Resumo
Objetivo refletir sobre a figura pública de Florence Nightingale, suas realizações, Reforma Sanitária e a criação da Escola de Enfermeiras, e compreender o nascimento da enfermagem como profissão.
Método partiu-se da literatura de um quadro das pressões sociais que agiam sobre o comportamento individual de Florence Nightingale e dos marcos divisórios aparentes, que entendemos como a densidade das relações sócio-históricas, e o seu tempo social. Análise sócio-histórica da história de vida de Florence Nightingale e da literatura social de Charles Dickens. O marco temporal compreendeu da promulgação da New Poor Law (1.834) à revogação (1.601).
Resultados Florence Nightingale foi uma mulher adiante do seu tempo que, contrariando as teorias do Darwinismo social de sua época, criou a profissão da enfermeira, e produziu uma clivagem na profissão definindo-a como ciência e arte.
Conclusão e implicações para a enfermagem ao criar a figura emblemática da Dama da Lâmpada, Florence Nightingale gravou no cuidado de enfermagem, o zelo, o desvelo e a compaixão, aqui entendida como empatia e piedade com o sofrimento do outro acompanhada do desejo de minorá-lo, uma participação espiritual na dor do outro.
Palavras-chave: História da Enfermagem; Descoberta do Conhecimento; Identificação Social; Profissionais de Enfermagem
Resumen
Objetivo reflexionar sobre la figura pública de Florence Nightingale, sus logros, Reforma Sanitaria y la creación de la Escuela de Enfermeras, y comprender el nacimiento de la enfermería como profesión.
Método se partió de la literatura de un cuadro de las presiones sociales sobre el comportamiento individual de Florence Nightingale y de los marcos divisorios aparentes que se entiende como la densidad de las relaciones socio histórico y su tiempo social. Análisis socio histórico de la historia de vida de Florence Nightingale y de la literatura social de Charles Dickens. El marco temporal se comprendió entre la promulgación del New Poor Law en 1834 y su revocación promulgada en 1601.
Resultados Florence Nightingale fue una mujer adelante a su tiempo que, contrariando las teorías del Darwinismo social de su época, creó la profesión de enfermera, y produjo una mirada embrionaria en la profesión definiéndola como ciencia y arte.
Conclusión e implicaciones para la enfermería al crear la figura emblemática de la Dama de la Lámpara, Florence Nightingale registró en el cuidado de enfermería, el celo, el cuidado y la compasión, entendido aquí como empatía y piedad con el sufrimiento del otro acompañado del deseo de una disminución, una participación espiritual en el dolor del otro.
Palabras clave: Historia de la Enfermería; Descubrimiento del Conocimiento; Identificación Social; Profesionales de Enfermería
Abstract
Objective to reflect on Florence Nightingale's public figure, her achievements, Health Care Reform and the creation of the School for Nurses, and understand the birth of nursing as a profession.
Method a framework of the social pressures acting on Florence Nightingale's individual behavior and the apparent dividing marks, which we understand as the density of socio-historical relations, and her social time, was drawn from the literature. This is a socio-historical analysis of Florence Nightingale's life story and Charles Dickens' social literature. The time frame spanned from the enactment of the New Poor Law (1834) to the repeal (1601).
Results Florence Nightingale was a woman ahead of her time who, going against the theories of social Darwinism of her time, created the nurse profession, and produced a divide in the profession by defining it as science and art.
Conclusion and implications for nursing by creating the emblematic figure of the Lady of the Lamp, Florence Nightingale engraved in nursing care, zeal, devotion, and compassion, here understood as empathy and pity for the suffering of others accompanied by the desire to alleviate it, a spiritual participation in the pain of others.
Keywords: Nursing History; Knowledge Discovery; Social Identification; Nursing Professionals
INTRODUÇÃO
Como se conformaram e organizaram algumas ideias que nutrem, ainda hoje, a identidade profissional da enfermeira? A título de referência para datação cronológica, esses eventos, aconteceram, respectivamente, em 1834 e em 1860, na Inglaterra e Florence Nightingale nasceu em 1820.1
O sentido dessa reflexão é o pressuposto de que para se entender a figura pública de Florence, suas realizações e a sua Reforma Sanitária, e nela, a criação da Escola de Enfermeiras, é preciso entender a sua vida enquanto mulher, a partir de um quadro claro das pressões sociais que agiam sobre o seu comportamento individual.2 Tal tipo de estudo só pode ser convincente se levar em conta, além do destino da pessoa individual, um modelo das estruturas sociais da época, e as coerções inevitáveis que resultam da operação dessas estruturas.
Uma visão mais justa sobre Florence Nightingale seria talvez a de uma figura extraordinária, que ousou negar o frustrado destino, então, reservado às mulheres, mesmo as de sua alta condição social, lançando-se a uma vida de ação.3
Florence Nightingale contribuiu, em sua época, para a melhoria e o desenvolvimento da saúde, mantendo-se, até os dias atuais, como fonte de inspiração e alvo de pesquisa para estudiosos em todo o mundo.4
Diante do exposto, tem-se por objetivos refletir sobre a figura pública de Florence Nightingale, suas realizações e a Reforma Sanitária, e nela, a criação da Escola de Enfermeiras; compreender o nascimento da enfermagem como profissão a partir dos marcos divisórios aparentes do que entendemos como a densidade das relações socio-históricas e o seu tempo social.
MÉTODO
O marco temporal, para organizar o nosso pensamento socio-historicamente, é a promulgação da New Poor Law (ocorrido, em 1834, mas que significava a revogação da Poor Law, promulgada em 1601), uma vitória absoluta do pensamento liberal inglês, que junto as work houses, estabelecerá, inequivocamente, duas coisas:
-
1
a questão da pobreza (ou o pauperismo, criado pela revolução industrial), não é mais do domínio das relações econômicas e não é mais um problema do Estado, o qual não continuará a suplementar os salários (conforme estava previsto na Poor Law de 1860);
-
2
a pobreza passa a pertencer às relações de domínio sobre a doença, como um fenômeno natural, agora no campo do saber médico, devendo, portanto, habitar os asilos ou as work houses (as chamadas prisões sem crime), estabelecendo a pobreza como crime.
Nesse sentido, explora-se na proposta de análise uma certa perspectiva sobre o mundo social e que não pretende exaurir a descrição ou a análise de todos os dados contidos na totalidade do campo dos fenômenos, mas que se oferece como um meio, entre muitos meios possíveis, de revelar certos aspectos dessa época.2 A delimitação cronológica, através da datação, serve para determinar, de forma auxiliar, porém não definitiva, aquilo que especifica o nosso contexto de descoberta, os marcos divisórios aparentes do que entendemos como a densidade das relações socio-históricas a serem desveladas, e o seu tempo social.
Usaremos dois pontos de partida: a biografia histórica de seu mito de origem, Mrs. Florence Nightingale,1 tendo como espaço demarcador a cultura da Inglaterra Vitoriana, e o tempo social que envolve dois acontecimentos que recortamos como de grande interesse para o estudo: a promulgação da New Poor Law e a criação da primeira Escola de Enfermeiras.
Se pensarmos no espaço constrangido para a profissão de mulheres no século XIX, é surpreendente que 37 anos após a criação da primeira escola de enfermeiras (1860-1897), se inicie na Inglaterra um movimento proibindo a contratação de enfermeiras fora do modelo Nightingale.
Na realidade socio-histórica convivem um só tempo e dois imaginários: Mrs. Sairey Gamp e Mrs. Florence Nightingale. A enfermeira de Dickens, pela tradução do próprio nome é grande, volumosa, deveria proteger, mas também poderia ser mortal. O nome da personagem – Gamp - e sua tradução para guarda-chuva, é interessante. Apresentava também a superficialidade das emoções para com a miséria do outro, as regras do convívio indiferente que a era vitoriana soube plasmar. Quando Mrs. Gamp apresenta um pacote de emoções necessárias para cuidar de um morto, e esse pacote inclui a toilete do morto, uma fisionomia triste, a expressão “Ah! le pauvre cher homme!”, uma roupa de luto surrada mais um par de meias para lama e um guarda-chuva cor de folha morta, fala-se do aparelhamento formal indiferente para expressar um montante conveniente de respeito indiferente.
O álcool não só a revigorava, mas ele é quem dava condições para o trabalho da enfermeira, porque esta era uma função que solicitava alguma letargia, para garantir a conduta expectante de quem acompanhava mais a consternação da morte do que os desafios da vida. Ser enfermeira era ser mulher e viúva, ou ser mulher solteira e estar ao lado do doente. Nada mais do que isso.
O pobre, ainda não percebido como importante para os interesses da nação, era o alvo de muitas crueldades, portanto, não havia para as enfermeiras, nenhuma importância em ser brutal e violenta em relação a ele: sufocar, mandar calar a boca e sacudir como a uma ameixeira, literalmente texto de Dickens. Quem inovou, rompendo com a realidade da época, projetando para o futuro de forma totalmente imprevisível, tendo em vista a realidade do cultivo de um ódio para dentro e para fora do império inglês, foi Florence Nightingale.
Com a promulgação da New Poor Law, a mulher que cuida ficou em evidência porque as comunidades fragilizadas ficaram mais expostas, e a análise crítica da atuação da enfermeira propiciava essa visibilidade social. A crueldade caracterizava a enfermeira, pois ela deveria cuidar do outro, um anônimo, não familiar, desconhecido, pobre e não apto para aquela sociedade e havia autorização social para odiar, ser indiferente e maltratar.
O tabaco, o álcool e a vida sexual necessitariam ser disciplinados. A era vitoriana foi eficaz nessa proposta, e não foi preciso inventar muito para isso, pois afinal todo esquema de normalização dos corpos e de controle da expressão da sexualidade já estava organizado.
O despreparo técnico para lidar com as situações de doença não era exclusividade da enfermeira e o ensino sistematizado com aprendizado clínico hospitalar, com aulas com médicos assistentes e irmãs nos hospitais, e rigoroso estágio clínico, foi suficiente para capacitar tecnicamente a nova enfermeira. Aprendizado clínico é marca Nightingale.
A equação passou, então, a ser, Formação Científica mais Boletim Moral, igual a Ciência e Arte de enfermagem. Embora seja compreensível que não se faz boa enfermagem apenas com o instrumental da ciência, foi preciso provocar uma dobra, e forçar uma outra segmentação, nova clivagem, expondo as faces possíveis de um cristal.
A enfermagem é uma ciência e uma arte, talvez a mais bela das artes. Essa definição pertence a Florence Nightingale.
O outro referencial socio-histórico dessa apresentação, é a inauguração da Nightingale- Training School for Nurses at Saint Thomas Hospital (1860), onde Mrs. Nightingale propõe uma outra forma de cuidar em enfermagem, a partir do treinamento desses agentes de saúde em Escolas de Enfermagem, rompendo, então, com uma prática anterior, onde não havia nenhum treinamento sistematizado, e oficializado por um órgão formador, que capacitasse para a prática de cuidar em saúde, e que formasse enfermeiras. Bastava ser mulher.
Entendemos que esses fatos, ou acontecimentos limite, como sentido de contemporaneidade socio-histórica entre as leis do Império britânico e Florence Nightingale, são importantes na medida em que os limites cronológicos são simplificações numéricas para um tempo que se tece entre o social, o cultural e os corpos dos indivíduos, pulsando abaixo das datações.5
Dificilmente, poderia ter sido diferente, se levarmos em consideração que o espaço social desses acontecimentos que privilegiamos para análise é principalmente a cidade de Londres, uma vez que a Grã-Bretanha, modelo de industrialização originária, já apresentava aos olhos ainda não perplexos de todos, os exemplos concretos, e maciços, de pobreza e de multidão.
A perspectiva que se coloca aqui é a de minimizar o acontecimento, que passa a ser considerado como uma bolha à superfície da História, manipulada por correntes muito mais profundas, de longa duração.
O acontecimento que se coloca para fins dessa análise, a nossa “bolha”, é a criação da Escola de Enfermeiras no Saint-Thomas Hospital (1860).
A chamada Enfermagem Moderna tem nascimento no século XIX, na Inglaterra Vitoriana, ligada à pessoa e à vida de Florence Nightingale.
Ao mesmo tempo e no mesmo espaço cultural, Charles Dickens inicia a publicação de sua produção literária, utilizando-se da narrativa ficcional para comunicar-se com um grande número de leitores, e tematizando com frequência, e de forma irônica e mordaz, uma figura de mulher que cuida de doentes no âmbito institucional e nos espaços privados, que ele mesmo vai chamar de enfermeira, e que segundo um dos seus críticos6 constituía-se mesmo em uma sátira à enfermeira pré-Nightingale.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao longo de toda a sua obra literária, notadamente nos romances Oliver Twist7 e Martin Chuzzllewit,8 Charles Dickens – escritor social, vai tratar de alguns personagens femininas, cujas tarefas são assistir, cuidar e disciplinar, tanto nos espaços de saúde como nos de doença, espaços quase sempre institucionalizados, mas registrando, na linguagem escrita, a forma como essa pessoa que cuida, não deveria ser ou proceder, ou seja, um perfil negativo, que vai assumir um aspecto de satirização completa, na personagem Sairey Gamp do romance Martin Chuzzlewitt.
Dickens descreve-a como uma profissional de enfermagem que, no cenário de bairros pobres e de condições de higiene precária, é sempre muito gorda, pesada, gulosa, sem controlar os instintos, cruel, corrupta, promíscua e recendendo a rum. Para a compreensão daquilo que foi o passado, a literatura vai além do registro dos fatos, trazendo à luz questões que fogem à atenção do historiador e, é nesse sentido que as obras literárias têm características de documentos singulares da consciência social.9
É instigante nos aproximarmos com mais atenção das possibilidades desses dois atores sociais contemporâneos, que em uma época de hegemonia absoluta do pensamento liberal, centrado na competição livre do mercado como a melhor forma de administrar os recursos, e que valoriza o indivíduo como unidade social básica, conseguem focalizar, utilizando práticas diferentes, um por meio da crítica na literatura, o outro através de uma ação política e pragmática institucional, uma nova categoria profissional, que será dedicada à arte de cuidar do indivíduo, no campo da saúde e da doença.
A leitura e análise dos romances de Dickens partem da compreensão de que a história das mentalidades não pode ser feita sem estar estreitamente ligada à história dos sistemas culturais, dos sistemas de crenças, de valores, de equipamento intelectual, no seio dos quais as mentalidades são elaboradas, viveram e evoluíram.
Trabalhamos aqui com a noção de que toda percepção é uma interpretação, visto que os fatos nunca são neutros vêm sempre impregnados por juízos de valor.
O suposto olhar inocente não passa de uma metáfora equivocada, uma ilusão simplista, alimentada por um positivismo ingênuo.10
A era vitoriana, período que recortamos como de interesse ampliado para essa análise, foi de importantes redefinições de algumas noções muito amplas, como pecado, crime, doença e problema social, tendo alguns conceitos transmutados de uma categoria para outra, no decorrer do século, apontando para transformações de algumas práticas em associação com a emergência de novas configurações.
Foi um século onde atitudes conscientes e litigiosas em relação à agressão, coexistiram com ideias e atos agressivos, nem todos reconhecidos como tais: as afirmações de controle sobre matérias primas e altas finanças, o controle e a exploração da terra, a organização dos negócios e os riscos à saúde, as comunicações à distância e os mistérios científicos foram atividades que exigiram um altíssimo nível de agressão ao homem e à natureza, mas que, na maioria das vezes, foram avaliadas como puramente construtivas.10
Podemos chamar os vitorianos de agressivos, não apenas porque sua caça ao lucro e ao poder, implicava em graves custos sociais para os trabalhadores exaustos, funcionários explorados, artesãos tornados obsoletos e nativos expropriados e ultrajados, mas também porque eles despendiam muita energia para controlar o tempo, o espaço, a escassez, a abundância e a eles mesmos, como nunca ocorrera antes.
Exibiram o fato familiar de que a agressão, não importa quão benigna em intenções e resultados, deixa cicatrizes e vítimas em seu lastro.10
Na composição dessa trama social e desse enredo humano, não nos interessam apenas os vitoriosos da história, mas todos os que viveram aqueles agudos tempos de perturbação social e de redefinição de conceitos e práticas, os atores das causas perdidas, aqueles dos becos sem saída, porque eles se nos apresentam como autores de uma experiência ou de uma aspiração, que deve ser analisada à luz de seu tempo, e não à luz de preocupações posteriores.
Eles são, por vezes, os indiciadores de novas mentalidades, que não se difundem ou se implantam meramente através de pressões, até porque podem ser acionados mecanismos reativos se não há condições propícias para sua adoção. É preciso que haja compatibilidade, entre as novas mentalidades e a estrutura social, é preciso que uma lógica interna lhes dê sustentação, que se trace um riscado, que haja, enfim, uma demanda ou as novas mentalidades simplesmente não se instalam.11
Um fator decisivo no processo de transformação da estrutura agrária inglesa foi o cercamento das terras, também denominado de enclosures, que restringiu a empregada e diminuiu drasticamente o mercado de trabalho no campo.
Essa liberação da população rural vai determinar um intenso êxodo do trabalho na terra, formando um exército de mercenários, ou de mão de obra para atividades manufatureiras, constituindo-se por assim dizer, o proletariado, uma massa de desempregados urbanos, mais esta que, ao transformar-se em multidão nos espaços urbanos do XIX, sobretudo na cidade de Londres, vai inaugurar uma nova ordem da modernidade, e uma nova ordem urbana, através de sua presença desconcertante.12
Palavras como indústria, fábrica, classe média, classe trabalhadora, capitalismo e socialismo, ferrovia, liberal e conservador, proletariado, crise econômica, greve e pauperismo, representam no código da linguagem, um conjunto de fatos e de representações sociais coletivas, todas cunhagens ou recunhagens de adaptações às violentas mudanças sociais ocorridas nesse período. E chamaremos a esse período, no que diz respeito à Inglaterra, de Revolução Industrial. O alcoolismo disseminado foi companheiro quase invariável de uma industrialização e de uma urbanização brusca e incontrolável. A indiferença brutal e o isolamento insensível de cada um voltado para seus interesses, impediam até um olhar de relance para o outro, e espalharam uma espécie de letargia reativa por toda a Europa. As cidades e as áreas industriais cresciam rapidamente, sem planejamento sanitário algum. Fracassavam a limpeza das ruas, o fornecimento de água, os serviços sanitários, para não mencionarmos as condições habitacionais da classe trabalhadora. Havia uma extraordinária diferença entre aptidão física e saúde, entre a população agrícola e a população industrial.
Londres evidenciava a miséria do proletariado, e os sacrifícios e as deformações que o processo de industrialização custou às pessoas que tiveram ultrajado o melhor de sua condição de homens, para realizar os “milagres da civilização”. As possibilidades de absorção, que o mercado de trabalho da cidade apresentava, eram muito limitadas, e as barreiras sociopsicológicas consolidavam os efeitos de rebaixamento social; limites e barreiras foram o preço pago pelo nascimento da sociedade moderna. Para milhões de pobres rejeitados e transportados para um mundo novo, frequentemente, através de fronteiras e de oceanos - colônias, o drama do progresso significou mudanças estruturais de vida.
Londres era o desaguadouro dos considerados despidos das qualidades necessárias para integrar as fileiras do operariado fabril: eram os dissolutos, preguiçosos, mendigos, turbulentos e esbanjadores de dinheiro que já se haviam acostumado ao emprego casual ou a outras formas menos honestas de sobreviver.12 A desmoralização não se exteriorizava apenas pelo alcoolismo: proliferava também o infanticídio, a prostituição, a demência, que embora tenham sido rapidamente patologizadas pelo saber médico, significavam também a representação, no corpo individual, do que já havia chegado ao limite do socialmente suportável, tanto no âmbito do privado como do público.
A cidade de Londres no século XIX, tinha dois milhões e quinhentos mil habitantes, e havia um contraste assustador, entre a opulência material e a degradação do homem, cevando um medo crescente da impossibilidade da convivência dessas realidades. É no espaço público da rua, onde as atividades da vida privada são realizadas sem pudor pelas classes mais pobres, em que o vício é exposto, e aquilo que é considerado ilegal ou pecaminoso é exercido à revelia das regras sociais estabelecidas, que começava a ser alimentada uma profunda hostilidade para um convívio de partes tão opostas.
Ao promover suas disputas sinceras, os vitorianos desenvolveram um código de expressão ao qual Peter Gay chamou concisamente de álibis para a agressão: crenças, princípios, retóricas que legitimavam a militância verbal ou física em terrenos religiosos, políticos, ou melhor que tudo, científicos.10
Nem todos os atos agressivos são pugilismo primitivo, crueldade brutal ou assassinato comum, e o século XIX vai exemplificar, abundantemente, essa afirmação. Eles variam em um amplo espectro de expressão verbal e física, da confiante autopublicidade às lesões permissíveis, da malícia astuta à tortura sádica. Sem dúvida, surgem como palavras e gestos menos fatais do que a violência física, mas pouco menos equívocos. Sobretudo, porque o tipo de agressividade recompensado, depreciado, legalizado ou banido por uma determinada cultura, vai depender dos tempos e das circunstâncias, dos riscos e das vantagens percebidas, dos hábitos sociais de rebeldia ou de conformidade. Uma sociedade só investe sua criatividade e seu esforço produtivo naquilo que é destinado a cumprir funções que são por ela valorizadas.
Em primeiro lugar, o conceito de concorrência, que se originou em uma moderna teoria, e chegou a permear a vida econômica, política e literária, e até mesmo a vida privada das décadas vitorianas. Em segundo lugar, a construção do outro conveniente, uma forma de composição do outro através de descobertas pseudocientíficas e dos habituais preconceitos. Todas essas justificativas forneciam identificações coletivas, servindo como gestos de integração e de exclusão. Ao reunir comunidades de pessoas de dentro revelavam, e, muitas vezes, inventavam um mundo de estranhos: indivíduos e classes, raças e nações, que eram perfeitamente adequados e, às vezes, lícito, contradizer e tratar com superioridade, ou ridicularizar, ou explorar, ou mesmo exterminar.
Todas as três justificativas tinham o mesmo efeito: cultivar o ódio, estimulando-o, fornecendo argumentos respeitáveis para o seu exercício e, contendo-o, obrigando os argumentos a fluir dentro de canais de aprovação cuidadosamente demarcados.10
É dentro desse cenário, gerador de mentalidades que se amparam no passado e no presente, no real e no imaginário, na lembrança e no esquecimento, que Florence Nightingale vai propor a enfermagem moderna. Nesse campo cultural, se expressará a força do racismo como mecanismo para garantir a sensação de conforto de alguns contra aqueles que trazem a marca inexorável da miséria, no corpo e na alma.
Essas personagens exemplificam o que se chamava a mob (entendido como um aglomerado de pessoas desempregadas e miseráveis, vivendo por fora da revolução industrial quer como produtor quer como consumidor); Londrina, uma ameaça social que oscilava entre muitos desempregados permanentes e muito poucos desempregados circunstanciais.
Uma das características mais fortes da cultura do século XIX, era que as justificativas mais influentes para agressão se apoiavam naquilo que seus partidários apresentavam como provas científicas. A raça estava em todas as partes em meados do século, e a influência geral da raça sobre todas as ações humanas, era reconhecida como uma das chaves da história. O pensamento racista satisfazia um apetite, que ia além da precisão científica, ele liberava a agressão. Grupo após grupo, buscava descobrir inimigos em todos os lugares. Alguns eram reais, mas o inimigo favorito era a outra raça: irlandeses na Inglaterra, judeus na Rússia, arianos contra semitas, europeus contra asiáticos, brancos contra negros, aptos contra não aptos para o trabalho. Privá-los de sua humanidade autorizava a mais descontrolada agressão. A ciência da época dava aos racistas um sinal de permissão para odiar.
Uma outra teoria científica também alimentava as mentes vitorianas: aquela que pregava uma permanente competição generalizada entre os indivíduos, onde o vencedor era naturalmente o melhor e o mais apto. Defensores vitorianos do conflito tinham um ponderável testemunho acadêmico do seu lado, sobretudo depois de 1859, quando Charles Darwin publicou seu Origin of species.10 Darwin criticava os homens civilizados, por fazerem tudo o que lhes era possível para impedir o processo de eliminação. Nessa lógica, construíam asilos para os débeis mentais, aleijados e doentes, instituindo leis destinadas a socorrer aos pobres, e fazendo com que seus médicos exercessem toda a sua perícia para salvar a vida de qualquer um. Em consequência, os membros mais fracos da sociedade civilizada propagavam suas características e Darwin acreditava, era mau para a sociedade.
Mas, o debate internacional sobre o darwinismo social, era muito mais do que um exercício acadêmico, e havia uma licença de caça para uma agressiva cultura de negócios.10
No fim do século XIX, Londres possuía em tomo de 117 mil pobres conhecidos, a cargo das paróquias; 115 mil pobres abandonados. Por pobre entende-se que a pessoa por causa da sua fraqueza física e moral não havia atendido à chamada do trabalho, cuidavam da caridade pública, encaminhando-os à prisão ou às work houses, as quais deveriam ser bem pouco atraentes para que seus ocupantes quisessem sair de lá o mais rápido possível, acentuando o privilégio da refeição e do descanso, atuando como uma força centrífuga para reintroduzir à moralidade da sociedade do trabalho, mendigos, e vagabundos, dentre os quais três mil receptadores, perfazendo um total aproximado de 232 mil pobres na cidade, que é o grande centro da indústria.
Finalmente, compondo ainda o resíduo social e apresentando talvez a sua face mais dura, há os criminosos que são classes pobres e viciosas, com condição bárbara e selvagem, indicando o sentido de deterioração de suas condições de vida física e emocional. Em 1867, estimava-se em 20 mil o número de “criminosos” em Londres.
A história da burguesia no século XIX é rica em exemplos pelos quais ela conseguiu embotar ou sublimar impulsos agressivos para criar uma cultura civilizada, em que se podia viver. O cultivo do ódio, jamais foi realizado sem ambiguidades e se ele domesticou a agressão também a intensificou. A triunfante sociedade inglesa espanta-se ao perceber que o homem pobre nasce de suas próprias entranhas, é produzido pela sociedade do trabalho, e que a sua miséria será progressivamente difícil de contornar. É uma sociedade segmentada em três núcleos abrangentes: uma comunidade política, composta por contribuintes que votam. Um segundo extrato é aquele composto por núcleo considerada ainda racional, composto de trabalhadores pobres e de alguns desempregados ocasionais. Finalmente, um terceiro extrato, considerado fora da sociedade racional, progressivamente incontrolável e perigoso, o chamado resíduo social, composto por não trabalhadores. Portanto, não indivíduos, sob a ótica da mentalidade vitoriana. A solução para o resíduo será encontrada nas prisões de New Gate, nas work houses, ou na extradição para as colônias do vasto Império Britânico.12
Essa pobreza causava espanto na sociedade inglesa porque não era algo natural, do mundo pré-industrial, a pobreza que veio junto com os recursos de natureza inadequada ou com as fragilidades da condição humana. Também não era a pobreza associada com o industrialismo e o urbanismo, a pobreza que os economistas políticos encaravam como um subproduto natural das leis populacionais, salários, oferta e demanda. A pobreza do resíduo, não era tanto uma condição econômica, mas uma condição de patologia, menos um problema social do que uma doença social, uma estranha malignidade que não poderia ser explicada e nem curada.13 Essas peculiaridades estreitavam as possibilidades de intervenção. O resíduo era uma espécie de limite da civilização: a recalcitrância pura de alguns seres humanos, os teimosos, a recusa perversa em cumprir o ethos que havia mantido tantos outros ingleses estáveis.
A Nova Lei dos Pobres considerava o auxílio financeiro aos pobres, tão pernicioso quanto os sindicatos e os regulamentos fabris. As work houses eram chamadas de “prisão sem crime” e, assim, se configuravam, com muros altos, disciplina carcerária, separação dos membros de uma mesma famí1ia, trabalho pesado para os homens, refeições magras e em silêncio, e proibição de fumar. Nada que pudesse tornar o ócio atrativo (porque esta era uma crítica à antiga Poor Law, que estava embutida no ato de sua revogação). A New Poor Law divide definitivamente, os pobres no trabalho, que estariam dentro da sociedade, mas fora da política, e os pobres fora do trabalho, que não estariam dentro de nada, a não ser no resíduo de sua própria miséria.
A orfandade, que é uma situação inicialmente familiar, se consolidará em uma condição de vida, na medida em que o órfão é visto pelos membros da sociedade com uma mistura de desprezo e de repulsa. A orfandade é um tema constante na obra de Dickens e em toda a literatura social do século XIX, onde vida sexual era quase sinônimo de gravidez e o risco de morte da mãe no parto era grande.14
A que preço compramos as vantagens da vida social? A quantos milhares de indivíduos a mais simples de nossas comodidades, custa, cotidianamente, a vida?
No século XIX, cunharam-se palavras como indústria, operário, greve, capitalismo, fábrica, mas deu-se à palavra nurse um novo significado, que obrigou as pessoas a repensarem hábitos culturais solidificados e a reorganizarem um contexto de crenças sobre o que vinha a ser enfermeira, como profissional e como mulher.
A suposição de que existia um tipo humano específico de mulher que correspondia à enfermeira tão minuciosamente descrita por Charles Dickens, e que é confirmada pelos historiadores da época, esse tipo humano designado por um substantivo comum, foi modificado. Não sem razão, Florence queixava-se de que chamava aquelas novas mulheres de enfermeiras (nurses) porque não encontrava termo melhor, já antecipando a resistência da linguagem em aceitar um novo significado para as palavras, que são reféns de hábitos linguísticos arraigados na cultura. Criou assim, uma escola de enfermeiras em 1860, e em 1897 já era proibida na Inglaterra a contratação de enfermeiras não diplomadas para trabalhar em hospitais públicos.
Florence foi uma mulher que entendeu que uma das possibilidades de ser uma mulher normal, sem ser casada e sem ser mãe, no século XIX, era ser enfermeira; uma mulher que optou por não se casar em plena era vitoriana; uma mulher rica, instruída e poderosa em termos de relações sociais, que pertencia por berço à gentry; uma mulher que conhecia de perto todas as instituições de saúde mais importantes da Europa, e que propôs uma reforma sanitária para a capital do império britânico e para a Índia; que dominava matemática e estatística, uma mulher que não estava impregnada pelas teorias dominantes de degenerescência e pelo darwinismo social, que descredenciavam a mulher com suas categorias: essa mulher deu um significado diferente à palavra nurse.
Florence criou uma metáfora nova para a enfermagem, a partir de novos fatos, e de outras relações de semelhança entre esses fatos e sua interpretação.
Florence Nightingale nasceu em Florença, na Itália, em 1820, viveu aproximadamente 90 anos, e acompanhou as grandes mudanças ocorridas no final do século XIX e início do século XX no campo da ciência, da tecnologia, da política, das relações sociais, enfim, da totalidade da cultura. A vida de Florence é também um momento posterior ao aparecimento do hospital como instrumento terapêutico, local de produção de saber médico de onde haviam sido praticamente expulsas (quando nada metaforicamente em relação ao poder) todas as ordens seculares e religiosas. É a articulação ao nível institucional: o hospital até então órgão de assistência ao pobre e de preparação para a morte, torna-se local privilegiado de exercício da medicina, tanto do ponto de vista da cura, quanto do ensino de produção e reprodução do saber médico.15
Todas essas transformações, algumas já esboçadas bem antes do século XIX, como a própria racionalidade moderna, vão compor uma moldura aparente, mas na sua essência um mosaico de faces comunicantes, onde podemos recortar a chamada enfermagem em seu respaldo a “Revolução Nightingale”.
Florence aprendeu a ler e a escrever fluentemente em inglês, francês e alemão. Teve aulas de História Universal e de História Política da Inglaterra, o que era incomum às moças daquele tempo. Sabia latim e grego e aprendeu também matemática e era especialista em estatística. O natural e esperado para Florence eram festas e jantares e o casamento, mas Florence não estava interessada em maridos.
Nurse significava, então, uma mulher vulgar e velha, sempre ignorante e frequentemente suja, vestindo roupas sórdidas e se embriagando com uma garrafa de gim, propiciando e se envolvendo com as piores irregularidades. As nurses no hospital eram especialmente notórias por uma conduta imoral, sem nenhuma sobriedade, a quem se ordenava, com pouquíssima confiança, a execução das mais simples ordens médicas. Nos argumentos dos familiares de Florence e na realidade também, os hospitais eram lugares pavorosos.
Florence compreendia perfeitamente que era necessário estudar para ser enfermeira.
Com uma persistência inabalável, permaneceu mais tempo lendo reportagens de comissões médicas, panfletos de autoridades sanitárias e histórias de hospitais e de casas de assistência. Não havia um só grande hospital, em toda a Europa, sobre o qual ela não tivesse conhecimento ou mesmo visitado. Ficou amiga do Honorável Sidney Herbert, que se tornou, em 1.845, Ministro na Guerra, com um assento no Gabinete. Florence conseguiu passar 4 meses e meio, numa instituição à beira do Reno, na Alemanha (Kaiserswerth), observando todas as fases do trabalho ali realizado. Essa instituição era presidida pelo Pastor Fliedner, e ela submeteu-se ao regime espartano da instituição religiosa, prestando assistência aos enfermos como todas as demais diaconisas.
É, então, que aparece o grande momento da vida de Florence, a hora e a vez, em que o ensejo de crise política e social do Estado na Inglaterra e a figura competente, carismática e influente de Mrs. Nightingale vão se unir e construir uma parte da história da enfermagem.
Em março de 1854, a Inglaterra, a França e a Turquia declararam guerra à Rússia, o que vai ser denominado de Guerra da Crimeia. A participação inglesa nesse conflito provocou intensa comoção social, com meninos de 14 anos no front de guerra. Era Ministro da Guerra Sir Herbert Sidney, e enviou-lhe o pedido explícito de que ela se deslocasse para o Oriente, levando consigo um grupo de enfermeiras para trabalhar nos hospitais militares, sendo que, naquela época, os hospitais das forças armadas inglesas não empregavam enfermeiras regulares.
O grupo de 38 enfermeiras, mais a governanta particular de Florence, partiu de Londres a 21 de outubro de 1854, com destino a Scuttari, na Turquia. Eram quatro hospitais de guerra e Florence respondia pelo trabalho de enfermagem nesses quatro locais. As enfermarias eram lugares imundos e infestados de parasitas. Faltavam armações de camas, cobertores, lençóis, cadeiras, garfos, pratos e muitos dos equipamentos médicos. Os soldados jaziam em suas fardas sujas e com sangue, às vezes, nus e com as feridas expostas e sem tratamento há dias. Alguns decrépitos reformados de Chelsea eram os seus únicos assistentes, salvo alguns enfermeiros militares totalmente incompetentes. A escassez total de materiais encontrados contradizia totalmente as informações oficiais que recebera antes de partir. Durante o dia, as suas enfermeiras achavam-se em quase todas as partes do hospital, mas, à noite, a própria Florence, munida de uma lanterna, inspecionava sozinha milhares de leitos. Esse quadro da solitária figura, na sua ronda pelo silencioso hospital, estando presente ao lado de quem morria solitariamente, apoderou-se da imaginação popular e originou o seu famoso título: “A Dama da Lâmpada”.
Na realidade, a grande questão para o Estado e importante para Florence, foi ter baixado o índice de mortalidade nos hospitais sob seus cuidados, de 42% para 2,2%. É importante ressaltar a composição dos exércitos a essa época, onde, após a descoberta do fuzil, se fazia necessário o treinamento desses homens para manejar uma arma, o que viria a constituir um capítulo importante no orçamento dos estados à época. Mais do que nunca, do ponto de vista humanitário e também do econômico, era necessário que um soldado morresse no front da guerra, defendendo o seu país e não de infecção nos hospitais militares.1
Florence adoeceu perigosamente em meados de maio, contraindo a chamada “Febre da Crimeia”, que talvez fosse febre tifoide. A notícia da doença de Florence se propagou pela Inglaterra, e seus amigos lhe prestaram um tributo por seu serviço à pátria. Assim, se constitui um influente comitê com Sidney Herbert como Secretário Honorário e, em sessão pública, realizou-se a inauguração do Fundo Nightingale.
Florence não se esqueceu das necessidades dos médicos percebidas durante a experiência da guerra. Verificando que os oficiais médicos careciam de um local para realizar pesquisas ou trabalhos científicos providenciou uma casa em Scuttari e conseguiu equipá-la com o indispensável instrumental. Esse pequeno e humilde início constituiu o núcleo da futura Escola de Medicina do Exército.
Ela também realizou restrita pesquisa clínica, comparando a mortalidade entre soldados feridos nas camas de campanha no front e a dos hospitais, comprovando que morriam mais nos hospitais, e reforçando suas ideias sobre higiene e ambiência. Em 1856, foi convidada a compor uma Comissão Real para investigar as causas da desorganização na Crimeia. Não era comum uma mulher fazer esse tipo de trabalho, mas os membros da Comissão não dispensaram seus trabalhos. Submeteram-lhe algumas questões por escrito, e ela também as respondeu por escrito. Ela era o poder atrás do trono, a criatura que por trás dos bastidores mandava de fato executar as coisas, mas por intermédio de terceiros (Sir Herbert e dr. Sutherland).
Uma das subcomissões em que Florence trabalhava trataria da necessidade de se criar uma Escola de Medicina do Exército. Florence estava convencida da necessidade de melhorar o treinamento dos médicos militares, e utilizou todo o peso de sua influência, a fim de impulsionar a fundação desta Escola. Percebia por sua experiência na guerra que, embora variasse muito a eficiência dos médicos cirurgiões, todos sofriam os efeitos de um treinamento impróprio.
Em 1860, com a abertura do Nightingale Training School for Nurses at St. Thomas Hospital, Florence Nightingale se torna a fundadora da enfermagem moderna.
Em 1879, com a Guerra Franco-Prussiana, Florence atendeu ao pedido dos dois lados, visão humanitária, e após a guerra recebeu duas distinções: a Cruz de Bronze da Societé de Secours aux Blessés Militaires e a Cruz do Mérito prussiana, do imperador Alemão.
Em 1897, inicia-se em toda a Inglaterra a proibição de contratar enfermeiras não qualificadas para o trabalho em enfermarias, consolidando-se a atividade institucional da nurse. A questão higienista, política de saúde vigente na época, era uma de suas preocupações e vale ressaltar que os estudos de Pasteur sobre microbiologia, infecção e contaminação, só aconteceram a partir de 1860.
Por um período de 30 anos, Florence acompanhou o gradual desenvolvimento da higiene Indiana, e era considerada uma autoridade em assuntos indianos. Novamente, por sua condição de mulher, não pôde assumir publicamente o seu importante papel na elaboração do Relatório indiano, que se tornou público, em 1863. Era considerada uma autoridade em higiene, como em construção de hospitais: em higiene militar, como em estritas questões de enfermeiras.
Um dos seus maiores interesses residia na estatística e, quando estava nos hospitais de Scuttari, pleiteou o estabelecimento nos hospitais de um melhor sistema da estatística, e ela própria redigiu uma “Fórmula Modelo para Estatística Hospitalar”. Em 1858, elegeram-na para membro da Sociedade de Estatística da Inglaterra. Florence publicou quatro livros, sendo que um deles, Notes on Nursing vendeu 15 mil exemplares em um mês (em 1859), havendo até hoje mais de 50 edições.
Florence dizia que usava a palavra nurse por falta de uma melhor e criticava que já à sua época, tinha restringido o sentido dessa palavra, a pouco mais do que a ministração de remédios e a aplicação de emplastros.
Segundo ela, deveria significar, porém “o emprego apropriado de ar puro, luz, calor, limpeza, quietude e a adequada escolha e administração da dieta - tudo com o mínimo gasto da força 'vital do paciente”. Em 1907, o Rei Eduardo VII tributou-lhe a Ordem do Mérito, e ela foi a primeira mulher e a única até hoje, a recebê-la. O Sistema Nightingale de treinamento de enfermeiras estendeu-se por quase todos os países, influindo decididamente na chamada enfermagem moderna.
CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA
Qual o sentido desse ensaio em forma de homenagem reflexiva que hoje fazemos?
Podemos sintetizar em quatro pontos. Primeiro, reconhecer que Florence Nightingale foi uma mulher adiante do seu tempo, pensava adiante, não se atinha às pressões sociais e de gênero, e isso configurou um alto preço a pagar. Segundo, que soube perceber a necessidade de criar uma profissão, e não uma ocupação, para cuidar do outro, ainda que o imaginário do seu tempo afirmasse justo o contrário. Baseou-se em práticas que levam ao movimento de anabolismo: ambiente ventilado, aeração, sol, higiene do corpo, alimentação adequada, contrariando as teorias da geração espontânea de sua época. Em terceiro lugar, ao criar a figura emblemática da Dama da lâmpada, FLORENCE NIGHTINGALE gravou no cuidado de enfermagem, o zelo, o desvelo e a compaixão, aqui entendida como empatia e piedade com o sofrimento do outro, acompanhada do desejo de minorá-lo, uma participação espiritual na dor do outro. Ao se deslocar à noite, entre moribundos, FLORENCE NIGHTINGALE trazia compaixão e não a cura, e sabia disso.
E por fim, a perspectiva da enfermagem como ciência e arte, arte como capacidade de expressar emoção (a literatura, a pintura, a arquitetura, a música e a poesia fazem isso com maestria também).
De que forma num século, em que havia altíssimo nível de agressão ao Homem e à natureza avaliadas como construtivo, também tinha caça ao lucro e ao poder, trabalhadores exaustos e nativos ultrajados, alcoolismo produzindo uma letargia social, indiferença brutal e isolamento insensível, infanticídio, prostituição como forma de sobrevivência e muitos álibis para agressão, um conceito de concorrência suportado pelo Darwinismo social e sobrevivência do mais apto e uma permissão social para odiar, uma licença de caça para uma cultura agressiva, como nesse meio cultural, uma mulher rica propõe a criação de uma profissão como a de enfermeira, que é uma arte e ciência?
Tem-se perguntado a amigos que ficaram um tempo, hospitalizados, qual foi a pior vivência? Como resposta temos, a humilhação de sentir o corpo sujo, e ter que esperar alguém vir te limpar. Parece ser um dos limites da dignidade humana. E aproveito para frisar que não há nenhum demérito em fazer a higiene de algum paciente. Mesmo tendo doutorado. Não se trata aqui de titulação. Como enfermeiras somos as únicas profissionais de saúde que têm autorização para tocar o corpo do outro. Autorização forte, em um mundo grandemente digital, onde sequer existe corpo.
É um privilégio poder cuidar, em uma globalização de descuidos.
Essas reflexões se apoiam sobre um longo tempo entre duas revoluções importantes, a revolução industrial e a revolução da eletroeletrônica, sobressaindo a tecnologia das informações (Ti). Não se trata mais de espaço entre elas, mas de abismo. Embora o calor humano constituinte do cuidado e da prática da enfermagem não possa ser digitalizado, construíram-se novos desafios. As tecnologias de informação e conhecimento (TICs) lentificam-se para se transformar em tecnologias de aprendizado e convivência (TACs). A velocidade das informações desafia nossa enfermeira de hoje a humanizar o cuidado à luz de tanta informação. Mas, o cuidado de enfermagem que Florence cunhou para a enfermagem moderna, ampara-se no aprendizado e na convivência. E a vida só faz sentido, no cuidado com o outro.
REFERÊNCIAS
- 1 Miranda CML. O parentesco imaginário: história e representação social da loucura nas relações do espaço asilar. Rio de Janeiro: Vozes; 1994.
- 2 White H. Tópicos do discurso – ensaio sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP; 1994.
-
3 Dias, LP, Dias, MP. Florence Nightingale e a História da Enfermagem [Internet]. Hist enferm Rev eletrônica. 2019 [citado 2020 maio 14];10(2):47-63. Disponível em: http://here.abennacional.org.br/here/v10/n2/a4.pdf
» http://here.abennacional.org.br/here/v10/n2/a4.pdf -
4 Frello AT, Carraro TE. Contribuições de Florence Nightingale: revisão integrativa. Esc Anna Nery. 2013 jul;17(3):573-9. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000300024
» http://dx.doi.org/10.1590/S1414-81452013000300024 - 5 Novaes A. Tempo e Histórias. São Paulo: Companhia das Letras; 1992.
- 6 Priestley JB. English Humour – the English heritage. London: Longmans Green and Co; 1934.
- 7 Dicken C. Oliver Twist. São Paulo: Melhoramentos; 1973.
- 8 Dickens C. Life and adventures of Martin Chuzzllewit. Londres:Champman and Hall; 1890.
- 9 Geremeck, B. Os Filhos de Caim- vagabundos e miseráveis na literatura europeia 1400-1700. São Paulo: Companhia das Letras; 1995.
- 10 Gay, P. O estilo da história. São Paulo: Companhia das Letras; 1990.
- 11 Campos MS. Poder, saúde e gosto: um estudo antropológico acerca dos cuidados possíveis com a alimentação e o corpo. São Paulo: Cortez; 1982.
- 12 Bresciani MSM. Londres e Paris do sec. XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense;1992.
- 13 Himmelfarb G. The idea of poverty. New York:Vintage Books; 1985.
- 14 Pool D. What Jane Austen ate and Charles Dickens knew. New York: Simon & Schuster; 1993.
- 15 Foucault M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1980.
Editado por
-
EDITOR ASSOCIADO Cristina Rosa Baixinho
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Abr 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
14 Maio 2020 -
Aceito
11 Fev 2021