem com HIV. Entretanto, traz recomendações estanques que pouco se comunicam com o complexo circuito de assistência em que crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids estão inseridas, como a anamnese, os exames físicos e outros. Com isso, oculta a maneira com que os profissionais exercem seus cuidados cotidianos a esses usuários frente ao problema da tensão entre o segredo e a revelação do diagnóstico de HIV/Aids.

A revelação do diagnóstico de condições graves, como câncer, também representa desafios complexos, exigindo abordagem sensível e cuidadosa.

Em estudo de Afonso e Minayo55 Afonso SBC, Minayo MCS. Notícias difíceis e o posicionamento dos oncopediatras: revisão bibliográfica. Cien Saude Colet 2013; 18(9):2747-2756., são discutidos os desafios enfrentados pelos oncopediatras ao comunicar notícias difíceis. Com a adaptação do Protocolo Spikes em Spikes Junior66 Instituto Nacional de Câncer (INCA), Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. Comunicação de notícias difíceis: compartilhando desafios na atenção à saúde. Rio de Janeiro: MS; 2010., as autoras observam que a comunicação efetiva de notícias difíceis nesse contexto requer consideração pela capacidade cognitiva e emocional dos pacientes, suas necessidades, desejos e a participação familiar. Sublinham também a importância de identificar o profissional de maior vínculo com o paciente para realizar essa tarefa, bem como o uso de recursos lúdicos que acompanhem o desenvolvimento.

Embora haja semelhanças relativas à sensibilidade do tema e à adaptação da notícia para crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids e câncer, é importante reconhecer os desafios específicos no que cerca a revelação do diagnóstico de cada condição de saúde. Isso inclui a presença de estigmas distintos associados, bem como diferenças nos tipos de tratamento e prognóstico. Vale destacar que o tratamento do câncer não é facilmente ocultado da criança, ao contrário do tratamento com antirretrovirais.

Na literatura científica dedicada a explorar o processo de revelação do diagnóstico de HIV/Aids, encontramos reflexões sobre as dificuldades enfrentadas por usuários, pais/cuidadores e equipe profissional na construção do processo de revelação do diagnóstico para crianças e adolescentes com HIV/Aids por transmissão vertical77 Guerra CPP, Seidl EMF. Crianças e adolescentes com HIV/Aids: revisão de estudos sobre revelação do diagnóstico, adesão e estigma. Paideia (Ribeirão Preto) 2009; 19(42):59-65.

8 Mencarelli VL, Bastidas LS, Vaisberg TMJA. A difícil notícia do diagnóstico da síndrome de imunodeficiência adquirida para jovens: considerações psicanalíticas com base na perspectiva winnicottiana. Psicol Teor Prat 2008; 10(2):106-120.
-99 Marques HHS, Silva NG, Gutierrez PL, Lacerda R, Ayres JRCM, DellaNegra M, França I Jr, Galano E, Paiva V, Segurado AA, Silva MH. A revelação do diagnóstico na perspectiva dos adolescentes vivendo com HIV/AIDS e seus pais e cuidadores. Cad Saude Publica 2006; 22(3):619-629., sobre as reverberações desses processos nos adolescentes1010 Agostini R, Maksud I, Franco T. "Essa doença para mim é a mesma coisa que nada": socioantropológicas sobre o descobrir-se soropositivo. Saude Soc 2017: 26(2):496-509.

11 Brum CN, Paula CC, Padoin SMM, Souza IEO, Neves ET, Zuge SS. Revelação do diagnóstico de HIV para o adolescente: modos de ser cotidiano. Esc Anna Nery 2015; 19(4):679-684.
-1212 Brum CN, Paula CC, Padoin SMM, Zuge SS. Vivência da revelação do diagnóstico para o adolescente com HIV. Texto Contexto 2016; 25(4):2-7. e artigos que discutem a construção de instrumentos de apoio para a revelação diagnóstica para crianças e adolescentes que contraíram o HIV pela transmissão vertical33 Zanon BP, Paula CC, Padoin SMM. Revelação do diagnóstico de HIV para crianças e adolescentes: subsídios para prática assistencial. Rev Gaucha Enferm 2017; 37(Esp.):e2016-0040.,1313 Brondani JP, Pedro ENR. A história infantil como recurso para compreensao do processo saúde-doença pela criança com HIV. Rev Gaucha Enferm 2012; 34(1):14-21.

14 Galano E, Marco MA, Machado DM, Succi RCM, Silva MH. Entrevista com os familiares: um instrumento fundamental no planejamento da revelação diagnóstica do HIV/Aids para crianças e adolescentes. Cien Saude Colet 2012; 17(10):2739-2748.
-1515 Galano E, Marco MA, Silva MH, Succi RCM, Machado DM. Revelação diagnóstica do HIV/Aids para crianças: um relato de experiência. Psicol Cien Prof 2014; 34(2):500-511..

A revelação do diagnóstico nos leva a pressupor que há um segredo que a precede. Simmel1616 Simmel G. O segredo. Rev Pol e Trab 1999: 15:221-226. elabora considerações acerca das características sociológicas do segredo. Para o autor, o segredo é caracterizado pelo conhecimento de um e o desconhecimento de outro. Frente à intencionalidade da ocultação, passa a existir uma tensão quanto à revelação dessa informação ocultada, e o momento da revelação, portanto, é um momento de clímax, em que a tensão anterior desaparece1616 Simmel G. O segredo. Rev Pol e Trab 1999: 15:221-226.. Nessa circunstância, a interação humana é marcada pelos interesses de revelação e ocultação, com isso o segredo permeia e caracteriza a relação entre as pessoas ou grupos envolvidos. E, ainda, o segredo pode ser usado como estratégia.

No contexto de assistência às crianças e adolescentes vivendo com HIV, o status diagnóstico se torna um segredo que permeia e caracteriza as relações. O segredo se justifica devido aos medos dos pais e responsáveis: medo de precisar abordar outros segredos acerca da própria história de vida, de serem colocados em uma posição de culpados pela infecção transmitida, da criança/adolescente não ter capacidade de lidar com a informação e do preconceito caso a criança/adolescente revele o diagnóstico a terceiros. Portanto, o segredo é usado como estratégia de esquiva.

Essas preocupações dialogam com o estigma que ainda acompanha aqueles vivendo com HIV. O estigma, de acordo com Goffman1717 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988., é uma marca, um atributo depreciativo forjado na relação com estereótipos, e que evidencia algo a respeito da identidade moral de quem o tem. A “carreira moral” das crianças e adolescentes que vivem com HIV se assemelha ao que Goffman aponta como a “socialização de crianças estigmatizadas, porém protegidas pelo controle de informação”, inclusive das definições que as diminuem. Com isso, a revelação do diagnóstico é caracterizada pelo choque da identidade social virtual - uma identidade criada pelo individuo para se apresentar no meio social - e a identidade social real, que nada mais é que a forma com que as pessoas de seu convívio podem passar a vê-las.

Para esta pesquisa, exploramos as práticas de cuidado de profissionais de saúde frente às tensões do segredo e à revelação do diagnóstico de HIV para crianças e adolescentes, e investigamos seus impactos e reverberações por meio do suporte de Simmel e Goffman.

Métodos

Foi realizado um estudo de caso1818 Becker HS. Observação social e estudos de caso sociais. In: Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 117-133. em um ambulatório de doenças infecciosas pediátricas de referência na cidade do Rio de Janeiro - RJ em contexto de atenção à saúde de crianças e adolescentes com HIV/Aids .

Os dados foram produzidos entre os meses de maio e agosto de 2019, através das técnicas de observação participante, entrevistas com profissionais de saúde e consulta aos prontuários dos usuários e documentos produzidos e utilizados pela equipe de saúde.

A equipe de saúde era composta por uma médica responsável pelo ambulatório, do quadro da equipe permanente do hospital, uma médica contratada, três médicas em especialização, uma psicóloga, uma assistente social, uma nutricionista e, eventualmente, residentes das áreas não-médicas (todas as profissionais eram mulheres). Todas concordaram em participar da pesquisa.

O ambulatório atendia 36 crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids e todos os pacientes eram elegíveis, pois não estabelecemos critérios de exclusão. Solicitamos e tivemos o consentimento de 18 responsáveis para termos acesso ao prontuário das crianças e adolescentes.

Dos 18 prontuários, dez eram de meninas e oito de meninos. Três tinham idade entre 4 e 6 anos, outros cinco com idades de 9 a 12 anos, sete adolescentes de 13 a 15 anos e três com idades entre 16 e 18 anos.

Após a apresentação do estudo e seus objetivos para a equipe, as profissionais de saúde expressaram suas inquietações e os desafios na revelação do diagnóstico aos pacientes atendidos, compartilhando escolhas e estratégias adotadas (nos deteremos nestas no tópico seguinte). Além disso, organizaram dinâmicas para a apresentação da pesquisa e a obtenção de consentimento dos pais e responsáveis visando estratégias para não revelar o diagnóstico aos adolescentes sem conhecimento do diagnóstico.

A apresentação do projeto de pesquisa e do Termo de Consentimento à equipe de saúde e aos responsáveis das crianças e adolescentes assistidas configuraram momentos importantes da produção de dados. A pesquisa impulsionou conversas sobre a revelação do diagnóstico entre os profissionais e as famílias, o que foi precioso para a compreensão do campo e desenvolvimento do estudo. A análise dos dados foi baseada em categorias êmicas percebidas em campo, em diálogo com a literatura, e será apresentada mais à frente (Figura 1).

Figura 1
Esquema-síntese das categorias.

Reflexividade: sobre pertencimentos e produção de dados no campo da assistência

Agostini e Moreira1919 Agostini OS, Moreira MCN. Quando fazer pesquisa com crianças significa negociar com adultos: bastidores de uma pesquisa com crianças de seis anos em escolas. Cien Saude Colet 2019; 24(10):3753-3762. discutem o trabalho artesanal referente às negociações na interação entre diferentes pessoas na construção do acesso ao campo, em especial no que diz respeito às pesquisas com crianças. Em nosso estudo, a implicação e colaboração dos profissionais de saúde auxiliou nossa entrada em campo, e também impactou a dinâmica do próprio trabalho da equipe. Criou-se uma lista de prioridades para falar sobre a revelação do diagnóstico com os responsáveis pelos pacientes. Assim a produção dos dados de pesquisa teve início desde as etapas iniciais para viabilização do campo de trabalho.

É importante destacar que as autoras deste artigo apresentavam diferentes vínculos com o campo. Duas delas faziam parte da equipe de saúde, uma como psicóloga de referência e outra como psicóloga residente, à época. Neste artigo, exploraremos sobretudo a posição de psicóloga residente da primeira autora e sua relação com a produção de dados: uma pessoa que já esteve em outros setores daquele hospital mas entra em contato com aquele ambulatório pela primeira vez, não conhece a priori as regras de funcionamento, desconhece as maneiras instituídas de interagir naquele espaço, podendo estranhar o que era considerado familiar pela psicóloga de referência.

A atividade em campo foi realizada a partir de um duplo pertencimento como pesquisadora e psicóloga. Ao investigar as práticas de cuidado da equipe de saúde diante do segredo do diagnóstico, também participava como membro da equipe, com compromissos pertinentes à assistência em saúde. No entanto, não esquecíamos as diferenças entre o campo da pesquisa sobre a assistência e a prática em si2020 Deslandes SF, Gomes R. A pesquisa qualitativa nos serviços de saúde: notas teóricas. In: Bosi MLM, Mercado FJ, organizadores. Pesquisa qualitativa em serviços de saúde. Petrópolis: Vozes; 2004, p. 99-120..

O complexo lugar ocupado exigia cumplicidade com o segredo diagnóstico estabelecido. Com isso, a primeira autora foi afetada e movimentou-se segundo caminhos e rastros já estabelecidos previamente pela equipe. Dessa maneira, experimentava e seguia uma rede de regras (implícitas e explícitas). A partir dessa interação, aprendeu a quem a pesquisa poderia ser apresentada, se a criança/adolescente estaria presente e o motivo dessa decisão.

Os profissionais de saúde me explicam sobre cada um dos pacientes que iriam ser atendidos no dia. Esse momento precede as orientações quanto às dinâmicas necessárias para o pedido de assinatura do TCLE pelos pais dos responsáveis das crianças e adolescentes atendidos. Cada apresentação, cada pedido, se deu de forma única, quase personalizada de acordo com a forma com que a equipe compreendia as possibilidades sobre aquele caso. Em alguns momentos, o pedido para falar com os responsáveis se deu durante a consulta do paciente, enquanto este estivesse em atendimento, em outros se deu junto com o adolescente (quando este já conhecia seu status). Também aconteceu de precisarmos deliberadamente nos afastar do paciente, avisando a este que precisávamos falar com seu responsável sobre uma pesquisa e nos retirando para podermos falar o nome “HIV”, “segredo” e “revelação” sem que o paciente nos escutasse (diário de campo).

Para Despret2121 Despret V. Os dispositivos experimentais. Fractal Ver Psicol 2011; 23(1):43-58., “ter um corpo, é aprender a ser afetado”. E, “Ser afetado”, para Favret-Saada2222 Favret-Saada J. "Ser afetado". Cad Campo 2005; 13:155-161., é uma dimensão central do trabalho de campo. Essa compreensão foi um dos pontos cruciais para o andar desta pesquisa. Favret-Saada2222 Favret-Saada J. "Ser afetado". Cad Campo 2005; 13:155-161., em sua própria experiência de pesquisa, pontua: “[...] se eu tentasse ‘observar’, quer dizer, manter-me a distância, não acharia nada para ‘observar’” (p. 157). A observação participante não é entendida apenas com um “estar lá”. A participação tem relação com a possibilidade de me deixar afetar pelas questões emergentes ao campo e aos sujeitos que decidi acompanhar. Assim, compreendemos melhor como os profissionais se relacionavam com as pessoas frente ao contexto da informação do diagnóstico.

A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 10534319.1.0000.5269), respeitando a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa.

Resultados e discussão

Tomando como base as categorias êmicas e colocando-as em relação com o processo de tensão entre o segredo e a revelação a partir das considerações de Simmel1616 Simmel G. O segredo. Rev Pol e Trab 1999: 15:221-226., recorremos a Goffman1717 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988.,2323 Goffman E. A carreira moral do doente mental. In: Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva; 1974. p. 109-143. e à carreira moral do “doente” em sua relação com o estigma. O autor firma uma compreensão em que o “eu” é forjado diante de relações institucionais específicas que criam uma marca no destino social de um indivíduo. Para Goffman, pessoas que compartilham um estigma particular - tal como as crianças e adolescentes vivendo com HIV por transmissão vertical - podem ter experiências semelhantes quanto à sua carreira moral, ou seja, aprendem sobre suas condições e atravessam processos de socialização de formas similares. Na Figura 1, apresentamos o esquema teórico proposto para a interpretação dos dados.

A equipe divide os pacientes em três grupos que conformam diferentes tipos de cuidado e evidenciam aspectos relevantes acerca da relação instituída entre os profissionais e o paciente em meio à informação do diagnóstico. São estes grupos: a) as “crianças pequenas demais” para entender o diagnóstico; b) “crianças e adolescentes que poderiam conhecer” sua condição de HIV+ mas ainda não passaram pela revelação do diagnóstico; e c) adolescentes que já atravessaram o momento da revelação do diagnóstico.

Em diálogo com as reflexões de Simmel1616 Simmel G. O segredo. Rev Pol e Trab 1999: 15:221-226., pudemos chegar nas características principais dessas relações de cuidado frente ao status de conhecimento da informação diagnóstica: a) os cuidados são indiferenciados e o diagnóstico é ocultado de forma não-intencional; b) os cuidados são realizados de forma que o diagnóstico seja ocultado intencionalmente; c) passa a haver um mascaramento defensivo por parte de profissionais e responsáveis; d) a revelação do diagnóstico é finalmente feita, e o nome “HIV/Aids” passa a ser dito ao paciente.

A Tabela 1 apresenta nomes fictícios, idades e status do processo de revelação do diagnóstico, indicados por adesivos verdes e vermelhos nos prontuários. Isso permite identificar a etapa de cada criança no processo de revelação do diagnóstico.

Tabela 1
Status do processo de revelação do diagnóstico das crianças e adolescentes.

É importante mencionar que algumas crianças e adolescentes não têm adesivo na capa. Portanto, estão no grupo das “crianças pequenas demais” para conhecerem o diagnóstico, ou, como no caso de Renato, único paciente de transmissão horizontal, que já conhece o diagnóstico desde a testagem.

Um segredo sem intenção: “crianças pequenas demais” para entenderem o diagnóstico

Acabam se tornando um grupo de crianças que não têm condições, capacidade ainda de entender o que tem. [...] O diagnóstico, como falei, é proporcional à idade. Quando você fala para uma criança, que você vem ao médico, que você tem problema, tem uma doença, e que você precisa tomar o remédio porque você precisa crescer forte, bonito e tal, você tá dando o diagnóstico que ele pode digerir, suportar, entender, naquela faixa etária (Profissional 1).

A informação diagnóstica, portanto, é ocultada de forma não-intencional. O desconhecimento do diagnóstico de HIV/Aids não produz tensão pela possibilidade de revelação. No início da vida das crianças, o ocultamento do nome do diagnóstico revela apenas a incapacidade de compreensão da criança sobre aquela condição. As profissionais de saúde do ambulatório de HIV afirmavam a importância de guiar a revelação do diagnóstico por meio da curiosidade do paciente.

Não é você pegar uma criança de 6 anos e blearr [som e gesto que imita vômito]: “Olha, você tem HIV, sua mãe tinha HIV, morreu de HIV”. A criança não dá conta disso. É como você pode ir reconhecendo nesse outro sujeito a capacidade de ir cada vez mais entendendo, e respeitando isso. [...] A gente sempre orienta aqui a falar pouco e ver se o pouco que você falou é satisfatório para aquele paciente (Profissional 4).

As profissionais afirmavam a importância de manter uma sensibilidade sobre as condições da criança. Nesse caso, acompanham Moreira2424 Moreira MCN. E quando a doença crônica é das crianças e adolescentes? Contribuições sobre o artesanato de pesquisas sob a perspectiva da sociologia da infância e da juventude. In: Castellanos MEP, Trad LAB, Jorge MSB, Leitão IMTA, organizadores. Fortaleza: Editora UECE; 2015, p. 125-155. sobre a importância de gerenciamento das dependências, que são modificadas “conforme as exigências e responsabilidades que cabem aos diferentes ciclos de vida e faixas etárias”.

O tratamento da “criança pequena demais” era mediado pelos responsáveis, que organizam os horários de medicamentos, levam para as consultas, buscam os medicamentos. No entanto, a consulta médica a esse grupo de crianças parecia ocorrer direcionada aos responsáveis, que construíram narrativas sobre a condição de saúde dos filhos.

Cardim2525 Cardim MG. Adoecer e adolescer com HIV/AIDS: experiências de trajetórias terapêuticas [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira; 2012. sublinha que o tratamento das crianças vivendo com HIV é gerenciado por um adulto e, ao longo dos anos, paulatinamente, adquirem mais responsabilidade e ação no cuidado de si. Segundo Diniz2626 Diniz JJA. "Elixir forten" faz a gente vivem bem: redes de cuidado e as experiências de crianças que vivem com HIV/Aids [dissertação]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2016., as crianças podem participar ativamente do cuidado e da gestão de seus corpos, desenvolver competências e criatividades para compreender a doença que as acomete, podendo agir na administração de seu cuidado. Um ponto importante é a necessidade de orquestrar o cotidiano com as rotinas do tratamento e seus efeitos.

Quando não há um contrabalanço que permita um maior equilíbrio dessas vozes durante o tratamento, não tomando suas falas como potências, pode haver uma crescente dificuldade na participação desses na operação de mudanças sobre a maneira com que se apropriam de seu cuidado.

Incluir a criança no seu tratamento não significa impor mais responsabilidades ou informações do que ela pode suportar, mas sim fornecer espaços de fala em que a curiosidade e a participação no tratamento tenham lugar para emergir em algum momento.

Essa possibilidade ficava desvelada quando Jorge, um menino de 10 anos, era atendido e alterava essa ordem vigente. Diferentemente das outras crianças do ambulatório, não havia tido uma vida junto a cuidados médicos. Uma doença “aguda” que o levou à internação hospitalar em uma unidade de terapia intensiva tornou-se uma infecção crônica, ainda que não tenha acesso a esse nome para o que passou a viver. De repente, se deparou com uma rotina muito diferente da que conhecia. Jorge não tratava nada disso com a normalidade e habitulidade das outras crianças e adolescentes. Por isso mesmo, se impunha de maneira radical em seu próprio tratamento.

A cada consulta, sua médica comentava algo que a mobilizava. Falas e expressões do menino se faziam sempre presentes. Dizia que “ele estava amuado, parecia muito triste”. Em outro momento, no entanto, Jorge disse que o remédio o deixava enjoado, perguntou se poderia mudar para comprimido, afinal, entendia que já era grandinho para engolir. Também tirou suas próprias dúvidas e mostrou suas indignações, “Posso brincar normal? Minha mãe não deixa”. Depois, começou a lidar melhor com essas novas vivências. Sua médica falava feliz que “hoje ele chegou batucando!”.

Ele ainda não sabia que estava passando por um tratamento que vai perdurar por toda sua vida. Sempre perguntava se estava melhorando, quando poderia parar de tomar os remédios, se poderia reduzir a quantidade ou ajustar os horários. Os atendimentos a Jorge mostram que a inserção do paciente em seu próprio tratamento não é algo simples, porém fundamental para o andamento de um cuidado em saúde.

O segredo, nesse momento, não é o principal produtor de marcas na relação da equipe de saúde com as crianças pequenas. Porém, identificamos falas em códigos e meias-repostas marcando o início da primeira fase de uma “carreira do doente” diante do segredo. Nesse momento, a criança está protegida das definições que podem vir a estigmatizá-la por meio do controle da informação, tal como uma das carreiras morais descritas por Goffman1717 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988.. Goffman utiliza quatro modelos de carreira moral para os estigmatizados, sendo a condição das crianças e adolescentes que estudamos similar à carreira moral da “criança estigmatizada, porém, protegida pelo controle de informação”, nesse caso, a criança não tem acesso às definições que a diminuem.

Segredo em tensão: “crianças e adolescentes que poderiam conhecer” sua condição HIV+, mas não passaram pela revelação do diagnóstico

Esse para mim é o pior grupo. Porque são os pacientes que já têm condição de saber - que a gente acha que muitos já sabem -, e a gente “tá” cheio de paciente hoje que quer saber, tem interesse em saber, e não é contado. Não é dado o direito deles de saber (Profissional 1).

Com a fala destacada acima, temos a notícia de que esse grupo não é homogêneo em relação à posição diante do conhecimento diagnóstico. Encontramos três subdivisões nesse grande grupo apontado pelos profissionais: a) não têm conhecimento de que algo está sendo ocultado; b) têm conhecimento sobre um ocultamento, porém desconhecem seu conteúdo; ou c) conhecem a informação, porém precisam manter o silêncio estabelecido nas interações com profissionais e familiares, conforme a Figura 1.

Porém, de forma homogênea, frente a esse grupo, os familiares e profissionais de saúde ocultam intencionalmente o diagnóstico. Quando as crianças ou adolescentes parecem chegar mais perto da informação diagnóstica, aqueles que desejam manter o segredo diagnóstico lançam mão de estratégias de ocultamento, caracterizando um mascaramento defensivo, tal como discutido por Simmel1616 Simmel G. O segredo. Rev Pol e Trab 1999: 15:221-226..

A equipe de saúde reconhece um padrão de atendimento forjado pela tensão da existência de um segredo. Ao dialogar com as reflexões de Simmel1616 Simmel G. O segredo. Rev Pol e Trab 1999: 15:221-226., podemos pensar que o segredo posto - que diz delas - é ocultado através de um acordo entre seus próprios responsáveis e os profissionais de saúde. Esse acordo pressupõe uma intencionalidade para os atores envolvidos na ocultação da informação. Nesse caso, a própria revelação também ganha mais relevância.

Os familiares, por sua vez, podem forçar o prolongamento desse encobrimento. Assim, o mascaramento vai se tornando cada vez mais elaborado, com o intuito de evitar a revelação.

[...] ele começa a perguntar, e a cada vez que o paciente pergunta a família tem que encontrar uma maneira de lidar com aquilo, e muitas vezes a maneira de lidar com aquilo não é verdadeira. Então, para além do segredo, por isso que a gente diz que o HIV é uma doença que traz muitos segredos, ela traz muitos segredos atrás um do outro, é o segredo de como a mãe se contaminou, como foi. Então são vários outros, então como se mantém esse segredo para a criança não saber, então você vai indo. Tem uma sequência de pequenas mentiras ou omissões que foram colocadas (Profissional 4).

A equipe de saúde, nesse sentido, precisa manejar essa informação com cuidado para evitar conflitos com os familiares e preservar o vínculo com a equipe e a instituição de saúde.

Podemos ver o difícil e prolongado manejo registrado no prontuário de Vanessa:

Dia 15/9/2015

Vanessa não sabe do diagnóstico. Questiona sobre sua doença, mas os pais contam que se trata de uma suposta cefaleia. Não começam a TARV devido à pouca adesão.

Dia 6/2/2018

Pai relata dificuldade de trazer criança e aderir ao tratamento, pois tentam “poupar” Vanessa.

Dia 10/4/2018

Intercorrências: estava inicialmente desanimada na consulta, relatando “cansaço”. Depois de um tempo, soltou-se e falou sobre escola, amigos, medicações e família. Contou que às vezes um prof. não deixa ela sair para tomar remédio quando o recreio atrasa. A mãe de Vanessa ligou e solicitou que a liberassem para tomar os ARVS.

Dia 6/11/2018

Vanessa está namorando, os pais estão cientes. Medicação: passou a ter boa adesão em jan. 18. Conduta: oriento quanto à necessidade de proteção caso inicie vida sexual (embora não saiba do diagnóstico).

Conversaremos com a família sobre a urgência de se revelar o diagnóstico, visto que Vanessa já está se relacionando (embora negue sexo) e não saiba seu status.

Dia 25/6/2019

Profissional X conversou com o pai sobre a importância da revelação diagnóstica em função da faixa etária. Pai comparecerá no próximo, digo, em breve, para conversar com psicologia sobre como revelar diagnóstico.

Um dos dispositivos utilizados pela equipe de saúde para acompanhar o processo de revelação diagnóstica era um adesivo colocado na parte interna do prontuário, na contracapa, a partir dos 12 anos da criança. Um adesivo vermelho para os que não passaram pela revelação do diagnóstico e um adesivo verde para os que já conhecem seu diagnóstico. Os adesivos de bolinhas vermelhas funcionavam como interdição ao profissional de saúde para a nomeação “HIV/Aids” em atendimento ao seu paciente.

Aqueles que já têm idade, interesse, e a família se recusa a falar, eu não posso falar, ninguém pode falar. Então o que eu aviso à família é que eu não vou falar, mas não vou esconder. Antigamente, a gente botava papel em cima, entregava receita escondida da mãe. Não. Não vou mais fazer isso. Aviso à família: não vou mais fazer isso. [...] Ele não sabe, ela não sabe que tem HIV, eu não vou contar, mas eu também não vou esconder (Profissional 1).

O silenciamento, no entanto, é o suficiente para unificar algumas experiências desse grupo, como as dificuldades nas consultas.

[...] quanto ao paciente que não sabe do diagnóstico, a consulta vai correndo e não se fala. Tem uma coisa que é um pouco acobertada. Não se fala um nome. Não se fala. E como não se fala, algumas coisas não se pode falar demais, não se pode perguntar demais. Então fica uma coisa meio... mais “Como você tá? Como vão as coisas?” (Profissional 4).

Os profissionais relatam uma consulta incompleta devido à ausência do nome da doença, pois entendem que não podem avançar em alguns temas que poderiam denunciar o diagnóstico, como falar diretamente sobre os resultados dos exames e até mesmo sobre a importância do medicamento para aquela condição de saúde. Além disso, as crianças e adolescentes que desconhecem o que as trazem às consultas médicas têm pouca participação nas decisões sobre seu cuidado.

HIV/Aids, nome e sobrenome: adolescentes que passaram pelo momento de revelação do diagnóstico

Simmel atenta para a tensão que existe e acaba no momento da revelação, que é um momento de clímax. Como diz a profissional, revelar o diagnóstico “é poder dar o nome e o sobrenome da doença. Falar que é HIV/Aids”.

Chegamos ao entendimento de que a revelação do diagnóstico é o momento em que o nome HIV/Aids e tantos outros nomes que o denunciariam deixam de ser tomados como segredo.

Vamos supor. Chega a mãe de Mariazinha dizendo que contou. Então antes da Mariazinha ser atendida, a gente conversa com o responsável e pergunta absolutamente tudo. Quem contou, como foi, como que a Mariazinha reagiu. Como que ela tá no momento depois do diagnóstico. [...] Então, como a Mariazinha já sabe, a medicação vai ser dada na mão da Mariazinha. “Viu, Mariazinha, zidovudina que você toma, é esse. Esse é esse”. Por exemplo: carga viral. Antes eu mostrava que o exame tá bom, a gente vai ver junto [falava], “Olha como você melhorou, você tá vendo? Antes você tinha tantos mil vírus”, aí os nomes aparecem. Não é “Ah, o exame tá bom, o exame veio negativo” - essa é a informação para quem não sabe. Para quem sabe, não. [Para quem sabe, dizemos] “Você não tem nenhum vírus circulante, suas células de defesa estão excelentes, então você não pode pegar nenhuma infecção oportunista” (Profissional 1).

A revelação do diagnóstico não se refere necessariamente ao conhecimento do diagnóstico por parte da criança ou do adolescente. Os profissionais de saúde falam sobre as mudanças acarretadas nesse novo momento de atendimento.

Quando eles sabem, é uma consulta muito mais produtiva. Acho que você consegue conversar com ele mais diretamente [...] eles já sabem do risco, porque já sabem da doença e de todos os cuidados que se deve ter. Acaba com aquela mentirinha, “Ah, é uma doença no sangue”, dependendo do que a família inventa (Profissional 2).

O conhecimento do diagnóstico permite tratar de aspectos importantes no cuidado. Os nomes começam a aparecer, os significados dos exames, a importância do acompanhamento em saúde, e os profissionais têm mais de espaço para dividirem suas expertises e incluir o paciente de maneira mais efetiva.

Assim como Goffman1717 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988.,2323 Goffman E. A carreira moral do doente mental. In: Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva; 1974. p. 109-143., entendemos que essa nova visibilidade altera a existência institucional do eu. Diante do saber sobre o HIV, descobrem também que têm algo que nem mesmo eles puderam saber, compreender e falar por grande parte de suas vidas, reorganizando a maneira como compreendem o passado.

Mesmo assim, apesar dos relatos anteriores, a relação entre paciente e profissionais nem sempre é facilitada pelo saber do diagnóstico, pois as marcas do segredo persistem.

Como Marcela já conhecia seu diagnóstico, pareceu natural que a apresentação da pesquisa se desse junto da adolescente. Ainda assim, sentia o incomodo gerado a cada vez que eu falava “HIV/Aids”. Perguntei se ela ou sua mãe tinham alguma dúvida. Não tinham. Sua mãe assinou o termo e Marcela parou de dirigir seu olhar a mim. Depois, me contam que Marcela, apesar de saber sobre o diagnóstico, não apresenta dúvidas nem fala sobre ele. Mesmo assim, passou a dizer que tem nojo da medicação específica para o HIV, ainda sem nomeá-lo. O esconde no sorvete, caso contrário, não consegue tomar (diário de campo).

Portanto, mesmo diante de um saber acerca do diagnóstico, as relações ainda podem se dar sob uma trama silenciosa e o nome HIV/Aids pode continuar a não se fazer presente. Para Marcela, a revelação por si só não gerou maior motivação e desejo de fala durante as consultas médicas. Em um curto espaço de tempo, logo após a revelação, não foi observado uma alteração significativa na dinâmica da consulta médica.

Em consonância com Goffman1717 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988., podemos dizer que nesse momento o adolescente aprende que tem um estigma particular, e as consequências de tê-lo. No entanto, ao mesmo tempo, ele passou sua vida no que o autor chamou de “círculo encantado”, longe de definições que o diminuíam. Para o autor, essa categoria de estigmatizados - pessoas que aprendem muito tarde que sempre foram desacreditáveis - ouviu e aprendeu acerca de normas e estigmas antes de ser obrigada a olhar a si mesma dessa maneira. Os “desacreditáveis” têm características distintas, mas não facilmente conhecidas ou perceptíveis. Caso a informação seja revelada, a imagem sustentada é desacreditada. Crianças e adolescentes com HIV/Aids podem ter dificuldade de compreender sua condição, pois antes eram protegidos da informação e agora enfrentam a tensão da manipulação da informação. Ao adiar a informação do diagnóstico de HIV/Aids para crianças e adolescentes, a condição de saúde pode ser associada a algo desprezível. Goffman1717 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988. diz que “é provável que tenham um problema todo especial em identificar-se e uma grande facilidade para se autocensurarem” (p. 32). Quando o segredo do diagnóstico é duradouro e bem elaborado, a mensagem de descrédito é passada para os adolescentes, que entram em contato com o fato de se desviarem da norma.

Frente a esse novo conhecimento (ou abertura para falar sobre HIV/Aids), a equipe de saúde possibilita ao adolescente expressar suas dúvidas e questões relacionadas à condição de saúde, a medicamentos, exames, sexualidade e reprodução.

Considerações finais

Por meio do suporte de Simmel1616 Simmel G. O segredo. Rev Pol e Trab 1999: 15:221-226. e Goffman1717 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988.,2323 Goffman E. A carreira moral do doente mental. In: Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva; 1974. p. 109-143., este estudo de caso pretendeu compreender como os profissionais de saúde exercem suas práticas de cuidado em meio às tensões do segredo e à revelação do diagnóstico de HIV para crianças e adolescentes.

Revelando, no gerúndio”, foi como um dos participantes da pesquisa explicou sobre como o processo de revelação do diagnóstico vai acontecendo: aos poucos, continuamente e de forma duradoura. Essa interpretação está alinhada com a discussão proposta por Rosemberg2727 Rosenberg CE. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience. Milbank Q 2002; 80(2):237-260., que enfatiza o diagnóstico como um processo coletivo, cumulativo e contingente, apesar de geralmente considerado como um momento específico no tempo. O autor considera o diagnóstico essencial para a definição e gestão da doença, estabelecendo uma ligação entre indivíduo e sistema social, além de operar como ritual de vínculo e comunicação médico-paciente.

No presente estudo de caso, as crianças e adolescentes estão inseridas no processo burocrático da doença, mas desconhecem as razões que as colocam nesse circuito. Rosemberg2727 Rosenberg CE. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience. Milbank Q 2002; 80(2):237-260. faz a seguinte afirmação: “o diagnóstico continua sendo um ritual de revelação: uma cortina é posta de lado e a incerteza é substituída - para melhor ou para pior - por uma narrativa estruturada” (p. 255). Entendemos que a narrativa estruturada ainda não lhes foi claramente apresentada, mas os afeta de outras formas, através de cuidados diários e medicações, por exemplo.

Portanto, o processo de revelação do diagnóstico marca todo o cuidado estabelecido com os usuários, e as relações instituídas pelo segredo contribuem para um progressivo contato com a condição de portador de um estigma.

A visibilidade do HIV tem sido apontada como uma importante estratégia para o enfrentamento ao estigma2828 Cruz MLS, Bastos FI, Darmont M, Dickstein P, Monteiro S. The "moral career" of perinatally HIV-infected children: revisiting Goffman's concept. AIDS Care 2015; 27(1):6-9.. Com isso, compreendemos que atividades como rodas de conversa, inserção em movimentos sociais e discussões sobre o estigma com responsáveis são ações possíveis para que essa problemática não se estenda até tão tarde na vida dos adolescentes vivendo com HIV. A tensão causada pelo segredo do diagnóstico pode agravar os significados estigmatizados aos olhos das crianças e adolescentes. Diante disso, compreendemos a importância do enfrentamento à discriminação junto às famílias (que carregam seus próprios medos e preconceitos), bem como a participação ativa das crianças e adolescentes no cuidado. Assim, o conhecimento do diagnóstico pode ser mais conectado ao processo de cuidado das crianças.

Vale apontar que em nossa investigação não escutamos as crianças e adolescentes propriamente ditas e suas experiências. Ainda assim, a pesquisa abriu espaço para que os profissionais de saúde refletissem sobre suas ações frente aos desafios da revelação do diagnóstico de HIV/Aids para crianças e adolescentes, fomentando a criação de novas estratégias e condutas da equipe. Isso inclui a atualização e ampliação de documentos construídos pela equipe que fornecem orientações para os atendimentos clínicos.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ, por viabilizar o apoio para esse artigo, no âmbito da Oficina de Artigos (nº do processo: E-26/211.040/2021), bem como a leitura e sugestões de Marcos Nascimento naquela ocasião.

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  • Financiamento

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ.

Editores-chefes:

Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Publicado
    23 Ago 2023
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