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As influências do Grupo Banco Mundial no campo da Educação Superior: pautas contemporâneas em torno da avaliação

Las influencias del Grupo Banco Mundial en el campo de la Educación Superior: pautas contemporáneas en torno a la evaluación

Resumo

As discussões levantas nesse texto são fruto de pesquisa acerca da atuação do Grupo Banco Mundial (BM) no campo da educação superior. O autor tem o pressuposto de que as concepções em torno da avaliação da educação superior dos Estados-membros do BM são, parcial ou totalmente, delineadas pelos tensionamentos causados por esse organismo através de documentos orientadores por ele publicados. Para confirmação dessa hipótese, é apresentada a análise do What matters most for tertiary education systems: a framework paper, que se configurou como um documento orientador para a criação e o fortalecimento de ferramentas de avaliação dos sistemas educacionais. A análise semântico-categorial do referido documento, apontou a existência da criação de mecanismos avaliativos por parte do BM, assentados na neoliberalização da educação, em torno dos seguintes tópicos: diversificação institucional, economia do conhecimento, participação do setor privado, financiamento das atividades e acesso e permanência na educação superior. Ressalta-se que este documento bancomundialesco é pouco explorado na literatura científica brasileira. Por isso, considera-se o tempo presente como um momento oportuno para serem erguidas novas trincheiras pela defesa da ideia de ensino superior público, gratuito, laico e de qualidade socialmente referenciada. É a isso que o presente artigo se propõe.

Palavras-chave:
avaliação; educação superior; grupo banco mundial

Resumen

Las discusiones planteadas en este texto son el resultado de una investigación sobre el trabajo del Grupo Banco Mundial (BM) en el campo de la educación superior. El autor parte de la premisa de que las concepciones en torno a la evaluación de la educación superior en los Estados miembros del BM están parcial o totalmente delineadas por las tensiones provocadas por este organismo a través de documentos orientadores publicados por él. Para confirmar esta hipótesis, se presenta el análisis de What matters most for tertiary education systems: a framework paper, que se configuró como un documento orientador para la creación y fortalecimiento de herramientas de evaluación de los sistemas educativos. El análisis semántico-categórico del citado documento señaló la existencia de la creación de mecanismos evaluativos por parte del BM, basados en la neoliberalización de la educación, en torno a los siguientes temas: diversificación institucional, economía del conocimiento, participación del sector privado, financiamiento de actividades, acceso y permanencia en la educación superior. Es de destacar que este documento bancario global está poco explorado en la literatura científica brasileña. Por tal razón, el momento actual se considera oportuno para construir nuevas trincheras para defender la idea de una educación superior pública, gratuita, laica y de calidad socialmente referenciada. Esto es lo que propone este artículo.

Palavras clave
evaluación; educación superior; grupo banco mundial

Abstract

The deliberations raised in this paper result of a research on the work of the World Bank Group (WB) in the field of tertiary education, carried out, in part, during a Doctorate course in Education. The author starts from the assumption that the conceptions around the evaluation of tertiary education in WB Member States are, partially or totally, outlined by the tensions caused by this organism, through guiding documents published by it. To confirm this hypothesis, an analysis of “What matters most for tertiary education systems: a framework paper” is presented, set as a guiding document for the creation and strengthening of evaluation tools for educational systems. The semantic-categorical analysis of that document pointed to the creation of evaluation mechanisms by the WB, based on the neo liberalization of education, around the following topics: institutional diversification, knowledge economy, participation of the private sector, financing of activities and access and permanence in higher education. It should be noted that this World Bank document is little explored in Brazilian scientific literature. Therefore, the present time is considered an opportune moment to build new trenches in defence of the idea of public higher education, free of charge, secular and of socially referenced quality. This is what this article proposes.

Keywords
evaluation; tertiary education; world bank group

1 Considerações iniciais

O presente artigo é fruto de pesquisa desenvolvida, no contexto das discussões em torno da política educacional, do planejamento e da gestão da Educação. O objetivo foi analisar as atuações dos Organismos Internacionais no campo da educação superior da América Latina. Ao longo desse artigo, são apresentados alguns dos dados resultantes que dizem respeito à atuação do Grupo Banco Mundial (BM) no referido campo.

O BM tem atuações em educação superior, desde a década de 1960 (Santos, 2014SANTOS, Thiago Rodrigo Fernandes da Silva. Análise psicopedagógica da proposta educacional Aprendizagem para Todos do Grupo Banco Mundial. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação (Bacharelado em Psicopedagogia) - Departamento de Psicopedagogia, Centro de Educação, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/4409/1/TRFSS11092014.pdf. Acesso em: 16 abri. 2015.
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, 2017SANTOS, Thiago Rodrigo Fernandes da Silva. Análise da atuação do Grupo Banco Mundial na Educação Superior do Brasil. 2017. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/27927/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20Thiago%20Rodrigo%20Fernandes%20da%20Silva%20Santos.pdf. Acesso em: 30 jan. 2018.
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, 2020SANTOS, Thiago Rodrigo Fernandes da Silva. Atuação do Grupo Banco Mundial frente ao fracasso escolar no Brasil: Para uma análise psicopedagógica. In: ANDRADE, Edson Francisco de; ARRUDA, Ana Lúcia Borba de. (orgs.). Política educacional e desigualdades sociais no Brasil: contextualizações e posicionamentos. Recife: Ed. UFPE, 2020. p. 92-115. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/catalog/view/93/101/272. Acesso em: 19 maio 2021.
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). Elas podem se dar de duas formas: como orientação ideológica, por meio da publicação de documentos orientadores para ação de seus Estados-membros, nas mais diferentes áreas - que aqui também denominamos de textos políticos -, ou, além dessa, por meio de financiamento para execução de projetos.

A pesquisa em tela, diz respeito à análise da influência ideológica do Banco, propagada por meio de um documento mundial - termo utilizado por Santos (2022)SANTOS, Thiago Rodrigo Fernandes da Silva. O Banco Mundial e a educação superior na América Latina: mapeamento de documentos e eixos articuladores de políticas. 2022. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/49362. Acesso em: 19 maio 2023.
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- que se voltou para a temática da criação de ferramentas e indicadores para mensuração de resultados no campo da educação superior. O texto analisado foi o What matters most for tertiary education systems: a framework paper. Logo, os resultados apresentados são fruto de pesquisa documental dos originais publicados em Língua Inglesa1 1 Para redação do artigo, optou-se por realizar as citações diretas do documento analisado em Língua Portuguesa. Todas elas, resultado de tradução livre realizada por profissional fluente no idioma de publicação original. .

Publicado em 2016, o What matters most for tertiary education systems: a framework paper é um documento da série Systems Approach for Better Education Results (SABER) que, por sua vez, foi lançada em 2011 pelo BM, com o objetivo de criar programas capazes de melhorar o desempenho dos estudantes de todas as etapas de ensino dos seus Estados-membros. Isso, de acordo com o projeto SABER, se daria através da criação de mecanismos para aferição de dados passíveis de comparação entre os sistemas educacionais e que, dentre outros motivos, serviria para gerar políticas educativas voltadas às instituições educacionais dos membros do BM.

Toda a série de documentos SABER servem como suporte para o cumprimento da estratégia do BM intitulada Learning for all: investing in people's knowledge and skills to promote development (Learning for all), publicada no ano de 2011 pelo Banco. Uma análise aprofundada dessa publicação de 2011 foi feita por Santos (2014SANTOS, Thiago Rodrigo Fernandes da Silva. Análise psicopedagógica da proposta educacional Aprendizagem para Todos do Grupo Banco Mundial. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação (Bacharelado em Psicopedagogia) - Departamento de Psicopedagogia, Centro de Educação, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/4409/1/TRFSS11092014.pdf. Acesso em: 16 abri. 2015.
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, 2020SANTOS, Thiago Rodrigo Fernandes da Silva. Atuação do Grupo Banco Mundial frente ao fracasso escolar no Brasil: Para uma análise psicopedagógica. In: ANDRADE, Edson Francisco de; ARRUDA, Ana Lúcia Borba de. (orgs.). Política educacional e desigualdades sociais no Brasil: contextualizações e posicionamentos. Recife: Ed. UFPE, 2020. p. 92-115. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/catalog/view/93/101/272. Acesso em: 19 maio 2021.
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). Este, denunciou a concepção de aprendizagem defendida pelo BM na referida estratégia, argumentando ser esta desatrelada dos contextos sócio-históricos, principalmente dos Estados-nação do Sul-global marcados pela desigualdade intrínseca ao desenrolar do capitalismo. Dessa forma, pode-se afirmar que o What matters most for tertiary education systems: a framework paper, também denominado de SABER-Tertiary Education (SABER-TE) é uma iniciativa que também visou dar sustentação ao defendido no texto de 2011.

Na realidade, o projeto SABER foi colocado como o coração da Estratégia 2020 do BM, porque sua aplicação permitiria a este uma visão sistêmica da educação, apontando análises aprofundadas para viabilização de reformas educativas frente a temaschave que compõem o nível da Educação Básica e o nível da Educação Superior2 2 Todos os treze documentos que compõem o SABER, se encontram disponíveis no sítio eletrônico https://www.worldbank.org/en/topic/education/brief/systems-approach-for-better-education-results-saber. . No presente artigo, são discutidos os resultados da análise sobre o SABER-TE e o porquê de ele ser considerado a peça-chave para a compreensão das atuações do BM no campo da avaliação comparativa entre os sistemas de Educação Superior no mundo. Não se pode perder de vista que o BM tem 189 Estados-membros, de um total de 193 Estados reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Como é de se esperar, por se tratar de um documento de esfera mundial, todo ele está originalmente redigido em Língua Inglesa. Por este motivo, a análise documental considerou os aspectos morfológicos, sintáxicos e semânticos do conteúdo manifesto em sua publicação na língua original. Além disso, levou-se em consideração o contexto da produção do texto, partindo do pressuposto de que sua publicação não se desatrela da historicidade e do perfil de atuação e intervenção do BM.

Ressalta-se, ainda, que o tema é pouco explorado na literatura científica brasileira, sendo este o momento oportuno para que sejam indicadas novas trincheiras a serem erguidas pela defesa da ideia de ensino superior público, gratuito, laico e de qualidade socialmente referenciada.

2 Para uma compreensão do que é o SABER e o SABER-TE

O Systems Approach for Better Education Results (SABER) é uma série composta por 13 documentos assinados pelo BM, que servem como um meio para rastrear diferenças entre os seus 189 países-membros em termos de necessidades, políticas e práticas de gestão nas mais diferentes subáreas da educação. Sua estrutura se baseia na ênfase em benchmarking - que significa o conjunto de práticas de avaliação comparativa, que permite estudos de concorrência, visando perceber e analisar em profundidade as medidas exitosas de empresas do mesmo ramo, para replicar na que realiza a avaliação.

Ao mesmo tempo em que o SABER objetiva a criação de ferramentas diagnósticas, também visa comparações entre os países signatários - leia-se, todos os membros do BM. Os domínios da cartela SABER são os descritos no diagrama 1:

Diagrama 1
Domínios de política do SABER

Em específico, o documento SABER-Tertiary Education (SABER-TE) começa por enaltecer os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, apontando-os como os possibilitadores do progresso educacional auferido - especialmente para a educação primária - desde o seu lançamento, nos anos 2000. Interessante, que desde a nota introdutória do SABER-TE, o BM denomina seus Estados-membros de “países-clientes”. Afirma, ainda, que a publicação Leaning for all é um guia para a organização de países de renda média que desejam ser competitivos, através do treinamento da força de trabalho adaptável.

O organismo internacional segue fazendo um breve levantamento histórico sobre suas atuações ao longo dos anos, iniciando por citar a primeira delas, ocorrida em 1963, no campo da educação superior. Enfatiza as décadas de 1960 e 1970 como um tempo geopoliticamente turbulento, onde foram criadas medidas de instrução de pessoal para o alívio da pobreza, com impulsionamento das atuações do Banco.

Segundo Almeida (2005)ALMEIDA, Wellington. A trajetória das instituições financeiras multilaterais e suas relações com as políticas públicas. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 9, n. 1, p. 173-188, jul./dez. 2005. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/233143126.pdf. Acesso em: 3 jun. 2023.
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, as primeiras décadas de existência do BM foram de atuação no financiamento de programas da/na área de infraestrutura de transporte e energia. O setor de infraestrutura é aquele que apronta o terreno para a implantação de indústrias, da mesma forma que é o que impulsiona redes de financiamento, visando a produção e o fluxo de mercadorias (Coelho, 2012COELHO, Jaime Cesar. Economia, poder e influência externa: o Banco Mundial e os anos de ajuste na América Latina. São Paulo: Ed. Unifesp, 2012.). Cabe notar que “o setor de infraestrutura é, de longe, o mais financiado [pelo BM] nos anos 1950-1960, consumindo entre 61% e 64% do total de recursos [...]” (Coelho, 2012COELHO, Jaime Cesar. Economia, poder e influência externa: o Banco Mundial e os anos de ajuste na América Latina. São Paulo: Ed. Unifesp, 2012., p. 104).

Antes de 1960, na agenda extraeconômica do BM o debate girava em torno das “necessidades sociais”, não na “pobreza” (PEREIRA, 2010PEREIRA, João Márcio Mendes. O Banco Mundial e a construção político-intelectual do “combate à pobreza”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 260-282, jul./dez. 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/9pbHm3pRMrsRK7gZwQjFnNP/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 16 abr. 2020.
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). Paulatinamente é que o foco passou a ser o “[...] combate à pobreza a longo prazo” (Charlot, 2007CHARLOT, Bernard. Educação e globalização: uma tentativa de colocar ordem no debate. Sísifo/Revista de Ciências da Educação, Lisboa, s/v., n. 4, p. 129-136, out./dez. 2007. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5653650/mod_resource/content/1/CHARLOT_2007_Educa%C3%A7%C3%A3o%20e%20globaliza%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 3 jun. 2022.
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, p. 133). Em se tratando das décadas de 1970 e 1980, o próprio BM prefere considerá-las como sendo um terreno que foi pouco fértil para a criação de políticas de educação superior.

A década de 1990, ao ser descrita no texto do SABER-TE, é colocada como uma virada de chave nos empreendimentos para o nível da educação superior - sendo a publicação do La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiencia (World Bank, 1995WORLD BANK. La enseñanza superior: las leccionesde la experiencia. Washington, D.C.: World Bank, 1995. (Conleção El deasarrollo en la práctica). Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/274211468321262162/pdf/133500PAPER0Sp1rior0Box2150A1995001.pdf. Acesso em: 9 set. 2022.
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) considerada como um divisor de águas. Ao chegar na análise do tempo contemporâneo à publicação, o próprio BM afirma ter um portfólio diversificado com mais de 80 projetos com suporte financeiro e de assistência técnica para as demandas do campo.

De acordo com o texto do SABER-TE, os projetos citados estariam variando entre as áreas de

[…] garantia de qualidade, diversificação institucional, esquemas de financiamento baseados em desempenho, alinhamento de ofertas acadêmicas com as necessidades do mercado e da sociedade, financiamento de programas de acesso equitativo, parcerias público-privadas, ciência e tecnologia e reforma da governança, entre outros [que equivaleria à 20% do total de investimentos em educação feitos no ano de 2014] (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
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, p. 12).

Porém, um outro dado é sumamente relevante e, por isso, merece destaque: “Além disso, em junho de 2014, a International Financing Corporation (IFC) [CFI, em Língua Portuguesa] - o braço do setor privado do Grupo Banco Mundial - tinha uma carteira de educação de US$ 770 milhões, dos quais aproximadamente 70% foram dedicados a iniciativas de ensino superior” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
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, p. 12).

Em sendo a CFI a agência responsável pela proteção, criação e disseminação do setor privado em todos os Estados-membros do BM e a metodologia SABER a estratégia de avaliação comparativa entre os sistemas educacionais desses mesmos Estadosmembros, se chega à conclusão de que a ambiência criada pelo BM para a efetivação daquilo que é denominado de “melhoria da performance” e de “financiamento e equidade nos programas de acesso” são estratégias de remodelamento do papel do Estado para com esse nível de ensino. Estas em direção à privatização da oferta e das formas de funcionamentos das instituições.

3 Análise e discussão da concepção de Educação Superior presente no SABERTE: temas em destaque

No SABER-TE, o BM apresenta um mecanismo de pontuação para avaliar individualmente as Instituições de Ensino Superior (IES) presentes nos sistemas nacionais, a partir de seis dimensões do que eles denominam de “política educacional”. Estas são: (1) visão para com a educação superior, (2) marco regulatório da educação superior, (3) governança, (4) financiamento, (5) garantia de qualidade e (6) relevância da educação superior para com as necessidades econômicas e sociais do país.

A mensuração em cada uma dessas dimensões resultaria em uma pontuação total para escalonar a posição da IES frente ao sistema ao qual pertence e a todas as demais IES dos Estados-membros do BM. Vale ressaltar que essa rubrica de pontuação foi desenvolvida pelo BM em conjunto com o Centro Mediterrâneo de Integração, sem fins de análise macro de sistemas de ensino superior. Mas, a proposta é que essa metodologia avance para Regiões além da África, onde, de acordo com o documento, inicialmente foi implantada/experimentada.

Daí, ao longo do texto do documento, o BM afirma ser a educação superior fundamental por três motivos: (1) para promover o crescimento, (2) para o desenvolvimento e (3) para a redução da pobreza. Não fica tão nítido qual seria a diferença entre “promover o crescimento” e “ser fundamental para o desenvolvimento”. A análise aqui feita, permitiu inferir que o termo “crescimento” mais se refere aos ganhos pessoais e individuais daqueles que ingressam nesse nível, já o termo “desenvolvimento” está alocado na perspectiva de fatores econômicos e ao aumento de riquezas para o país.

O texto vai em defesa do entrelaçamento da educação superior às etapas de ensino da Educação Básica. E, para que essa ligação seja mais estreita, o SABER-TE pressupõe uma visão estratégica e um plano de ação que permitiria o fortalecimento das etapas anteriores ao nível superior de ensino.

Incisivamente, no documento é chamada à atenção para que os governos de seus Estados-membros selecionem as partes interessadas (stakeholders) mais relevantes e adequadas, para atuarem junto a si, no intento de transformar sua visão para com a educação superior em um plano concreto de execução que leve em consideração as necessidades locais. Essa é a guisa de todos os temas que tecem o corpo do SABERTE. Para facilitar a apresentação dos argumentos, a análise foi dividida em blocos, que passam a ser apresentados nas subseções abaixo.

3.1 Diversificação

No que tange à diversificação no campo da educação superior, o BM reconhece o papel desempenhado pelos sistemas de ensino superior através das IES, evidenciando que estas, a depender do seu tipo e da sua missão, terão papéis específicos. Nitidamente, o organismo multilateral mantém acesa a ideia de diversificação dos tipos de instituição, como maneira de solucionar muitos dos problemas que rondam o tema do acesso. Abaixo, o diagrama 2 traz a reprodução de um dos diagramas presentes no texto do SABER-TE, que melhor caracteriza como se dividiriam os papéis dos diferentes tipos de IES segundo o postulado do BM.

Diagrama 2
Tertiary Education’s Diversified Roles

Correlacionado com o debate sobre o perfil das IES, o BM insiste que a taxa de retorno financeiro para os estudantes graduados é maior do que a média de retorno dos formados no nível da Educação Básica, independentemente de onde estes tenham cursado seu curso superior (Santos, 2017SANTOS, Thiago Rodrigo Fernandes da Silva. Análise da atuação do Grupo Banco Mundial na Educação Superior do Brasil. 2017. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/27927/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20Thiago%20Rodrigo%20Fernandes%20da%20Silva%20Santos.pdf. Acesso em: 30 jan. 2018.
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). No SABER-TE, o Banco preferiu trazer citações de pesquisadores que criaram metodologias de avaliação dos impactos na vida de quem tem a posse de um diploma.

Acerca dos diplomas e dos diplomados, Bourdieu (2011)BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2. ed. Porto Alegre: Zouk, 2011., ainda no século XX, tece seus argumentos a partir do fato, segundo a sua constatação, de que IES com diferentes objetivos institucionais e diferentes níveis de prestígio social conferirão capitais culturais institucionalizados diferentemente prestigiados - o que impactará na maneira como esse retorno pessoal chegará ao sujeito formado. Por mais que Bourdieu (2011)BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2. ed. Porto Alegre: Zouk, 2011. não foque sua análise nos fatores de diferenciação administrativa das IES - se pública ou privada, por exemplo -, seu posicionamento cabe aqui como fator de ponderação para a visualização das similitudes do que se percebe hoje, quando das diferenças administrativas defendidas pelo BM.

Também entra na pauta do texto em questão o marco legislativo local dos Estados-membros, justamente apenas quando é colocada em xeque a diversificação do tipo de instituição. Nos trechos que dizem respeito ao assunto, o que se sobressalta são os vértices para a efetivação do aplainamento de terreno à outras partes interessadas, além dos estudantes e do setor público, poderem atuar no campo da educação superior dos sistemas nacionais. Nas palavras do BM:

A necessidade de esclarecer os papéis e requisitos na legislação está se tornando cada vez mais importante, dada a crescente complexidade do setor de ensino superior e os diversos atores que podem estar envolvidos. Um marco regulatório adequado ajuda a esclarecer como os diversos atores operam no sistema, permitindo espaço para organizações estatais e privadas sem criar barreiras à flexibilidade (Fielden 2008). (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
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, p. 29).

No texto, o Banco entra no tema da “governança em educação superior”, a definindo como sendo a capacidade de o sistema de ensino superior ter estrutura adequada, políticas e processos que permitam às IES que o compõem operar de forma eficiente e eficaz. Acrescenta que, ao mesmo tempo em que a governança está baseada em contextos culturais e históricos, ela também é o resultado de marcos regulatórios internacionais. Enfatiza o Banco:

Como mencionado acima, uma estrutura de governança sólida é baseada em um quadro regulatório adequado. Tal estrutura inclui coordenação adequada entre os vários componentes de um sistema diversificado, bem como medidas adequadas de autonomia institucional e responsabilização. Juntos, esses componentes ajudam um sistema de ensino superior a atender com mais eficácia às necessidades nacionais e locais (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
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, p. 30).

Na compreensão do BM, a categorização dos tipos de IES se baseia na missão que fundamenta seu surgimento ou que a orienta. Nesse caso, existe uma taxonomia dada pelo Banco, que argumenta a existência de sistemas e, dentro desses, subsistemas de ensino superior. Os sistemas corresponderiam ao todo de IES com operação/funcionamento em um dado Estado. Já em se tratando dos subsistemas, citando Lester (2005) e Hatakenaka (2008), o BM afirma serem eles os subconjuntos de tipos de IES - como as de pesquisa, as de ensino e as de formação técnica; ou, ainda, os subsistemas (IES públicas e IES privadas).

Na análise aqui empreendida, se considera um contrassenso os motivos da defesa feita pelo BM para a criação de um marco regulatório robusto que favoreça a existência dessa diversificação. Este é evidenciado no trecho:

[…] facilita a articulação, ou a transição dos alunos entre diferentes tipos de instituições. A articulação compreende mecanismos que possibilitam a mobilidade estudantil dentro do setor terciário, como acúmulo e transferência de créditos acadêmicos, reconhecimento e equivalência de diplomas, reconhecimento de aprendizado prévio, etc. (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
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, p. 31).

O Banco chega a defender que a não obrigatoriedade legal de as universidades terem que fazer parceiras com as IES não-universitárias pode gerar insegurança, até mesmo, nas parcerias delas com outras IES universitárias (sic). O trecho que contém esse resvalo é:

Em contextos em que as universidades não têm obrigação de se articular com instituições não universitárias e não há histórico de cooperação interinstitucional, as instituições podem ver a articulação - mesmo com seus pares - como uma ameaça à sua autonomia” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 31).

Algo que foge à regra das publicações do BM, mas que no texto do SABER-TE é levantado, é a indicação de que os alunos matriculados nas IES privadas possam migrar para as públicas e vice-versa. Para que isso possa ocorrer, o BM indica que o Estado facilite os processos de transferência, criando mecanismos que permitam esse procedimento.

A de se considerar que ao longo do SABER-TE, a questão dos pilares tradicionalmente universitários, quais sejam Ensino-Pesquisa-Extensão, são valorizados como algo que deve ser perene; porém, nas IES que se destinam a isso. Chama à atenção que o pilar Extensão é posto como uma atividade de elo entre as IES de modelo universitário, a indústria e a sociedade de modo geral. O BM demonstra uma preocupação quanto a isso, que é:

[…] apesar de importantes exemplos de boas práticas de classe mundial, o potencial das instituições de ensino superior para enfrentar os consideráveis desafios sociais, culturais e ambientais das regiões e grupos que atendem muitas vezes permanece inexplorado” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 24).

No entender do BM, dar foco ao Ensino e à Pesquisa, desconsiderando as atividades mais socialmente orientadas (termo utilizado pelo BM), limita a prestação de serviços que a instituição universitária pode oferecer, uma vez que o foco em Ensino e Pesquisa […] pode deixar de gerar a massa crítica necessária para produzir projetos que possam ter efeitos multiplicadores potencialmente positivos em nível local e regional” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 24-25). Para que não ocorra o que no seu entender é um problema, este OI sugere a diversificação dos tipos de IES.

No que concerne ao tema da Pesquisa e Desenvolvimento, o BM afirma que é necessário cada país analisar sua capacidade interna de produção e criar tecnologias que sejam adequadas e relevantes para sua localidade. Para isso, ampara seus postulados em autores do campo acadêmico, dando ao conteúdo presente no documento aquilo que Bourdieu (1998)BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. denomina de “verniz técnico”. Chama para somar à essa responsabilidade, o papel dos institutos tecnológicos, faculdades comunitárias e institutos tecno-vocacionais, para além das IES universitárias.

Quanto aos temas levantados a partir dessa publicação, se percebeu que, após o Banco reconhecer que as IES públicas são aquelas onde mais se produz pesquisa científica, elas são chamadas a se aproximar do setor produtivo privado. Assim como, foram convidadas a calibrar sua capacidade de pesquisa à produção de produtos/serviços comercializáveis, como um caminho para o desenvolvimento dos sistemas de educação superior nos Estados-membros.

Em um panorama de mundo onde nem todos podem optar por ter acesso ao modelo de formação universitária, o problema não está em existirem diferentes tipos de instituições. O que está em jogo, e que se considera nessa análise como problemático, é a criação de mecanismos que solapariam a possibilidade de os sujeitos advindos das camadas populares optarem por quaisquer um desses modelos, especialmente o de caráter universitário.

Na vertente capitalista contemporânea predominante, baseada na concorrência e na monetarização das pessoas, dos objetos e do não-real, seria impossível a concretização desse tipo de escolha para a totalidade dos indivíduos. Ou melhor: seria impossível a construção e aplicação de um modelo de oportunidades onde existisse a verdadeira valorização dos agentes que transitam no macrocampo social, especialmente os de origem periférica e que estão na base da pirâmide social.

3.2 Economia do conhecimento, maior participação do setor privado e financiamento das atividades

O tema da economia do conhecimento, também é presente no texto. Ele é utilizado como argumento para tratar da relação entre o fomento da educação superior e a competitividade econômica em nível local, regional e nacional - no SABER-TE, o termo “local” é sinônimo de estadual/provincial. A educação superior não está distante das mudanças geradas pela globalização, que dizem respeito à transição da economia mundial baseada na indústria para um sistema-mundo baseado no conhecimento. Por este motivo, o BM endossada nesse documento que o investimento em projetos para os sistemas de ensino superior dos Estados-membros ganhou ares de urgência.

Ao longo da análise, na inferência e interpretação do que é posto como conteúdo no SABER-TE, foi importante dar ênfase à posição dos argumentos que respaldam a tentativa do BM para a abertura do campo da educação superior aos auspícios do setor privado. Quando o tema é financiamento, um trecho marcante é o seguinte: “FINANÇAS: O financiamento público é usado para orientar a educação terciária em direção aos objetivos previstos para todo o sistema. O financiamento privado contribui para a educação terciária como relevante e apropriado” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 32). Isso recorda os estudos de Espinoza (2016ESPINOZA, Óscar. El rol del Banco Mundial en la conformación de las políticas de educación superior en las sociedades en desarrollo. In: FÁVERO, Altair Alberto; TAUCHEN, Gionara (org.). Políticas de educação superior e docência universitária: diálogos sul-sul. Curitiba-PR: CRV, 2016. p. 15-71. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/312155192_El_Rol_del_Banco_Mundial_en_la_Conformacion_de_las_Politicas_de_Educacion_Superior_en_Sociedades_en_Desarrollo. Acesso em: 18 abr. 2020.
https://www.researchgate.net/publication...
, p. 6, tradução nossa), segundo os quais “[...] as políticas do Banco Mundial em educação têm se concentrado na educação privada, provisão privada, autofinanciamento, esquemas de crédito, recuperação de custos e direcionamento de gastos públicos em setores pobres”.

No texto do documento, ao justificar qual seria a atuação do Estado na regulação do referido campo, o BM pressupõe que a principal delas é “[...] estabelecer um arcabouço legal e operacional que garanta a qualidade do ensino oferecido por instituições de ensino superior públicas e privadas” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 16). E, na continuidade ele ainda expressa: “o desafio é orientar os sistemas de ensino superior para a superação e a redução da desigualdade, principalmente no que diz respeito a alunos de populações carentes” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 16). Nitidamente, a intenção foi atrelar o papel do Estado ao favorecimento e ao fomento do setor privado como um dos responsáveis pela redução das desigualdades de acesso da população hipossuficiente a esse nível educativo.

De acordo com o argumento do BM, o rápido crescimento econômico dos países de renda média (como Brasil, China e Índia) fez aumentar as demandas deles por formação em nível superior da mão de obra, para que pudessem ser mais competitivos na economia global (no sistema-mundo baseado na economia do conhecimento). Literalmente, essa tese assim está disposta:

o resultado é uma demanda intensa por acesso ampliado ao ensino superior, particularmente ao ensino e treinamento técnico e profissional (TVET), que pode fornecer aos alunos habilidades e conhecimentos relevantes para as necessidades do mercado de trabalho (Worl Bank, 2016, p. 19).

As teses em torno da premissa de que o financiamento público às IES estaria favorecendo os grupos mais abastados das camadas sociais, é outra que é endossada nesse documento. E, com elas, as pressões pela criação de modelos de pagamento (ou autofinanciamento) da educação superior. A principal marca dessa defesa está no trecho:

Esses dados apontam para um padrão de financiamento regressivo em países onde os sistemas de ensino superior público altamente subsidiados beneficiam de forma esmagadora os estudantes de estratos socioeconômicos mais altos. Esse padrão fiscalmente regressivo é especialmente pronunciado em países com sistemas terciários binários divididos entre um conjunto pequeno e altamente seletivo de faculdades e universidades públicas e um conjunto de instituições privadas que atendem à maior parte da população universitária (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 20).

No SABER-TE é incentivado o ganho de fundos públicos com base em fórmulas de mensuração da performance das IES (tanto públicas, quanto privadas). O BM argumenta que o fato de as IES privadas terem desempenho inferior no quesito do desenvolvimento de pesquisas frente às públicas se dá porque aquelas recebem menos recursos do que estas. Esse posicionamento do BM desconsidera que os fins de muitas dessas IES é, desde a sua origem, escalar o lucro e a busca por oferecer serviços mais rentáveis - na definição econômica mais reducionista e mais pecuniária do termo.

É nesse mote onde um sentido de qualidade na educação superior vai sendo forjado pelo BM. E, ao enfatizar esse sentido de qualidade, o objetivo do Banco é fazer com que os sistemas de ensino superior dos Estados-membros caminhem de componentes de qualidade tradicionais, passando pelos componentes de transição, para chegarem à componentes maduros3 3 A tabela 2 do SABER-TE (WORLD BANK, 2016, p. 36-37) dispõe os componentes para categorizar o que seriam componentes tradicionais, componentes de transição e componentes maduros. Devido a extensão limitada desse artigo, sugerimos o acesso ao documento original. .

3.3 Acesso e permanência na educação superior

O tema dos grupos historicamente cerceados do acesso, aparece sem muita especificação sobre quem seriam os tais indivíduos que deles fazem parte. Muito menos são discutidos exemplos acerca de quais formas poderiam ser mais efetivas para o equilíbrio frente à totalidade desses povos, dentro dos sistemas de ensino superior dos Estados-membros. No texto, em lugar disso, o BM usa o ataque aos modos de financiamento estatal já estabelecidos como os culpados por tal desigualdade (sic).

Ao citar algumas das políticas de mitigação dessa realidade - como a política de cotas - enfatiza os problemas supostamente causados por ela, tais como: “[…] temse argumentado que mecanismos compensatórios como simples cotas estudantis podem piorar ao invés de eliminar a desigualdade social” (Schwartzman, 2009 apudWorld Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 21).

O BM se coloca contrário à política de cotas - sem apontar se esta seria com critérios raciais e/ou econômicos -, considerando que a falha delas residiria em serem “[…] políticas que abordam o ambiente de equidade de forma abrangente, em vez de depender de abordagens fragmentadas para barreiras individuais à entrada” (World Bank, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 23). É por demais extensa a lista de argumentos em prol do setor privado, em contraposição aos ideais de ensino superior público, gratuito, laico e de qualidade socialmente referenciada.

O Banco afirma que as desigualdades em educação superior são resultado das oportunidades igualmente desiguais experienciadas em outros níveis de ensino. Dessa maneira, ao isolar essa argumentação, persiste em desconsiderar que é do sistema econômico mais amplo de onde advém as desigualdades refletidas nas instituições de ensino.

A análise semântico-categorial realizada na pesquisa em tela, ratificou que nada é apenas estético no texto do SABER-TE. Tudo tem uma razão de existir. Um sentido que deseja ser passado através do conteúdo sistematicamente organizado. Por tal motivo, nele é trazido um elemento até então inovador nas publicações bancomundialescas: os tipos de indivíduos que estão na faixa-etária para ingressar na educação superior. Ao aprofundar essa questão, o BM os divide, de um lado, como os que tem o perfil para o acesso e, do outro, os que não o teriam.

No primeiro grupo, os de potencial aguçado para ascender à educação superior, o BM constrói o argumento de que a diversificação das IES contribuirá para acolher as diferenças de interesses desses sujeitos, enfatizando as demandas levantadas pelo mercado de trabalho para com eles. Isso permite inferir que, mais uma vez, é o mercado que parece ditar até mesmo os anseios pessoais que os indivíduos devem ter em torno da educação superior.

No segundo grupo, onde se colocam todos os que não teriam o “perfil ideal” para ser alunos da educação superior, há uma bifurcação: os “não interessados” e os “não suficientes preparados para uma formação de longo prazo”. Argumenta o World Bank (2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
https://openknowledge.worldbank.org/bits...
, p. 23) que

essas instituições não universitárias (tanto públicas como privadas) podem absorver uma parcela significativa da crescente demanda por ensino superior. Ao mesmo tempo, como essas instituições são tipicamente mais responsivas às necessidades do mercado de trabalho local, elas podem ajudar a melhorar o equilíbrio entre oferta e demanda de habilidades, bem como fornecer alternativas de treinamento sustentável para estudantes que não estão interessados ou estão suficientemente preparados para um grau acadêmico mais elevado [ou grau acadêmico que exija mais tempo para ser conquistado].

O debate sobre os interesses pessoais dos sujeitos em faixa-etária e com formação básica requerida para acessar a educação superior é extenso e pode ser problematizado a partir de vários prismas. Contudo, a perspectiva sociológica na qual a presente pesquisa se assentou, vai em direção ao que socialmente direciona os indivíduos a “optarem” por outro tipo de formação. Isto é, os capitais - em suas mais variadas formas, porém destacadamente o capital cultural e o capital econômico - influenciam nas escolhas, nada aleatórias, feitas pelo postulante ao acesso e por suas respectivas famílias.

Na tecitura do SABER-TE, o BM desconsidera isso, preferindo argumentar em favor da individualização (ou responsabilização individual dos sujeitos por suas escolhas). Fatores econômicos mais amplos, que se relacionam ao fundamento das desigualdades sociais, são propositalmente esquecidos. E, o conteúdo que serve como cortina de fumaça para isso são os argumentos em favor de um modelo de ensino superior mais dinâmico nas adaptações curriculares e mais ligado às demandas mercadológicas de formação de mão de obra.

4 Considerações finais

Os resultados da pesquisa ora apresentados, acende o alerta de que, após cerca de 60 anos de atuação em educação, o BM parece não perceber que as reformas pretendidas por ele, em nível macroeconômico, acabaram por aprofundar as desigualdades no acesso à educação superior, quando se refere ao tipo de instituição. Ou, na pior das hipóteses, ele já propõe reformas que não erradicarão as desigualdades sabidamente existentes.

É certo que o que vai sendo cimentada é a “ideia de privatização” - que não é nova, mas que sempre se renova - em contato com uma “democratização do acesso”. O conteúdo impresso no SABER-TE tenta fazer dessas duas esferas variáveis diretamente proporcionais: ao aumentar a oferta privada em educação superior, o acesso dos grupos financeiramente vulneráveis também aumentaria. Isso se revela como uma matematização preocupante ao ideal de educação superior pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada.

Por meio da estratégia SABER-TE, vê-se o campo da educação superior delineado por novas disputas tensionadas pelo BM. Cabe aos(as) pesquisadores(as) estarem atentos(as) para o entendimento do modus operandi desta e de outras que possam surgir, no intuito de saberem quais precisam ser os tamanhos das trincheiras para a defesa de políticas educativas inerentes às necessidades reais ao contexto para o qual se direcionam. E, sobretudo: que sejam baseadas em contrafogos ao Capitalismo.

  • 1
    Para redação do artigo, optou-se por realizar as citações diretas do documento analisado em Língua Portuguesa. Todas elas, resultado de tradução livre realizada por profissional fluente no idioma de publicação original.
  • 2
    Todos os treze documentos que compõem o SABER, se encontram disponíveis no sítio eletrônico https://www.worldbank.org/en/topic/education/brief/systems-approach-for-better-education-results-saber.
  • 3
    A tabela 2 do SABER-TE (WORLD BANK, 2016WORLD BANK. What matters most for tertiary education systems: a framework paper. [Washington, D.C.]: World Bank, 2016. (SABER: working paper series, 16). Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/26516/114295-WP-PUBLICSABER-Tertiary-Framework.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 maio 2022.
    https://openknowledge.worldbank.org/bits...
    , p. 36-37) dispõe os componentes para categorizar o que seriam componentes tradicionais, componentes de transição e componentes maduros. Devido a extensão limitada desse artigo, sugerimos o acesso ao documento original.

Referências

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Editor de Seção: Rafael Ângelo Bunhi Pinto | Editora de Layout: Silmara Pereira da Silva Martins

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
  • Revisado
    07 Jun 2024
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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