Resumo
O objetivo da revisão é apresentar o estado da arte da violência obstétrica no Brasil. Os termos mais utilizados são “violência obstétrica”, “desrespeitos e abusos” e “maus-tratos”. Em relação à mensuração, o instrumento mais utilizado é baseado na definição de “Maus-Tratos”, ainda em fase inicial de avaliações e sem adaptação para o Brasil. A prevalência da violência obstétrica varia nos estudos nacionais devido a fatores metodológicos e tipo de puérpera. Em relação aos fatores de risco, mulheres adolescentes ou com mais de 35 anos, negras, com baixa escolaridade, usuárias do SUS, com parto vaginal ou aborto estão sob risco. Relações hierárquicas entre equipe de saúde e família também são relevantes, assim como estruturas hospitalares inadequadas, falta de leitos, profissionais de saúde insuficientes, contribuem para a violência obstétrica. As consequências da violência obstétrica são: risco aumentado de depressão e TEPT, menor probabilidade de realizar consultas pós-parto e puericultura e dificuldades para amamentar. Intervenções para mitigar a violência obstétrica devem ser empreendidas considerando o empoderamento das mulheres, a capacitação dos profissionais de saúde, a vigilância da violência obstétrica e o amparo legal.
Palavra-chave:
Epidemiologia; Violência obstétrica; Direito das mulheres
Abstract
The aim of this review is to present the state of the art regarding obstetric violence in Brazil. The most commonly used terms are “obstetric violence,” “disrespect and abuse,” and “mistreatment”. Concerning measurement, the most widely used instrument is based on the definition of “mistreatment,” still in its early stages of evaluation and lacking adaptation to Brazil. The prevalence of obstetric violence varies widely in national studies due to methodological factors and the type of postpartum women considered. Regarding risk factors, adolescent or women over 35, non-white, with low education levels, users of the public health system (SUS), those who had vaginal birth or abortion, are at higher risk. Hierarchical relationships between the healthcare team and the family are also relevant, as well as inadequate hospital structures, bed shortages, and insufficient healthcare professionals, which contribute to obstetric violence. The consequences of this violence include an increased risk of postpartum depression and PTSD, reduced likelihood of attending postpartum and childcare consultations, and difficulties in exclusive breastfeeding. Interventions to mitigate obstetric violence should consider women’s empowerment, healthcare professionals’ training, monitoring obstetric violence, and legal support.
Key word:
Epidemiology; Obstetric violence; Women right
Introdução
Desde a publicação da definição de “desrespeitos e abusos no parto” em 2010, pesquisadores de todo o mundo têm se envolvido em discussões e na produção de conhecimento sobre violações de direitos das mulheres durante a assistência à gestação, ao parto, ao puerpério e ao aborto. No Brasil o termo “violência obstétrica” é o mais utilizado para endossar tais situações, portanto, optamos pelo seu uso nessa publicação11 Leite TH, Marques ES, Esteves-Pereira AP, Portela Y, Leal MC. Desrespeitos e abusos, maus tratos e violência obstétrica: um desafio para epidemiologia e para a saúde pública no Brasil. Cien Saude Colet Published 2020; 27(2):483-491..
A violência obstétrica é caracterizada por violência física, verbal, sexual, negligência, maus-tratos, desrespeito, condutas não baseadas em evidências científicas e inadequações nos serviços de saúde22 Venezuela RB. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violência (Ley 25.929). Caracas: UNFPA; 2004.. Apresenta três características específicas: ocorre exclusivamente nos serviços de saúde, incluindo ambulatórios, consultórios e maternidades; os perpetradores são frequentemente profissionais de saúde; e, por fim, tem uma natureza dupla, combinando atos interpessoais (violência física/verbal) com aspectos institucionais (maternidades sobrecarregadas, com estrutura e recursos humanos inadequados11 Leite TH, Marques ES, Esteves-Pereira AP, Portela Y, Leal MC. Desrespeitos e abusos, maus tratos e violência obstétrica: um desafio para epidemiologia e para a saúde pública no Brasil. Cien Saude Colet Published 2020; 27(2):483-491.).
No contexto brasileiro, a violência obstétrica tem ganhado visibilidade impulsionada por dois fatores: a politização e a cobertura midiática sobre o assunto33 Violência obstétrica: o que é, como identificar e como denunciar [Internet]. G1 2021. [acessado 2023 jun 23]. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2021/12/12/violencia-obstetrica-o-que-e-como-identificar-e-como-denunciar.ghtml
https://g1.globo.com/saude/noticia/2021/...
,44 Mayer S, Borges C, Batistela C. O que se sabe sobre caso da menina de 11 anos impedida de fazer aborto em SC após estupro [Internet]. 2022. [acessado 2023 jun 23]. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/21/o-que-se-sabe-sobre-caso-da-menina-de-11-anos-impedida-de-fazer-aborto-em-sc-apos-estupro.ghtml
https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/n...
. No que diz respeito às questões políticas, é importante destacar que, no período de 2018-2022, as mulheres enfrentaram desafios em relação aos seus direitos sexuais e reprodutivos. Um dos primeiros foi a divulgação de uma nota pelo Conselho Federal de Medicina e endossada pelo Ministério da Saúde (MS) desencorajando o uso do termo “violência obstétrica”, justificando que o termo é utilizado de forma inadequada e “com uma agressividade que beira a histeria”, além de ser ofensivo a certas categorias profissionais. Além disso, outras ações adotadas pelo MS, como a desestruturação da Rede Cegonha e a restrição da utilização dos serviços de aborto legal durante a pandemia de COVID-1955 Senapeschi EM, Vieira P, Mariano SA. Aborto legal, direitos sexuais e reprodutivos na pandemia de covid-19 no Brasil. Rev Fem 2021; 9(1):206-228. foram na contramão dos direitos das mulheres.
Por outro lado, todos esses acontecimentos não passaram despercebidos pela mídia, que noticiou relatos de meninas e mulheres vítimas de violência obstétrica. Entre as matérias divulgadas, a história de uma menina de dez anos, grávida em consequência de um estupro, que foi coagida a não exercer seu direito ao aborto legal. Além disso, foram divulgados áudios de uma influenciadora digital sofrendo abusos verbais durante o parto, assim como o caso de uma mulher estuprada por um anestesista durante uma cesariana. Esses casos evidenciaram que a violência obstétrica é uma realidade no Brasil.
O interesse da mídia pela violência obstétrica tem aumentado a visibilidade do tema na sociedade em geral. Além disso, pesquisadores de todo o mundo têm publicado estudos que demostram que a violência obstétrica é um problema de saúde pública e tem impacto negativo na saúde das mulheres e de seus recém-nascidos. Nesse contexto, esta revisão tem por objetivo apresentar o estado da arte da violência obstétrica no Brasil, abordando aspectos epidemiológicos como definição, mensuração, prevalência, fatores de risco/proteção, consequências e intervenções para sua mitigação.
Definição e mensuração
Não há consenso quanto ao termo e à definição mais adequada para expressar os atos relacionados à violência obstétrica. Os termos mais comuns são “violência obstétrica”, “desrespeito e abuso” e “maus-tratos no parto”. Embora esses termos sejam frequentemente usados como sinônimos, no meio científico eles têm definições distintas, compartilhando certos domínios.
O termo “violência obstétrica” surgiu a partir de movimentos feministas que questionaram práticas de assistência ao parto que violavam os direitos humanos das mulheres66 Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC, Lutsiv O, Makh SK, Souza JP, Aguiar C, Saraiva Coneglian F, Diniz AL, Tunçalp Ö, Javadi D, Oladapo OT, Khosla R, Hindin MJ, Gülmezoglu AM. The mistreatment of women during childbirth in health facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLoS Med 2015; 12(6):e1001847.. Assim, discussões sobre autonomia, direitos sexuais e reprodutivos e medicina baseada em evidências ganharam espaço nesse contexto77 Souza LV. 'Nao tem jeito. Vocês vão precisar ouvir'. Violência obstétrica no Brasil: contrução do termo, seu enfrentamento e mudanças na assistência obstétrica (1970-2015) [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022.. O termo foi pioneiramente definido na legislação da Venezuela, em 200722 Venezuela RB. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violência (Ley 25.929). Caracas: UNFPA; 2004., como “ações ou omissões da equipe de saúde, no âmbito público ou privado, que resultam na apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos pelos profissionais de saúde através de um atendimento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, levando à perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre o corpo e a sexualidade da mulher, afetando negativamente sua qualidade de vida”22 Venezuela RB. Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violência (Ley 25.929). Caracas: UNFPA; 2004..
O termo “violência obstétrica” é de definição ampla, tornando-o vantajoso na implementação de legislações específicas sobre o assunto. No entanto, o conceito carece de uma definição mais precisa, que possa ser utilizada para a mensuração em inquéritos epidemiológicos. Tendo isso em vista, Bowser e Hill88 Bowser D, Hill K. Exploring evidence for disrespect and abuse in facility-based childbirth report of a landscape analysis [Internet]. 2010. [cited 2023 jun 23]. Available from: https://www.hsph.harvard.edu/wp-content/uploads/sites/2413/2014/05/Exploring-Evidence-RMC_Bowser_rep_2010.pdf
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(2010) propuseram o termo “desrespeito e abuso no parto”. Essa definição abrange sete dimensões: 1) abuso físico; 2) cuidado sem consentimento; 3) cuidado não confidencial; 4) cuidado não digno, que inclui o abuso verbal; 5) descriminação; 6) abandono de paciente; e 7) detenção em instituições de saúde. Esse termo e sua definição foram os primeiros a dar visibilidade ao tema em nível mundial, baseando uma importante publicação da Organização Mundial de Saúde em 2014, intitulada “The prevention and elimination of disrespect and abuse during facility-based childbirth”99 World Health Organization (WHO). The prevention and elimination of disrespect and abuse during facility-based childbirth [Internet]. 2015. [cited 2023 jun 23]. Available from: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_eng.pdf
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. A partir dessa proposta, houve um aumento significativo de publicações sobre essa temática, representando um marco importante nesse campo de conhecimento.
Em 2015, Bohren et al.66 Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC, Lutsiv O, Makh SK, Souza JP, Aguiar C, Saraiva Coneglian F, Diniz AL, Tunçalp Ö, Javadi D, Oladapo OT, Khosla R, Hindin MJ, Gülmezoglu AM. The mistreatment of women during childbirth in health facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLoS Med 2015; 12(6):e1001847. (2015) propuseram uma nova definição, baseada na proposta de Bowser e Hill, assim como em dados de pesquisas qualiquantitativas. O termo utilizado foi “maus-tratos de no parto”, e sua definição também foi apresentada em sete dimensões: 1) abuso físico; 2) abuso sexual; 3) abuso verbal; 4) estigma e descriminação; 5) práticas de saúde inadequadas; 6) falha na comunicação com a equipe de saúde; e 7) inadequações e restrições do sistema de saúde66 Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC, Lutsiv O, Makh SK, Souza JP, Aguiar C, Saraiva Coneglian F, Diniz AL, Tunçalp Ö, Javadi D, Oladapo OT, Khosla R, Hindin MJ, Gülmezoglu AM. The mistreatment of women during childbirth in health facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLoS Med 2015; 12(6):e1001847.. Essa proposta incluiu um questionário para mensurar maus-tratos na atenção ao parto e a tentativa de validação desse instrumento. É um avanço importante, pois tem estimulado pesquisas e permitido comparações entre diferentes locais ao redor do mundo. Além disso, contribuiu para a consolidação dos maus-tratos na atenção ao parto como um problema de saúde pública.
Embora todas as expressões apresentadas tenham semelhanças e compartilhem domínios, há muita controvérsia em torno delas. Um ponto a ser mencionado é que nenhuma dessas definições contempla explicitamente mulheres em situação de aborto como público-alvo. Consequentemente, é comum que pesquisas sobre o tema se concentrem apenas em parturientes, deixando invisível uma parcela significativa de mulheres que também são vítimas de violência obstétrica.
Outro aspecto de constante conflito é o termo “violência obstétrica”. Muitos profissionais de saúde sentem desconforto com sua utilização, argumentando que a palavra “violência” pressupõe intencionalidade, sendo inadequado para todas as situações abarcadas pela violência obstétrica1010 Katz L, Amorim MM, Giordano JC, Bastos MH, Brilhante AVM. Quem tem medo da violência obstétrica? Rev Bras Saude Materno Infant 2020; 20(2):623-626.. Um segundo argumento contra o uso desse termo é a falta de reconhecimento, por parte de alguns profissionais, de que a violência obstétrica é de fato um problema de saúde pública no Brasil. Muitos acreditam que os casos que ganham destaque na mídia são extremos e isolados. Assim, nomear e definir esses atos como violência obstétrica seria algo desproporcional.
No entanto, existem profissionais de saúde e pesquisadores que defendem o uso do termo. O principal argumento é que movimentos sociais de mulheres escolheram essa expressão por considerá-la a mais adequada para descrever as situações de violência, abusos ou maus-tratos vivenciados durante a gestação, o parto, o puerpério ou o abortamento. Portanto, apoiar a utilização desse termo é uma forma de dar voz às vítimas. O termo “violência” deixa claro que ocorre uma violação dos direitos humanos e reprodutivos das mulheres. Por sua vez, o termo “obstétrico” evidencia que essa violência acontece durante o ciclo gravídico, incluindo as mulheres em situação de aborto. Além disso, enfatiza que a violência obstétrica é uma combinação de violência de gênero com os maus-tratos nos serviço de saúde1010 Katz L, Amorim MM, Giordano JC, Bastos MH, Brilhante AVM. Quem tem medo da violência obstétrica? Rev Bras Saude Materno Infant 2020; 20(2):623-626..
A mensuração da violência obstétrica é um desafio que está ligado à discussão sobre a falta de consenso para esse fenômeno. Como já citado, esse constructo se encontra em processo de construção. E diante desse cenário, a aferição em níveis aceitáveis de validade e confiabilidade de um fenômeno sem definição objetiva fica prejudicada e sujeita a viés1111 Reichenheim M, Bastos JL. O quê, para quê e como? Desenvolvendo instrumentos de aferição em epidemiologia. Rev Saude Publica 2021; 55:40.. Segundo Reichenheim e Bastos (2021)1111 Reichenheim M, Bastos JL. O quê, para quê e como? Desenvolvendo instrumentos de aferição em epidemiologia. Rev Saude Publica 2021; 55:40., a validação de um instrumento de aferição implica, em última análise, a validação da própria teoria que engloba o constructo que o instrumento se destina a mensurar.
Diante dessa lacuna, grande parte dos estudos sobre a temática utilizou um conjunto diferente de questões relacionadas ao constructo violência obstétrica, o que dificulta a comparação dos achados. Ressalta-se que, até o momento, apenas três instrumentos elaborados para a mensuração da violência obstétrica tiveram algumas de suas propriedades psicométricas avaliadas, sendo que um deles foi desenvolvido no Brasil por Paiz et al. (2022)1212 Paiz JC, de Jezus Castro SM, Giugliani ERJ, Ahne SMS, Aqua CBD, Souto AS, Giugliani C. Development of an instrument to measure mistreatment of women during childbirth through item response theory. PLoS One 2022; 17(7):e0271278.. Os autores elaboraram dois instrumentos, um para mulheres que entraram em trabalho de parto e um para um público mais amplo. Outro instrumento cujas propriedades psicométricas foram avaliadas foi o proposto por Dewkat et al. (2021)1313 Dwekat IMM, Ismail TAT, Ibrahim MI, Ghrayeb F, Hanafi WSWM, Ghazali AK. Development and validation of a new questionnaire to measure mistreatment of women during childbirth, satisfaction of care, and perceived quality of care. Midwifery 2021; 102:103076.. Este apresenta 11 itens e foi desenvolvido na Cisjordânia. O terceiro e último instrumento que teve suas propriedades psicométricas avaliadas1414 Berger BO, Strobino DM, Mehrtash H, Bohren MA, Adu-Bonsaffoh K, Leslie HH, Irinyenikan TA, Maung TM, Balde MD, Tunçalp Ö. Development of measures for assessing mistreatment of women during facility-based childbirth based on labour observations. BMJ Glob Health 2021; 5(Suppl. 2):e004080.,1515 Leslie HH, Sharma J, Mehrtash H, et al. Women's report of mistreatment during facility-based childbirth: validity and reliability of community survey measures. BMJ Glob Health. 2021;5(Suppl 2):e004822. doi:10.1136/bmjgh-2020-004822
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foi por Bohren et al. em 201566 Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC, Lutsiv O, Makh SK, Souza JP, Aguiar C, Saraiva Coneglian F, Diniz AL, Tunçalp Ö, Javadi D, Oladapo OT, Khosla R, Hindin MJ, Gülmezoglu AM. The mistreatment of women during childbirth in health facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLoS Med 2015; 12(6):e1001847.. Inicialmente elaborado para uso em pesquisas conduzidas em países africanos e asiáticos1616 Bohren MA, Mehrtash H, Fawole B, Maung TM, Balde MD, Maya E, Thwin SS, Aderoba AK, Vogel JP, Irinyenikan TA, Adeyanju AO, Mon NO, Adu-Bonsaffoh K, Landoulsi S, Guure C, Adanu R, Diallo BA, Gülmezoglu AM, Soumah AM, Sall AO, Tunçalp Ö. How women are treated during facility-based childbirth in four countries: a cross-sectional study with labour observations and community-based surveys. Lancet 2019; 6736(19):1750-1763.,1717 Bohren MA, Vogel JP, Fawole B, Maya ET, Maung TM, Baldé MD, Oyeniran AA, Ogunlade M, Adu-Bonsaffoh K, Mon NO, Diallo BA, Bangoura A, Adanu R, Landoulsi S, Gülmezoglu AM, Tunçalp Ö. Methodological development of tools to measure how women are treated during facility-based childbirth in four countries: labor observation and community survey. BMC Med Res Methodol 2018; 18(1):132., esse instrumento tem sido amplamente utilizado em estudos epidemiológicos, sendo aplicado em diversos países. É importante ressaltar que a maioria das avaliações psicométricas existentes se concentra na confiabilidade e na análise da estrutura de configuração do instrumento. Assim, reforça-se a necessidade de mais estudos que abordem essas e outras propriedades psicométricas não avaliadas anteriormente em outras populações e contextos, a fim de consolidar o conhecimento em torno do desenvolvimento e/ou a adaptação transcultural de instrumentos para medir a violência obstétrica.
Prevalência da violência obstétrica
Mulheres de parto
Há muitos estudos sobre a prevalência de violência obstétrica no Brasil. No entanto, vale ressaltar que algumas pesquisas se destacam devido à sua abrangência: 1) Fundação Perseu Abramo, 2) Nascer no Brasil 2011/2012; 3) Coorte de Pelotas 2015; e 4) Coorte de Ribeirão Preto1978/79 e 94.
O primeiro inquérito nacional que abarcou a violência obstétrica foi denominado Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, realizado pela Fundação Perseu Abramo. Essa pesquisa contemplou 1.466 mulheres que relataram ter tido pelo menos uma gestação prévia. A violência obstétrica foi mensurada por meio de dez itens que avaliaram abusos físicos, psicológicos, sexuais e negligência, estimando uma prevalência de 25%1818 Fundação Perseu Abramo. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado [Internet]. 2010. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf
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. Apesar da temática inovadora para uma pesquisa nacional, é importante mencionar suas limitações, como o número restrito de mulheres para uma amostra nacional e a falta de instrumento de aferição validado.
O segundo inquérito nacional que também abordou a temática foi a pesquisa Nascer no Brasil I, realizada em 2011/2012. Aproximadamente 24 mil mulheres em todo o território nacional foram entrevistadas nesse estudo de base hospitalar com representatividade de 80% dos nascimentos ocorridos no país1919 Leal MC, Silva AA, Dias MA, Gama SG, Rattner D, Moreira ME, Theme Filha MM, Domingues RM, Pereira AP, Torres JA, Bittencourt SD, d'Orsi E, Cunha AJ, Leite AJ, Cavalcante RS, Lansky S, Diniz CS, Szwarcwald CL. Birth in Brazil: national survey into labor and birth. Reprod Health 2012; 9:15.. No que respeita à violência obstétrica, a pesquisa contribuiu para melhor compreensão da temática no país, por meio de publicações que abordaram desde disparidades até prevalências de atos de violência obstétrica e suas consequências na saúde da mulher e de seu recém-nascido.
Os achados da pesquisa Nascer no Brasil I mostrou que 11,1% das mulheres se sentiram desrespeitadas durante todo o processo de nascimento2020 d'Orsi E, Brüggemann OM, Diniz CSG, Aguiar JM, Gusman CR, Torres JA, Tuesta AA, Rattner D, Domingues RMSM. Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento ao parto no Brasil: estudo nacional de base hospitalar. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S154-S168.. Em relação à presença de acompanhante durante o parto, 24,5% das mulheres relataram a ausência completa, enquanto 56,7% mencionaram ausência parcial do acompanhante2121 Diniz CSG, d'Orsi E, Domingues RMSM, Torres JA, Dias MAB, Schneck CA, Lansky S, Teixeira NZF, Rance S, Sandall J. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S140-S153.. Entre gestantes com risco obstétrico habitual, 56,1% relataram ter sido submetidas à episiotomia e 37,3% relataram ter sofrido a manobra de Kristeller2222 Leal MC, Pereira APE, Domingues RMSM, Theme Filha MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M, Bastos MH, Gama SGN . Obstetric interventions during labor and childbirth in Brazilian low-risk women. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S1-S16.. Cerca de 45% das entrevistadas relataram ter vivenciado pelo menos um ato de violência obstétrica durante o parto, incluindo violência física ou psicológica, tratamento desrespeitoso, falta de informação, privacidade e comunicação com a equipe de saúde, impossibilidade de fazer perguntas e perda de autonomia2323 Leite TH, Pereira APE, Leal MC, Silva AAM. Disrespect and abuse towards women during childbirth and postpartum depression: findings from Birth in Brazil Study. J Affect Disord 2020; 273:391-401..
Assim como a pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, a Nascer no Brasil I também tem limitações. A violência obstétrica não foi mensurada por meio de um instrumento de aferição validado. Nessa pesquisa, a medição desse problema foi feita por sete questões provenientes de um questionário sobre satisfação com o atendimento recebido. A combinação dessas questões via classes latentes foi considerada um indicador da ocorrência de violência obstétrica. Ressalta-se que, no momento em que a pesquisa foi realizada, não havia consenso sobre a definição e mensuração da violência obstétrica. Em relação aos pontos fortes dessa pesquisa, destaca-se o grande número amostral e sua alta representatividade.
Outra pesquisa que deve ser destacada ao abordar a violência obstétrica no Brasil é a Coorte de Nascimentos de Pelotas (RS) 2015. Trata-se de um estudo de base populacional que coletou informações sobre violência obstétrica três meses após o parto. A amostra incluiu 4.275 puérperas e mostrou que 10% delas sofreram abuso verbal, 5% abuso físico, 6% foram submetidas a procedimentos inapropriados ou não desejáveis e 6% tiveram algum tipo de cuidado negado. No total, 18,3% das mulheres relataram algum tipo de maus-tratos durante o último parto2424 Mesenburg MA, Victora CG, Jacob Serruya S, Ponce de León R, Damaso AH, Domingues MR, Silveira MF. Disrespect and abuse of women during the process of childbirth in the 2015 Pelotas birth cohort Prof. Suellen Miller. Reprod Health 2018; 15(1):54.. Assim como as duas pesquisas mencionadas anteriormente, a mensuração da violência obstétrica também consiste em um aspecto limitante desta pesquisa. Como pontos fortes desse estudo pode-se destacar o tamanho amostral e a abrangência populacional.
Por fim, outra pesquisa relevante no contexto da violência obstétrica é a Coorte de Ribeirão Preto (SP). Nesse estudo foram entrevistadas mulheres participantes de duas coortes (1978/79 e 1994), que já haviam passado por pelo menos um parto. O questionário foi aplicado por telefone durante o 5º e 3º seguimento das respectivas coortes. No total, 632 mulheres foram entrevistadas, representando 68% total das mulheres das coortes2525 Dornelas ACVR, Rodrigues LDS, Penteado MP, Batista RFL, Bettiol H, Cavalli RC, Grandi C, Cardoso VC. Abuse, disrespect and mistreatment during childbirth care: contribution of the Ribeirão Preto cohorts, Brazil. Cien Saude Colet 2022; 27(2):535-544.. Além de abordar a ocorrência dos atos de violência obstétrica, a pesquisa investigou a percepção das mulheres sobre a violência obstétrica. Os resultados mostraram grande disparidade. Enquanto 62,2% afirmaram ter sofrido pelo menos um ato de violência obstétrica, apenas 8,3% se percebiam como vítimas de alguma forma de violência, abuso ou maus-tratos. Como limitação desse estudo, destaca-que o número de perda de seguimento de mulheres elegíveis. A limitação do instrumental também deve ser mencionada. O Quadro 1 apresenta um resumo dos resultados e métodos das pesquisas citadas.
Mulheres em situação de aborto
Poucas pesquisas nacionais estimaram a prevalência de violência obstétrica entre mulheres em situação de aborto, revelando a invisibilidade desse problema. Além disso, os principais termos e definições sobre o assunto enfatizam o parto, deixando lacunas em relação às situações de aborto.
A revisão sistemática mais atual sobre o tema na América Latina identificou apenas três publicações que abordaram o assunto no Brasil2626 Tobasía-Hege C, Pinart M, Madeira S, Guedes A, Reveiz L, Valdez-Santiago R, Pileggi V, Arenas-Monreal L, Rojas-Carmona A, Piña-Pozas M, Gómez Ponce de León R, Souza JP. Disrespect and abuse during childbirth and abortion in Latin America: systematic review and meta-analysis. Rev Panam Salud Publica 2019; 43:e36.. A pesquisa mais antiga, e já mencionada, foi conduzida em 2010 pela Fundação Perseu Abramo. Nessa pesquisa foram feitas perguntas específicas para mulheres que relataram ter se submetido a ao menos um aborto induzido ao longo da vida. A prevalência estimada foi de 53,6%, o dobro da encontrada para as mulheres de parto na mesma pesquisa (25%)1818 Fundação Perseu Abramo. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado [Internet]. 2010. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf
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. Apesar da inovação, devido ao reduzido tamanho amostral (n = 100), é necessário cautela ao utilizar esses dados para referenciar prevalência e também para comparações com mulheres em situação de parto.
Outra pesquisa que abordou a violência obstétrica entre mulheres em situação de aborto foi conduzida por Aquino et al. em 20122727 Aquino EM, Menezes G, Barreto-de-Araújo TV, Alves MT, Alves SV, de Almeida Mda C, Schiavo E, Lima LP, de Menezes CA, Marinho LF, Coimbra LC, Campbell O. Qualidade da atenção ao aborto no Sistema Único de Saúde do Nordeste brasileiro: o que dizem as mulheres? Cien Saude Colet 2012; 17(7):1765-1776.. Trata-se de um estudo transversal realizado em sete hospitais de quatro capitais do Nordeste do Brasil. A população-alvo foi composta por mulheres hospitalizadas devido a aborto. Foram entrevistadas 2.804 participantes, utilizando um questionário validado sobre a qualidade da assistência ao aborto. Os resultados mostraram que 5,6% das mulheres sentiram que foram julgadas e tratadas com suspeição por ter induzido o aborto, enquanto 1,8% das mulheres relataram ter pedidos de analgesia negados. Combinando esses dois indicadores, 8,4% das mulheres relataram algum tipo de violência obstétrica.
Essa pesquisa se destaca por ter sido realizada com mulheres internadas especificamente por aborto e também por ter um número amostral elevado, considerando o público-alvo em questão. No entanto, uma limitação é que o estudo foi planejado para avaliar a qualidade da atenção durante o aborto. Assim, embora algumas questões se refiram à violência obstétrica, não há um instrumento específico sobre o assunto na pesquisa. Embora relacionadas, essas temáticas consistem em constructos diferentes.
Por fim, a pesquisa conduzida por Madeiro et al. em 20172828 Madeiro AP, Rufino AC. Maus-tratos e discriminação na assistência ao aborto provocado: a percepção das mulheres em Teresina, Piauí, Brasil. Cien Saude Colet 2017; 22(8):2771-2780., em Teresina (PI), foi composta por mulheres que fizeram aborto ilegal e inseguro e estavam internadas em hospital de referência para curetagem uterina. Os resultados revelaram que 33% das mulheres sofreram pelo menos um ato de violência obstétrica, considerando dimensões como discriminação, negligência, cuidado clínico não digno, ausência de confidencialidade ou privacidade, violência física e procedimentos não consentidos. Apesar de apresentar um delineamento e questionário próprio para violência obstétrica, o estudo inclui apenas 78 mulheres, o que impediu a condução de análises estatísticas robustas.
Cabe ressaltar que o instrumento de aferição é um importante problema metodológico a ser superado. Nenhum dos estudos utilizou questionário validado especificamente para o público-alvo a fim de avaliar a ocorrência de violência obstétrica. Entretanto, até o presente momento, não há instrumento específico para avaliar violência obstétrica em mulheres em situação de aborto no Brasil.
Considerando o panorama atual e a ausência de estudo representativo em termos nacionais, não há evidências robustas sobre a prevalência de violência obstétrica entre mulheres em situação de aborto no Brasil. No entanto, os estudos citados sugerem que a prevalência pode ser maior em comparação com as mulheres que passaram por parto. Além disso, também podemos aventar a hipótese de que mulheres que tiveram aborto induzido podem estar em maior risco de sofrer violência obstétrica do que mulheres que tiveram perdas espontâneas.
Em resumo, ao analisar os estudos nacionais sobre prevalência de violência obstétrica, observa-se uma grande amplitude, variando de 25% a 62% para mulheres de parto, e de 8% a 54% para mulheres em situação de aborto. Essa variação pode ser explicada por fatores distintos: 1) diferenças nos questionários utilizados para mensuração da violência obstétrica; 2) tipo de prevalência considerada, se pontual (prevalência no último parto/aborto) ou ao longo da vida (considerando todos os partos/aborto da mulher); 3) local onde as mulheres são entrevistadas; 4) método de entrevista (face a face ou por telefone); e 5) localização geográfica. Sobre este último aspecto, alguns estudos apontam que a região Sul apresenta prevalência menor de violência obstétrica do que as demais2020 d'Orsi E, Brüggemann OM, Diniz CSG, Aguiar JM, Gusman CR, Torres JA, Tuesta AA, Rattner D, Domingues RMSM. Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento ao parto no Brasil: estudo nacional de base hospitalar. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S154-S168.. Portanto, ao interpretar as informações sobre o tema no Brasil, é necessário prudência devido às diferentes abordagens metodológicas utilizadas nas pesquisas, como pode ser observado no Quadro 2.
Fatores de risco e proteção para a violência obstétrica
A violência obstétrica é resultado de uma interação entre diversos fatores, que incluem aspectos individuais, relacionais, socioeconômicos, culturais e ambientais. A abordagem ecológica desenvolvida por Bronfenbrenner e apresentada no Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde de 2002 nos auxilia na compreensão da etiologia multicausal da violência. O modelo contempla quatro níveis: 1) individual, 2) relacional, 3) comunitário e 4) sociedade (nível macro)2929 Krug EG, Mercy JA, Dahlberg LL, Zwi AB. The world report on violence and health. Lancet 2002; 360(9339):1083-1088, conforme a Figura 1.
Esse modelo ecológico pode ser adaptado para a violência obstétrica. Assim, o primeiro nível busca identificar características das mulheres que podem aumentar ou diminuir a probabilidade de sofrer violência obstétrica. Adolescentes ou acima de 35 anos, mulheres não brancas, imigrantes e de baixa classe socioeconômica são mais vulneráveis a vivenciar violência obstétrica, quando comparadas com mulheres entre 20-34 anos, brancas, de nacionalidade brasileira e alto poder aquisitivo. Esses dados evidenciam a estrutura de desigualdade social e racial existente em nosso país2222 Leal MC, Pereira APE, Domingues RMSM, Theme Filha MM, Dias MAB, Nakamura-Pereira M, Bastos MH, Gama SGN . Obstetric interventions during labor and childbirth in Brazilian low-risk women. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S1-S16..
Considerando os aspectos fisiológicos do parto, observa-se que mulheres primíparas, que entraram em trabalho de parto e que tiveram parto vaginal têm maior probabilidade de serem vítimas de violência obstétrica do que mulheres multíparas, que não entraram em trabalho de parto e passaram por uma cesariana2020 d'Orsi E, Brüggemann OM, Diniz CSG, Aguiar JM, Gusman CR, Torres JA, Tuesta AA, Rattner D, Domingues RMSM. Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento ao parto no Brasil: estudo nacional de base hospitalar. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S154-S168.. As evidências disponíveis indicam que situações que prolongam o tempo de interação da mulher com a equipe de saúde durante o período pré-parto aumentam o risco de violência obstétrica.
Ainda referente ao primeiro nível, destaca-se o motivo da internação na maternidade/hospital, se decorrente de parto ou abortamento. Embora a literatura não permita uma comparação direta entre essas diferentes experiências, a nossa hipótese é que a prevalência de violência obstétrica é maior entre mulheres que passaram por aborto, quando comparadas com aquelas que tiveram parto. Essa diferença se deve ao julgamento moral associado a essa prática em nossa sociedade. Não raro as mulheres em situação de aborto relatam ter sido questionadas repetidamente sobre terem induzido o aborto, além de relatarem negligência nos serviços de saúde por esse motivo1818 Fundação Perseu Abramo. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado [Internet]. 2010. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf
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O segundo nível do modelo ecológico explora como as relações sociais próximas podem influenciar o risco de violência obstétrica. Esse nível leva em consideração o relacionamento entre a equipe de saúde e as pacientes. Relações hierárquicas, com pouca oportunidade para as mulheres sanarem dúvidas e pouca autonomia para tomar decisões sobre o seu próprio corpo, podem aumentar a probabilidade de violência obstétrica2323 Leite TH, Pereira APE, Leal MC, Silva AAM. Disrespect and abuse towards women during childbirth and postpartum depression: findings from Birth in Brazil Study. J Affect Disord 2020; 273:391-401.. No caso do aborto, acrescenta-se o julgamento, a discriminação e a desconfiança da equipe de saúde em relação à intenção da mulher em provocar um aborto.
Por sua vez, estudos têm mostrado que a presença de um acompanhante durante toda a internação para o parto/aborto é um importante fator de proteção contra a violência obstétrica2121 Diniz CSG, d'Orsi E, Domingues RMSM, Torres JA, Dias MAB, Schneck CA, Lansky S, Teixeira NZF, Rance S, Sandall J. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S140-S153.,2323 Leite TH, Pereira APE, Leal MC, Silva AAM. Disrespect and abuse towards women during childbirth and postpartum depression: findings from Birth in Brazil Study. J Affect Disord 2020; 273:391-401.. No que diz respeito às doulas, não há evidências que indiquem um efeito, seja positivo ou negativo, sobre a ocorrência de violência obstétrica. Ressalta-se que a resistência à presença de doulas por parte de outras categorias profissionais da saúde é alta em nosso país, fazendo com que a presença e atuação dessas profissionais durante o parto possa ser um fator de risco em alguns contextos.
O terceiro nível do modelo ecológico se refere ao contexto comunitário no qual a violência ocorre. Considerando que 99% dos partos no Brasil são realizados em instituições de saúde, podemos destacar que estruturas hospitalares inadequadas, falta de leitos, profissionais de saúde em número insuficiente, medicalização da atenção ao parto e uma cultura que favorece a cesariana podem contribuir para a ocorrência de violência obstétrica3030 Bittencourt SDA, Reis LGC, Ramos MM, Rattner D, Rodrigues PL, Neves DC, Arantes SL, Leal MC. Structure in Brazilian maternity hospitals: key characteristics for quality of obstetric and neonatal care. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S1-12.. No caso do aborto, também se acrescenta a dificuldade de acesso a serviço de saúde, mesmo em situações legais3131 Madeiro AP, Diniz D. Serviços de aborto legal no Brasil - um estudo nacional. Cien Saude Colet 2016; 21(2):563-572..
No último nível, o social, estão incluídos os fatores estruturais e culturais que favorecem a ocorrência de violência obstétrica. Nesse nível, podemos citar questões legais que ferem os direitos reprodutivos das mulheres, a falta de autonomia da gestante para recusar qualquer tipo de tratamento que o médico considere necessário, criminalização do aborto, falta de políticas públicas para a prevenção da violência no ciclo gravídico puerperal, bem como a falta de respaldo legal para denúncia e punição dos agressores. Em casos de aborto, também é importante considerar as questões culturais de um país de maioria católica e evangélica, onde há um consenso moral e religioso que condena o ato, o que sustenta a existência de leis restritivas e punitivas3232 Coletivo Margarida Alves Grupo Curumim. Violência obstétrica no abortamento [Internet]. 2020. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://coletivomargaridaalves.org/cartilhas/
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. A influência dessas crenças religiosas na legislação e nas políticas públicas relacionadas ao aborto pode criar barreiras importantes para o acesso aos serviços de saúde reprodutiva. Essas restrições podem resultar em sérios impactos à saúde e aos direitos das mulheres, tornando o acesso ao aborto seguro e legal um desafio em nosso país.
Consequências da violência obstétrica
Nos últimos cinco anos, houve um aumento na produção acadêmica sobre as consequências da violência obstétrica na saúde das mulheres e dos recém-nascidos. Os primeiros estudos sobre o tema exploraram os efeitos da ocorrência de violência obstétrica na saúde mental materna, focando a depressão e o transtorno do estresse pós-traumático no pós-parto (TEPT).
Em relação à depressão, o Brasil foi pioneiro ao publicar, em 2018, o primeiro manuscrito sobre a relação entre violência obstétrica e depressão pós-parto3333 Souza KJ, Rattner D, Gubert MB. Institutional violence and quality of service in obstetrics are associated with postpartum depression. Rev Saude Publica 2017; 51:69.. Essa pesquisa revelou que a peregrinação e a ocorrência de violência física durante o parto estavam associadas à maior ocorrência de depressão pós-parto. Essa associação foi ainda mais forte em mulheres negras e adolescentes. Outra pesquisa, utilizando dados da Coorte de Nascimentos de Pelotas de 2015, também encontrou relação causal entre violência obstétrica e depressão pós-parto3434 Silveira MF, Mesenburg MA, Bertoldi AD, De Mola CL, Bassani DG, Domingues MR, Stein A, Coll CVN. The association between disrespect and abuse of women during childbirth and postpartum depression: Findings from the 2015 Pelotas birth cohort study. J Affect Disord 2019; 256:441-447.. Os autores desse estudo observaram uma relação dose-resposta, mostrando que o risco de ter depressão pós-parto cresceu conforme aumentou o número de atos de violência obstétrica sofridos.
Outro estudo nacional que também investigou essa relação utilizou dados da pesquisa Nascer no Brasil I. O estudo explorou se a via de parto ou a fonte pagadora da internação exercia alguma influência na magnitude da relação entre violência obstétrica e depressão pós-parto. Os pesquisadores não encontraram diferenças, mostrando que o aumento do risco de depressão pós-parto em consequência da violência obstétrica ocorre de forma semelhante em todas as mulheres, independentemente de terem tido parto vaginal ou cesariana, em serviços publicou ou privados2323 Leite TH, Pereira APE, Leal MC, Silva AAM. Disrespect and abuse towards women during childbirth and postpartum depression: findings from Birth in Brazil Study. J Affect Disord 2020; 273:391-401..
Publicações que avaliam a relação entre violência obstétrica e TEPT são relativamente recentes na literatura. Esses estudos apontam que a mulher pode perceber seu parto de forma traumática quando eventos durante o trabalho de parto, parto ou pós-parto colocam em risco sua vida ou a de seu recém-nascido. Além disso, situações em que há uma ruptura das expectativas imaginadas para o momento do parto/nascimento têm sido mencionadas na literatura como potencializadoras da percepção de trauma3535 Webb R, Ayers S, Bogaerts A, Jelicic L, Pawlicka P, Van Haeken S, Uddin N, Xuereb RB, Kolesnikova N; COST action CA18211:DEVoTION team. When birth is not as expected: a systematic review of the impact of a mismatch between expectations and experiences. BMC Pregnancy Childbirth 2021; 21(1):475.. Dessa forma, a experiência de violência obstétrica pode ser traumática, uma vez que não é esperado que a equipe de saúde trate as mulheres de forma violenta, especialmente em um momento de vulnerabilidade3636 Martinez-Vázquez S, Rodríguez-Almagro J, Hernández-Martínez A, Martínez-Galiano JM. Factors associated with postpartum post-traumatic stress disorder (PTSD) following obstetric violence: a cross-sectional study. J Pers Med 2021; 11(5):338-338..
Embora a maior parte da literatura sobre o impacto da violência obstétrica esteja centrada em desfechos relacionados à saúde mental, outras consequências também foram estudadas. Um estudo com dados oriundos da pesquisa Nascer no Brasil I evidenciou que mulheres que sofreram violência obstétrica apresentaram menor probabilidade de buscar serviços de saúde pós-natais, tanto para si mesmas quanto para seus bebês, principalmente entre usuárias do SUS3737 Leite TH, Gomes T, Marques ES, Pereira APE, da Silva AAM, Nakamura-Pereira M, Leal MC. Association between mistreatment of women during childbirth and postnatal maternal and child health care: findings from "Birth in Brazil". Women Birth 2021; 35(1):e28-e40.. Os autores explicam que a quebra de confiança no serviço de saúde como um todo pode afastar as famílias da atenção básica. Essa ruptura de vínculo teria o potencial de prejudicar a continuidade do cuidado, que inclui desde o planejamento familiar até o acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento da criança no seu primeiro ano de vida.
Outra consequência da violência obstétrica consiste na dificuldade de estabelecer e manter a amamentação. Pesquisa recente mostrou que mulheres que sofreram violência obstétrica durante a internação para o parto tiveram menor probabilidade de ter alta hospitalar com o bebê mamando exclusivamente no peito e menor probabilidade de estar amamentando dois meses após o parto3838 Leite TH, Marques ES, Mesenburg MA, Silveira MF, Leal MC. The effect of obstetric violence during childbirth on breastfeeding: findings from a perinatal cohort "Birth in Brazil". Lancet Reg Health Am 2023; 19:100438.. Esse efeito foi observado principalmente em mulheres que tiveram parto vaginal. Algumas hipóteses foram aventadas pelos autores para explicar essa relação. A violência obstétrica frequentemente acontece em um momento crítico, como o trabalho de parto e o parto em si, podendo causar, pelo estresse provocado, alterações irreversíveis na fisiologia da produção de leite, diminuindo as chances de a mulher amamentar após o parto. Além disso, mulheres que sofreram violência obstétrica podem receber menos apoio da equipe de saúde para estabelecer a amamentação3838 Leite TH, Marques ES, Mesenburg MA, Silveira MF, Leal MC. The effect of obstetric violence during childbirth on breastfeeding: findings from a perinatal cohort "Birth in Brazil". Lancet Reg Health Am 2023; 19:100438.. Por fim, outra possibilidade é que o efeito negativo da violência obstétrica sobre a amamentação esteja relacionado ao maior risco de depressão e outros transtornos mentais no pós-parto.
Considerando a negligência como um dos componentes da violência obstétrica, é possível supor que a negligência pode aumentar a probabilidade de near miss e de mortalidade materna e neonatal3939 Diniz SG, Salgado HO, Andrezzo HFA, Carvalho PGC, Carvalho PCA, Aguiar CA, Niy DY. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no Brasil: origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. J Hum Growth Dev 2015; 25(3):377-384.. Em contextos diferentes do Brasileiro, sobretudo em alguns países africanos que enfrentam resistência das mulheres em relação ao parto hospitalar, o medo da violência obstétrica e da cesariana é um dos principais motivos para a preferência por partos domiciliares. Nesses países, inclusive, a mitigação da violência obstétrica tem sido adotada como estratégia para aumentar a proporção de partos hospitalares e diminuir a mortalidade materna.
Intervenções
A violência obstétrica é um fenômeno complexo, e seus fatores de risco e proteção são amplos e distribuídos em diversos níveis micro e macroestruturais, conforme apresentado no modelo ecológico. Portanto, estratégias visando sua mitigação devem intervir dentro desses níveis, buscando modificar as estruturas que permitem a perpetração e a normalização dessa forma de violência contra as mulheres.
Assim, o empoderamento das mulheres (nível individual); a formação e capacitação dos profissionais de saúde (nível relacional); a vigilância epidemiológica e a denúncia (nível comunitário); e o amparo legal (nível macro) são os quatro pilares essenciais para a mitigação da violência obstétrica.
No que diz respeito às mulheres, a principal intervenção que pode ser efetuada é a divulgação de informações de qualidade, baseadas em evidências científicas, sobre o processo de gestação, parto, puerpério e sobre situações de abortamento. Além disso, é fundamental conscientizar as mulheres acerca de seus direitos legais. Essas informações devem ser disponibilizadas durante o pré-natal, bem como em visitas para conhecer a maternidade, na internação para o parto e nas consultas pós-parto. Também é importante disponibilizar informações sobre violência obstétrica, de modo que a mulher possa reconhecer práticas danosas e desrespeitosas.
Em relação aos profissionais de saúde (segundo nível), é importante que recebam treinamento e formação continuada para adotarem práticas baseadas em evidências científicas e tenham conhecimento sobre diretos humanos e reprodutivos, assim como a respeito das diversas formas de prevenção de violência que podem ocorrer em serviços de saúde. A promoção de um relacionamento não hierárquico e respeitoso entre equipe de saúde e a mulher também é necessária. Atualmente, grande parte das decisões em saúde pode e deve ser tomada levando em consideração o contexto da paciente, sua opinião e cultura. Assim, é fundamental estimular decisões compartilhadas entre equipe de saúde e a mulher.
Ainda em relação ao segundo nível, intervenções destinadas a mitigar a violência obstétrica também devem levar em consideração aspectos importante dos trabalhadores da saúde em nosso país, abordando questões como carga horária exaustiva, superlotação do sistema de saúde, principalmente no setor público, condições de trabalho precárias e problemas de saúde mental desencadeados pelo processo de trabalho. É importante assegurar que os profissionais que atuam na atenção ao ciclo gravídico-puerperal tenham condições dignas de trabalho e sejam amparados, recebendo suporte psicossocial quando necessário.
Em relação ao terceiro nível, é fundamental que os hospitais/maternidades realizem vigilância epidemiológica de indicadores relacionados à violência obstétrica e à satisfação com o atendimento recebido, seguindo o exemplo do que é realizado em relação a alguns indicadores de saúde materna e perinatal. Além disso, a denúncia é uma forma importante de as mulheres tornarem públicos atos de violência obstétrica que tenham ocorrido em qualquer etapa do ciclo reprodutivo. Portanto, é essencial que os estabelecimentos de saúde incentivem mulheres, familiares e outros profissionais de saúde a denunciar a prática de violência obstétrica, oferecendo canais de comunicação para essa finalidade. Por fim, no último nível, é importante que existam leis específicas que tipifiquem a violência obstétrica como crime e estabeleçam punições para seus perpetradores.
É válido mencionar que um crescente número de estudos que avaliam intervenções para mitigação da violência obstétrica dentro do ambiente hospitalar tem sido publicado4040 Dhakal P, Creedy DK, Gamble J, Newnham E, McInnes R. Educational interventions to promote respectful maternity care: a mixed-methods systematic review. Nurse Educ Pract 2022; 60:103317.. Esses estudos se concentram tanto na avaliação de ações para minimizar a ocorrência de violência obstétrica como para promover o cuidado materno respeitoso. Essa abordagem abrange um conjunto de ações voltadas para garantir uma experiência de parto positiva, valorizando a autonomia, a dignidade e os direitos das mulheres.
A revisão sistemática mais recente, publicada em 2023, identificou sete estudos que avaliaram intervenções em maternidades com o objetivo de mitigar violência obstétrica4040 Dhakal P, Creedy DK, Gamble J, Newnham E, McInnes R. Educational interventions to promote respectful maternity care: a mixed-methods systematic review. Nurse Educ Pract 2022; 60:103317.. Todos esses estudos foram conduzidos em países africanos. Em geral, essas intervenções foram multicomponentes, abrangendo mais de um nível do modelo ecológico mencionado. As intervenções incluíam a disseminação de informação para as mulheres por meio de ilustrações, panfletos e vídeos. Além disso, foram realizados treinamentos e workshops para as equipes de saúde, abordando temas como violência obstétrica, direitos humanos e das mulheres, ética e qualidade do atendimento em saúde. Também foram oferecidos treinamento técnico às equipes. Alguns estudos também se concentraram em ações em nível comunitário, como disseminação de informações sobre direitos sexuais e reprodutivos para a comunidade, e aconselhamento jurídico para denúncias e mediação de conflitos. Os resultados desses estudos evidenciaram que as intervenções implementadas reduziram a ocorrência de violência obstétrica.
No entanto, estudos futuros se fazem necessários, visando o desenvolvimento e a avaliação de intervenções que abordem a violência obstétrica de forma mais abrangente e eficaz. Esses estudos poderiam contribuir para a adoção de estratégias baseadas em evidências direcionadas aos diversos níveis do modelo ecológico, a fim de promover uma assistência materno-infantil mais respeitosa e livre de violência.
Conclusão
Esta revisão ressalta a importância de compreender o estado atual do conhecimento sobre a violência obstétrica no contexto nacional. As evidências apresentadas destacam a urgência de enfrentar esse problema de saúde pública, que afeta a integridade física, emocional e os direitos das mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal.
A revisão revelou lacunas significativas na literatura sobre violência obstétrica, enfatizando a necessidade de mais estudos sobre as consequências negativas para a saúde e o bem-estar das mulheres e dos recém-nascidos em diferentes contextos. É crucial expandir o escopo das pesquisas para incluir mulheres em situação de aborto, reconhecendo que a violência obstétrica é uma realidade enfrentada por esse grupo. Outra lacuna identificada diz respeito à falta de consenso na terminologia, na definição e, consequentemente, na ausência de um instrumento preciso para mensurar o problema. Além disso, a falta de estudos que abordem intervenções para mitigar a violência obstétrica também é uma lacuna que deve ser abordada em pesquisas futuras.
O investimento em pesquisas epidemiológicas estruturadas e representativas é fundamental para a compreensão mais aprofundada desse problema. Esses estudos fornecerão informações importantes para o desenvolvimento de políticas públicas mais adequadas ao contexto nacional, promovendo uma transformação efetiva nos serviços de saúde e garantindo o respeito aos direitos reprodutivos e à dignidade das mulheres.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 -
Data do Fascículo
Set 2024
Histórico
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Recebido
30 Ago 2023 -
Aceito
11 Set 2023 -
Publicado
13 Set 2023