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Inclusão ou ilusão da identidade de gênero no país com o maior número de assassinatos de transgêneros: um ensaio crítico brasileiro

Inclusión o ilusión de la identidad de gênero en el país con el mayor número de asesinatos transgêneros: ensayo crítico brasileño

Resumo

Objetivo

refletir sobre as implicações e os riscos associados ao novo registro de identificação do Brasil para a população trans.

Método

trata-se de estudo reflexivo que explora o conceito de identidade social como um fenômeno complexo, fundamentado nos princípios da autodeterminação e da dignidade humana. São consideradas perspectivas feministas pós-humanistas e críticas, que desafiam o essencialismo biológico dos indivíduos, com foco especial na teoria de Judith Butler.

Resultados

o Brasil está atualmente implementando um registro nacional de identificação capaz de reconhecer a identidade de gênero das pessoas trans. Este estudo aborda as implicações do novo sistema nacional de identificação, incluindo possíveis retrocessos e avanços na luta pelos direitos das pessoas trans. Para proteger a identidade e a segurança dessas pessoas, este artigo defende a criação de um novo sistema de identificação emitido pelo governo que armazene informações pessoais em bancos de dados, exibindo apenas o nome social e o marcador de gênero no cartão.

Considerações finais e implicações para a prática

as altas taxas de violência contra pessoas trans no Brasil destacam a necessidade urgente do novo sistema. O reconhecimento precoce e o respeito pela identidade de gênero são fundamentais para promover o sucesso do novo sistema.

Palavras-chave:
Direitos Humanos; Identidade de Gênero; Identificação Social; Registro Civil; Violência

Resumen

Objetivo

reflexionar sobre las implicaciones y los riesgos asociados con el nuevo registro de identificación de Brasil para la población trans.

Método

este es un estudio reflexivo que explora el concepto de identidad social como un fenómeno complejo, fundamentado en los principios de autodeterminación y dignidad humana. Se consideran perspectivas feministas poshumanistas, que desafían el esencialismo biológico, con un enfoque particular en la teoría de Judith Butler.

Resultados

Brasil se encuentra implementando un registro nacional de identificación que puede reconocer la identidad de género entre personas trans. Este estudio aborda las implicaciones del nuevo sistema nacional de identificación, incluyendo posibles retrocesos y avances en la lucha por los derechos de las personas trans. Para proteger la identidad y la seguridad de estas personas, este artículo aboga por la creación de un nuevo sistema de identificación emitido por el gobierno que almacene información personal en bases de datos, mostrando solo el nombre social y el marcador de género en la tarjeta.

Consideraciones finales e implicaciones para la práctica

las altas tasas de violencia contra personas trans en Brasil enfatizan la necesidad urgente del nuevo sistema. El reconocimiento temprano y el respeto por la identidad de género son fundamentales para promover el éxito del nuevo sistema nacional de identificación.

Palabras clave:
Derechos Humanos; Identidad de Género; Identificación Social; Registro Civil; Violencia

Abstract

Objective

to reflect on the implications and risks associated with Brazil’s new identification registry for the trans population.

Method

this is a reflective study that explores the concept of social identity as a complex phenomenon, grounded in the principles of self-determination and human dignity. To accomplish this, it draws upon feminist post-humanist and critical perspectives, challenging individuals’ biological essentialism, with a particular focus on Judith Butler’s theory.

Results

Brazil is currently implementing a national identification registry that can recognize trans individuals’ gender identity. This manuscript addresses the implications of the new national identification system, including potential setbacks and advances in the struggle for trans rights. To safeguard people’s identity and safety, this article advocates for a novel national government-issued identification system that stores personal information in central databases for linking purposes, displaying only the preferred name and gender marker on the identification card.

Final considerations and implication for practice

the high rates of anti-trans violence in Brazil emphasize the urgent need for the new system. Early recognition and respect for gender identity are integral to promoting the success of the new national identification system.

Keywords:
Civil Registration; Gender Identity; Human Rights; Social Identification; Violence

INTRODUÇÃO

Mundialmente, a população trans é considerada um dos grupos populacionais mais vulneráveis, enfrentando discriminação, estigma e múltiplas negações do direito de ser e de viver, ou seja, o direito de existir no mundo é muitas vezes questionado.11 Fredriksen Goldsen KI, Romanelli M, Hoy-Ellis CP, Jung H. Health, economic and social disparities among transgender women, transgender men and transgender nonbinary adults: Results from a population-based study. Prev Med. 2022;156:106988. http://dx.doi.org/10.1016/j.ypmed.2022.106988. PMid:35150748.
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,22 Reisner SL, Poteat T, Keatley J, Cabral M, Mothopeng T, Dunham E et al. Global health burden and needs of transgender populations: a review. Lancet. 2016;388(10042):412-36. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(16)00684-X. PMid:27323919.
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No campo da saúde, essa multiplicidade de violações gera barreiras ao acesso aos cuidados. Inúmeros estudos apontam os processos discriminatórios praticados pelos profissionais como um fator dificultador do acesso e utilização dos serviços de saúde, sendo a negação do nome e a exposição da identidade de gênero os eventos mais relatados.33 Grinsztejn B, Jalil EM, Monteiro L, Velasque L, Moreira RI, Garcia AC et al. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. Lancet HIV. 2017;4(4):e169-76. http://dx.doi.org/10.1016/S2352-3018(17)30015-2. PMid:28188030.
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4 Poteat T, German D, Kerrigan D. Managing uncertainty: a grounded theory of stigma in transgender health care encounters. Soc Sci Med. 2013;84:22-9. http://dx.doi.org/10.1016/j.socscimed.2013.02.019. PMid:23517700.
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-55 Galindo GR, Garrett-Walker JJ, Hazelton P, Lane T, Steward WT, Morin SF et al. Community member perspectives from transgender women and men who have sex with men on pre-exposure prophylaxis as an HIV prevention strategy: implications for implementation. Implement Sci. 2012;7(1):116. http://dx.doi.org/10.1186/1748-5908-7-116. PMid:23181780.
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Estudos indicam que a procura por cuidados de saúde, por exemplo, são frequentemente atrasados ​​devido a eventos discriminatórios vividos no passado.66 Melendez RM, Pinto RM. HIV Prevention and primary care for transgender women in a community-based clinic. J Assoc Nurses AIDS Care. 2009;20(5):387-97. http://dx.doi.org/10.1016/j.jana.2009.06.002. PMid:19732697.
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,77 Cruz TM. Assessing access to care for transgender and gender nonconforming people: a consideration of diversity in combating discrimination. Soc Sci Med. 2014;110:65-73. http://dx.doi.org/10.1016/j.socscimed.2014.03.032. PMid:24727533.
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Essa situação tem consequências deletérias para a população, como taxas alarmantes de infecções sexualmente transmissíveis, depressão, ansiedade e comportamento suicida.88 Stutterheim SE, van Dijk M, Wang H, Jonas KJ. The worldwide burden of HIV in transgender individuals: an updated systematic review and meta-analysis. PLoS One. 2021;16(12):e0260063. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0260063. PMid:34851961.
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9 Pinna F, Paribello P, Somaini G, Corona A, Ventriglio A, Corrias C et al. Mental health in transgender individuals: a systematic review. Int Rev Psychiatry. 2022;34(3-4):292-359. http://dx.doi.org/10.1080/09540261.2022.2093629. PMid:36151828.
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-1010 Rafael RMR, Jalil EM, Luz PM, de Castro CRV, Wilson EC, Monteiro L et al. Prevalence and factors associated with suicidal behavior among trans women in Rio de Janeiro, Brazil. PLoS One. 2021;16(10):e0259074. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0259074. PMid:34679106.
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Além disso, é reconhecido mundialmente que a violência, muitas vezes devido à polivitimização, começa na infância e se estende ao longo da vida.1111 Schnarrs PW, Stone AL, Salcido Jr R, Baldwin A, Georgiou C, Nemeroff CB. Differences in adverse childhood experiences (ACEs) and quality of physical and mental health between transgender and cisgender sexual minorities. J Psychiatr Res. 2019;119:1-6. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpsychires.2019.09.001. PMid:31518909.
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,1212 Sterzing PR, Ratliff GA, Gartner RE, McGeough BL, Johnson KC. Social Ecological Correlates of Polyvictimization among a National Sample of Transgender, Genderqueer, and Cisgender Sexual Minority Adolescents. Child Abuse Negl. 2017;67:1-12. http://dx.doi.org/10.1016/j.chiabu.2017.02.017. PMid:28226283.
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O Brasil enfrenta altos níveis de violência contra pessoas trans e uma falta sistemática de proteção estatal, ocupando o primeiro lugar no ranking mundial em assassinatos de pessoas trans.1313 Benevides BG, Nogueira SNB. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018. Brasília: ANTRA; 2020.

Além disso, a falta de políticas públicas resulta em um ambiente social precário para a população trans. A expectativa de vida estimada não passa de 35 anos de idade,1313 Benevides BG, Nogueira SNB. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018. Brasília: ANTRA; 2020. embora no contexto brasileiro exista uma lacuna na contagem de mortes entre pessoas trans e não-binárias. Em outras palavras, não existem dados sobre a identidade de gênero em registros oficiais sobre as mortes. A contagem das mortes tem sido realizada por grupos e associações, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), que coletam informações por meio de reportagens de jornais e unidades de saúde.1313 Benevides BG, Nogueira SNB. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018. Brasília: ANTRA; 2020. Portanto, a estimativa é que, apesar de ocupar posições críticas no ranking de assassinatos, o Brasil ainda sofre com uma subnotificação significativa de mortes de pessoas trans, muito prejudicada pelas políticas públicas atuais.

Nesse momento, o Brasil está no processo de construção de novas maneiras de abordar lacunas de dados em relação a documentos de identificação, especialmente sobre marcadores de gênero e nomes. O país está em debate sobre a implementação de um novo registro nacional de identificação com a adoção de um sistema de codificação único. No entanto, é possível que o novo sistema de documentos de identificação, embora inovador, também possa representar riscos significativos para a população trans. Uma perigosa mudança de sistema ocorreu sob a administração do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que implementou uma política amplamente considerada prejudicial às pessoas trans. Afastando-se da prática anterior nos documentos de identificação brasileiros, o governo passou a exigir a inclusão de informações sobre sexo atribuído ao nascimento, “nomes sociais”, bem como nomes de registro civil (nome atribuído em nascimento) em documentos oficiais. Uma pessoa trans, que tenha ambos os nomes no seu documento de identificação, poderia então ter a confidencialidade e a segurança colocadas em risco. Nesse contexto, este artigo tem como objetivo refletir sobre as implicações e riscos associados ao novo registro de identificação da população trans do Brasil.

MÉTODOS

Este é um ensaio reflexivo desenvolvido por meio de uma análise crítica dos riscos do sistema de identificação civil brasileiro, especialmente em um contexto que expõe as identidades de gênero de pessoas trans e não-binárias. Dada a complexidade deste tema, a reflexão foi dividida em dois componentes temáticos. O primeiro componente envolve a análise do “nome” como elemento fundamental na (re)construção dos “marcadores de gênero” e na modulação das identidades sociais. O segundo componente examina as implicações e riscos de expor o “nome” e o “sexo” em relação ao “gênero” na carteira de identidade.

Essas reflexões, realizadas em março de 2023, foram impulsionadas pelas preocupações dos grupos transativistas em relação ao novo sistema de identificação civil brasileiro. Não foram estabelecidos critérios de inclusão ou exclusão para seleção e busca bibliográfica. Reconhecendo que um ensaio leva em conta a perspectiva dos autores e, consequentemente, a subjetividade, este manuscrito escolheu as teorias de gênero e de linguagem como base para suas reflexões. Essas escolhas teóricas e metodológicas impõem limites analíticos ao estudo, aspecto que deve ser levado em consideração na interpretação das reflexões produzidas neste manuscrito.

Considerando que a discussão central deste manuscrito gira em torno da identidade social como um fenômeno complexo,1414 Kritsch R, Ventura RW. Reconhecimento, identidade(s) e conflito social: debates a partir da teoria política e social. Civitas. 2019;19(2):441. http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2019.2.29915.
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bem como dos princípios da autodeterminação e da dignidade humana, foram escolhidas para análise as teorias de John Austin e Judith Butler, especificamente as teorias dos atos de fala e de gênero como atos performativos, respectivamente.1515 Austin J. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018.

16 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.
-1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.

A primeira, a “teoria dos atos de fala” de John Austin, argumenta que a linguagem vai além de apenas descrição fatual (linguagem constativa). Segundo Austin,1515 Austin J. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018. “falar”, baseado em acordos socialmente construídos sobre contextos e significados das palavras, é, na verdade, “agir”. Por outro lado, a teoria de Butler interpreta o gênero como uma construção discursiva e não como algo inato e biológico.1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,1818 Butler J. The force of nonviolence: an ethico-political blind. London: Verso; 2020. Assim, tanto Butler como Austin, de certo modo, entendem esses fenômenos como produtos e efeitos de discursos. Portanto, estão interligados na realização de atos, seja por meio de expressões discursivas faladas ou pela reprodução de modos e formas de se comportar e interagir em sociedade.

Para Butler, o discurso, ao longo do tempo, uma vez que estabiliza e caracteriza as diferenças, produz categorias desiguais de pessoas. A primeira categoria inclui pessoas cujas identidades de gênero são consideradas, em uma perspectiva essencialista (biologicamente inata), como “originais”, tais como mulheres e homens cisgênero. As outras categorias incluem pessoas com identidades ditas dissonantes, como mulheres trans, homens trans, pessoas não-binárias e todo o espectro de expressões de gênero.1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,1818 Butler J. The force of nonviolence: an ethico-political blind. London: Verso; 2020. Como critica Butler, esses corpos dissonantes não são “enlutáveis”.1919 Butler J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London: Verso; 2004. Em outras palavras, esses corpos e essas vidas dissonantes têm menor importância social, quando comparados às “categorias originais” de uma perspectiva essencialista.

Por fim, as reflexões resultaram em duas categorias de discussão: “O nome transcendente: o significado dos nomes na (re)construção dos marcadores de gênero”; e “Implicações e riscos do novo registro civil do Brasil para a população trans”. As considerações finais deste manuscrito centraram-se na reflexão sobre os efeitos práticos no setor de saúde e na enfermagem.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O nome transcendente: o significado dos nomes na (re)construção dos marcadores de gênero

A compreensão dos corpos como construções sociais reconhece que as identidades são influenciadas pela cultura e que os corpos estão inscritos em um conjunto de significados e normas sociais mesmo antes do nascimento.1616 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,2020 Louro GL, Neckel JF, Goellner SV. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes; 2003. Assim, tanto o sexo quanto o gênero atribuído aos corpos são construções sociais afetadas pelo discurso ao longo do tempo, constituindo uma identificação social dos indivíduos.1616 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,2121 Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero. Doxa: Rev Bras Psicol Educ. 2017;19(1):51-61. http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819.
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,2222 Braidotti R, Hlavajova M. Posthuman Glossary. London: Bloomsbury Publishing; 2018.

Contribuindo com a proposta teórica de Butler,1616 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990. trouxemos para esta discussão a teoria dos atos de fala. Ao assumir que falar também é uma ação, quando são atribuídos signos discursivos ao gênero - como afirmar que uma mulher ou um homem é aquele que realiza determinados atos, apresenta determinadas formas, ou comportamentos corporais -, estamos enquadrando os corpos em uma forma de ação discursiva que também é imperativa (impondo uma norma) e que se estabiliza como verdade performativa.1515 Austin J. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018. Ou seja, para que alguém seja considerado homem ou mulher, é necessário cumprir determinados comportamentos que a sociedade exige.1616 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.

Assim, sexo, gênero, sexualidade e corpo são carregados de interpretação e moldados por uma trajetória de reproduções atribuídas ao que é feminino ou masculino.2121 Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero. Doxa: Rev Bras Psicol Educ. 2017;19(1):51-61. http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819.
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Como tal, não existe feminilidade ou masculinidade inata, mas sim moldada e construída pela sociedade.1616 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,2020 Louro GL, Neckel JF, Goellner SV. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes; 2003. Nesse sentido, mulheres trans e mulheres cisgênero contribuem mutuamente para a construção do que representa a feminidade.2121 Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero. Doxa: Rev Bras Psicol Educ. 2017;19(1):51-61. http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819.
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O mesmo se aplica às categorias dentro do espectro da identidade masculina.

Conscientemente ou não, esses indivíduos reforçam-se simultaneamente para manter um estado de normalização e inteligibilidade dos corpos, a fim de garantir uma identidade dentro de um sistema dual de homens e mulheres, com seus limites de características corporais, gestos e fala.1616 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993.,2121 Firmino FH, Porchat P. Feminismo, identidade e gênero em Judith Butler: apontamentos a partir de “problemas de gênero. Doxa: Rev Bras Psicol Educ. 2017;19(1):51-61. http://dx.doi.org/10.30715/rbpe.v19.n1.2017.10819.
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,2323 Lima VM, Belo FRR. Gênero, sexualidade e o sexual: o sujeito entre Butler, Foucault e Laplanche. Psicol Estud. 2019;24:e41962. Na mesma medida, corpos que se desviam das performances esperadas no sistema masculino-feminino são considerados dissonantes e, consequentemente, carregam o ônus da eliminação-correção social, como ter seus nomes desrespeitados e enfrentar múltiplas barreiras ao acesso aos serviços, incluindo serviços de saúde.

Na perspectiva de Butler,1616 Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990.,1717 Butler J. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge; 1993. não existem categorias de gênero fixas ou inerentes. Uma vez que a identidade de gênero representa uma estabilização discursiva do que significa ser homem ou mulher, também abre a possibilidade de novas identidades se movimentarem entre esses dois polos e, mais importante ainda, existirem para além deles. Nesse sentido, a identidade de gênero pode assumir posições que ultrapassam um sistema bem estabelecido de compreensão dos corpos, como a fluidez de gênero ou as pessoas não-binárias, que navegam por outros espectros identitários e desafiam o rígido conceito binário de gênero.

Na mesma linha da abordagem adotada na compreensão do gênero como produto de discursos, o “nome” (masculino ou feminino) também pode ser entendido como uma construção social e, portanto, de natureza discursiva. O nome, juntamente com os comportamentos e expressões socialmente esperados dos indivíduos, constituem marcadores de gênero. Assim, quando um nome é atribuído a um corpo, este assume um significado social. Em outras palavras, o corpo se torna “habilitado” para navegar no mundo e, em conjunto com outros marcadores, ser reconhecido como homem ou mulher.2424 Silva NL, Lopes ROP, Bitencourt GR, Bossato HR, Brandão MAG, Ferreira MA. Social identity of transgender persons: concept analysis and proposition of nursing diagnoses. Rev Bras Enferm. 2020;73(suppl 5):e20200070. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0070. PMid:33338166.
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25 Hatje LF, Costa Ribeiro PR, Magalhães JC. (formar) o nome: alguns efeitos do nome social e da alteração do nome civil na vida de sujeitos trans. Revista Contexto & Educação. 2019;34(108):122-43. http://dx.doi.org/10.21527/2179-1309.2019.108.122-143.
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-2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Nesse contexto, o mundo se conformou com a cultura que atribui nomes (seja social ou civil) que devem estar alinhados com o que é observado nas pessoas e, consequentemente, esperado para os corpos. Portanto, o nome serve como mais uma forma de tornar um corpo inteligível para a sociedade.

Para pessoas trans, o nome tem um significado especial. Pode simbolizar a superação da negação do direito de ser quem são. O “nome” está intrinsecamente ligado às subjetividades que determinam a identidade e afetam a ligação da pessoa com os grupos sociais. O uso de um “nome” garante a autonomia e reforça a capacidade de autodeterminação do ser humano para definir sua própria identidade.2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Não é coincidência que a escolha de um nome por pessoas trans esteja ligada à redução de sofrimento.2727 Russell ST, Pollitt AM, Li G, Grossman AH. Chosen name use is linked to reduced depressive symptoms, suicidal ideation, and suicidal behavior among transgender youth. J Adolesc Health. 2018;63(4):503-5. http://dx.doi.org/10.1016/j.jadohealth.2018.02.003. PMid:29609917.
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Muitas vezes, depois de enfrentarem exigências legais e administrativas, as pessoas trans mudam com sucesso os seus nomes nos registros civis. Posteriormente, é comum que pessoas trans se refiram ao nome que lhes foi atribuído ao nascer como “nome morto”, simbolizando, em parte, a (re)construção da sua identidade.

A “morte” do “nome antigo” (nome com o qual a pessoa foi registrada ao nascer), além de envolver a subversão das normas de gênero impostas socialmente, também pode ser interpretada como um “ato de fala”.1515 Austin J. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018. Enquanto o “nome registrado” foi imposto por outros, a nova escolha é um ato que contribui para a sua autodeterminação, materializando a sua performance de gênero. Em outras palavras, a pessoa passa a declarar “eu me batizo!” com o novo nome (social ou não).

Para as pessoas trans, a escolha de um “nome” constitui claramente um ato político.2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Permite a uma pessoa reconstruir uma existência invalidada pela dissonância entre o corpo e o nome atribuído no nascimento (por exemplo, um nome considerado feminino em um corpo masculino e vice-versa), incluindo acesso a direitos e proteção estatal.2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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,2828 Lages VN, Duarte EP, Araruna ML. “Gambiarras legais” para o reconhecimento da identidade de gênero? As normativas sobre nome social de pessoas trans nas Universidade Públicas Federais. Direito Público. 2021;18(97):712-44. http://dx.doi.org/10.11117/rdp.v18i97.5013.
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Uma mulher trans, ao ser reconhecida como mulher pelo Estado, por exemplo, é capaz de acessar direitos e proteção do Estado brasileiro contra a violência cometida por parceiros íntimos e outros. Essa proteção não é possível de ser acessada a menos que a mulher trans seja socialmente e legalmente reconhecida como mulher.2929 Medeiros BN, de Castro GHC, Siqueira MVS. Ativismo trans e reconhecimento: por uma “transcis-rexistência” na política brasileira. Rev Bras Ciênc Polít. 2022;(37):e246289. http://dx.doi.org/10.1590/0103-3352.2022.37.246289.
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Ao contrário das pessoas cisgênero, aquelas que se identificam como trans escolhem ativamente o seu nome. Seu nome é permeado de experiências, considerando a série de obstáculos que moldaram suas vidas. A passividade do nome atribuído no nascimento é substituída pelo novo nome, que representa expressão de desejos e significados: um novo batismo, um novo nome, uma nova vida.2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Implicações e riscos do novo registro civil do Brasil para a população trans

Para as pessoas trans, a carteira de identidade (registro civil) é um registro carregado de significado, pois é uma forma oficial de traduzir sua identidade de gênero para a sociedade. Atualmente, no Brasil, uma lei de registro civil permite que pessoas trans alterem seu marcador de gênero em documentos de oficiais sem a necessidade de cirurgia de “redesignação de gênero”. No entanto, mesmo com uma nova lei que criminaliza a homofobia e a transfobia em 2019, na prática, existem muitos obstáculos burocráticos e sociais à obtenção de novos registros, tais como exigir que pessoas trans obtenham uma ordem judicial ou atestado médico.3030 Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017. Rev Bras Epidemiol. 2020;23(suppl 1):e200006. http://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200006.supl.1. PMid:32638993.
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Conforme mencionado, durante a administração de extrema direita do ex-presidente Jair Bolsonaro, novas carteiras de identidade passaram a exibir o sexo atribuído no nascimento (sexo biológico) de pessoas trans. Outro problema significativo para as pessoas trans foi a apresentação do seu nome de registro, bem como do seu “nome social” no mesmo documento, expondo ainda mais a sua identidade a qualquer pessoa que tenha acesso ao documento e, assim, desrespeitando o direito da pessoa trans à autoidentificação. A tentativa de expor a identidade de gênero poderá mais uma vez representar o que alguns autores chamam de “morte social”.2929 Medeiros BN, de Castro GHC, Siqueira MVS. Ativismo trans e reconhecimento: por uma “transcis-rexistência” na política brasileira. Rev Bras Ciênc Polít. 2022;(37):e246289. http://dx.doi.org/10.1590/0103-3352.2022.37.246289.
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Em outras palavras, ao implementar uma política que aprofunda a exclusão social, a mesma, de certa forma, protege as fronteiras rígidas que separam os gêneros considerados originais e atribui riscos crescentes às identidades não conformes.

Ao adotar um novo “nome social” associado ao gênero masculino ou feminino, as pessoas trans podem incorporar outros elementos de gênero na sua persona. Isso contribui para a construção e expressão da sua identidade de gênero.2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Proporciona um novo significado ao corpo, seja ele transfeminino, transmasculino ou não-binário. A adoção do novo nome não depende necessariamente de procedimentos de “redesignação de gênero”, hormônios e outras intervenções médicas que modifiquem o corpo. O próprio nome é um “marcador de gênero”, uma das formas mais importantes de “cirurgia social”3131 Cortes HM. A transgeneridade feminina e os processos de mudanças corporais. J Nutr Health. 2018;8(2). http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v8i2.14345.
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que uma pessoa trans passa, marcando um novo nascimento.

Em contraste com as cirurgias corporais que uma sociedade, orientada pela imposição de normas cisgênero, espera de uma pessoa trans, a “cirurgia social”3131 Cortes HM. A transgeneridade feminina e os processos de mudanças corporais. J Nutr Health. 2018;8(2). http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v8i2.14345.
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é inevitável para os corpos trans. O termo “cirurgia social”, cunhado por Cortes,3131 Cortes HM. A transgeneridade feminina e os processos de mudanças corporais. J Nutr Health. 2018;8(2). http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v8i2.14345.
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uma importante pesquisadora brasileira na área, refere-se a um complexo processo de mudanças. Esse processo envolve o relativo abandono das práticas sociais utilizadas até então, como a substituição de bens e vestimentas que muitas vezes lhes eram impostos, de memórias e, em alguns casos, de grupos sociais para dar lugar à nova existência, que seja compatível com a realidade existencial da pessoa.

Utilizar o nome social e pronomes apropriados (ele/dele, ela/dela) é fundamental no cotidiano de quem busca cuidar de indivíduos, sejam eles trans ou cisgêneros.2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Depois do corpo, que é o primeiro aspecto observado por qualquer pessoa, o nome é um dos principais marcadores de gênero utilizados nas interações e no estabelecimento de conexões entre os seres humanos, principalmente quando se trata de profissionais de saúde. Talvez o quadro predominantemente heterocisnormativo que orienta o cuidado dos indivíduos por vezes dificulte a compreensão do verdadeiro significado atribuído ao simples ato de dirigir-se a uma pessoa pelo nome (aquele que a pessoa considera verdadeiro).

Nesse sentido, é importante refletir sobre a ausência ou raridade de “mal-entendidos” e erros ao dirigir-se a uma pessoa cisgênero. Isso porque a forma como as pessoas percebem esses corpos, em tese, já está internalizada. Ou seja, ao se comunicarem, as pessoas já leem e interpretam outros corpos com base no que aprenderam como gestos e expressões que deveriam ser femininas ou masculinas. Como os nomes atribuídos aos indivíduos cisgêneros normalmente representam o que é culturalmente considerado como padrão “original” de feminino ou masculino, raramente haverá um erro ao nomeá-los.2020 Louro GL, Neckel JF, Goellner SV. Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes; 2003. Por outro lado, no caso específico de pessoas trans, é importante refletir que, de forma alarmante, a prática do respeito ao nomeá-las não é tão natural como nos corpos cisgêneros, mesmo quando os corpos exibem as características “femininas” ou “masculinas” que a sociedade espera.2525 Hatje LF, Costa Ribeiro PR, Magalhães JC. (formar) o nome: alguns efeitos do nome social e da alteração do nome civil na vida de sujeitos trans. Revista Contexto & Educação. 2019;34(108):122-43. http://dx.doi.org/10.21527/2179-1309.2019.108.122-143.
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,2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Desrespeitar o nome de uma pessoa trans invalida sua identidade social (re)construída ao longo de sua história.2626 Mota M, Santana AD S, Silva LR, Melo LP. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface Comunicacao Saude Educ. 2022;26:e210017. http://dx.doi.org/10.1590/interface.210017.
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Dessa forma, essa prática deve ser considerada um questionamento da verdade de seus corpos e do reconhecimento de sua existência como mulher, homem, ou pessoa não-binária. Por meio da linguagem performativa,1515 Austin J. How to do things with words. Connecticut: Martino Fine Books; 2018. essa é uma maneira de criar uma distinção entre corpos considerados “originais” e, consequentemente, corretamente nomeados, de outros corpos - os outros, os distintos, os segregados, ou como também sugere Butler, os corpos que não são passíveis de luto.1919 Butler J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London: Verso; 2004.

Uma variedade de complicações e impedimentos existe para uma mudança de nome ou de marcador de gênero em diferentes tipos de documentação brasileira [por exemplo, certidão de nascimento, carteira de identidade emitida pelo governo, registro nacional do cartão de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), carteira de motorista, carteira de estudante]. Assim, muitas pessoas trans têm nomes e marcadores de gênero conflitantes em várias formas de identificação, o que pode diferir novamente do que aparece na nova carteira de identidade nacional emitido pelo governo (registro civil). Essas inconsistências representam uma clara manifestação da necropolítica trans do Estado brasileiro. Nesse contexto, esse aparato burocrático que reforça sistematicamente as hierarquias de poder existentes contribui para a marginalização de corpos considerados discordantes pelo sistema binário de gênero, tornando as “identidades dissonantes” ainda mais suscetíveis à violência e à exclusão social.3232 Peixoto EM, de Azevedo Oliveira Knupp VM, Soares JRT et al. Interpersonal violence and passing: results from a brazilian trans-specific cross-sectional study. J Interpers Violence. 2021;37:1-14. PMid:33866890.

Evidências recentes mostram que, quanto mais um corpo trans se desvia do que é considerado feminino ou masculino pela sociedade, maiores são as chances de sofrer violência.3232 Peixoto EM, de Azevedo Oliveira Knupp VM, Soares JRT et al. Interpersonal violence and passing: results from a brazilian trans-specific cross-sectional study. J Interpers Violence. 2021;37:1-14. PMid:33866890. Dados de um estudo nos EUA demonstraram que ser identificada como mulher trans esteve associado ao assédio e à agressão física.3333 James SE, Herman JL, Rankin S, Keisling M, Mottet L, Anafi M. The Report of the 2015 US Transgender Survey. Washington, DC: National Center for Transgender Equality; 2016. O acesso à identificação apropriada, alinhado às identidades das pessoas trans com aquelas mostradas em suas carteiras de identidade, é uma forma importante de proteção contra o alarmante risco de violência anti-trans no Brasil. Apesar disso, é reconhecido que a implementação de medidas precoces de respeito e reconhecimento da identidade de gênero, incluindo o processo de transição de gênero, tende a melhorar a qualidade de vida das pessoas trans.3434 Olson KR, Durwood L, Demeules M, McLaughlin KA. Mental health of transgender children who are supported in their identities. Pediatrics. 2016;137(3):e20153223. http://dx.doi.org/10.1542/peds.2015-3223. PMid:26921285.
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Especificamente em relação à exposição de marcadores de gênero na carteira de identidade brasileira, é importante ressaltar que a situação está temporariamente resolvida. Por meio da mobilização transativista, liderada por organizações de defesa dos direitos LGBTQIA+, como a ANTRA, o atual Governo Federal montou uma força-tarefa com o objetivo de propor modificações na estrutura das seções “marcador de gênero” e “nome social” da carteira de identidade nacional, eliminando, em maio de 2023, o método proposto anteriormente. Considerando esse cenário, é imprescindível que o desenvolvimento de qualquer política pública que envolva populações tradicionalmente marginalizadas pelo Estado brasileiro, incluindo mudanças no sistema de identificação e na carteira de identidade que afetaram pessoas trans e não-binárias, inclua representantes desses grupos como protagonistas no processo de mudança social.2929 Medeiros BN, de Castro GHC, Siqueira MVS. Ativismo trans e reconhecimento: por uma “transcis-rexistência” na política brasileira. Rev Bras Ciênc Polít. 2022;(37):e246289. http://dx.doi.org/10.1590/0103-3352.2022.37.246289.
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A radicalização da participação social é urgente na construção e reconstrução de políticas públicas no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Embora a exposição de “marcadores de gênero” em carteiras de identidade tenha sido temporariamente superada, a história das políticas anti-trans no Brasil demonstra a necessidade contínua de defender permanentemente os direitos humanos. Desafiar o essencialismo biológico de gênero, que perpetua as desigualdades entre os grupos, significa expandir as dimensões do cuidado para além da anatomia do corpo. O atendimento integral às pessoas (trans, não-binárias ou cisgêneros) começa no momento em que as chamamos pelo nome.

Assim, o nome, além de ser um elemento instituído socialmente para garantir a inteligibilidade dos corpos, possui especial significado para pessoas trans e não-binárias, especialmente pela variedade de experiências violentas sobrepostas ao longo da vida. Portanto, respeitar o nome das pessoas é uma das tecnologias de cuidado mais importantes que podem ser praticadas, principalmente pelos profissionais de saúde, incluindo os enfermeiros. Conforme demonstrado, a negação do direito ao uso do nome e a aplicação incorreta de pronomes associados são fatores frequentemente relatados que dificultam o acesso aos serviços de saúde. Garantir que os indivíduos exerçam sua identidade social significa cuidar para que a autodeterminação de gênero seja uma prática comum nos espaços de cuidado. Esse ato, muitas vezes percebido como trivial, tem a capacidade de diminuir o sofrimento humano e prevenir a violência em diversas esferas da vida, inclusive nos serviços de saúde.

Além disso, garantir que os registros de marcadores de gênero sejam armazenados exclusivamente em bases de dados governamentais, e não em carteiras de identidade, reduzirá potencialmente os riscos para as populações trans e não-binárias. Contudo, é imperativo garantir que a criação de uma chave de registro única seja eficazmente implementada em todas as bases de dados governamentais. O Brasil ainda carece de dados robustos sobre a população trans. Os poucos conjuntos de dados oficiais disponíveis para o grupo LGBTQIA+ limitam-se à variável “orientação sexual” coletada. No Brasil, a coleta sistemática da variável “identidade de gênero” só começou em 2015 e se restringe a registros de violência interpessoal e autoprovocada. Portanto, se os marcadores de gênero forem eficazmente registrados e essa chave de registro for implementada com sucesso, será possível interligar os sistemas de informação nacionais. Consequentemente, com o acesso à informação de qualidade pelos profissionais de saúde, a tendência é que as ações de cuidado sejam direcionadas às reais necessidades desse grupo populacional.

  • FINANCIAMENTO

    Este estudo recebeu apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para bolsa de produtividade em pesquisa (Número da bolsa: 312056/2022-2); da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Número da bolsa: 211.970/2021); e do Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROCIENCIA/UERJ), para Ricardo de Mattos Russo Rafael.

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Ivone Evangelista Cabral https://orcid.org/0000-0002-1522-9516

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2023
  • Aceito
    21 Out 2023
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