Resumo
A invisibilidade é uma questão que necessita de maior atenção entre os profissionais de saúde, pois algumas atividades na Atenção Primária passam despercebidas. Um exemplo é a oferta de terapias complementares, cuja implementação tem sido frágil e, consequentemente, pode ser invisibilizada no Sistema Único de Saúde. Este estudo visa compreender os fatores que contribuem para a invisibilidade pública das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária. Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória e qualitativa, envolvendo entrevistas semiestruturadas com 20 profissionais na Região Metropolitana de Goiânia. A análise de conteúdo temática foi aplicada às entrevistas, revelando elementos que indicam a invisibilidade pública dessas práticas, como a falta de discussão nas reuniões de equipe, a desuniformidade no registro nos prontuários dos usuários e a baixa priorização na implementação. Nas entrevistas, a humilhação social, produto da invisibilidade pública, também pode ser percebida devido à sobrecarga, constrangimentos e falta de espaço físico para a oferta das práticas aos usuários. Conclui-se que as Práticas Integrativas e Complementares são frequentemente invisibilizadas na Atenção Primária.
Palavras-chave: Terapias Complementares; Atenção Primária à Saúde; Pessoal de Saúde
Abstract
Invisibility is an issue that requires more attention among healthcare professionals, as some activities in Primary Care go unnoticed. One example is the offer of complementary therapies, whose implementation has been frail and, consequently, can be overlooked in the Unified Health System. This study aims to understand the factors contributing to the public invisibility of Integrative and Complementary Practices in Primary Care. It is a descriptive, exploratory, and qualitative research involving semi-structured interviews with 20 professionals in the Metropolitan Region of Goiânia. Thematic content analysis was applied to the interviews, revealing elements indicating the public invisibility of these practices, such as insufficient discussion in team meetings, inconsistency in the recording in user files, and low prioritization in implementation. In the interviews, social humiliation, a product of public invisibility, can also be perceived due to overload, embarrassments, and lack of physical space for the provision of practices to the users. It is concluded that Integrative and Complementary Practices are often overlooked in Primary Care.
Key words: Complementary Therapies; Primary Health Care; Health Personnel
Introdução
A institucionalização das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), em 2006, por meio da aprovação da Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), foi um grande marco para a saúde pública no Brasil1. Este documento incluiu cinco racionalidades médicas ao rol dos serviços ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS): a Homeopatia, a Medicina Tradicional Chinesa; a Fitoterapia; a Medicina Antroposófica e o Termalismo/Crenoterapia. Em 20172 e 20183, outras PICS foram adicionadas a PNPIC, totalizando, então, 29 práticas terapêuticas contempladas e oferecidas, preferencialmente, na Atenção Primária à Saúde (APS).
De fato, existe uma interface entre a APS e as PICS4. Os sistemas informacionais de dados da saúde ratificam tal afirmação. Em 2018, segundo o Sistema de Informação de Saúde para a Atenção Básica (SISAB), elas estavam presentes em 4.159 municípios brasileiros, sendo 90% delas implementadas na APS5. De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), em 2020, 78% da oferta encontrava-se na APS6. Essa afinidade pode ser explicada pela pluralidade de princípios norteadores e ferramentas de cuidado compartilhados pela APS e PICS, como a integralidade do cuidado, o acolhimento centrado na pessoa, o estímulo à autonomia do indivíduo no seu autocuidado, o fortalecimento do vínculo, a escuta acolhedora, a horizontalidade da comunicação, o resgaste do toque e do afeto e a valorização da orientação comunitária7.
Entretanto, os profissionais de saúde ofertantes de PICS costumam enfrentar problemas de ordem política dentro das Unidades Básicas de Saúde (UBS) ao oferecer um cuidado “diferente” do convencional no seu trabalho8-10. A gestão da oferta de serviços tem sido conduzida pelos profissionais, contudo, enfrenta desafios devido à falta de apoio por parte dos gerentes das UBS e à necessidade de financiamento próprio para a aquisição de materiais essenciais à implementação do atendimento. Não obstante, aqueles que se dedicam a proporcionar um cuidado mais acolhedor e humanizado, em contraposição à frieza dos procedimentos técnicos da medicina contemporânea ocidental, não veem a precarização do trabalho como um obstáculo significativo. Estes profissionais têm como objetivo primordial oferecer um cuidado integral, voltado para a satisfação das necessidades e a mitigação do sofrimento daqueles que buscam os serviços de saúde que oferecem. Nesse contexto, o enfrentamento dos desafios associados à precarização do trabalho é encarado como uma parte inerente ao compromisso desses profissionais com a promoção do bem-estar e da qualidade de vida dos pacientes.
Posto isto, a partir do estudo realizado com garis da Universidade de São Paulo foi desenvolvida a noção de invisibilidade pública11, que é definida como uma cegueira psicossocial, na qual as pessoas possuem trabalhos desvalorizados e, consequentemente, são relegadas12,13. Um produto da invisibilidade, a humilhação social, é desenvolvida com a desvalorização e a diminuição da importância das ações produzidas. São palavras expressas e mensagens subliminares que podem até não ser percebidas conscientemente, mas que são sentidas. Com ela são retiradas as oportunidades de crescimento, de desenvolvimento, da produção de conhecimento e de cidadania, bem como a eliminação do sentimento de ter direitos11-14.
A invisibilidade pública e a humilhação social acontecem em grupos minoritários e com menores direitos sociais15,16. Logo, tais fenômenos ocorrem com trabalhadores da varrição17, da limpeza18, donas de casa19, catadores de materiais recicláveis20 e agentes de endemias21. Mas também, Oliveira22 identificou a ocorrência desses fenômenos sociais sofridos pelas agentes comunitárias de saúde executantes de Lian Gong, uma ginástica corporal oriunda da Medicina Tradicional Chinesa, na Região Metropolitana de Campinas.
Nesse contexto, parece ser bastante ousado prestar um “outro” cuidado nas instituições de saúde diante desse cenário pouco propício ao “diferente”. Ao mesmo tempo, esse louvável atrevimento em oferecer PICS aos usuários, pode revelar estranhamentos, tensões, conflitos, separações e constrangimentos aos profissionais de saúde que as ofertam nos serviços. Assim, as PICS assumem uma “integração precária”, pois podem evidenciar uma separação entre os profissionais “de dentro”, vinculados a biomedicina, e os “de fora”, que desenvolvem práticas não protocolares.
Adicionalmente, a precariedade do trabalho com PICS na APS é evidenciada pelo conflito existente entre a realização dessas práticas e outras atividades consideradas prioritárias nos serviços de saúde. O acúmulo de funções por parte dos profissionais que oferecem essas práticas, aliado ao elevado número de usuários atendidos em grupos por um único profissional, representa um desafio significativo, potencialmente comprometendo a qualidade do atendimento prestado. A sobrecarga de responsabilidades e a escassez de recursos humanos podem gerar impactos adversos na eficácia das PICS na APS. A necessidade de equilibrar diferentes demandas e a alta demanda por parte dos usuários podem resultar em uma prestação de serviços menos eficiente e individualizada, afetando negativamente a experiência do paciente e a efetividade das práticas adotadas22,23.
Dessa forma, esses achados podem corroborar ainda mais nosso pressuposto de que a invisibilidade possa estar acontecendo também com os profissionais ofertantes de PICS, pois sua implementação na APS pode sinalizar o crescimento da ordem contra hegemônica do cuidado em saúde e pela experiência de constrangimentos praticados pelos outros trabalhadores que compõem a equipe multiprofissional24,25. É nesse sentido que este estudo se apresenta, culminando com a seguinte pergunta: quais fatores produzem humilhação social e invisibilidade pública das PICS na APS? À vista disso, o objetivo do artigo é compreender a existência de fatores que indicam a produção de invisibilidade pública das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde da Região Metropolitana de Goiânia (RMG), Goiás, Brasil.
Métodos
Trata-se de uma análise descritiva, exploratória e com abordagem qualitativa, desenvolvida com os resultados de uma dissertação de mestrado intitulada Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde: Percepções dos profissionais sobre a oferta dos serviços na Região Metropolitana de Goiânia oriunda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Goiás sobre os sentidos que os profissionais de saúde atribuem à oferta das PICS na APS. A pesquisa também integra o macroprojeto, cujo título é Práticas Integrativas e Complementares nos serviços de Atenção Primária em Saúde - Região Metropolitana de Goiânia. Este estudo representa também a versão estendida do texto publicado nas Atas do Congresso Ibero-Americano de Investigação Qualitativa (CIAIQ 2022)26.
Nesse projeto, três municípios foram excluídos: dois secretários municipais de saúde não autorizaram a realização do estudo e um não respondeu se consentia com o desenvolvimento da pesquisa ou não. Segundo o CNES27, nos 17 municípios participantes da pesquisa, há 234 serviços de APS. Destes, 54 não participaram do estudo, pois não estavam em funcionamento (reforma predial e/ou não foram contactados via telefone). Foi realizado um censo com os gerentes de 180 serviços dos municípios da RMG para identificar quais profissionais as implementavam na APS. No que se refere ao segundo semestre de 2017, existiam 23 serviços, nos quais 29 profissionais ofereciam alguma PICS, em cinco cidades na RMG.
Dos 29 identificados, 22 trabalhadores, respeitavam nosso critério de inclusão: profissionais de saúde que oferecem alguma PICS na APS na RMG. Sete profissionais não participaram do nosso estudo: uma se recusou a participar; três não foram contatados e três havia encerrado a disponibilidade da PICS na sua UBS. Nosso critério de exclusão eram aqueles profissionais de saúde que, por motivo de falta, férias ou licença de qualquer natureza, não estavam nos serviços de APS na RMG, no período de coleta de dados que compreendeu os meses de janeiro a agosto de 2018. Assim, duas profissionais foram excluídas, pois ambas estavam de licença-prêmio. Por fim, nosso estudo contou com a participação de 20 profissionais, de 14 serviços de APS, em três municípios na RMG.
Decidimos realizar a coleta de dados com todos os profissionais que se enquadrassem e concordassem em participar do estudo, por considerarmos que não poderíamos desprezar informações ímpares, que se destacariam e com experiências singulares, sendo que seu potencial explicativo poderia ser importante para as descobertas das lógicas internas nesse grupo. Consideramos, também, privilegiar os trabalhadores da saúde da APS na RMG que detinham os atributos, características, experiências e expressões, capazes de satisfazer nossa pergunta de pesquisa28.
A coleta dos dados foi feita por entrevistas semiestruturadas, isto é, guiadas por um roteiro previamente elaborado abordando questionamentos básicos e pertinentes à investigação. Optamos por essa estratégia metodológica por ser a mais comumente utilizada nas pesquisas envolvendo os sentidos, percepções dos profissionais da APS acerca das PICS29,30. Além disso, a entrevista possibilita aprofundamento dos conhecimentos acerca do objeto pesquisado, por propiciar ajuste contínuo do processo com base em perguntas e respostas, diálogos e reflexões, os quais emergem da interação31. O instrumento utilizado para coleta de dados constou de quatro módulos, quais sejam: perfil sociodemográfico; processo de formação; trabalho com as PICS; e valorização das PICS na UBS.
As entrevistas foram conduzidas por um único pesquisador, do sexo masculino, discente de um programa de mestrado em saúde coletiva e fisioterapeuta de um posto de saúde da família pertencente a um município que integra a RMG. Entretanto, este município não ofertava PICS em suas UBS. Com isso, o pesquisador não conhecia ou tinha contato prévio com os pesquisados. Cabe ressaltar que o entrevistador tinha experiência pregressa com a realização de entrevistas estruturadas em outros projetos de pesquisa. Diante disso, julgamos não haver necessidade de preparação ou treinamento do pesquisador, por ele estar familiarizado com este tipo de coleta de informações junto aos participantes em outros estudos.
Os participantes foram convidados a participar do estudo pelo pesquisador por meio de contato telefônico. Neste momento, foram apresentadas as credenciais do pesquisador como mestrando e membro da equipe do macroprojeto de pesquisa. Nesse primeiro contato, também foi informado ao entrevistado(a) de que se tratava de uma pesquisa para a conclusão do mestrado do pesquisador, assim como a finalidade, riscos e benefícios da pesquisa. Diante do aceite, foram agendados dias e horários para as entrevistas, nos locais de trabalho dos profissionais.
Posteriormente, realizamos a visita reforçando os objetivos do estudo, garantindo o anonimato e sigilo das informações. Diante da concordância, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para ser lido e assinado. Os direitos dos participantes foram protegidos mediante a informação de todos os aspectos relevantes da pesquisa, incluindo seus riscos e benefícios. Conforme previsto pelas Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde e Ministério da Saúde, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás sob o parecer nº 2.057.783. Durante a entrevista, realizada em consultórios médicos da UBS, não havia mais ninguém presente além do pesquisador e do participante. As entrevistas tiveram uma duração, em média, de 45 minutos, foram audiogravadas e transcritas na íntegra.
Utilizamos as duas primeiras entrevistas, também, com o objetivo de verificar possíveis inconsistências, complexidades das questões, ambiguidades ou linguagem inacessível, existência de perguntas que causassem algum embaraço ao entrevistado, incoerência na ordem das perguntas, se as questões eram demasiadamente numerosas e observar se o tempo de duração previsto seria adequado ou não. Não houve a necessidade de adaptação do instrumento, pois observamos que as entrevistas tinham uma duração satisfatória e capaz de apreender as informações necessárias para responder nossas perguntas de investigação.
Os dados obtidos foram analisados por meio da Análise de Conteúdo Temática32. Utilizamos um programa de apoio à análise qualitativa o software NVivo© Plus versão 12, o qual auxiliou na organização dos dados, possibilitando uma análise mais padronizada e permitindo a análise por mais de um pesquisador. Atribuímos a cada transcrição das entrevistas com a letra “P”, acrescida do número atribuído a cada participante da pesquisa correspondendo a ordem de realização do convite.
Iniciamos com a pré-análise para organizar o material a ser analisado, proporcionando o primeiro contato e o momento em que começamos a conhecer os conteúdos dos documentos transcritos da coleta de dados, por meio da leitura flutuante. Em seguida, fizemos a exploração do material, em que, nessa fase, se deve recorrer ao processo interpretativo para a formação das categorias. Nessa etapa, foram identificados os códigos com semelhanças quanto ao critério semântico e selecionados os fragmentos de textos que, de fato, representavam os argumentos mais significativos. Logo, realizamos a codificação pelo método dedutivo, ou seja, à anteriori, em que a categorização foi realizada de maneira prévia. A Figura 1 ilustra as categorias temáticas decorrentes dos códigos. A última etapa de análise dos dados, consistiu no tratamento dos resultados obtidos e nas interpretações seguindo os objetivos propostos à luz dos conceitos de humilhação social e invisibilidade pública baseados nos estudos de Costa11 e Gonçalves Filho12,13.
Síntese dos códigos e categorias temáticas a partir do conteúdo das entrevistas com os profissionais da Atenção Primária à Saúde da Região Metropolitana de Goiânia ofertantes de Práticas Integrativas e Complementares entre os meses de janeiro a agosto de 2018.
Resultados e discussão
Foram entrevistados 20 profissionais de saúde. As características sociodemográficas dos participantes do estudo estão relatadas na Tabela 1.
A humilhação social dos profissionais ofertantes das Práticas Integrativas e Complementares da Atenção Primária à Saúde
A humilhação social é um fenômeno constitutivo da invisibilidade pública, em que os indivíduos são acometidos pela angústia, por ser afetado pelas ações do outro em relação ao seu trabalho. As pessoas se sentem menosprezadas por quem as inferioriza13,16. Na nossa análise, essas palavras significam que existe uma relação de desequilíbrio e desiguldade, do suposto ser superior - os profissionais da biomedicina - em comparação com o ser “inferior” - os operadores das PICS.
Isso se torna bem evidente quando os profissionais têm o direito de realizar as PICS no dia estabelecido para tal, porém, nem sempre é respeitado, pois não podem se ausentar dos serviços devido às tarefas tidas como prioritárias pela gerência da UBS e os gestores da SMS. Portanto, existe uma subordinação hierárquica e controversa nos processos de trabalho destes profissionais. Eles têm uma certa autonomia para oferta, contudo, não possuem independência para escolher quais atividades devem priorizar na UBS.
Desse mesmo modo, as enfermeiras executantes da Auriculoterapia nas UBS sentem-se sobrecarregadas, pois não podem abandonar a realização de outras atividades, consideradas básicas no processo de trabalho na APS. Uma delas afirmou que:
Estava ficando um pouco difícil, porque até a gestora veio conversar: “olha, tem os outros grupos”. Aí como estavam querendo que aumentasse a quantidade de eu pôr os pontinhos [a auriculoterapia], eu falei assim: “não, não dá” (P14).
Essas profissionais vivenciam um processo de sobrecarga que se soma aos diferentes formatos de desvalorização do seu trabalho. Embora percebam as consequências do acúmulo de tarefas e rebaixamento social, elas não enfatizam o seu direito de “reclamar”, de reivindicar melhores condições de trabalho, possivelmente por uma submissão inconsciente e o sentimento de não possuir (ou possuir menos) direitos15,33. Os relatos de uma psicóloga que oferta Terapia Comunitária acrescentam mais detalhes sobre os obstáculos vivenciados para desenvolver as PICS na APS. As narrativas mostram que a dificuldade de liberação para se ocupar das PICS é também relacionada com uma descrença sobre a prática. Como afirmou,
Eu não sinto uma valorização do trabalho. Quando eu falei para eles [equipe] que eu estava querendo treinar e sensibilizar as pessoas para ocupar esse lugar de liderança que hoje eu ocupo [na Terapia Comunitária] [...] eu fui “malhada” até dizer chega. Quando eu fui falar sobre essa possibilidade, as duas colegas que tem formação, pós-graduação em Terapia Comunitária, [disseram:] “não, você tá jogando o meu diploma no lixo”. Então, se eu quero fazer Terapia Comunitária é porque eu quero. Porque o meu trabalho tinha que ser aqui nas quatro paredes (P5).
Claro que essa “barreira”, com o tempo, ganha a dimensão de um golpe sutil, uma mensagem que vai minando suas forças, seu desejo, sua vontade. Um sentimento de angústia, de desvalorização, de desinvestimento, de solidão. Em suas palavras:
Não sou especialista em Terapia Comunitária, mas eu faço isso com muito carinho, com muito gosto e gosto do que faço e vejo que tem um resultado, ninguém quer pôr a mão, ninguém quer trocar. Você está gostando de fazer? Então, continue fazendo (P5).
Observa-se em seus relatos um misto de satisfação e reconhecimento de sua importância no trabalho, mas também um sentimento de angústia pelo desrespeito e desconsideração ao oferecer essas práticas aos usuários. Ademais, o desconhecimento e o desapoio do trabalho com as PICS levam à humilhação do profissional, visto que tem seu trabalho considerado como um passatempo: “Dá impressão que é uma coisa de passar tempo, não funciona. Os profissionais têm dificuldade de ver a gente saindo, não atendendo os pacientes aqui e atendendo lá fora” (P5).
Há uma “confusão”, com mensagens contraditórias e incongruentes transmitidas pela equipe e pela coordenação do serviço. Por um lado, são consideradas importantes e até fundamentais, mas, por outro, não fazem parte do quadro de prioridades. Gonçalves Filho12,13 nos ajuda a compreender a questão ao afirmar que a humilhação social é um fenômeno histórico, político, externo, construído socialmente através do tempo e, também, interno ao indivíduo e psicológico. Em outros termos, refere-se a um efeito de desigualdade política, afastando uma classe inteira de sujeitos do contexto intersubjetivo da iniciativa e da palavra.
Muitas entrevistadas narraram um sentimento de estarem separadas, impossibilitadas de se expressarem, de mostrarem o valor e a eficácia da prática. Por meio de todas estas percepções identificam uma não validação das PICS como parte dos arsenais terapêuticos da APS e a sua subvalorização como ofertantes dessas práticas. Tais fatos ficam evidentes nos extratos que seguem, em que as entrevistadas afirmam que: “Uma coisa que é bem assim afastadora é achar que o que acontece no serviço não tem nada a ver com a terapia [comunitária]. É como se ela não pertencesse ao serviço” (P5).
Essa impossibilidade de desfrutar com seus pares a oferta das PICS culmina em um sentimento de tristeza e, na humilhação social, pois alguns sentimentos marcam os humilhados16. Esse sentimento de não pertencimento e criação de um ambiente de desigualdade entre os profissionais biomédicos e os híbridos - ofertam cuidados biomédicos e os complementares - reverbera a situação em que os entrevistados são ignorados e somem na visão dos outros. O humilhado, por sua vez, tem a sensação de não ser como todas as pessoas que possuem direitos e estão sempre em alerta, isto é, prontos para receber uma repreensão. O tratamento dado a essas pessoas nega a sua partcipação social mediante palavras e imagens associadas ao descrédito12,13.
As profissionais entrevistadas declaram dificuldades no espaço técnico e político, porém o espaço físico, propriamente, é um problema concreto. Não existem locais apropriados dentro das unidades para a realização das PICS. Muitas vezes, é realizada nas praças, salões de igreja, auditórios, recepção da UBS, associações de bairro, salas de reuniões, salas de atendimento, bancos das áreas externas, entrada da unidade ou nos fundos dela. A narrativa abaixo expõe essa falta quando a entrevistada afirma que: “A gente tem um local aqui que é da igreja católica que eles emprestam o salão comunitário para a gente trabalhar, para a gente reunir” (P6).
A falta de espaço adequado para a realização de uma prática não biomédica dentro do serviço de saúde, conforme relatado por várias profissionais, é um fenômeno também observado em Israel e denominado por eles de “marginalização espacial”34. Observou-se naquele país que as PICS são desenvolvidas em ambientes afastados dos serviços de saúde ou até mesmo fora do seu território de cobertura. Assim, os profissionais são admitidos nos serviços, porém na periferia do seu espaço social e geográfico, protagonizando um status imaginário de um ser de outro mundo.
Essa tensão, dividindo o mesmo ambiente de trabalho, pode ser explicada pelo conceito de boundary at work (fronteira no trabalho). Nele ocorre a exclusão e a marginalização de alguns profissionais, sendo eles apontados como forasteiros, mediante os processos multidimensionais de definição das fronteiras simbólicas no campo35.
São muitas as consequências da humilhação social continuada e, do ponto de vista coletivo, pode trazer a perda do desejo de criar e realizar formas de cuidado humanizadas. As perdas individuais e coletivas que estão sendo produzidas pelas equipes de profissionais e gestores dos serviços de saúde que desapoiam os profissionais que ofertam as PICS são significativas. O trabalho pouco valorizado com uma prática de cuidado desvalorizada, reduz o desejo de muitos profissionais de saúde serem “atores” e agentes de mudança. Com isso, importam-se menos com a qualidade de vida da comunidade e substituem as práticas de produção de vida do seu cuidado em práticas estéreis.
A produção de invisibilidade pública das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde
Embora os profissionais atuem com a biomedicina, a racionalidade dominante, quando estão exercendo seu papel com as racionalidades e práticas complementares e altenativas são invibilizados. Essa situação se assemelha com Costa11, visto que na sua experiência trabalhando como gari na Universidade de São Paulo, mesmo sendo aluno da própria universidade, tendo um certo “status” social, ele não era visto. O seu uniforme o tornava invisível perante os outros. Do mesmo modo, os profissionais entrevistados quando se colocam como executantes de um cuidado “dessemelhante” do convencional e hegemônico, não são notados ainda que tenham ensino superior.
Esse achado contrasta com os resultados de outros estudos nos quais a invisibilidade é observada predominantemente entre trabalhadores com menor tempo de escolaridade17-20. Na Atenção Primária à Saúde (APS), a situação se apresenta de forma distinta, afetando trabalhadores com um maior número de anos de estudo. De acordo com Costa, a invisibilidade permeia diversos grupos sociais de maneira sutil, sujeitando-se à subjugação por parte daqueles considerados “superiores”. No contexto dos entrevistados, torna-se evidente que a posse de um diploma universitário não é suficiente para que se submetam à lógica predominante de forma automática.
Os profissionais também são inseridos nesse processo de exclusão de seus direitos, pois, durante a oferta das PICS, não são reconhecidos como profissionais biomédicos. São submetidos a uma subjugação, uma vez que estão envolvidos na prestação de cuidados que, erroneamente, são considerados ineficazes por algumas categorias profissionais. A eficácia da Yoga no tratamento da dor lombar, por exemplo, é claramente evidente36. No entanto, nos deparamos com profissionais que são veementemente contrários à inclusão das PICS no SUS.
Consequentemente, era esperado que os profissionais que possuem conhecimento e incorporam essas terapias complementares em seus ambientes de trabalho enfrentassem o fenômeno da humilhação social. Aqueles que se consideram “superiores” por aderirem exclusivamente à biomedicina como única detentora do conhecimento científico verdadeiro utilizam a invisibilidade como uma estratégia para minar as ações relacionadas às PICS. Do ponto de vista de quem domina nessa situação envolvendo as PICS, a ideia de ser formado na racionalidade contemporânea ocidental e ainda reconhecer racionalidades consideradas “não-científicas” é vista como inadmissível. Dessa forma, a invisibilidade pública, por meio de suas ações sutis, busca suprimir os cuidados que divergem da abordagem biomédica.
Nessa sequência, um meio para anular as PICS se evidencia pela desuniformização do registro nos prontuários dos usuários e a desautorização durante a realização das reuniões de equipe. Segundo Costa11, a invisibilidade pública produz o desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio de outros homens. A subordinação como meio de opressão fica evidente no relato dos profissionais que não se autorizam a falar sobre seu trabalho nas reuniões de equipe:
Muito difícil tocar no assunto, porque as pessoas não acreditam. Não existe esse interesse por parte da equipe... Talvez, eu não saiba informar adequadamente a característica do trabalho, o que é para ser feito, o que pode ser feito e qual a vantagem desse trabalho (P16).
Estes trabalhadores enfatizam o sentimento de não permissão para relatar seu trabalho com as PICS e ainda se questionam se estão errados por não tocar no assunto. Assim, um círculo vicioso se forma: os profissionais não se sentem seguros para compartilhar com a equipe sua experiência, a equipe, por sua vez, acaba por não se interessar pela prática, não estimulando sua explanação, com isso, os casos não são discutidos e os pacientes não são acompanhados.
A reunião de equipe é uma ocasião em que as pessoas se mostram, em que suas personalidades e individualidades emergem mais claramente e são importantes para a organização e estruturação do trabalho, para o estabelecimento de diretrizes, sendo um momento crucial para a tomada de decisões. Nas reuniões, os casos dos pacientes podem ser discutidos numa visão interdisciplinar, com a construção de projetos e planos de atendimento coletivos37.
Porém, os participantes descrevem a sensação de não estarem em “pé de igualdade” com os profissionais biomédicos, ocupando, portanto, um lugar de inferioridade. A ocupação deste lugar subordinado demonstra a existência de um jogo de poder e de dominação entre os diferentes profissionais de saúde “incluídos”, restritos às práticas alopáticas, e os “excluídos”, que detêm outras práticas de cuidado na APS23.
Esse resultado está alinhado com o estudo de Oliveira22 e a presença das PICS cria um tensionamento com o paradigma dominante, com a visão centrada na doença, no hospital, na biomedicina. Todo esse contexto gera conflitos, disputas de poder, não apenas por quem “manda”, por quem detêm o conhecimento, mas também por quem está autorizado a “cuidar”, a “ser reconhecido” como um profissional de saúde10.
A ausência da discussão das PICS nas reuniões de equipe estende-se para a ausência de informações nos prontuários dos praticantes, que é um importante meio de comunicação entre os profissionais, funcionando como um instrumento de integração da equipe de saúde para desenvolver a coordenação dos cuidados de APS. O prontuário é imprescindível para que se realize o acompanhamento longitudinal dos pacientes e para que as informações possam ser transferidas aos diversos especialistas, garantindo, assim, a continuidade dos cuidados38.
As informações sobre os praticantes das PICS são anotadas de diversas maneiras: as vezes em prontuários físicos ou eletrônicos, outra em cadernos e livros-atas. No entanto, alguns entrevistados relataram que não fazem o registro do uso nos prontuários dos participantes. Assim, os profissionais não se apropriam do que fazem, não têm como avaliar o progresso dos seus pacientes frente a equipe, talvez perdendo a identidade de cuidadores de fato.
Além disso, a reificação é evidenciada no conteúdo das entrevistas como mais um fator para se reforçar a ocorrência da invisibilidade das PICS12,13. A reificação se caracteriza como um processo pelo qual o valor (de pessoas, objetos, instituições, relações) se apresenta à consciência dos homens como valor, sobretudo, econômico, como valor de troca, mercadoria. Portanto, o trabalho reificado não aparece por suas qualidades, um trabalho concreto, mas como um trabalho abstrato, para ser vendido. São criadas, assim, relações entre coisas. Com isso, o homem se apaga, se mantém à sombra. Tudo passa a contar, primariamente, como mercadoria, isto é, o homem é transformado em coisa12,13. A reificação fica evidente nos relatos a seguir: “a gente registra nesse caderno. Porque é exigida a produtividade, para lançar no computador” (P7); “a gente precisa fazer lançamento desses usuários no sistema da prefeitura” (P9).
Sumariamente, a humilhação social e a invisibilidade pública são questões mais amplas do que parece. Não é apenas uma simples falta de espaço na agenda das reuniões de equipe para que sejam discutidas, ou de falta de solicitação por parte da coordenação para que os profissionais mantenham os prontuários atualizados quanto à vida do paciente. Portanto, é um fato regular, conforme se notam nas narrativas dos profissionais, e, sem dúvida, isso levanta a sugestão de novas pesquisas a partir do questinamento: quais prejuízos e impactos, não apenas às PICS, mas também à toda a equipe, ao sistema de saúde e, principalmente, aos usuários, são causados em consequência da invisibilidade pública e a humilhação social?
A PNPIC passou por duas atualizações no último quadriênio e o escopo de PICS ofertadas pelo SUS foi ampliado para 29 diferentes práticas2,3. Logo, o escopo de PICS ofertadas pelo SUS foi ampliado durante o período da pesquisa, em que se considera uma limitação temporal do trabalho. O recorte espacial também pode ser considerado como uma limitação metodológica, sendo importante a execução de mais estudos para reforçar a presença destes fenômenos entre os profissionais ofertantes de PICS para a validação externa dos achados aqui evienciados.
Imersos nessa “integração precária”8, de reprodução de conhecimento e constrangimento pelas relações hierárquicas pré-existentes, os profissionais parecem não conseguir estabelecer uma comunicação legítima do lugar que lhes pertence entre as práticas de cuidado com PICS na APS. Eles estão autorizados a exercer seus conhecimentos, por direito conquistado com a PNPIC, porém, sua capacidade de falar e agir de maneira autorizada e com autoridade não parece acontecer nos serviços de saúde15.
Considerações finais
Nosso estudo analisou as PICS nos serviços de APS da RMG na perspectiva dos profissionais de saúde e nos levou a concluir que o seu trabalho esbarra em dificuldades simbólicas que circunscreve múltiplos modos de invisibilidade pública e humilhação social. As evidências deste estudo sugerem que os profissionais alternativos sofrem um apartheid epistemológico, pois as PICS também inexistem nas discussões entre as equipes dos serviços de APS. Enfrentam o apagamento cultural, isto é, o poder biomédico define, de modo inconsciente, que elas são inferiores. O establishment, ou seja, as normas e o controle da classe dominante (a biomedicina), expulsa a realização das PICS de dentro dos serviços de saúde, colocando-as em espaços improvisados, inadequados e/ou nos “fundos ou fora” das unidades. Além disso, sofrem com a omissão da gestão e os demais profissionais que integram as equipes de saúde em apoiar a sua execução.
Outra importante informação encontrada que reforça a presença da invisibilidade foi a inexistência do registro das PICS nos prontuários dos usuários. A PNPIC poderia representar uma conquista social e histórica. Em conjunto, os resultados desde estudo indicam que as PICS estão incluídas, mas ainda “fora” do sistema de Saúde. Ainda que entreposta no serviço, são vistas como algo a mais, um extra, que não estão atreladas as demais atividades, atendimentos e práticas de cuidado.
Este estudo avançou de algum modo para aprofundar a compreensão sobre a invisibilidade pública entre os trabalhadores da saúde. Portanto, a oferta das PICS pode ser considerado como mais um trabalho invisibilizado na sociedade. As presentes conclusões podem ser norteadoras de como as PICS podem ser implementadas, considerando como esse processo deve ser realizado, e os problemas enfrentados e evidenciados pelos profissionais no nosso estudo. Isso seria de suma importância para que a oferta seja ampliada e seus benefícios potenciais atinjam uma parcela significativa de usuários do SUS.
Referências
- 1 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS. Diário Oficial da União 2006; 3 maio.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Ago 2024 -
Data do Fascículo
Ago 2024
Histórico
-
Recebido
10 Out 2023 -
Aceito
26 Mar 2024 -
Publicado
28 Mar 2024